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Memória Roda Viva

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Dona Zica da Mangueira

14/2/1994

Dona Zica conta como conheceu Cartola e fala do dom musical desse grande compositor

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Programa gravado (sem perguntas de telespectadores)

Jorge Escosteguy: Boa noite. Carnaval e escolas de samba são os temas desta noite no Roda Viva que começa agora pela TV Cultura de São Paulo. Nossa convidada dessa noite é certamente um dos símbolos do carnaval carioca, um dos símbolos da tradição das escolas de samba. No centro da Roda está Dona Zica da Mangueira, com quem nós vamos conversar nesta noite de segunda-feira de carnaval. Euzébia Silva de Oliveira, a Dona Zica, fez 81 anos dia 6 deste mês, quase no carnaval, até porque ela mesma nasceu num domingo carnavalesco, em 1913, no subúrbio carioca de Piedade. Fundadora da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, junto com Angenor de Oliveira, o Cartola, com quem viveu durante 40 anos, Dona Zica já foi enredo de escola de samba e tem uma receita muito particular para uma vida longa: bom humor e muito samba. Para entrevistar Dona Zica esta noite no Roda Viva, nós convidamos: Zuza Homem de Mello, crítico e produtor musical; Marília Trindade Barbosa, pesquisadora de música popular brasileira, autora da biografia de Cartola e da História da Mangueira; Maria Luiza Kfouri, diretora da rádio Cultura AM de São Paulo; Assis Ângelo, jornalista e pesquisador da cultura musical brasileira; Aydano André Motta, repórter do jornal O Globo no Rio de Janeiro; J. Paulo da Silva, chefe de redação do jornal O Estado de S. Paulo da sucursal do Rio de Janeiro e Osvaldo Martins, jornalista. Boa noite, Dona Zica.  

[Em 22/01/2003, Dona Zica veio a falecer após uma parada cardiorrespiratória, em casa, no morro da Mangueira, zona norte do Rio] 

Dona Zica: Boa noite.  

Jorge Escosteguy: O Cartola já havia dito certa vez que a escola de samba morreu. A senhora mesma também se queixou que o carnaval de antigamente era melhor. 

Dona Zica: Era. 

Jorge Escosteguy: Hoje a Mangueira mesmo é praticamente uma empresa do carnaval e hoje também se costuma, outras escolas de samba fazem a mesma coisa, por exemplo, a pessoa compra a fantasia e vai desfilar. Como a senhora se sente em relação a isso, e se isso é discutido um pouco na escola e as pessoas acham que é inevitável, e se é inevitável, vamos nos adaptar a esses tempos. 

Dona Zica: Não é? Temos que adaptar aos costumes, porque as coisas evoluem e vão por esse caminho, nós temos que aceitar e queremos é carnaval. 

Jorge Escosteguy: Mas dessas mudanças, o que se perdeu, o que a senhora sente mais falta do que perdeu ao longo dos desfiles das escolas de samba? 

Dona Zica: Eu sinto mais falta do carnaval que começava em dezembro, as batalhas de confete. Tinha a rainha da batalha, que era a dona Zulmira e a Dona Luiza; a gente já começava a brincar em dezembro, quando chegava o carnaval a gente já tinha brincado muito. Agora não, ficou restrito só àqueles três dias, e a escola de samba e nada mais. Tinha aquelas fantasias bonitas, tinha corsos, tinha tudo o que era de bonito. Carnaval os três dias, sociedade, ranchos, e aquilo tudo era bonito e era gostoso, que foi acabando, acabando e hoje está reduzido só nas escolas de samba. 

Jorge Escosteguy: A senhora acha que isso foi terminando porque a cidade mudou ou porque as escolas acabaram virando um pouco uma empresa pela necessidade de arrecadar dinheiro? 

Dona Zica: Não sei, o povo em si, não sei o que deu, que virou, mas nós estamos felizes de ter os três dias de carnaval. Mas a gente sentia aquele gosto antes. Os armarinhos, a gente via aquele gosto de carnaval, as ruas. Agora não, a gente sabe que é carnaval, porque está na folhinha: hoje é domingo de carnaval. É o que nós sabemos. Já antigamente não, eu, por exemplo, na minha casa, a gente já dormia fantasiada para de manhã não perder tempo. 

Jorge Escosteguy: E cada um fazia a sua roupa, como que era a confecção para o desfile? 

Dona Zica: Cada um fazia a sua roupa, não tinha esse negócio de [...] não. Cada um fazia a sua roupa, as baianas das escolas eram feitas escondidas, só sabia o segredo na hora que a escola se aprontava para desfilar. Os enredos, era tudo mais escondido. Agora não, todos já sabem, já tem o desfile das fantasias antes do carnaval. Mudou completamente. Mas como eu sou carnavalesca, eu quero o carnaval, o que importa é o carnaval. 

Maria Luiza Kfouri: Dona Zica, o Cartola reclamava muito também do andamento do samba, ele dizia: “Não faço mais samba-enredo, porque o samba está muito corrido, muito rápido para o meu gosto”. 

Dona Zica: Antigamente o samba era cadenciado, não tinha caixa de guerra, não tinha aquele tambor grande, maracanã, era tudo mais lento. O samba era cantado cadenciado, a gente, as baianas, que eu saí muito de baiana, né, a baiana já tinha aquele jogo do chinelo bater no chão:  chép, chép, chép... Agora não, sumiu aquilo tudo. 

Maria Luiza Kfouri: Quer dizer, o samba virou marcha, não é, Dona Zica? 

Dona Zica: Virou marcha e ficou, não sei se foi a evolução e... 

Assis Ângelo: Dona Zica, a senhora não acha que o que está faltando na rua, na verdade, para que os carnavais de antigamente sejam, para serem o que perderam, a característica, não está faltando é povo, a espontaneidade do povo. Quer dizer, hoje é marketing e empresa, como a senhora em outra ocasião falou, e a preocupação da Mangueira hoje também é virar empresa. E quando ela vira empresa, não passa a desejar? Quer dizer, o povo já não pode participar espontaneamente como participava antes? 

Dona Zica: Não, porque ia ficar mais caro as coisas, né, não pode participar. 

J. Paulo da Silva: Até eu queria complementar, não querendo cortar a Dona Zica... Veja bem: hoje, nos desfiles das escolas de samba, o povo, a comunidade, o negro do morro que samba, ele está fora desse contexto. Por que o quê acontece?  As fantasias estão super caras, cada carnaval que passa fica mais difícil para o sujeito que está lá em cima do morro, que samba, que participa do movimento da escola, que criou, às vezes, a escola, esta pessoa, às vezes, fica fora do contexto do carnaval. E isso eu acho que é um processo, todo esse processo que está modificando o samba. Quer dizer, o Rio é uma cidade que tem a marca do carnaval, sobretudo das escolas de samba, e hoje essa coisa do desfile na Marquês da Sapucaí virou coisa de elite, porque o povão fica fora, por que como pagar? Como entrar? Ali é um festival de tietes, de amadores. Agora, o sambista mesmo, que tem o samba no pé, ele está fora do contexto. 

Dona Zica: Até que as escolas, este ano, desde o ano passado, procuraram a comunidade. Por exemplo, a Mangueira, não a Mangueira por ser a minha escola, então ela procurou vestir a comunidade. A cada ala, dar cinco fantasias. A escola em si mesmo, vestiu 150 pessoas. 

J. Paulo da Silva: Isso é um caso específico da Mangueira, não é? Que ainda mantém alguma raiz...

Dona Zica: Mas agora estamos procurando isso, mas por incrível que pareça, também teve essa religião agora que eles arrumaram, a Bíblia, tirou muita gente. A Mangueira está com fantasias para dar, para vestir a comunidade e não tem [pessoas]. 

Jorge Escosteguy: Por que, Dona Zica? A religião não está permitindo? Esses pastores....

Dona Zica: É, viraram tudo bíblia, as moças, viraram bíblia os rapazes, estão tudo na... 

Osvaldo Martins: Quantas igrejas dessa tem no morro da Mangueira? 

Dona Zica: No morro da Mangueira a maior parte toda é da religião. 

Osvaldo Martins: São quantas igrejas mais ou menos? 

Dona Zica: Lá no morro da Mangueira tem três, mas eles não saem dali da Mangueira. Vão para outros lugares onde tem. 

Osvaldo Martins: Vê o estrago que isso aí causa no samba, o grande mestre-sala da Mangueira, o Lilico, foi acobertado por uma igreja dessas, abandonou o samba e renega o samba, diz que é coisa do diabo. 

Dona Zica: Minha neta foi da bateria desde os oito anos, foi da bateria, depois passou a ser mestre-sala, abandonou, porque virou... largou tudo, porque ela virou aí da seita, né.

Jorge Escosteguy: Mas o pessoal da escola não tentou conversar um pouco com essas igrejas? 

Dona Zica: Não, depois que eles encasquetam aquilo na idéia, não adianta. 

Osvaldo Martins: Em defesa do samba tem que fazer movimento contra essas igrejas, elas vão acabar com o samba. Vão mesmo, falando sério, hein, falando sério!

Dona Zica: Vão acabar, vão sim, para um ano, é capaz de quase não ter. 

Jorge Escosteguy: Pelo que a senhora disse, hoje, na Mangueira sobram fantasias e não há pessoal pra desfilar, da comunidade?

Dona Zica: É, para desfilar, da comunidade. Porque todas as meninas moças, não é só velho não, é moças mesmo, viram bíblia e não querem mais saber da escola. 

Jorge Escosteguy:  Como é que a escola tem tentado reagir a isso? 

Dona Zica: A escola tem tentado porque a gente até é obrigado até a sair com gente de fora, dos estados, porque da comunidade não tem. E têm aqueles ainda que não são mangueirenses, mas temos muitas escolas que estão divididas, Portela, Salgueiro, quer dizer, Mangueira, aquela que a Mangueira contava é difícil. 

Jorge Escosteguy: É obrigado a buscar pessoal de fora para desfilar pela escola? 

Dona Zica: Às vezes, eles falam: “Ah, mas está saindo só o pessoal de fora”, é porque não tem, o carioca não quer. Então nós somos obrigados... Na minha casa tem três alas: tem a ala da minha filha, do meu filho e da minha neta. É quase cheio de pessoas de fora. São Paulo, principalmente, sai quase São Paulo todo, de todo o estado de São Paulo. 

Jorge Escosteguy: Parece que, segundo o Osvaldo, este ano, foram quantos anos ônibus, aviões, você disse, para desfilar na Mangueira, de São Paulo? 

Osvaldo Martins: Só o projeto da ZMM [agência de marketing e promoções] com a Mangueira, que é a torcida “Verde-rosa”, 50 ônibus e dois aviões. 

Jorge Escosteguy: Que foram para o Rio de Janeiro? 

Osvaldo Martins: Exato. Mas não vão todos desfilar.

Dona Zica: Vão pro Rio de Janeiro para desfilar. [fala ao mesmo tempo que Osvaldo Martins] 

Jorge Escosteguy: Sei, sei, alguns vão para torcerem e outros para desfilar. Por favor, Marília.

Marília Trindade Barbosa: Eu, em princípio, não concordo muito. Eu acredito que na nossa Mangueira tenha havido, de repente, a distribuição da fantasia para o grupo errado, porque há uma diferença básica, essas alas vazias são as alas que as pessoas pagam fantasias. As alas técnicas, elas estão sempre cheias. E os ensaios técnicos dos domingos, a gente vê a comunidade em peso lá buscando um espaço. Mas esse é o problema, muitas vezes não há coincidência. E eu queria que você falasse um pouco, em princípio, o problema de escola, que isso todo mundo se focaliza hoje no desfile e são duas realidades completamente diferentes. Uma escola de samba com o seu dia-a-dia, quer dizer, a comunidade, inclusive quero lembrar aqui, a Zica sabe disso, a força da comunidade, da Mangueira sobretudo, o trabalho com as crianças, nos esportes. A própria profissionalização das crianças para dançar, uma série de apoio a essas crianças. 

Dona Zica: Nós temos a ala das crianças. 

Marília Trindade Barbosa: Isto é o dia-a-dia da escola, mas isso não interessa à mídia, isso não vai para os jornais, isso não sai. O grande problema da evasão e .... é o desfile. Eu queria separar essas duas realidades, a Mangueira comunidade, a nação mangueirense como uma coisa e a Mangueira na avenida, outra coisa. 

Osvaldo Martins: Na linha do que a Marilia está dizendo, eu gostaria de fazer uma pergunta para a Dona Zica, que com a supremacia que acabou ocorrendo nos últimos anos no samba-enredo sobre as outras formas de criação musical nas escolas, foi desaparecendo das escolas o samba de terreiro, samba de quadra, porque o samba-enredo exerce sobre a ala dos compositores da escola, um enorme fascínio, que é muito fácil de entender, porque é remunerado, há prêmio, o compositor se sente um profissional remunerado e, portanto, respeitado. Há uma luta acirradíssima em todas as escolas a partir de julho, agosto, quando eles recebem a sinopse do enredo para começar a compor o seu samba. Ou seja, durante todo o período até outubro, que são as finais dos sambas em todas as quadras, só cuidam desse assunto. E o samba de quadra, aquele samba que não é o samba-enredo, que é grande parte da produção de Cartola, hoje se vê pouco isso. O que a senhora acha que poderia ser feito para valorizar, para estimular o samba de quadra para que os compositores pudessem também produzir este tipo de samba? 

Dona Zica: Antigamente, no tempo do Cartola, no tempo que começou a escola, tinha todo ano, mesmo os compositores agora não estão unidos, não estão fazendo aquela força. Então a Mangueira, na minha escola que eu sei falar, tinha aquilo que inventavam assim, por exemplo, vamos falar este ano sobre beijo. Então cada compositor fazia um samba sobre beijo. Então tinha um ensaio para aquele compositor cantar o samba dele. Até me lembro que o Cartola fez, o dele era: [cantando] “beijo, ainda peço mais beijo dos lábios teus, beijo, para satisfazer os meus”. Aí outros já faziam de outra maneira. Então aquilo tudo fluía e agora não, os compositores mesmo não estão com aquele gostoso, aquela idéia, não, sabe... Outro ano falava em amor, aí cada um fazia um samba em amor. Outro ano falava em mulher, aí cada um fazia. Então, era Zé-com-fome [(também conhecido como Zé da Zilda, seu nome verdadeiro era José Gonçalves, compositor de samba], era Geraldo Pereira [(1918-1955), sambista e compositor brasileiro, criou o samba sincopado, que influenciaria a bossa nova, anos mais tarde], reunia e cada um fazia um samba sobre aquilo, e aquilo era bonito. Primeiro, a escola quando entrava ali na Praça Onze, era com três sambas. Cantava o primeiro para entrar, cantava no meio mais um samba e depois cantava o samba-enredo. O desfile era assim, eram três sambas. 

Zuza Homem de Melo: Esses sambas eram de autores diferentes?

Dona Zica: Não eram de autores diferentes.

Zuza Homem de Melo: E eram de um só autor ou, no máximo, de dois?

Dona Zica: Não, cada um fazia o seu.

Zuza Homem de Melo: Porque uma das coisas que a gente notou nos últimos anos, que eu gostaria de saber a sua opinião, é sobre esse samba feito por um grupo de pessoas... 

Dona Zica: É, agora [um grupo] faz o samba e antigamente era um só. 

Zuza Homem de Melo: ... que às vezes até atinge a cinco pessoas, cada um faz um pedacinho, e que dá um resultado mecânico, as músicas ficam todas elas... Qual é a sua visão, tendo convivido com um dos maiores melodistas da história da música, que foi o Cartola

Dona Zica: Quando começou o samba, todo o ano, Cartola foi, dez anos seguidos, o primeiro, era o que fazia o samba-enredo. Dez anos seguidos o autor do samba-enredo foi ele. Depois já foi caindo, foi mudando tudo, foi uma mudança que eu mesmo não sei explicar. 

Zuza Homem de Melo: A senhora não acha que empobreceu isso? 

Dona Zica: Empobreceu muito. Quando eles abrem o ensaio, não cantam o samba mais de quadra, só cantam samba antigo, samba-enredo antigo, para depois chegar no enredo do ano. É só isso.

Aydano André Mota:  A senhora falou do carnaval de antigamente, dos sambas, mas com relação aos desfiles das escolas de samba de antigamente, quer dizer, a Mangueira da década de 1960 até a década de 1970, e o desfile de hoje, o desfile era mais bonito naquela época? 

Dona Zica: Era mais bonito. 

J. Paulo da Silva: E era mais gostoso de desfilar?

Dona Zica: Era mais gostoso, muito mais, você desfilava à vontade. Era cansativo, porque a escola ficava uma hora, uma hora e meia, ali cantando, e agora eles fizeram restrito, só tem aqueles noventa minutos e pronto. 

Jorge Escosteguy: Isso decorreu das imposições da Liga das Escolas de Samba, dos regulamentos.

Dona Zica: Pois é, quando nós desfilávamos na Praça Onze, o carnaval acabava meio-dia, uma hora, duas horas, mas era gostoso. Agora não, chegou quatro horas da manhã, não tem mais, acabou. 

J. Paulo da Silva: Dona Zica, voltando àquele assunto que foi abordado sobre as letras e os sambas, a senhora acha que essa queda da qualidade dos sambas, isso não decorre da briga interna que tem nas escolas hoje, a disputa para o samba de fulano estar na frente, aquela coisa meio...

Dona Zica: Sabe o que era? No meu tempo o compositor, ele fazia samba por amor, amor à escola dele. Agora não, ele faz por amor ao dinheiro. 

Assis Ângelo: Quer dizer, em nome da profissionalização chegou-se, hoje, à pausterização do samba-enredo. É a esse samba que o Zuza se referiu, o samba mecânico que é feito por várias pessoas e que eles todos não conseguem, tanta gente não consegue pôr para fora exatamente o sentimento mais puro, que é até a alegria natural de brincar-se o carnaval. A senhora sente muita saudade dos carnavais antigos? 

Dona Zica: Sinto, sou saudosista. Sinto, porque agora, após 65 anos, quando fundou a Mangueira, 28 de abril, que virou, que era blocos, a Mangueira, como outros lugares, eram de blocos. Então a Mangueira tinha cinco blocos, onde tinha o bloco dos Arengueiros, que era só rapazes para fazer, beber, pedir dinheiro, fazer aquelas coisas. Dali, depois, tinha o bloco dos Arengueiros.... e tinha o bloco da tia Febe, bloco da tia Tomásia, bloco do tio Julio, bloco do Mestre Candinho e o bloco dos Arengueiros, que eram só homens. 

Assis Ângelo: Desse participava o Cartola

Dona Zica: Cartola, Marcelino, Zé-com-fome, essa gente, né? 

Assis Ângelo: Daí resultou, inclusive, a Mangueira, né? 

Dona Zica: Tiveram a idéia... aí os sete deles reuniram e tiveram a idéia de fazer uma escola de samba. Não havia escolas de samba no subúrbio, a escola de samba só tinha no Estácio, tinha a Vizinha Faladeira e Deixa Malhar, no Estácio. Então, aí, a Mangueira era Mangueira, porque era o quintal da Quinta da Boa Vista e tinha mais de mil e tantos pés de mangueira, então ficou Mangueira. As mangueiras dos escravos, aquelas mangueiras copadas, [onde] os escravos se escondiam dos capatazes, escondiam do trabalho. Então era Mangueira. E a primeira estação, porque o trem saía da central, e só parava para passageiro na Mangueira. Parava em vila Belmira para bagagem, para passageiros na Mangueira. Eis a Primeira Estação. 

Assis Ângelo:  E verde-rosa por causa da manga, Dona Zica? 

Maria Luiza Kfouri: Por causa do Fluminense, né, Dona Zica, não é não, por causa do Fluminense, que o Cartola era fluminense?

Dona Zica: O Cartola nasceu onde é o campo do Fluminense, era uma casa de cômodo. Porque o avô do Cartola era campista e veio de Campos com o Nilo Peçanha. Quando o Nilo Peçanha ganhou para presidente, ele veio, era empregado do Nilo Peçanha, que ele tinha padaria em Campos, então escolheu ele para vir com ele como cozinheiro do palácio. Aí veio ele com a família toda. Ele trouxe a família toda. E tinha um rancho, porque antigamente tinha um rancho, que era uma beleza, tinha Arrepiado, Rosa de Ouro, Chuveiro de Prata e só esses ranchos já embelezavam o carnaval mais ainda. E a família do Cartola, o pai dele tocava violão, então fizeram ali, no caso, nas Laranjeiras, fizeram os Arrepiados, então a família toda saía nos Arrepiados, e a cor era verde e rosa. Então quando o Cartola conseguiu com os amigos fazer a Mangueira, perguntou, ele era o líder do grupo, então ele perguntou se ele podia botar a cor que ele gostava – “pode” – aí ele botou verde e rosa, porque a escola arrepiada era verde e rosa. Aí Cartola deu a cor, e daí: “E o nome? E o nome?” “Vamos botar Estação Primeira”. E aí ficou verde e rosa até hoje. 

Marília Trindade Barbosa: Zica, ele dizia também que era esse nome porque era a primeira estação onde haveria samba, a partir da central. 

Dona Zica:  É.

Osvaldo Martins: Marília, tira uma dúvida. A Dona Zica acabou de mencionar sete fundadores da Mangueira. A Marília fez um livro belíssimo, Fala da Mangueira, que conta a história da Mangueira, um livro da maior competência, e pelo que eu entendi da leitura do livro, Carlos Cachaça participou de todos os atos de fundação, exceto da reunião onde se fundou e se lavrou a ata. Então sete estiveram presentes, e o Carlos Cachaça, naquela noite, ele tinha uma cabrocha, ou alguma coisa muito importante para fazer e não compareceu à reunião, embora tenha arregimentado os outros sete. São sete fundadores ou são oito com o Carlos Cachaça? 

Dona Zica: Não, são sete. Quem fundou na hora ali, que assinaram no livro, tudo, foram sete. Não tinha Carlos Cachaça, não tinha Babaú, não tinha nada.

Marília Trindade Barbosa: O Carlos Cachaça ficou fora, ele era o oitavo... 

Osvaldo Martins:  Mas ele participou das reuniões preliminares, das conversas?

Dona Zica: Participou, de tudo ele participou.

Jorge Escosteguy:  E por que ele não estava nessa noite lá? 

Dona Zica: Porque ele foi ver a cabrocha dele, aonde ela morava, e aí ele não... 

Marília Trindade Barbosa: Nunca imaginou que ia fazer tanta falta. 

Jorge Escosteguy: Então ele pôs mais fé na cabrocha do que na Mangueira?

Dona Zica: Porque aquilo foi na hora que eles reuniram, não lembraram. "Mas o Carlos não está, não vamos nos reunir porque o Carlos não está", e aí fizeram. 

J. Paulo da Silva: Que diabo, puxa vida! Ele teve um bom motivo para não estar lá naquela noite.

Dona Zica: No outro dia, quando ele chegou, já tinham feito a ata. É, mas tinha o pai da Nilma, o presidente, o José Spinelli. O pai da Nilma era de Madureira, mas freqüentava a Mangueira, ele não era da Mangueira. O José Spinelli não era da Mangueira, era de Madureira também, mas freqüentava os blocos dos Arengueiros, eles aí foram os fundadores. 

Maria Luiza Kfouri:  E os outros quem eram? 

Dona Zica: O Alfaiate, o José Spinelli...

Osvaldo Martins: O Euclides, né?

Dona Zica: É, esse que eu falei. 

Marília Trindade Barbosa: O Saturnino, pai da dona Nelma.

Dona Zica: Pai da Nelma, o Chico Porrão...

Marília Trindade Barbosa: Pedro Caim.

Maria Luiza Kfouri: A Marilia está colando, não vale.

Dona Zica: Pedro Caim, Euclides e o Cartola, sete, né? 

Assis Ângelo: Dona Zica, o que dá para entender, naturalmente, o Cartola, fundador da escola, ele fez os primeiros sambas da escola, ele viveu aquilo profundamente, quer dizer, ele era a alma da escola. 

Dona Zica: É, ele tinha 19 anos.

Assis Ângelo: Quer dizer, desse período todo, que ele andou afastado da Mangueira dos anos 40 pra 50, ele andou afastado, foi quando o Sérgio Porto o localizou numa ... lavando carro. 

Dona Zica: No meio de muitos sempre tem um aborrecimento, ele teve um aborrecimento lá na Mangueira, na escola, daí ficou zangado, sumiu... 

Assis Ângelo: O que eu quero chegar é o seguinte, a escola Mangueira, hoje, ainda mantém, de alguma forma, o espírito espontâneo, natural e artístico, por que não dizer, do Cartola? Ou essa empresa, essa jogada empresarial que hoje se pretende em todas as escolas, inclusive, na Mangueira, desvirtua um pouco o espírito do Cartola

Dona Zica: Não. Eles têm o nome do Cartola. Eles sempre zelam pelo nome do Cartola, tanto é que tem o projeto Cartola, né?  Eles sempre zelam.  Cartola nunca, eles nunca abandonaram...O Cartola está sempre presente em todas.

Assis Ângelo: A linha da escola segue o ideal do Cartola

Dona Zica: É, o ideal dele... 

Jorge Escosteguy:  A senhora falou do aborrecimento e ele sumiu, a senhora podia contar pra gente o que aconteceu? 

Dona Zica: Porque na escola sempre tem, todas as escolas, como o Paulo da Portela, morreu magoado com a Portela, né, por fazer, sabe, aqueles que eram, por exemplo, o Cartola era a raiz da escola. Então sempre há aquela desavença... Aí ele se aborreceu lá com o negócio de samba, depois de vinte anos, e começou esse negócio de deputado, essas coisas todas de...  e nisso ele teve um aborrecimento. 

Jorge Escosteguy: Começaram a fazer política na escola?

Dona Zica: É, ele se afastou... Tinha um cara lá que foi presidente da escola, o falecido Hermes, e queria que o Cartola votasse para ele. E o Cartola tinha uma coisa com ele, se ele se afeiçoasse a você, era ali, não tinha nada que tirasse ele. E ele já tinha um candidato que ele, um dentista que ele gostava, sempre trabalhou com ele, e o Hermes queria que ele fosse, que o Hermes trabalhasse para ele. Ele disse: “Não, Hermes, eu não trabalho para você, porque eu já tenho fulano que eu vou trabalhar para ele”. E aí começou a criar aquela quizila contra o Cartola e tudo o que ele podia fazer contra o Cartola, ele fazia.  Não soube manter aquela, tudo o que ele punha... O Cartola, aí, foi se aborrecendo com ele. O Cartola foi cidadão do samba, foi tudo na escola, né. Foi o primeiro compositor a sair para vir para São Paulo, tudo é o Cartola. E ele não ligou o nome do Cartola, ele quis fazer o que ele quis. E aí o Cartola disse: “Bom, ou eu ou ele”. E aí ficou ele, e o Cartola foi morar na [...]. 

Zuza Homem de Melo: Dona Zica, a senhora, alguma vez, presenciou ou estava perto, próxima, do momento em que o Cartola fez uma música? 

Dona Zica: Tem umas quatro músicas que eu estava com ele, que ele se dirigiu a mim. 

Zuza Homem de Melo: Conta para a gente, como é que era? 

Dona Zica: Teve As rosas não falam, [Zuza pergunta: “Como é que foi”?] tinha uma roseira na minha casa, ele ganhou uma muda, dum amigo dele, fomos passear em Jacarepaguá, e deu uma muda de rosa a ele, e ele plantou aquela roseira, e a rosa cresceu e dava muitas rosas, né. Aí um dia, todo dia de manhã ele tomava o cafezinho e depois ia lá, tirava aquelas folhas secas, e eu também ia apanhar umas florzinhas e botava na minha santinha. Aí um dia eu falei assim para ele: “Cartola, você teve uma mão para plantar essa roseira que não pára de dar rosa”. Todo dia a rosa enchia, ele tinha mão boa para planta.  Ele disse assim: “Sei lá, as rosas não falam”. [risos] Aí passou, aquela brincadeira passou. Passou mais uns quinze dias, quando ele queria compor, que a coisa que vinha na idéia dele, ele entrava lá pro quarto e dizia: “Se alguém me chamar, diz aí que eu não estou aí não, que eu tô com uma coisa aqui na cabeça e vou aproveitar”. Aí ele sentava na [...] do quarto, botava dois dedinhos de conhaque, e ia fazer lá o samba dele.  E aí ele...

Zuza Homem de Melo:  Com o violão?

Dona Zica: Com o violão. Passou uns minutos e ele me chamou. “Zica, vem cá. Vem ver aqui uma coisa que eu fiz.” E aí ele fez As rosas não falam.  Então, ele diz que o perfume que roubam de ti era eu que estava ali do lado da roseira. Teve também: Tive, sim

Maria Luiza Kfouri: A senhora é ciumenta, Dona Zica? 

Dona Zica: Não. Nem ele tinha de mim e nem eu dele, porque eu sabia, eu compreendia que a vida dele de artista era uma vida boêmia. Não ia estar eu na luta, ele fazia o que ele queria. Meu prazer era ver ele fazer o que ele queria. Aí teve uma vez nós estávamos brincando, assim coisa de marido e mulher, conversando, eu disse assim: “Ah, você não gosta de mim, você gostou das outras mulheres que você teve e tal”. E ele: “Ah, mulher, deixa de dizer bobagem, não tem o que falar, fala bobagem”. Daí daqui a pouco, ele veio [Dona Zica canta] “tive sim, outro grande amor, antes de ti, eu tive, sim”. Ele viveu 22 anos... Nós nos conhecemos meninos, fomos criados... Quando ele fundou a Mangueira, ele tinha 19 anos, mas já vivia com uma senhora, viveu 22 anos com essa senhora. E eu tinha 15 anos quando fundou a Mangueira, ele tinha 19, e eu tinha 15. Ele era mais velho que eu quatro anos, ele já morava com essa dona. Então, eu respeitava muito ele, ela, e quando fundou a escola, ela passou a ser a primeira diretora da escola. Então eu era menina, a gente... [Zuza completa: “Guardava distância”]  Não tinha nada que pensar em namoro, era só pela escola que a gente ama, então eu que sou apegada mesmo, eu amo a escola, e eu queria saber da escola. E naquele tempo era rígido o ensaio. A gente castigava, o Chico Porrão era o primeiro ensaiador, então ele castigava, se a gente não sambasse direito, não cantasse o samba direito, ele castigava, a gente ficava sem poder ir ao ensaio três dias, três vezes. Assim, sabe. Aí criamos juntos, mas não... Então ele aí foi e fez esse samba de [...], de Natal, que não foi gravado, ele diz que fez para mim... Eu fiz a mesa de Natal e tudo, depois eu estava na cidade, que nós fomos fazer, estrear o [...] de Cartola, então nós [...] e Cartola... Eu tomava conta da sociedade, que eu sempre morei na Mangueira, mas deixei a minha filha e fui morar lá nessa casa para tomar conta da Associação das Escolas de Samba do Brasil. E ele limpava, fazia limpeza, ele estava desempregado, né? E eu ajudava lá, eu gosto muito de cozinhar, então eu fazia a comidinha para o pessoal. Então aí nós fizemos, chegou Natal e ele gostava de acabar de comer e dormir, tirar aquele sono. Aí eu falei para ele: “Olha, você vai dormir, eu não estou com sono, eu vou sair, vou na casa das minhas irmãs, vê-las, que é Natal, né?” E aí, embrulhei umas coisas aí e fui levar para as minhas irmãs. Ele acordou, eu não estava ainda, eu não tinha chegado, porque a gente não saía, ele saía pra um lado, eu saía por outro, não tinha esse negócio. Aí ele fez um samba. Então isso para ele, “pois é, eu vou lá e você fica dormindo, eu quero ficar me divertindo”. Então ele fez o samba, dizendo que eu disse que “talvez lá fora houvesse mais alegria, este ano eu recebi um presente que certamente nunca teve igual, encontrei um bilhete junto à árvore de Natal”. Ele imaginou, aí o samba dizia que eu ia passear, porque lá fora haveria mais alegria. 

Osvaldo Martins: A senhora tem sambas inéditos do Cartola com a senhora? Coisas que ninguém conhece? 

Dona Zica: Tenho alguns, mas acontece que tem muitos que eu não sei a música mais. Ainda tenho com música ainda. Quando nós casamos, cortando o que ele está dizendo, teve quando nós casamos, ele fez: [Dona Zica canta]: “Está chegando o momento de irmos pro altar, nós dois, e se assim procedermos seremos felizes, depois”]. Tá vendo? 

Marília Trindade Barbosa: Era o que eu queria perguntar. Ela contou a história do Tive, sim e do Amargo presente, que são músicas de brigas; e, na verdade, tinha a Beleza de nós dois, que fez pro casamento.

Maria Luiza Kfouri: E qual é a história do Mundo é um moinho, Dona Zica? 

Dona Zica:  O Mundo é um moinho é um amigo dele, ele gostou de uma moça, moça novinha ainda e tudo, então quando ele estava pensando que ela estava gostando de tudo o que ele fez, montou casa e tudo para ela, ela disse que não queria, que ia embora. Aí ele contando pro Cartola, contando pro Cartola: “Eu tô aborrecido, aconteceu isso, assim, assim e assim...” Aí o Cartola aproveitou aquela deixa e fez o samba. 

Maria Luiza Kfouri:  Uma vez eu li no jornal que ele tinha feito O Mundo é um moinho para uma das filhas adotivas quando ela disse que ia sair de casa. 

Dona Zica: Não, já tinha feito. 

Assis Ângelo: O Cartola era chegado a um bom "birinight", ele era um “bom de copo”, né, bebia que era uma beleza. Agora é verdade que a senhora o salvou da bebida, do álcool? 

Dona Zica: Depois ele ficou viúvo, e eu também me casei com 19 anos, também fiquei viúva, ele tinha uns três anos de viúvo e eu tinha quatro, aí um dia eu fui morar perto da minha irmã e ele era parceiro do Carlos Cachaça, sabe, os primeiros sambas todos da Mangueira eram da dupla eram deles dois. Chamava dupla CC, Carlos Cachaça e Cartola. Aí ele foi, eu estava viúva, ele também, e quando ele voltou o humor, ele estava para lá, aí ele voltou e foi lá procurar o Carlos. 

Assis Ângelo: Isso em meados de 1930, por aí?

Dona Zica: É, aí ele foi procurar o Carlos Cachaça e eu estava lá, estava morando perto da minha irmã, tinha vindo morar perto da minha irmã. Aí eu tava lá, e ele chegou, passou, “Oi Zica, e tal...”, ele sabia que eu tinha ficado viúva e eu também sabia que ele tinha ficado. Aí ele disse: “O Carlos tá aí”? Eu disse: “Ta, tal...” E aí ele entrou para casa da minha irmã, que era pegado, começou a conversar com o Carlos Cachaça, que era cunhado, marido da minha irmã e era padrinho de crisma dele. 

Assis Ângelo: Tudo em família.

Dona Zica: É, tudo família. Aí ele lá, mas ele ficou de lá com os olhos lá em mim, que eu estava lá no tanque lavando roupa, aí ele depois, acabou lá, ele veio: “Zica, e tal, você está viúva, não sei que lá...” Eu falei: “Ih, está ruim. Não vem com coisa não, que você é muito mulherengo e eu nunca briguei na minha vida, não é agora que eu vou brigar.”. Ele disse: “Não, agora eu já estou ficando velho, já tô ficando mais quieto...”.  Mas aí ele bebia. Tomava um litro de manhã, dormia, tomava outro litro. Mas aí eu depois...

Assis Ângelo: Era assim mesmo? 

Dona Zica: Era. 

Marília Trindade Barbosa: E quando juntava ele e o Noel Rosa, Dona Zica, como é que era a bebida? 

Dona Zica: Ih, quando juntavam, eles bebiam todas. Ficavam fazendo samba, ali na [rua] 28 de setembro, para esperar o Chico Alves, aí eles tomavam todas. [risos] Quando eles queriam e não tinham dinheiro, sentavam e faziam samba. O Noel Rosa: “vamos esperar o Chico pra gente tirar uma gaita [dinheiro] dele”. Aí o Chico já sabia e vinha... Chico tem um bocado de sambas dele. O Cartola só não vendia o nome dele. Eu acho que o Noel Rosa também. O Cartola não vendia o nome, vendia só a música. Aí quando o Chico vinha e falava assim: [Dona Zica imita Chico, como se estivesse gaguejando] “Tem alguma coisa para mim”? Ele falava assim. Cartola dizia: “Tem um samba aí que nós estamos fazendo, que está bom para você”, só pra pegar o dinheiro dele e aí pegavam o dinheiro dele. 

Maria Luiza Kfouri:  Muitas vezes eles trocavam o samba por uma cerveja, não é isso? 

Dona Zica: Uma cerveja. Não, e por dinheiro também. O Cartola, ele era muito bom, mas primeiro ele foi criado assim meio... quando o negócio era trabalho, não era muito... era mais a vida boêmia, né?

Assis Ângelo: Dona Zica, só para retomar essa conversa da salvação do Cartola e tal, porque nós poderíamos ter perdido muito cedo um grande artista e tal, então a senhora...São duas coisas, a partir do instante que a senhora começou a conviver de fato com ele, dividindo o teto, que foi quando a senhora começou a ter alguns problemas com ele... 

Dona Zica: Aí eu falei. Não fui eu que fiz ele, ele já era o Cartola. Mas o Cartola já estava apagado. Nessa idade já não conheciam mais ele. Doze anos ele passou sem ir na cidade, doze anos ele passou na roça com uma outra – ele perdeu essa que ele viveu 22 anos, a Diolinda – arranjou lá uma outra e foi para a roça. E quando ele veio e começou a querer falar comigo, eu disse: “Mas a vida comigo é o contrário, eu quero uma pessoa que eu conte com aquela pessoa. Não quero uma pessoa só para hoje namorar e acabar não. Se você quiser comigo assim, eu tenho dois, três filhos para criar. Estou criando três filhos, e quero que me ajude, que eu conte.”. E ele: “Está bom”. Bebia as cana dele. E eu dizia: “Cartola, assim não dá. Se continuar assim nós vamos abrir, porque assim não, se eu não posso contar com você"... Porque ele era pintor, não tinha trabalho certo. Eu dizia: “Como é que você vai arranjar um trabalho se você toma uma birita de manhã, outra de noite, não dá.”.  Aí veio esse negócio de deputado e vereador, essas coisas, aí veio a Iara Vagas, foi lá em casa para ele trabalhar para ela. Aí eu disse: “Olha, mas ele...” Falou, falou lá, porque tinha o morro com ele e eles contavam com aqueles votos do morro, aí eu falei, quando eles estavam no auge da conversa, eu cheguei e falei: “Mas também ele vai trabalhar para a senhora, mas a senhora também tem que trabalhar para ele. Ele não é empregado, ele vive de pintura e isso não é trabalho. Pinta uma casa hoje, vou esperar outra depois de amanhã, e aqueles dias que tá...” Eu lavava para fora, eu fazia o meu porque tinha os meus filhos e não queria que os meus filhos sofressem. Mas quando ele ia lá para a turma dele pra prefeitura, eu dizia: “Cartola, você hoje não bebe, que você amanhã vai fazer exame.” Ele tomava uma cana. E não podia ser. 

Assis Ângelo:  Não passava em teste nenhum. 

Dona Zica: É, mas daí chegou o doutor Guilherme Romano, tirou ele da Iara Vargas, sabe, mas ela não teve culpa, porque ele ia e o coração não deixava, não passava. Ele aí chegou, eu contei o caso, ele disse: “Não tem nada disso não. Ele vai ser empregado agora mesmo”. Chamou lá o chofer e disse: “Leva o Cartola lá - tinha a Cofap, que foi extinta depois, - leva o Cartola na Cofap e quero ele empregado agora mesmo. Vem com ele já empregado, faz ele assinar lá...”. Aquele tempo entrava pela janela, né.

Jorge Escosteguy: Mas não era só naquele tempo que entrava pela janela. [risos]

Dona Zica: É, quando ele saiu, quando voltou, voltou empregado. Ele saiu e quando voltou, voltou empregado. 

Marília Trindade Barbosa: Conta um pouquinho a história da barraca, que é muito interessante. 

Dona Zica: Aí o Guilherme Romano botou, até o trabalho que ele fez com o Cartola e depois ele desistiu da candidatura, não quis, nem foi eleito. Ele ainda é vivo, tem lá a Casa de Saúde ele e tudo... Aí o Guilherme falou: “Tem barraca aqui, Cartola, da Cofap?“ Aí o Cartola disse – e eu sempre estava ali no meio, porque eu introduzia tudo, porque ele para falar “eu quero”, era eu que tinha que falar “ele quer”, ele não falava, então eu sempre estava ali rodeando para ver. Aí eu disse: “Não, doutor, não tem barraca nenhuma”. E ele disse: “Então vamos botar uma barraca. Ô, fulano!” Foi ele, foi Paulo Copacabana, foram cinco graúdos lá. “Vamos botar uma barraca aqui para o Cartola”. Aí botaram uma barraca; a barraca vendia sabão, vendia manteiga, aquela manteiga em lata, vendia aquilo tudo. Aí botaram a barraca no pé do morro, lá onde tem o café – nem é mais café lá – então botaram a barraca lá. Mas o Cartola para dormir na barraca eu tinha que ir também, senão ele não ia não. Ele já bebia e eu ficava com ele na barraca. Quando foi um dia eu falei: “Olha, eu não vou mais em barraca nenhuma dormir lá mal em cima da carne seca”.  Eu brigava, de vez em quando eu botava um pé com ele e “vou-me embora e não quero mais e ....”.  Aí ele não foi dormir e eu também não fui. Quando foi de manhã a barraca, os moleques abriram a barraca, roubaram tudo. Chegou de manhã, o pessoal vinha lá comigo. “Dona Zica, Dona Zica”,  - os garotos – “a barraca está aberta” – seis horas da manhã.” E eu disse “A barraca está arrombada, meu Deus do céu”. Aí eu fui lá na barraca e disse: “Cartola, está vendo? Você não foi, você é um caso sério”. E daí tivemos aquela conversinha, aí eu fui lá, cheguei lá, tinham tirado óleo, aquelas caixas de óleo, sabão e essas coisas tudo. Aí, você pensa que ele se incomodou, ele nem... [Dona Zica ri] 

Assis Ângelo: Era o que ele queria certamente.

Dona Zica: Aí eu fui de porta em porta...Cheguei lá, aí um me disse assim: “Sabe o que foi, Dona Zica, quem foi, foi o Gongordo, o Gongordo que tava lá e subiu com uma caixa”.  Eu aí sabia onde o Gongordo morava, fui lá, cheguei lá, bati na porta da mãe dele, a mãe dele: “Que foi”? "Gongordo, cadê as caixas que você roubou lá na barraca?” Aí eu olhei para debaixo da mesa e vi uma e falei: “Olha lá uma caixa de óleo lá”. Aí eu fui, andei, porque eu era...sabe, eu sempre fui pequenininha, mas sempre fui ativa. Então eu fui lá, botei ele assim: “Vai, leva já isso...”  Cheguei lá, chamei ele, ele estava lá sentado lá, tomando a cervejinha dele. Daí eu fiz, arranjei aquilo tudo e aí telefonei, e falei: “Me leva no distrito [policial] pra você depois não ficar com essa....”, porque você depois vai responder a inquérito, né, de ter....  Aí tal...

Marília Trindade Barbosa: Ela recuperou tudo. 

Dona Zica: Recuperei tudo, aí fui no distrito e tudo, aí eu falei, briguei com ele e daí fui chamando ele. Um dia tinha ele foi, teve um tio general que era padrinho dele, mandou ele ir ver um emprego. Quando ele foi ver o emprego, eu disse: “Cartola, você não bebe quando você for ver o emprego, você não bebe, pelo amor de Deus!”. Porque eu queria ajeitar ele para mim também, é o que está me servindo hoje, né, não era porque eu queria ser a melhor mulher do mundo, não, eu tinha pena dele, também gostava também dele, e tinha pena dele ser.... Bom, aí ele foi ver o emprego. Eu falei: “Você não beba.”. Mas ele passou no botequim e tomou uma. Quando ele chegou lá, o homem falou com ele e sentiu o bafo no balcão de emprego: “Não tem mais lugar não”. Diz, eu me esqueço o nome do general, que não tem mais emprego, não tem mais vaga. E quando ele chegou, eu disse: “Bonito, hein, Cartola. Você bebeu, o homem...”. Aí o homem, eu telefonei para ele, quando ele chegou, ele disse que não tinha, mas o general – eu esqueço agora o nome – telefonei para o moço, para o dono do emprego. Falei... “Mas Zica, ele chegou aqui, quando ele chegou, subiu a escada, eu já senti o bafo da cachaça.”. Eu cheguei e falei:  “Tá vendo, Cartola, que vergonha!  Você não tem vergonha não?”  Dessa vez a coisa entrou na cabeça dele, ele ficou apreensivo, eu disse: “Assim não dá, eu gosto muito de você, tenho pena, mas assim não dá e tal.”. Aí ele sentiu, Deus ouviu e ele sentiu aquilo, e aí foi melhorando. 

J. Paulo da Silva: Ele criava mais nessas horas, fazia mais letras, música, samba? 

Dona Zica: Fazia. Tem muitas coisas. Aí foi indo, foi melhorando. Isso foi antes de ele ser da Cofap, aí acabou a barraca da Cofap, ele foi melhorando e foi para o Ministério, foi para o Ministério do Trabalho, de lá ele foi passando, já foi melhorando.

Assis Ângelo: Ele chegou a ser funcionário público? 

Dona Zica: É, chegou, até morrer, eu recebo até hoje, do Ministério de Indústria e Comércio, ele morreu no Ministério de Indústria e Comércio. É, era contínuo, então uma vez... 

Jorge Escosteguy: Desculpa interrompê-la, um minutinho, a gente volta em seguida com essa história do Cartola. Nós vamos precisar fazer um rápido intervalo, o Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando hoje, Dona Zica da Mangueira. Até já. 

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando Dona Zica da Mangueira. Lembramos aos telespectadores que este programa foi gravado, portanto não há perguntas pelo telefone, e pouco poderá se falar também do desfile da Mangueira no domingo de carnaval. Dona Zica, no intervalo todo mundo começou a conversar, a contar as histórias, e tal e aí a Marília levantou a história de que uma das primeiras brigas do carnaval carioca foi provocada por São Paulo. Queria que a senhora contasse essa história como foi.

Dona Zica: Porque foi a primeira vez que o samba carioca veio a São Paulo. Então veio Heitor dos Prazeres, Cartola, o Paulo da Portela. [“E mais outros, não é”?, acrescenta Marília] Vieram sete, fizeram então. E depois aqueles que tinham suas escolas no Rio, combinaram, chegaram na sexta-feira de carnaval e não dava tempo de fazerem roupa pra escola. Então combinaram de cada um entrar abraçado, aqueles que tinham escola, entrarem todos abraçados na sua escola e foi assim. 

Jorge Escosteguy: Eles vieram participar do desfile de São Paulo?

Dona Zica: Não, eles vieram cantar aqui em São Paulo, os sete vieram fazer show aqui em São Paulo. Quando chegou sexta-feira, eles chegaram ao Rio. O carnaval era domingo e não dava tempo de fazerem roupas para eles, então eles combinaram cada um entrar nas suas, os que tinham escola, cada um entrar na sua escola, só para reverenciar a escola. E aí cada um foi e entrou na sua, o Cartola entrou na Mangueira, a Mangueira aceitou, bateu palma, ele entrou dentro da escola, o outro também entrou dentro da sua escola, e quando chegou na Portela, o Paulo da Portela entrou, o presidente não deixou ele entrar. 

Marília Trindade Barbosa: Ele não estava respeitando as cores, todos estavam de preto e branco. 

Dona Zica: É, todos estavam de preto e branco. Então eles não respeitaram, disse que não estava respeitando a cor da escola, que não podia entrar. Foi o falecido...  esqueço o nome dele.

Jorge Escosteguy: Deu briga na Portela? 

Dona Zica: O Paulo ficou muito apaixonado, aquilo amargou ele muito. Aí ele teve essa grande paixão, que acabou... ele era cardíaco, acabou morrendo disso, dessa paixão.

Osvaldo Martins: A participação de São Paulo foi incidental, então? [outros falam ao mesmo tempo]

Jorge Escosteguy: Chegaram atrasados em São Paulo... Nada a ver, no fundo, com o episódio. 

Dona Zica: Eles chegaram na sexta-feira, mas não dava tempo. 

Marília Trindade Barbosa: O argumento é que eles estavam [“Tinham ido pra São Paulo”, acrescenta Jorge Escosteguy] abrindo mão [“Abrindo mão de outras pessoas...”, fala, ao mesmo tempo, Dona Zica] das escolas em função de uma carreira particular. 

Dona Zica: Agora é que as escolas tinham todas as cores. Antigamente era respeitado, era verde e rosa, é verde e rosa. É azul e branco, é azul e branco.  Agora não, agora as escolas saem preto e vermelho, mas antigamente era respeitado. 

Assis Ângelo: Dona Zica, deu samba isso, não? Essa primeira briga entre São Paulo e Rio deu samba? 

Dona Zica: Deu samba. Aí o Paulo queria ir para a Mangueira, chegou na Mangueira, Cartola falou assim: “Não, aqui não tem lugar para você”.  Levou ele na Portela, porque a Portela é madrinha da Mangueira.  Aí ele levou lá, mas o presidente era desses presidentes encroado, sabe...

Marília Trindade Barbosa: Manoel Bam-bam-bam. [comentários simultâneos]

Dona Zica: Manoel Bam-bam-bam. Então ele não deixou mesmo. Aí o Paulo queria sair, mas depois o Paulo foi, mas foi já magoado e dali ele... 

Jorge Escosteguy: A senhora disse que a Portela é madrinha da Mangueira?  Por quê?

Dona Zica: Porque se davam muito. A Mangueira é a primeira, depois é que veio a Portela. Aí a Portela entrou e batizou a Mangueira, que a Mangueira não tinha madrinha. Então a Portela batizou... Como o Paulo e o Cartola eram assim, muito amigos. Chegava o carnaval antigamente era muito, era lento, então quando a Mangueira chegava na Praça Onze primeiro, o Paulo fazia assim: “Vamos ver o que o moleque Cartola vem cantando”. Aí o Cartola cantava lá o samba dele... Depois era a Portela e o Cartola: “Vamos ver o qual que é a mulher que o Paulo vem cantando”. E era assim, eles se davam muito, a Portela com a Mangueira eram unidos, porque a Mangueira é a primeira, Portela é a segunda, então eram unidos, um respeitava o outro. 

Aydano André Mota: Dona Zica, eu queria fazer uma pergunta para a senhora sobre essa questão do samba, até que a senhora falou, que a gente, todo mundo concorda, os sambas de antigamente eram muito mais bonitos do que os de hoje, mas também tinha o Cartola pra fazer, tinha o Carlos Cachaça, tinha o Paulo da Portela.  Existem talentos hoje, como existiam antigamente? Acho que não, né? 

Dona Zica: Eu acho que ainda existe, mas não é o existir não. É que o samba, antigamente, era amor, você era de uma escola, você tinha amor àquela escola, como o Cartola, ele amava a escola. O Paulo amava a Portela. E agora não, o compositor vem para a escola, biscoitando dinheiro, que ele quer saber de dinheiro. [vários comentários]

Aydano André Mota: Era impensável o Cartola fazer um samba para a Portela, por exemplo, ele não faria? 

Dona Zica: Não fazia. 

Osvaldo Martins: Só registrar, eu não concordo integralmente com essa história de que os sambas antes eram melhores e que hoje são ruins. Eu acho que hoje tem grande sambas, [“Não, o samba é bom, grandes compositores...Silas de Oliveira, fazia samba, Silas de Oliveira...”, acrescenta Dona Zica]  grandes compositores, belíssimos sambas. Só para deixar registrado a minha posição sobre isso. Há dez anos atrás, saiu com Amanhã e essas coisas maravilhosas, que depois outros intérpretes gravaram com outros arranjos e viraram grandes sucessos.  [“Olha e depois que no Salgueiro....”, começa a falar Dona Zica, mas é interrompida por vários comentários]

Assis Ângelo: Este antigamente é dez anos atrás.

Jorge Escosteguy: [tentando colocar ordem] Um minutinho, por favor. Dona Zica, por favor.

Dona Zica: Aquele samba, depois que aquele menino fez, como era o nome dele, “Pega no ganzê, pega no ganzá” acabou, foi aí que acabaram os sambas históricos. Porque os sambas de antigamente eram mais bonitos, porque eram sambas históricos. O nego do morro não sabia nem ler direito, mas ele tocava violão e ele ia procurar, pesquisar, fazia aquele samba bonito. Como o Cartola fez: [cantando] “não há neste mundo cenário tão rico, tão vário e com tanto esplendor, no monte onde jorram as fontes, que quadro sublime de um santo pintor”. Foi o Vale de São Francisco. 

Marília Trindade Barbosa: 1948. 

Dona Zica: Mangueira ganhou com o Vale de São Francisco. Você vê, ele foi procurar esse samba...[cantando]: “Em se vires poeta, em noite invernosa e noite distinta, espraiando beleza, que ficam e passam, majestosa lagoa, e a Bahia lendária das mil catedrais, terra do ouro, que é Minas Gerais”. Ele procurava se expressar, agora não. 

Maria Luiza Kfouri: Como é que a senhora falou da história do "pega no ganzê"? 

Dona Zica: Como é que ele chamava o rapaz?

Marília Trindade Barbosa: Zuzuca.

Dona Zica: Zuzuca, dizia assim: “Pega no ganzê, pega no ganzá”, extrapolou, extrapolou que aí veio esse samba aí.

Maria Luiza Kfouri: Aí que aconteceu aquilo de que o Cartola falava que criou-se um refrão pro samba-enredo, o samba-enredo morreu, a partir da criação desse refrão? Todo mundo só sabe o refrão e mais nada. E os grandes talentos se afastaram das escolas também, não é que não haja grandes talentos. O Paulinho da Viola se afastou da Portela. [vários comentários simultâneos]

Osvaldo Martins: Então vamos colocar esse antigamente nos seus devidos lugares. Em 1988, praticamente todas as escolas, que concorreram no grupo especial do Rio de Janeiro, fizeram sambas excepcionais, lindíssimos, maravilhosos, foi o ano que a Vila [Isabel] foi campeã e a Mangueira vice. [“O Silas de Oliveira”, acrescenta Dona Zica] Então esse antigamente a gente precisa colocar nos devidos termos. O samba da Mangueira, e não era no refrão, samba do Hélio Turco [Hélio Rodrigues Neves, (1935-)], que era o centenário da abolição, questionando a questão da liberdade, da abolição, “quem pintou essa aquarela, livre do açoite das senzalas”. 

Maria Luiza Kfouri: E o samba desse ano da Mangueira, Dona Zica? [Jorge Escosteguy pergunta o mesmo]  

Dona Zica: É um samba bonito. 

Jorge Escosteguy: A senhora fez meio assim, “um samba bonito” [fazendo uma expressão de quem não gostou muito; vários comentários].  A senhora pode contar que hoje oficialmente já é a segunda-feira de carnaval, Mangueira já desfilou, então... 

Dona Zica: Um samba bonito, é um samba que evolui, e tudo.... mas....o samba, é samba, mas não é “o samba”, não é a Mangueira. 

Jorge Escosteguy: Por que não é? 

Dona Zica: Porque extrapolou, já saiu, não sei. Gosto, porque eu sou Mangueira. Tenho que sair com ele, mas... 

Aydano André Mota: Existe uma polêmica no carnaval carioca de que nos últimos dois anos, nos últimos dois desfiles, fora o que está acontecendo nesses dias, o desfile de 92 e o de 93 foram ganhos por escolas que tinham refrão forte no samba, que foi a Estácio em 92 e o Salgueiro em 93. 

Dona Zica: O que é que o samba do Salgueiro tinha? 

Aydano André Mota: Um refrão. 

Dona Zica: Um refrão. Não tinha mais nada!

Jorge Escosteguy: E o refrão da Mangueira desse ano? 

Dona Zica: O refrão da Mangueira este ano é [cantando]: “Atrás da verde rosa só não vai quem já morreu”. [risos e comentários simultâneos] 

J. Paulo da Silva: Dona Zica, eu estive conversando com o tio Jair, e tio Jair me disse uma coisa curiosa, que até escrevi sobre isso. Que este ano a Mangueira aposta mais na superstição, porque ele fez uma análise do seguinte: ele acha que toda vez que a Mangueira homenageia baianos e homens, ela ganha. Exemplo de 86 com [Dorival] Caymmi [consagrado cantor e compositor brasileiro], 84 com Braguinha [Carlos Alberto Ferreira Braga, compositor brasileiro famoso pelas marchas de carnaval] e 87 com Carlos Drummond de Andrade [um dos principais escritores e poetas da literatura brasileira]. A senhora acredita nessa coisa, acha que a Mangueira, por estar fazendo, homenageando os Doces Bárbaros [grupo baiano formado por Caetano Velloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethania], pode também vencer, a senhora acha que já há um clima de “já ganhou” na escola? 

Dona Zica: É, porque eles são o mito da música popular brasileira, eles estão...  E ele dá aquela força, então nós estamos esperando aquela força que eles dão. O samba está cotado, o enredo está cotado, estamos homenageando, fizemos um casamento Bahia com a Mangueira e estamos esperando... 

J. Paulo da Silva: E isso influencia os jurados, a senhora acha que pode influenciar os jurados?

Dona Zica: O meu medo, vou ser franca, o meu medo é dos jurados. Porque nós contamos com o jurado e chega na hora, o jurado...Olha, vê o ano passado, a Mangueira perdeu num quesito que ela não podia nunca perder; outro quesito que ela perdesse, a gente estava satisfeito, mas na harmonia, a Mangueira desfilar e perder? Aquele juri foi...? Não foi. 

J. Paulo da Silva: A senhora acha um enredo bom falar sobre a manga, mangueira, essa coisa toda? 

Dona Zica: Ela falou sobre a fruta.Teve gente que achou ruim e eu não achei. Ela falou sobre a fruta.

J. Paulo da Silva: Que lembra um pouco a história da escola. 

Dona Zica: Desde aonde a manga veio para chegar ao samba. Quer dizer que ele fez um enredo bonito, foi procurar a manga vindo da Índia, passou pela... É eu não achei que foi....

Assis Ângelo: O primeiro samba, como tal conhecido, embora o Zuza possa confirmar isso, não é samba, é maxixe, Pelo telefone, é isso, Zuza, acho que é isso, né?

Osvaldo Martins: É mais maxixe.

Assis Ângelo:  Mais maxixe do que samba, né? Em 1916, gravado em 1917, a letra já falava de polícia, a letra já era um caso de polícia o samba no Brasil.  E hoje, 1994, carnaval de 94, os bicheiros presos, o samba no Rio de Janeiro continua sendo um caso de polícia? Como é que a senhora vê isso? Os bicheiros sempre influíram, sempre tiveram a última palavra? Eles jogam dinheiro em cima de jurados, como é que é essa coisa? 

Dona Zica: Olha, não influiu para a Mangueira isso, porque a Mangueira nunca teve bicheiro, do bicheiro ser o patrono da escola. Nós tivemos o Zinho, que é do bicho, o Zinho gostava muito da Mangueira, ele ajudava assim no que ele queria, no livro de ouro, mas dizer que o carnaval estava sobre a cabeça dele, não. 

Assis Ângelo:  Mas o bicheiro mudou a escola de samba, mudou o carnaval carioca? É isso que eu queria ver na visão da senhora. Nós sabemos que o carnaval já não é do povo, nós falamos isso no começo do programa, não é. Quer dizer, é mais um carnaval para gringo, carnaval para turistas, e o povo fica por trás. Se ele tiver dinheiro, vai, e o povo não tem dinheiro pra ir em desfile de carnaval. Então o que quero dizer é o seguinte: essa mentalidade de no carnaval no Rio de Janeiro, com a presença dos bicheiros, não descaracterizou, não? É isso que eu quero saber. 

Dona Zica: Sabe o que fazia o bicheiro na escola de samba? A escola de samba, o enredo vai ser este e tal. A  escola, a Mangueira, por exemplo, Mangueira era a escola... não é por eu ser da Mangueira, a escola mais pobre era da Mangueira. Os presidentes da Mangueira todos são pessoas do lugar, são homens nascidos e criados na Mangueira. O Carlinhos é da polícia, esse agora que está aposentado é da polícia. 

J. Paulo da Silva: O Roberto Firmino é da comunidade, o presidente? 

Dona Zica: É, nascido e criado na Mangueira, Ivo Meireles, tudo é nascido e criado na Mangueira. O outro que passou é da Mangueira, veio de Minas pequeno... Então o que o bicheiro fazia lá? A vez do bicheiro... O bicheiro tem o dinheiro. Então, a Mangueira comprava oito metros de fazenda [tecido] agora, nove amanhã, e o bicheiro: “Precisa de quantos metros”? “Duzentos metros”. O bicheiro tinha para buscar aqueles 200 metros de fazenda. Já a Mangueira não tinha, a Mangueira já comprava oito hoje, sete amanhã. 

Assis Ângelo: Era a única escola do Rio que bicheiro não tinha participação direta? 

Dona Zica: Não. Então é o que o bicheiro fazia nas outras escolas, não é que eles davam não, depois eles tiravam.

Zuza Homem de Melo: Isso que eu queria perguntar. Como é que era o troco desses metros de fazenda? Naturalmente eles não davam à toa? [comentários simultâneos]

Dona Zica: Não, depois do ensaio, o dinheiro era deles. Eles que arrecadavam, eles que guardavam, eles que faziam. A bilheteria era deles. Então na Mangueira, não. Então eles tinham dinheiro, como eles tinham....  Precisa de dez metros, cem metros de não sei o que lá de renda, eles tinham cem metros. A Mangueira não, era quatro hoje, três amanhã. 

Aydano André Mota: Durante essa ditadura dos bicheiros no carnaval, só venceram no carnaval escolas, especialmente, nos últimos 5, 6 anos, só venceram no carnaval escolas que tinham patronos, banqueiros de bicho. A senhora acha que é uma questão só do dinheiro ou o poder deles influenciou nisso também? 

Dona Zica: O poder deles primeiro é vestir a escola bem. Você ia pedir um pano, o Joãozinho Trinta ia lá fora para comprar pano, no Japão, na China, nos Estados Unidos, comprar pano para fazer aquelas roupas. Viu o ano que saiu a... ano passado que pegou fogo, o que tinha de tapetes da Pérsia, porque os bicheiros podiam comprar aquilo. Já a Mangueira não podia. 

Jorge Escosteguy: Mas eles continuam ainda influenciando o Carnaval, né, Dona Zica, apesar de estarem presos? 

Dona Zica: Agora se eles compravam o carnaval, eu só posso dizer que eu, dizer na minha cara, que comprou o carnaval, foi aquele bicheiro que morreu, como é, da Portela.... O Natal. Que ele falou na minha cara: “Carnaval é aqui no meu bolso”. O que ele disse pra mim. Agora os outros não disseram. Eu não posso dizer que os bicheiros foram comprar os juízes, isso não posso dizer. 

Jorge Escosteguy: Ele falou: “é aqui no meu bolso e ganhou”? 

Dona Zica: Ganhou. 

Osvaldo Martins: Agora, teve uma influência benéfica, hein, teve uma influência benéfica.

Jorge Escosteguy: A Portela é a que reúne o maior número de títulos...

[?]: Na organização.

Dona Zica: Porque quem inventou o carnaval luxuoso, inventou comprar, foi o Natal. Foi o Natal que botou o luxo no carnaval.

Jorge Escosteguy: A partir de quando a senhora diria isso? Esse brilho que o Natal pôs no carnaval carioca?

Dona Zica: Depois que ele foi presidente, todos os anos ele botava o brilho no carnaval. 

Marília Trindade Barbosa: Natal, eu acho o seguinte, a gente não podia falar em samba-enredo, sem falar no Silas de Oliveira, e não podia falar em bicheiro sem falar no Natal, o Natal começou isso nos anos 40 mesmo. 

Dona Zica: Ele começou a modificar o carnaval. Por exemplo, você era um bom passista na Mangueira, então ele ia lá e dizia: “Você”. A Mangueira não podia dizer: “Eu te pago tanto para você sair na minha escola”. Mas ele ia lá e dizia...

J. Paulo da Silva: Profissionalizou o carnaval.

Osvaldo Martins: E outro grande fator que não foi citado aqui, que é a entrada da televisão nos desfiles, isso mudou totalmente. Muito do que se disse aqui sobre como era antigamente, como é hoje, etc, a questão do espetáculo, tudo isso se deve muito ao advento da televisão, que eles transformaram num espetáculo televisivo que vai para o mundo inteiro. Então é evidente que as coisas...

J. Paulo da Silva: E eu completo o teu raciocínio dizendo o seguinte, eu acho que a participação dos bicheiros nas escolas, ela também se intensificou com esse lado comercial de querer ganhar dinheiro, comercializar o carnaval, com a criação da Liga também, que é muito responsável. 

Osvaldo Martins: Em 87, a partir da criação da Liga, eu disse que os bicheiros, afinal de contas, também deram uma contribuição positiva, porque como vocês sabem, o negócio deles vive exclusivamente de organização, nisso eles são craques. 

Dona Zica: Que são organizados, são. 

Osvaldo Martins: Os carnavais, os desfiles das escolas de samba, a partir da criação da Liga, passaram a ser bem organizados. Acabou uma coisa que a gente não lembra, quando fala de antigamente, com saudade, daquela bagunça que era, dos atrasos que tinha nos desfiles, uma hora e meia de intervalo entre uma escola e outra, etc. Essa organização permitiu, por exemplo, que a televisão entrasse para valer, pagando direitos para as escolas, e esses direitos da televisão são repartidos, então isso é benefício para as escolas, isso só foi possível com a organização e só foi possível com o cumprimento de horário, senão não dava para ter televisão, esse foi o lado benéfico da história. [vários comentários simultâneos] 

Dona Zica: É. Eles arranjaram para que as escolas ganhassem dinheiro. Os compositores, eles arranjaram, arranjaram que as escolas ganhassem dinheiro. A Liga, antes do carnaval, dava uma quantia para as escolas. Eles ajudam, não é dizer que eles foram mal nisso. 

Jorge Escosteguy: Esse dinheiro ajudava a manutenção das escolas e a preparação do carnaval? 

Maria Luiza Kfouri: Você acha que a prisão deles pode, de alguma forma, prejudicar o carnaval deste ano? 

Dona Zica: Não, isso não vai prejudicar, porque eles estão presos, mas...

Maria Luiza Kfouri: Estão mandando lá de dentro. 

Dona Zica: Tão mandando lá de dentro, tem os bicheiros deles.

Assis Ângelo: A participação do bicheiro no carnaval carioca, se fala muito na estatização do carnaval, na privatização do carnaval, na independência do carnaval, como era antes, aliás, que era uma coisa espontânea e, portanto, podemos dizer que era um carnaval independente, que independia de ajuda do município, do Estado, de iniciativa privada, enfim. Como é que a senhora vê, qual seria a idéia que passaria pela senhora para que o povo voltasse novamente às ruas e vibrasse com naturalidade o carnaval não só carioca, mas do Brasil inteiro. A senhora vê o caminho da privatização, o caminho da estatização, ou seja, permanece a estatização, ou a privatização seria o caminho? E os bicheiros já não são uma forma de privatização, mesmo à margem da lei, uma coisa bandida, uma coisa fora de ordem?

Dona Zica: Eles ajudam lá ao modo deles, mas eu acho que o que prendeu mais o carnaval foi ser ali. Porque o Brizola quis fazer o lugar, porque chegava o carnaval, teve um ano que disse que iam até desfilar no Maracanã, como é que uma escola ia desfilar no Maracanã? [“Mas é politicagem, né, isso aí é politicagem, um jogo meramente político”, diz Assis Ângelo] Ou então ia desfilar em Jacarepaguá. Então a escola não tinha o seu lugar de desfilar. Acabou a avenida, porque não pode, porque ali debaixo passa tudo e tem medo do povo, aquilo ia dar um prejuizão. Não pode na Praça Onze, porque agora já é outra coisa, antigamente era melhor a Praça Onze. Depois passou para a avenida, já desfilou na Antônio Carlos. Então o Brizola fez aquele...

Assis Ângelo: Nunca teve o lugar certo. 

Dona Zica: Mas o sambródromo não dá vazão pra aquilo. 

Assis Ângelo: Mas para a televisão é perfeito. 

Dona Zica: Pra a televisão é perfeito...

J. Paulo da Silva: E o público ficou afastado. [vários comentários simultâneos]

Jorge Escosteguy: Um minutinho, por favor, eu gostaria que deixassem ela concluir. O que a senhora acha do sambródromo? A senhora falou, então, que o Brizola fez o sambódromo.

Dona Zica: Fez o sambódromo para a escola ter o lugar dela, agora já sabe que é ali que ela vai desfilar, ela não tinha paradeiro, ficou como o futebol, como a corrida. 

Assis Ângelo: Quer dizer, ali ela desfila para a televisão, com tranqüilidade...

Jorge Escosteguy: Um minutinho só, deixa ela concluir.

Dona Zica: Mas ali tinha que ser maior, quer dizer, e depois daquilo ser restrito, pois a gente tem que desfilar naquilo, tem que ter os 90 minutos para as escolas desfilarem dentro daqueles 90 minutos.Porque a escola tem que ter o limite, porque se ela crescer mais um bocadinho, ela não dá. Se elas crescem, ela não dá pros 90 minutos. É uma correria. Quer dizer que a escola agora não mostra mais aquela beleza, o mestre-sala dançando, cortejando a porta-bandeira, não dá mais, o passista fazer a evolução dele. Não dá mais. 

Jorge Escosteguy: Mas aí já não é mais um problema do sambódromo, Dona Zica, é um problema dos critérios de disciplina do desfile que tanto podem ser no sambódromo, como na avenida Antônio Carlos ou em outro lugar. 

Dona Zica: É o critério deles. É só noventa minutos... 

Jorge Escosteguy: Agora, o sambódromo como um local para desfile da escola de samba, a senhora acha que é uma coisa bonita, boa, favorece o público para ver o desfile? 

Dona Zica: Favorece o público que pode ver o desfile. Agora, a minha vizinha, a minha comadre, a minha irmã não pode ver, porque a entrada não tem. Vai comprar, dorme lá, apanha, fica doente e tudo e não tem a entrada para ela. Quer dizer que só entra quem tiver para poder entrar. Não é aquele carnaval livre que a gente fazia na avenida, que a gente fazia na Praça Onze, não é mais aquele carnaval livre. Agora é aquele carnaval de acordo com o sambódromo.

Zuza Homem de Melo: Dona Zica, a gente tem discutido o carnaval sempre em função do desfile, e realmente, como a senhora disse no início, o desfile acabou absorvendo todas as atenções do Brasil inteiro em termos de carnaval. Mas como a senhora também disse no início, o carnaval não era só desfile, o carnaval era uma série de festividades. 

Dona Zica: Festividade, desde de dezembro.

Zuza Homem de Melo: Com uma participação popular muito intensa em bailes...[Dona Zica e Marília falam ao mesmo tempo que Zuza]

Marília Trindade Barbosa: Não era antes, Dona Zica? A festa da Penha. 

Dona Zica: Ah, é, novembro, outubro. Acabava a Penha e entrava carnaval.

Zuza Homem de Melo: Havia bailes, havia corso, havia uma série de manifestações populares em que a parte musical, a parte artística se fazia presente. Havia as músicas de carnaval que não tinham nada a ver com as músicas de samba-enredo que hoje não existem mais. Então eu pergunto: a senhora acha que esse extermínio dessas outras atividades é fatal, é final, é para sempre, ou a senhora ainda vê possibilidade de alguma dessas atividades voltar assim? 

Dona Zica: Eu não sei se voltarão os carnavais com aquelas coisas bonitas que tinha, a Penha já começava em outubro, a Penha era bonito, fazia samba para a Penha, os compositores faziam samba. O Cartola tem samba para a Penha, faziam aquilo, tudo era bonito, inventavam aqueles carros. Isso tudo foi acabando e agora não sei qual é o motivo, ainda não entrou na minha cabeça qual é o motivo que acabou isso. 

Zuza Homem de Melo: No Rio não tem mais nada disso, e em outros lugares?

Dona Zica: A festa de São João. 

Zuza Homem de Melo: No interior de São Paulo, por exemplo, existem bailes de carnaval que são realizados, mas não tem nada a ver com o desfile, mas mesmo esses são... 

Dona Zica: Tudo acabou, não sei o que deu na cabeça do povo. O São João era bonito, via aquelas coisas bonitas, os casamentos. Não tem mais. Cada bairro fazia a sua festa. Não tem, acabou.   

J. Paulo da Silva: Agora, Dona Zica, a senhora não acha, por exemplo, eu acho que ele falou que o Rio não existe mais. Mas, por exemplo, na Rio Branco, durante o período de carnaval, no Rio Branco há uma grande festa, blocos, e é uma coisa absolutamente aberta. Então não está tão exterminado assim. Há sobreviventes. 

Dona Zica: Não tá tão, não. Ainda tem coisas.

Assis Ângelo: Mas perto do que era antes...

J. Paulo da Silva: Sem dúvida, você não vai poder fazer uma comparação, mas na verdade, eu não sei se a senhora concorda, eu acho que ainda existe. A senhora, por exemplo, vai em alguns subúrbios do Rio, há carnaval, há coretos onde as pessoas brincam, pulam. Obviamente, o que eu acho que está acontecendo, não sei se a Dona Zica concorda, é que não existe mais a divulgação desse carnaval, como existe, por exemplo, em Recife, na Bahia. O carnaval de rua... A imprensa está lá, está mostrando aquela coisa toda. Então, na verdade, no Rio, acho que também em São Paulo deve haver, agora o que falta é divulgação desse tipo de coisa. 

Assis Ângelo: Talvez seja mais no interior do Brasil, como você lembrou em Recife. João Pessoa, por exemplo, tem um bloco que se chama Muriçocas do Miramar, que arrasta 25, 30 mil pessoas. [vários comentários simultâneos]

J. Paulo da Silva: Sem dúvida, o Bola Preta.

Jorge Escosteguy: Um de cada vez, por favor. A Marília tem uma pergunta. 

Marília Trindade Barbosa: Eu estou querendo que a Zica lembre, porque esta discussão ela é eterna, né, da modificação. 

Osvaldo Martins: Também nós estamos fazendo de conta que a mídia não tem nada a ver com isso. 

Marília Trindade Barbosa: Eu queria fazer um registro que o carnaval, o desfile de escola de samba oficialmente começou em 1935, quer dizer, com a cobertura da prefeitura – você lembra do prefeito Pedro Ernesto Batista – a escola de samba não fazia parte, ela estava fora. Tinha corso, rancho, grande sociedade. Então um dia esse prefeito resolveu agregar. 

Osvaldo Martins: Que era uma coisa elitista, hein; corso, grandes sociedades... Aliás, a origem do carnaval era de elite. 

Marília Trindade Barbosa: Ali a escola de samba alijada na Praça Onze. Quando ela veio, que aí acho que a discussão começou aí, – lembra Zica? –, o samba saía com um refrão só, e os versadores improvisavam na hora. [Dona Zica concorda: “É, improvisava na hora”.]  A tradição no samba era essa. No primeiro ano que houve o desfile oficial com julgamento, saiu um regulamento feroz, porque ele acabou com o quesito dos versadores no primeiro ano. Por quê? O juiz tinha que ter uma letra pré-estabelecida, como não tinha som, não é, Zica, e entregava um papelzinho. Esse casamento de julgar oficialmente, ele vai matar a espontaneidade, ele mostrou que mataria a espontaneidade da escola no primeiro desfile. Hoje a gente está, isso foi em 35, quase 60 anos depois, a coisa só se grava, mas é a continuidade do mesmo processo. Quer dizer, então, essa discussão, a gente não vai conciliar nunca a espontaneidade do sambista e essa briga também. O sambista quer, o sambista gosta da televisão, ele quer ganhar dinheiro com isso, e essa briga também começou em 41 com Paulo da Portela, quando trouxe – 40 – para São Paulo o sambista, em vez de desfilar lá, de graça, ele veio ganhar dinheiro em São Paulo. 

Assis Ângelo: Quer dizer, e a cultura aí vai para o espaço? 

Marília Trindade Barbosa: Eu hoje, como pesquisadora, eu acho que briguei muito por essa posição, hoje eu tento entender. É outra cultura e tem uma coisa: nós que temos a visão romântica queremos ver aquilo bonito e de graça. Mas eles precisam viver, eles precisam viver. Então...[outros falam ao mesmo tempo] 

Osvaldo Martins: Mas não é bonito atualmente? Cá pra nós: o desfile das grandes escolas não é um espetáculo bonito?

Jorge Escosteguy: A senhora não acha bonito, Dona Zica? Conta pra nós: ainda é bonito, ou não é?

Dona Zica: É bonito. Eu amo carnaval. Enquanto eu estiver viva, o carnaval para mim é a coisa que eu adoro. Se eu não tiver carnaval, eu sei lá, está faltando uma coisa em mim, está faltando alguma coisa em mim. 

Jorge Escosteguy: Apesar de todas as saudades que a senhora possa ter, a senhora, hoje, ainda entra com o carnaval com a mesma emoção de 30, 40 anos atrás?

Dona Zica: Sabe qual é a emoção – o pessoal aí, às vezes, pergunta - essa pergunta é sempre...  “Você tem a mesma emoção que você entrou a primeira vez”? A mesma emoção, porque eu amo a Mangueira. Se eu pudesse fazer uma transfusão do meu sangue, era verde e rosa, só em verde e rosa, eu queria... Porque foi a escola que eu vi nascer, saio nela há 65 anos, e saía e eu não tinha barriga, não tinha criança que nasceu, não tinha... o tempo todo eu tô na Mangueira. Então eu adoro carnaval, nasci num domingo de carnaval. Então, quer dizer, adoro a Mangueira...Então quer dizer, que a Mangueira quando entra, quando eu estou lá, quando a Mangueira vai entrar no sambódromo, quando diz assim, o homem lá anuncia: “Agora, Estação Primeira de Mangueira”. Aquilo já arrepia.

Jorge Escosteguy: Arrepia? 

Dona Zica: Mas também vem uma coisa na gente. Eu fico, “será que a Mangueira vai entrar bem”? Já tô pensando: “Será que a Mangueira vai falhar? Será que vai fazer buraco? Será que não vão cantar?” Aquilo tudo vem na minha cabeça. É aquela emoção, eu estou com medo que a Mangueira não vai fazer aquilo, que vai perder. 

Jorge Escosteguy: Quando termina a senhora está sempre satisfeita, ou sempre acha que...? 

Dona Zica: Nós, que somos carnavalescos, desfilamos esses anos todos, a gente sente quando ela perde e quando ela ganha. 

Maria Luiza Kfouri: Sente na hora? Na hora do desfile mesmo?

Dona Zica: Sente na hora. A gente vê os buracos, ninguém cantou, ninguém se animou. Na harmonia nós já fomos, já estamos já... É aquela emoção que dá no sambista. 

Jorge Escosteguy: A senhora não chega ao exagero de dizer todo ano que a Mangueira não ganha, que foi injustiça? 

Dona Zica: Não, não. Eu sei os quesitos que ela não ganhou, como no ano passado. Ele [o juiz] botar aquele 7 na harmonia da Mangueira? A Mangueira pelo povo era a primeira escola e depois passou a segunda, e eles dizer que não tem harmonia?  Dar 7?  Não era ali que ele tinha que dar. 

Osvaldo Martins: Esse quesito até devia ser extinto, né?. 

Dona Zica: É aquele quesito não era para ....É isso que eu queria dizer, a Mangueira passou bem, ela desfilou bem, ela teve a harmonia do povo aplaudir. Como é que ele tinha de dar 7 numa harmonia? Porque a gente conhece os quesitos que eles marcam. 

Jorge Escosteguy: A senhora acha que o pessoal que está vendo o desfile é fundamental, a torcida, cantar junto? 

Dona Zica: É bom, por que foi que a Salgueiro não estava...? Não é por eu ser Mangueira, mas o Salgueiro ganhou, mas ele ganhou naquele refrão, e a roupa deles não estava lá... Se a gente ganha pela roupa, não estava lá essas coisas de abafar uma Mangueira não. Porque a gente conhece o tecido, não estava nessa altura de ela ser campeã, mas foi o povo, aquele refrão. 

Jorge Escosteguy: Que levantou a escola, ajudou a escola e levantou os jurados? 

Dona Zica: E levantou os jurados. Porque tem jurado, eu já fui jurada e tem jurado que vai lá, já fui jurada, fui com o jurado me perguntar o que era, ele foi julgar sem saber o que ele ia julgar. Eu fui julgar mestre-sala e porta-bandeira, e ele foi julgar harmonia. Ele perguntou o que era ele ia fazer, o que era harmonia? 

Osvaldo Martins: Hoje não tem mais [...] pra isso, né?  Porque ele recebe treinamento, cursinho. Recebe o manual do julgador. 

Dona Zica: Agora não, agora tem essa escola... Eu também já fui... Eu fui julgar em Curitiba, eu fui julgar comissão de frente. Então veio a comissão de frente muito bonita, as meninas muito bem vestidas, mas era doze, dez até quinze, vinha doze. As meninas muito bem vestidas, mas onze de sapato dourado e uma de sapato preto. Eu não podia dar nota máxima àquela comissão. Uma menina de sapato preto, onze de sapado dourado, ela tinha que vir.  Aí quando foi na hora, o presidente veio brigar comigo, quando ele soube a nota que eu dei, ele disse: “Ô, Dona Zica, a senhora...!  Eu disse: “Ô, filho, como é que eu podia dar dez com uma menina de sapato preto”?  Ele falou: “Ah, mas a senhora fingia que não via”. Eu não vim aqui para fingir que não vi, eu vim pra...” 

Jorge Escosteguy: Em quantas escolas a senhora sai, não é só pela Mangueira, né?

Dona Zica: Eu só saio pela Mangueira. Saí no ano passado numa outra, porque eu fui homenageada, aí eu tive que sair. E este ano eu sairei em quatro, porque eu vou sair na Ponte para homenagear a nossa “Marrom” [refere-se à cantora de samba Alcione], que é Mangueira, ela vestiu a camisa da Mangueira e não tira nem para lavar, a Alcione. E vou sair na Mangueira, que é a minha.

Osvaldo Martins: Já saiu, né, Dona Zica, ontem.  [risos]

Jorge Escosteguy: O programa foi gravado, a Dona Zica está falando que vai sair, porque este programa foi gravado um pouco antes do carnaval. 

Dona Zica: Vou sair na Canarinho da Laranjeira, porque eram do Cartola e eles querem me homenagear, e vou sair na Portela, porque eu vou homenagear a tia Ciata

Jorge Escosteguy: E energia para tudo isso? 

Dona Zica: Se Deus quiser.

Maria Luiza Kfouri: Dona Zica, voltando ao Cartola, a senhora, um pouco antes de terminar a primeira parte do programa, a senhora disse que recebe uma pensão de funcionário público dele e tudo o mais.  A rádio Cultura AM, que é a rádio que eu dirijo e que é também dessa casa, é uma rádio só de música brasileira. O Cartola cantando é tocado no mínimo duas vezes por dia na rádio, fora as músicas dele com os diversos cantores e instrumentistas que gravaram a obra dele, a senhora recebe direito autoral? 

Dona Zica:  Olha, eu recebo, mas eu sei que eu poderia receber muito mais, mas eu sozinha, vou brigar? Não posso, eu recebo o que eles me dão. Eu recebo, ele tem samba no Japão, em Portugal, tudo canta ele, todos os estados cantam ele. 

Assis Ângelo: Dona Zica, até agora falamos bastante de muita coisa e esquecemos de falar do [bar] Zicartola, que nasceu no dia 5 de setembro de 1963 e acabou no dia 26 de maio de 65, portanto, um ano e meio mais ou menos. Qual era a importância do Zicartola para a cultura popular, especialmente no Rio de Janeiro? Tinha carnaval lá também no mês de fevereiro?

Dona Zica: Tinha. O Zicartola foi a coqueluche do momento, porque não tinha casa, comida e samba. 

Assis Ângelo: Ele foi o responsável pelo ressurgimento da velha guarda.  

Dona Zica: E nós fizemos e conseguimos fazer. Então naquele tempo não tinha, só tinha a [Gafieira] Estudantina [Musical, casa de samba criada em 1932, existe até hoje na Praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro] mas não era isso, era outro jeito, então nós fomos a coqueluche do momento. Toda a fina flor foi na minha casa, mas o Cartola não dava para isso. 

Maria Luiza Kfouri: Não deu conta nem da barraca lá. 

Dona Zica: É, o Cartola dava pra violão e fazia música.

Maria Luiza Kfouri: E dava bem, né? 

J. Paulo da Silva: Não precisava fazer mais nada, né? [risos e comentários simultâneos]

Dona Zica: [começa a explicar o início e o fim do Zicartola] Uma pessoa que me deu aquela... foi o Eugênio Augustine Neto, que hoje está em Miami, e os dois primos dele, que gostavam muito de mim, porque graças a Deus eu tenho um sangue doce, todo mundo me ama pelo meu jeito, não sei, Deus me deu essa graça. Então ele disse para a mim, eu falei com o meu padrinho de casamento, que era deputado, eu falei: “Ô doutor Mario, o senhor não arranja uma casa para mim assim na cidade” – porque antigamente aquelas casas que iam abaixo, ficavam um, dois, três anos, quatro, sem ir abaixo, e aí iam, nós ficávamos lá em pé. Ele disse: “Eu vou arranjar uma casa para você”. “Para mim fazer uma pensãozinha que eu sou doida por cozinha”. Aí ele me arrumou uma casa na rua dos Andradas para ser a escola de samba, a Associação das Escolas de Samba e ele me deu em cima para mim morar, para fazer a minha tal pensãozinha que eu queria. Então o Cartola, toda sexta-feira, reunia os amigos, reunia ele, o Paulinho da Viola [Paulo César Batista de Faria (1942-), violonista e compositor brasileiro, iniciou sua carreira artística no Zicartola], o Zé Kéti [nome artístico de José Flores de Jesus (1921-1999), carioca, cantor e compositor de samba, começou a atuar nos anos 40 na ala dos compositores da Portela], muitos deles, o Elton Medeiros [compositor brasileiro de vários clássicos do samba e um dos iniciadores do Zicartola], faziam aquele sambinha. Então vinham uns meninos, os estudantes, o Cartola até quase foi preso, porque foi naquele tempo do... Cismaram que o Cartola era...

Jorge Escosteguy: Estava fazendo algum aparelho ali subversivo. 

Dona Zica: É, mas não era pra cantar, os meninos cantavam. O Cartola era muito querido, isso ele foi muito querido na vida para cantar. Ele ia fazer esses shows nessas escolas, sabe, nessas faculdades, os meninos ficavam ali como uma mosca e não cantavam. Tudo ali, Cartola cantando, eles tinham aquele amor pelo Cartola. Então os meninos iam, estudantes iam, faziam. Então um dia o Eugênio perguntou para mim: “Ô Zica, o que você queria”?  Eu disse: “Olha, Eugênio, eu queria ter assim uma salinha com seis mesinhas para mim dar pensão, para mim tanto dar pensão que eu gosto, e lidar com público, que eu gosto muito de lidar, que eu gosto muito de conversar, gosto de lidar com a vida, com o povo”. E ele aí foi ver uma casa. Ele disse: “Ah, você faz isso. Procure uma sala para você”. Aí eu fui, no outro dia comprei o jornal, mostrei a ele: “Eugênio, aqui tem uma sala assim, assim”... Nós fomos na rua da Carioca, 53, tinha anunciado uma sala, chegou lá, ele viu a sala, mas embaixo tinha um salão. Ele perguntou pro síndico: “E esse salão aí embaixo”?  “Esse salão também está para alugar”. Ele disse: “Olha, lá, Zica, quem sabe”? Eu disse: “Mas, Eugênio, aquele salão não é para mim, eu não agüento aquilo.  Você vê que o Cartola não tem jeito”. Eu tenho jeito. Eu sei cozinhar. Eu cozinho para dez, cozinho pra cem, cozinho pra quinhentos, cozinho pra mil. 

Osvaldo Martins: Sua feijoada é famosa, né, Dona Zica? 

Dona Zica: Tenho meu jeito de cozinha... Mas não sou letrada para guiar uma casa. Eu nunca tive na escola. Então a minha vida é um livro aberto. Eu nunca tive na escola, minha mãe não pode me botar na escola, coitadinha, ela era viúva, tinha que criar aqueles filhos todos, ficou viúva e não deu tempo de botar na escola, de maneira que eu sei é pela minha vontade  e pelo meu jeito de viver. Então eu não sei lidar com uma casa, não sou letrada pra...Ele falou: “Não, você quer a casa”? “Eugênio, não posso”. “Vamos alugar”.  Aí ele alugou, alugou a tal, mandou reformar a casa toda, fez cozinha, tudo conforme era dito pela prefeitura e me deu a casa. Mas enquanto eles foram..., foi dois anos que durou a casa, enquanto eles ficaram comigo, um ano que eles ficaram comigo, eles botaram gerente, botaram tudo, eles controlavam a casa, deu, deu, porque eu sabia a comida que eu ia fazer, para dez, para vinte, eu sabia, agora o resto, de conta, eu não sabia. Aí quando ele pagou, pagamos a dívida, que ele fez a casa, ele gastou para pagar, “Zica, olha, a casa gastamos tanto para montar, taí vocês já pagaram. Agora a casa é sua”. Aí foi a encrenca. Aí ele me deu a casa para mim, aí enquanto eles estavam ali, todo mundo comia, pagava, mas depois que passou “É do Cartola”? [“Pendurava a conta”, diz Maria Luiza Kfouri; “Todo mundo pendurava”, pergunta Jorge Escosteguy]. Ui.... preguinho mais alto...”Cartola, amanhã a gente passa aí”...

Jorge Escosteguy: E quem cuidava era só a senhora e o Cartola

Dona Zica: É. E aí botamos o gerente, só que quando o gerente viu que nós éramos cegos naquilo, ele ganhava mais do que a gente, o gerente. Um dia teve uma casa que queriam que eu ficasse, arrendasse a casa, eu não tinha dinheiro para arrendar. O meu gerente tinha, arrendou. [risos]

Osvaldo Martins: Eu queria aproveitar esse gancho do Zicartola, essa experiência fantástica, esse lugar maravilhoso que a Dona Zica e o Cartola criaram, para dar uma rápida passada num assunto que foi falado várias vezes, a coisa de “Escola S.A.”... Pois é, como exigir que o Cartola, o grande poeta Cartola fosse também um bom administrador de restaurante. A mesma coisa as escolas, não é da sua natureza, nem é da sua finalidade, não é a sua atividade fim fazer outra coisa, senão fazer aquilo que elas fazem. Portanto, no que diz respeito à Mangueira – e eu só estou dizendo isso porque tenho participação pessoal nisso – no que diz respeito à Mangueira, o marketing da Mangueira é feito à parte da escola. Ou seja, a escola, ela não é empresa coisa nenhuma nem nunca vai ser, ela é aquilo que sempre foi há 65 anos, que é um dos maiores patrimônios da cultura popular brasileira, um dos grandes tesouros da música brasileira e deverá continuar sendo assim. A sua atividade de marketing é feita separadamente em parceria com uma empresa que faz isso. Então, pelo menos no que diz respeito à Mangueira, essa coisa de “Escola S.A.”  não existe, e se depender da vontade dos mangueirenses, não vai existir nunca. 

Jorge Escosteguy: Dona Zica o importante é que tenha valido a pena e que as outras escolas façam também como a Mangueira. 

Dona Zica: Agora nós temos na nossa escolinha da manhã [Escola do Amanhã], são 2500 mil crianças que vão sair. E nós temos a nossa cultura na Mangueira, as crianças estão no futebol, temos a vila olímpica, agora vamos ter o nosso Ciep, que nós ganhamos, vai inaugurar dia seis. 

Jorge Escosteguy: Estão cuidando das futuras gerações de sambistas da Mangueira. 

Dona Zica: Então cada vez a nossa Mangueira vai ficar melhor. Nossa Mangueira não tem, eu não digo favela, porque eu acho que, não é ser, eu sou favelada, mas eu não gosto, eu digo uma comunidade. Mas a favela, nós temos aquele carinho, nós não temos infratores, nós não temos, somos uma favela mais feliz do Rio, que nós não temos, não temos negócio de quadrilha, nós não temos, temos as crianças. O nosso juiz de menores disse que há três anos que ele não tem infração de menor infrator. [“Exato, vamos torcer...”, Jorge Escosteguy tenta interromper] Então nós somos felizes, nós somos felizes na minha Mangueira. Eu moro na minha Mangueira desde quatro anos de idade, nasci na Piedade, mas fui pra lá com quatro anos. Então às vezes perguntam: “Zica, se você ganhasse um bilhete, um dinheiro para você morar na Vieira Solto”? Eu digo: “Não, eu fazia a minha casa bem bonita, a mais bonita da Mangueira, pra embelezar mais a minha Mangueira, mas eu queria aqui, aqui eu durmo tranqüila. Aqui eu tenho respeito, todo mundo me respeita, eu durmo com a minha porta aberta, no calor, tudo dorme aberta. Nunca, graças a Deus, nunca houve nada na minha casa, nem com a minha família. Então a Mangueira é rica. E eu tenho amor, amo aquele lugar. E a Mangueira não tem, todos os presidentes são filhos da Mangueira, são meninos criados ali, que governam a Mangueira. Agora, temos quem nos ajude. Isso é importante. São adeptos da Mangueira, que amam a Mangueira, que ajudam. Então a Mangueira precisa de um ferro para levantar esse quadro aqui.  Então aparece. A Mangueira precisa de... aparece.  E agora apareceu esse pessoal que nos ajuda, que é... 

Jorge Escosteguy: Muito bem, Dona Zica, desculpe interrompê-la, mas o nosso tempo já está esgotado. Que o exemplo da Mangueira frutifique, que ela tenha muitos outros carnavais cada vez mais bonitos como o deste ano. Nós agradecemos então a presença aqui no Roda Viva da Dona Zica da Mangueira e dos companheiros jornalistas que participaram da entrevista, agradecemos também aos telespectadores. E o Roda Viva volta na próxima segunda-feira às nove horas da noite, até lá e uma boa noite a todos. 

[Em 1994, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense foi a grande campeã do carnaval carioca, seguida pela Acadêmicos do Salgueiro (2º lugar) e pela Unidos da Viradouro (3º lugar).

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