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Memória Roda Viva

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Paulinho da Viola

6/2/1989

O samba, o chorinho, a carreira, a política das gravadoras e o carnaval são os temas tratados nesta entrevista

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Jorge Escosteguy: Boa noite, estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. Este programa também é transmitido pela rádio Cultura AM e pelas TVs Educativas do Piauí, Ceará, Bahia, Porto Alegre e TV Cultura de Curitiba. É ainda retransmitido pelas TVs Educativas do Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo. O convidado do Roda Viva desta noite é o cantor e compositor Paulinho da Viola. Para entrevistar Paulinho da Viola nós convidamos os seguintes jornalistas: Luís Antônio Giron, do Caderno Dois de o Estado de S. Paulo; Diana Aragão, crítica e música do jornal O Globo; José Antônio Rodrigues, jornalista da sucursal de São Paulo, do Jornal do Brasil; Maria Amélia Rocha Lopes, do Jornal da Tarde e apresentadora do programa Metrópolis da TV Cultura; Carlos Callado, repórter da Folha de S. Paulo; Itamar Assumpção, músico; Edmar Pereira, jornalista do Jornal da Tarde e Tarik de Souza, crítico de música do Jornal do Brasil. Hoje, excepcionalmente, não será possível atender telefonemas dos telespectadores porque o programa está sendo gravado.

Paulo César Batista de Faria, o Paulinho da Viola, nasceu no bairro de Botafogo no Rio de Janeiro, há 46 anos. Desde a década de 1960 é considerado um dos maiores compositores da nossa música popular. Apesar disso, Paulinho ficou sem gravar um disco durante 5 anos. Finalmente, cedeu aos apelos da crítica e do público e está lançando o 16º disco de sua carreira, chamado Eu canto samba [1989]. Paulinho, por que esses 5 anos sem gravar um disco? O que aconteceu?

Paulinho da Viola: Bem, muita coisa aconteceu nesse período. Quando eu fiz o último disco, chamado Prisma luminoso [1983], ele foi lançado em um momento, que eu acho que todos se lembram, em que havia um certo ceticismo em relação à chamada MPB, até por parte de alguns autores que reclamavam, alguns músicos, alguns compositores, alguns artistas, que estavam reclamando em não ver seus trabalhos reconhecidos e executados como achavam que tinha que ser executado. E também havia uma mudança naquele momento. Quer dizer, as gravadoras estavam investindo maciçamente, acreditando maciçamente em um grupo emergente, que era o pessoal do chamado rock de garagem, pessoal novo, que estava começando e alguns já com sucesso. Então, os investimentos eram muito para isso. Quando fiz esse disco, Prisma luminoso, e comecei a viajar, comecei a perceber que havia uma resistência muito grande com relação ao trabalho de divulgação do que eu havia feito e de outros. Comecei a perceber que outros artistas também ...A gente não ouvia nas rádios, principalmente nas FMs, e era uma enorme dificuldade fazer o trabalho se tornar conhecido.

Jorge Escosteguy: Que tipo de resistência você encontrava?
 
Paulinho da Viola: A não execução, a não vontade das gravadoras, da gravadora no caso, de fazer o investimento, de apostar mais no trabalho. Então, depois que fiz esse trabalho, comecei a viajar e encontrar isso, encontrar esse ceticismo, inclusive em relação ao samba. Eu ouvia comentários de determinadas rádios, no Rio de Janeiro, de FMs, dos programadores ou até mesmo os responsáveis, que diziam assim: “Não, aqui não se toca samba mesmo e a gente não está a fim.”
 
Diana Aragão: Agora, Paulinho, você acha que isso mudou, esse panorama mudou?
 
Paulinho da Viola: Eu acho que mudou um pouco. Acho que as coisas mudaram um pouco. A gente chega lá ainda. Então, eu fiz o seguinte: era o penúltimo disco, o último disco que eu deveria gravar na gravadora, fazer na gravadora.

Jorge Escosteguy: Qual era a gravadora?

Paulinho da Viola: Era na Warner. Era em 84, deveria fazer mais um disco e encerrava o meu contrato. Eu procurei o André, o André Midani, que era o presidente da gravadora e falei isso para ele, fui muito claro e falei: Olha, André, acho que fazer um outro disco em um clima desse, com tudo aí que eu sinto, as dificuldades que eu vou encontrar para a divulgação, vai ser cumprimento de contrato, o último disco vai ser aquela coisa de... Eu já venho gravando há muito tempo aqui, gravando todo ano um disco. Eu acho que quero me livrar um pouco disso. Eu acho que é hora de dar uma parada realmente para reavaliar o meu trabalho, ver que possibilidades eu tenho com relação à música que faço aqui. E ele aceitou, concordou, achou que era aquilo mesmo e deixou em aberto uma discussão para depois, sobre como iria ficar essa questão de contrato e tudo. Naquele ano de 84 eu não gravei realmente. Então, começou acontecer comigo uma coisa que eu não esperava também. Eu comecei a viajar e fazer shows. Fui algumas vezes até para o exterior e pelo Brasil. Comecei a fazer shows e comecei a perceber uma coisa: alguns lugares que eu fazia shows, principalmente no Nordeste, eram lugares que eu não tinha ido. Eu participei de um projeto em que fui para lugares que eu não podia imaginar, como por exemplo Porto Velho, Rio Branco, Macapá, no Sul e comecei a ver que as pessoas iam ao show. Era o maior sucesso. A crítica, os jornalistas me recebiam muito bem. Todos os lugares me entrevistavam. Então, eu comecei a perceber que a questão do disco, no meu caso, naquele momento, não era uma coisa imprescindível. O artista tem sempre essa idéia de que se tem um disco, tem um gancho, porque todo mundo vai entrevistar, que isso facilita, ele vai ser executado, não sei o quê. Isso aí até certo ponto é verdade. Mas eu comecei a sentir que, no meu caso, talvez porque eu nunca tenha feito um disco assim, já fiz discos de grande sucesso, mas talvez nunca tenha feito um disco assim de grande vendagem, de uma vendagem excepcional, nunca me dei muito conta disso. Quer dizer, sempre fiz o meu trabalho, sempre fiz os meus shows. Parece que há realmente essa história de alguns artistas que, por exemplo, vendem muito disco, entendeu? Outros não vendem tanto assim, mas fazem shows e lotam. Poderia citar alguns exemplos. No meu caso, já fiz shows em diversos lugares, até com ginásios lotados, e ficava pensando: acho que eu deveria vender o número de disco compatível com o número de pessoas que vêm assistir. Mas me parece que, essa história já é um pouco antiga, nem sempre é assim. Agora, eu relaxei um pouco em relação a isso. Eu achei que em 84, 85, iria ser procurado por gravadora, como realmente algumas gravadoras me procuraram. Naquela fase, como eu já disse, um pouco descrente desse negócio de mercado de disco, essa coisa de divulgação, vinha conversando com alguns artistas. Conversei, por exemplo, com Gil [Gilberto Gil]. Uma vez ele falou: “Eu acho que a gente tinha que ter uma outra proposta nessa relação com gravadora, não só em questão a divulgação do trabalho da gente, mas principalmente do pessoal mais novo que está chegando aí. Acho que é preciso a gente criar uma relação diferente, não pode ser essa coisa que está aí, que de repente se faz um investimento, se atenta para só um segmento da área musical. Tem vários outros aí que não têm essa oportunidade.” Então, por causa dessa conversa chegamos a pensar até em coisas alternativas, por exemplo, discos alternativos. Falava-se muito nessa época da chamada co-produção, alguns artistas fizeram essa experiência de co-produção com gravadora. Eu estava um pouco nessa. E aí, por coincidência, comecei também a fazer algumas viagens ao exterior, fui a diversos países, e comecei empurrar essa coisa, jogar um pouco para depois. Então, depois eu comecei também a ser um pouco cobrado por diversas pessoas: “Você não grava mais?” Seria uma leviandade da minha parte também dizer assim: não, não fui procurado por nenhuma gravadora. As gravadoras não queriam nada comigo. Não, não foi bem assim. Eu recebi algumas propostas, algumas realmente não foram adiante. Por exemplo, na fase do Plano Cruzado...[plano econômico do goverdo José Sarney]
 
Jorge Escosteguy: Quando as gravadoras procuraram você não estava a fim de gravar? Achava que não era o momento?
 
Paulinho da Viola: Eu ficava querendo discutir essa questão de como era o contrato, como era o tipo de trabalho, e começava dizer: olha, eu já tive essa experiência. Acho que não é por aí. Acho que tem que ser de uma forma diferente. Então a coisa passava para depois, passava para depois, até um ponto que apareceram muitas cobranças. Vai aqui também um ato que eu julgo que tem de justiça, de uma certa maneira até de agradecimento. Algumas pessoas, uns amigos, outros não, mesmo através da imprensa, outros que não são jornalistas, críticos de música que começaram a fazer essa cobrança: “Pô, Paulinho da Viola não grava mais? Por que não grava? O que está havendo?”
 
Diana Aragão: Paulinho, qual seria o contrato ideal no caso? Quer dizer você relutou tanto...
 
Paulinho da Viola: Isso é uma coisa muito difícil de falar aqui, agora, porque é uma questão muito delicada. Na verdade, eu vou dizer a você, mesmo lendo alguns contratos e vendo as cláusulas dos contratos, que eu sabia que não eram muito favoráveis para mim e também a outros artistas... Essa relação de poder é uma coisa muito difícil de ser mudada.
 
Diana Aragão: Obrigação anual de gravar um disco?
 
Paulinho da Viola: Isso não, nem tanto, porque muitas gravadoras não têm essa exigência, não obrigam o artista porque está no contrato que tem que gravar todo ano. No meu caso, por exemplo, eu sempre gravei em uma gravadora. Ninguém de gravadora se meteu para dizer: “Olha, tem que ser feito assim.” As pessoas, às vezes, sugerem músicas, sugerem uma mudança, mas não interferem diretamente.

Diana Aragão: Mas não tem a pressão direta?

Paulinho da Viola: Seria uma leviandade da minha parte, uma mentira se eu falasse...
 
Jorge Escosteguy: O Tarik de Souza tem uma pergunta, por favor.
 
Tarik de Souza: Paulinho, essa sua volta coincide com uma chegada dos roqueiros ao samba? Quer dizer, tem muito pessoal de rock hoje em dia fazendo samba. Tem Lobão, tem Cazuza [1958-1990], tem Picassos Falsos [banda da década de 80], tem umas séries de grupos, como os Paralamas [Paralamas do Sucesso], interessados em fazer samba. Então, essa mudança tem alguma coisa a ver com a sua volta ao disco também? Você se sentiu mais estimulado por causa disso? Porque você disse que se retirou exatamente quando havia uma pressão do rock e você voltou quando essa pressão modificou. Quer dizer, houve uma mudança?
 
Paulinho da Viola: Essa pressão no sentido de cobrança para eu voltar a gravar, por parte de amigos e até de alguns jornalistas. Foi uma coisa que realmente me deu uma força muito grande. Eu já estava sentindo realmente necessidade de gravar. Porque, no meu caso, continuei fazendo shows, como disse, e achava tudo ótimo. O fato de não ter disco, não ter música tocando em rádio, nem nada, e chegava nos lugares e encontrava um público a fim de ouvir o meu trabalho. Quer dizer, como uma coisa talvez de um reconhecimento, ou de um público que gosta realmente do meu trabalho, que é aquele público meio cativo. Eu sentia que essa coisa aumentava um pouquinho. Então, eu fiquei um pouco descansado em relação a isso. Agora, depois de um certo tempo a coisa ficou um pouco difícil. Depois de 5 anos, como foi o caso, se você não gravar um disco também já é abusar, aí também já é querer esnobar, também não dá. Então, algumas gravadoras realmente me procuraram: “Olha, a gente está interessado no seu trabalho. Vamos conversar?” Então, eu conversei com 2 realmente, com 3 na verdade, cheguei a conversar até com Aluísio Falcão [produtor]. Aliás, eu preciso até explicar, conversar com ele sobre o que nós conversamos antes.
 
Tarik de Souza: Mas teve alguma confluência com o pessoal do rock? Porque você apesar de fazer um samba mais ortodoxo, de você ficar dentro da linha do samba, você é muito respeitado na área do rock, todas as entrevistas falam bem de você. Existia alguma coisa assim de você se sentir...
 
Paulinho da Viola: Isso me surpreendeu. Eu um dia abri uma revista, se eu não me engano era a revista Veja, e tinha uma entrevista do pessoal do Paralamas do Sucesso, do Herbert Viana [vocalista]. Era uma entrevista onde, ele usando de até uma certa violência, fazia uma crítica violenta a toda música brasileira. Foi muito no começo da carreira deles e ele fazia uma ressalva ao meu trabalho, ao meu nome como compositor, que ele curtia e até citava. Ele falava isso: “Está vendo o Paulinho da Viola, por exemplo, não tem nada a dizer então não grava, não faz nada, fica em casa.” Quando eu comecei a perceber isso, que havia realmente... Porque também tem um fato, também dei algumas declarações falando dessa questão, por exemplo, do rock. Para surpresa de muita gente eu ouvia rock.
 
Diana Aragão: Paulinho, desculpe, mas você ouvia quem no caso?
 
Paulinho da Viola: Eu comecei a ouvir o rock...
 
Jorge Escosteguy: Só um minutinho, deixa-me interrompê-lo, porque o nosso cartunista, Paulo Caruso, já chegou. Ele entrou sorrateiramente, mas já fez alguns trabalhos. Então, ele já está presente para registrar os melhores momentos do nosso Roda Viva. Por favor.
 
Paulinho da Viola : Eu comecei ouvir rock. Mas assim, eu ouvia um outro rock, ouvia muito ainda na década de 50, um pouco forçado pela circunstância. Antes, deixa eu contar uma historinha aqui. Quando o rock chegou no Brasil em 54, o balanço das horas, eu era um garoto de 12 anos. Então, lá em Botafogo, no Rio de Janeiro, quando a gente ia para a praia se falava muito, acho que as pessoas dessa época se lembram, entre a garotada ocorria o seguinte: vem aí um ritmo alucinante! Ninguém sabia o que era, mas já começaram a soltar aquela coisa de que viria uma coisa alucinante. Então, quando o rock chegou foi aquela loucura. As pessoas que viveram isso se lembram. Eu, por exemplo, lá no Rio de Janeiro, fiquei muito assustado, porque me lembro que as manchetes eram assim, por exemplo: cinemas todos quebrados. As pessoas quebravam cinema. Lembro que teve um cinema, acho que foi Cine Asteca ou São Luiz, lá no Catete, saiu uma matéria, que um cara ficou tão exaltado, ficou tão entusiasmado, que ele deu um tiro na tela: pá! [risos] Então, isso só fazia com que mais pessoas.... Era uma força, porque era uma coisa vibrante, todo mundo foi nessa. Eu fiquei, evidentemente, assustado com isso, quando eu via isso, via o comportamento, por exemplo, da garotada da escola, da rua, dos meus primos, das pessoas conhecidas. Achei que todo mundo havia enlouquecido. Por quê? Pela força da formação que eu tive, que era daquele garoto que ficava sentado em uma sala ouvindo música, fazendo hora, tocando choro, cantando aqueles sambas encorpados, cantando serestas e não sei o quê. Então, comecei achar que as pessoas tinham enlouquecido e que naturalmente aquela música era música do demônio.
 
Diana Aragão: Você levou um susto?
 
Paulinho da Viola: Eu diria que foi... Então, eu já comecei logo a torcer contra. Achei que realmente não tinha nada a ver. E foi um grande problema isso para mim, porque o rock... Quer dizer, só tomei consciência disso muito tempo depois, mas foi um grande problema. Porque eu me senti isso durante toda a minha vida, toda a minha infância e acredito mesmo que isso tenha tido uma importância muita grande na minha formação como pessoa, como homem, como ser humano. Eu me senti muito isolado, muito fora de tudo, porque era uma coisa tão forte que todos os bares, todas as festas, você só ouvia rock. Aquelas músicas dos bailes antigos, que até então era o bolero, o samba, essa coisa sumia, desaparecia. O pessoal mais jovem só ouvia rock. Então, eu ouvia, mas era uma coisa assim distante, uma coisa difícil de assimilar e difícil de aceitar. 

Diana Aragão: Mas você acabou gostando?

Paulinho da Viola: Isso é uma coisa de depois... Quando apareceu... Depois do rock, teve uma outra fase, veio mais o lance do pop também. Quer dizer, e na música brasileira alguns movimentos muito importantes também ocorreram, como o caso, por exemplo, da bossa nova. Entre essa geração, da qual de uma certa maneira eu faço parte, que apareceu também os festivais de 65, 66. Então, isso tudo também já... Teve o fenômeno dos Beatles, que foi uma coisa avassaladora e eu ouvi muito também, já ouvi com outro espírito, com uma outra disposição.
 
Diana Aragão: Com outros olhos, outros ouvidos.
 
Jorge Escosteguy: Já não achou mais que era o demônio.
 
Paulinho da Viola: É, a partir daí, por exemplo, foi a partir de uma certa convivência, por exemplo, com Luís Carlos Maciel [jornalista e escritor], que a gente ouvia muito jazz, que eu comecei.... Ele me mostrou algumas coisas de blues. Então, comecei a me interessar por isso e comecei a ouvir. Então, comecei ouvir mais os Beatles, os Rolling Stones, fui ouvindo alguns grupos. Não sou um conhecedor assim de rock.
 
Maria Amélia Rocha Lopes: Deixa eu aproveitar um gancho aqui, que você falou da história do tiro, nessa questão do rock, do tiro na tela. Eu me lembrei do seguinte: a gente entrevistou há poucos dias a dona Ivone Lara [sambista], no Metrópolis. Eu falei para ela: por que não tem mais mulher fazendo samba enredo? Por que as mulheres não estão mais lá? Por que a senhora não está mais lá? Aí, ela me respondeu o seguinte: “Eu sou louca?. Não estou a fim de tomar um tiro.” Por que o samba está assim, na base do tiro, Paulinho, o que acontece? Falando nisso também, porque a gente está em pleno carnaval, então, quero aproveitar esse gancho. Eu queria acrescentar mais uma coisa, Paulinho. Esse período que você ficou sem gravar, ficou fazendo shows, coincide com o período que o pagode, o chamado samba da malandragem, cresceu muito, pelo menos em um certo nível da população. Eu conheço muita gente, os outros chamam de malandro, eles querem um samba de malandro, que fala a linguagem deles etc. De certa forma, a música sertaneja também evoluiu, durante um bom período ganhou público. Você não acha que é um problema de adequação da linguagem? O povo que está se mexendo? Porque o pagode, ele abre tudo.

Paulinho da Viola: Essa história, quer dizer, essa pergunta que ela fez, antes de eu ter até concluído a pergunta que ele fez a respeito do rock, que depois eu passei... Eu vou concluir rapidamente a questão do rock e depois eu respondo a sua pergunta. Quer dizer, aí eu comecei a me preocupar com algumas questões, não só ligadas à música, mas também à vida mesmo. Então, eu acho que é uma questão um pouco diferente, que já passa também da convivência com outras pessoas, com outros artistas, outras pessoas que transitam em outras áreas, que tem outro tipo de atividade e tudo. Comecei também a tentar largar essa consciência e dar mais atenção a outras coisas. Hoje, por exemplo, para você ter uma idéia, eu ouço até música clássica, que eu não ouvia. Quer dizer, ouvia uma ou outra coisa. Hoje não, não é nem como exercício para resgatar uma coisa, é com o maior prazer mesmo. Volto a dizer, eu acho que tenho um conhecimento, um nível de informação maior com relação, por exemplo, ao choro, ao samba, que são coisas do meu universo de todo dia e do meu trabalho também. Mas eu comecei ouvir outras coisas, comecei ouvir de tudo, o que explica de certa maneira algumas declarações que eu dei a respeito da minha visão, da minha posição em relação ao rock. Por exemplo, quando teve o tropicalismo, todos se lembram aqui que havia uma corrente muito forte, que começou logo a torcer contra. Eu sei que em algumas declarações daquela época eu fui um pouco cobrado sobre isso, até para me posicionar, porque que eu fazia declarações às vezes defendendo Gil e Caetano [Caetano Veloso], até de coisas que eu não tinha compreendido muito bem naquela época. Lembro que eu disse: não é nada disso, eu conheço. Quer dizer, há coisas que eu nem estou compreendendo direito. Eu me lembro, eu acho que até de certa maneira vi esse negócio nascer, porque eu morava no Solar Santa Terezinha, lá no Rio. Eu morava com Abel Silva [compositor e escritor] e em frente morava o Caetano e o Duda. Algumas vezes o Caetano entrou no quarto da gente com o violão mostrando uma canção, uma letra, uma coisa que ficou muito forte.

José Antônio Rodrigues: Eu já vi você cantando “Sinal fechado”  no Divino Maravilhoso.
 
Paulinho da Viola: E ele chegou e começou a cantar uma canção que no final dizia assim: “A lua oval da este ilumina os corações enamorados do Brasil”, era um negócio assim. Eu ficava olhando para a cara do Abel, o Abel ficava olhando para minha cara, e o próprio Caetano ficava olhando para a cara da gente para ver a reação. Não tinha reação [risos]. Ficava todo mundo assim: “O que é isso?” Isso eu acompanhei. Quer dizer, de uma certa maneira houve sempre essa predisposição no sentido de estar pelo menos.... É uma coisa muito forte na minha vida, a questão do outro. Por quê? Porque a gente é acostumado com o seguinte: o que eu faço, o meu universo é que é verdade, o resto não interessa. E a gente vem mais ou menos por aí, vem muita gente assim. Dentro, por exemplo, não só da música brasileira, mas em diversas áreas, o que você vê é sempre uma discussão no sentido de defender com unhas e dentes o ponto de vista dele, a visão dele da cultura, a visão dele da música e tudo. O resto é sempre uma crítica de alguma forma. Ele não aceita pelo menos ouvir o outro. Há muita emoção, muita coisa de emoção, e muita má fé nessas discussões. A gente percebe isso. Isso foi uma coisa que desde o começo eu também sempre evitei. Quer dizer, há coisas que eu realmente não gosto, que não me tocam, mas nem por isso eu vou dizer que não isso não é legal porque eu não gosto. Isso não existe.
 
Carlos Callado: Paulinho, em cima disso, acho que até uma maneira de poder retomar um pouquinho...
 
Maria Amélia Rocha Lopes: Responde sobre o meu tiro.
 
Carlos Callado: Mas acho que há interligação nisso também. Você falou da questão do outro, da sua relação com o outro. Então, eu queria perguntar se você já pensou, já parou para pensar, o que esses outros, o Herbert [Vianna], o Arrigo Barnabé [músico da vanguarda paulistana] que você já gravou junto, o Arthur Lins, que é um pernambucano radicado nos Estados Unidos que gravou uma música sua, o que você acha que esse pessoal ligado ao rock ou ligado a música de vanguarda vê na sua música? 

Paulinho da Viola: Para mim fica muito difícil...Já pensei nisso, como disse, eu me surpreendi o dia em que me disseram que um grupo pop havia gravado uma música minha. Como que é isso eu não tenho a menor idéia. Eu quero ouvir e deve ser uma coisa diferente, deve ser uma coisa interessante. Devo dizer que eu achei lindo, achei muito bonito. Eu não tinha a menor preocupação, quando eu falei que fiquei surpreso, em saber se havia algum tipo de deturpação em relação ao que eu havia feito, justamente por causa disso.

Maria Amélia Rocha Lopes: Qual é a sua música em um grupo...

Paulinho da Viola: Eu não posso nem dizer isso, não queria nem dizer isso, porque aqui devo acrescentar o seguinte: eu fiz algumas gravações ao longo do meu trabalho que chamaram atenção de alguns compostores que têm uma visão um pouco mais aberta. Na era, na visão deles, uma simples repetição do que já havia sido feito. Me parece que existe esse tipo de preocupação por parte dos autores mais jovens. Eles têm uma visão crítica e fazem uma autocrítica muito rápida, o pessoal do rock tem uma visão muita rápida. Às vezes é o impasse, mas dá para perceber que o pessoal faz uma autocrítica e fica essa guerra, essa coisa assim, fica querendo avançar mesmo nesse processo. Só quero lembrar o seguinte: eu gravei algumas músicas que passaram mais ou menos despercebidas, mas não para esse pessoal. Por exemplo, eu gravei uma música em 70, 71, chamada “Roendo as unhas”, que tem uma célula harmônica, ela lembra a tonalidade, mas ela não tem dominante. São 3 acordes. É um samba, só que a própria acentuação dele tem a repetição dos 3 acordes. Quer dizer, como resultado não é um samba tradicional, tem trombone, tem piano elétrico, tem piano acústico. Porque a minha preocupação com relação à forma é uma coisa toda junta. Eu não sei separar essas coisas. Já me perguntaram: “Você fez o ‘Sinal fechado’ e não seguiu essa linha?” [música "Sinal fechado", do álbum Foi um rio que passou em minha vida, de 1970] Não, por que eu iria seguir essa linha? Que linha é essa? Eu não sei que linha é essa. Conta porque eu não sei. Então, ao longo disso, por exemplo, eu gravei em 72 um samba que tinha um cravo e uma caixa de fósforo acompanhando, até para mostrar que o meu trabalho, que eu procurava dentro desse universo enriquecê-lo o máximo possível, ser mais aberto possível dentro daquilo que eu faço e também resguardo. Eu também confesso que não tenho esse impulso de dizer: vou arrebentar com tudo que eu fiz. Então, virar as coisas de cabeça para baixo... Não, eu não vivo dando saltos, isso é da minha natureza, do meu comportamento e eu tenho sido assim. Mas existem esses elementos que são pontos de referência importantes. Acho que isso, de uma certa forma, responde essa pergunta que você fez. Com relação o negócio do tiro é uma outra história. Quer dizer, você sabe que o fenômeno das escolas de samba é de uma complexidade e é uma coisa muito rápida. Eu peguei algumas reportagens, por exemplo, dos anos 50, da revista O Cruzeiro, que era uma revista de peso na época, a matéria que saía sobre escola de samba era assim: no final da revista tinha uma foto pequenininha. Aliás, você citou dona Ivone Lara, por acaso eu encontrei e guardei uma foto dela como baiana [componente de uma ala tradicional - das baianas - das escolas de samba] do Império Serrano [escola de samba do Rio de Janeiro] de página inteira que é uma coisa linda. Não tem o nome dela, nem nada. É uma baiana do Império Serrano, que é uma coisa linda. Mas era assim: umas notinhas. Quer dizer, não havia essa preocupação e essas implicações que tem uma escola de samba hoje. Em um período relativamente curto as escolas de samba incorporaram muita coisa. Para você ver, eu já tive uma fase de uma visão com relação à escola de samba em que eu era muito radical: não, aqui ninguém devia entrar, não pode entrar... Entendeu? Porque isso aqui é uma coisa da gente. Vinham as pessoas que a gente não sabia de onde eram, chegavam e viravam tudo de cabeça para baixo. Isso até eu começar a compreender que a coisa era mais complexa e o buraco era mais embaixo. Por um lado, existe essa questão da invasão, do gigantismo da escola, dos interesses que cada vez são mais comerciais, que são diferentes daqueles que a gente amava, que a gente tinha como perspectiva sobre coisas que a gente fazia. Eu tenho que compreender também que há uma dinâmica nisso e que o samba, com toda as sua implicações, ele vai incorporando as coisas como sempre vem incorporando. Até perceber, já travamos discussões na década de 70 sobre isso, porque tinha o pessoal mais radical, o pessoal que foi criado nesse negócio, acostumado ali. De repente essa transformação e ele do lado de fora. Realmente, o cara tem toda razão de dizer que não vai compreender essa coisa tão complexa, tão difícil de explicar. É natural que ele reaja: estão me roubando, estão invadindo a minha praia, estão levando tudo. Até compreender que a complexidade tem dessas coisas, por exemplo, o samba nunca foi uma forma pura, nunca teve isso. Eu nunca usei, isso eu faço questão de repetir, eu vou fazer uma autocrítica se alguma vez eu usei a palavra autêntico, acho que essa palavra é muito perigosa, porque ela muitas vezes encobre, ela dá imagem para muitas coisas falsas.
 
Edmar Pereira: O que você ouve com atenção do que está sendo feito de música? O que bate na sua cabeça? Está muito distante da música, por exemplo, que o seu pai fazia com você?
 
Paulinho da Viola: Alguma coisa. Mas eu ouço os chamados clássicos da música brasileira. Eu ouço sempre Pixinguinha [Alfredo da Rocha Viana, conhecido como Pixinguinha, (1897-1973). É considerado um dos principais nomes da música brasileira, sendo o autor de sucessos como “Carinhoso” e “Rosa”]. Quando não estou assim muito bem, eu ouço Pixinguinha e fico logo bom, melhoro. Quando estou meio deprimido, eu ouço um choro do Pixinguinha e melhoro, fico ótimo. Ouço todo mundo, o pessoal do samba eu vivo ouvindo sempre, e do choro, por exemplo: Pixinguinha, Nazaré [Ernesto Nazaré, (1963-1934)], o Jacó [Jacó do Bandolim (1918-1969)], os clássicos do choro eu ouço sempre. Eu tenho uma discoteca do choro. Radamés [Radamés Gnattali, (1906-1988)] eu ouço sempre e o pessoal do samba também, os clássicos. Agora eu procuro ouvir outros, aquela coisa que a gente tem que ver o que tem de novo, o que está surgindo, como é que essas coisas chegam. Evidentemente que com muitas coisas eu fico perplexo, outras eu não sinto algo que me agrade, mas eu procuro ouvir o máximo que eu posso, até por uma questão de me informar sobre que está sendo feito.

Edmar Pereira: Essa passagem dos novos do rock para o samba, você aceita isso? Você faria uma ponte inversa encontrando?

Paulinho da Viola: Eu acho que é mais simples para eles fazer uma leitura, uma abordagem, de um trabalho meu, do que eu para eles, do trabalho deles. Eu não sei, se eu fizesse alguma coisa assim, com relação à música de rock, eu acho que eu não faria bem. Acho que não faria bem.
 
Jorge Escosteguy: Você gosta do rock brasileiro? Qual é a sua opinião do rock brasileiro em geral?
 
Paulinho da Viola: Gosto sim. Tem uns grupos que eu acho super interessantes.
 
Jorge Escosteguy: Você ouve? Você falou que ouve choro, mas você ouve rock de vez em quando?
 
Paulinho da Viola: Ouço, claro. Ouço os Titãs, o pessoal todo aí, o próprio Paralamas, Legião Urbana e todos esses grupos.
 
Jorge Escosteguy: E o pagode?

Paulinho da Viola: Só terminar a coisa da escola de samba que eu chego no pagode. É o seguinte: as escolas, como disse, nunca tiveram uma forma que se definiu, nem nessa fase. Nem a mídia, nem a imprensa dava a menor atenção. Era uma coisa assim: uma ou outra notinha sobre o que aconteceu no carnaval. Nem nessa fase, entendeu? A gente pode dizer que a escola teve uma cara que foi aquela durante alguns anos? Não, ela sempre veio diferente, incorporando uma ou outra coisa, gente que chegava de fora e dava uma sugestão...
 
Maria Amélia Rocha Lopes: Quer dizer, hoje, pertencer a uma escola de samba significa ter poder?
 
Paulinho da Viola: ...mudava, o cara acrescentava alguma coisa, dançava diferente, o ritmo mudava de alguma maneira, trazia um instrumento diferente, um passista vinha fazendo alguma coisa. Nunca foi uma coisa estática, parada. Eu acredito até que por isso ela tenha sobrevivido, que tenha ganhado essa dimensão. Agora, o que eu acho que precisa ser analisado com mais cuidado é o resultado disso. Quer dizer, não é só dizer: olha a vida é assim, as coisas são assim, entendeu? A realidade nossa hoje é assim. Quer dizer, a cultura hoje é isso mesmo, entendeu? Esses fatores têm que ser levados em conta e o resultado é esse mesmo. Quer dizer, que resultado é esse mesmo? Por exemplo, o turista hoje compra - isso não é de agora, isso já tem alguns anos - um ingresso lá na Alemanha. Ele compra passagem, um ingresso com direito a sair em uma escola de samba que ele quer sair, que ele pode escolher. Há 2 anos, eu até escrevi um artigozinho no jornal, eu escrevi no O Globo, falando sobre isso, sobre o que eu sentia quando percebia essas coisas, como eu me senti quando eu vi uma declaração de um turista que chegou e ficou decepcionado porque falaram para ele que a escola que ele tinha escolhido para desfilar não tinha a menor possibilidade de ganhar [risos]. Ele ficou muito triste, queria mudar de escola. Eu acho que não é possível passar por cima disso sem fazer uma avaliação. Agora, você imagina o seguinte: há algum tempo atrás, você dispunha de um tempo, os autores, os compositores da escola de samba, que faziam o samba enredo, samba de rua, samba de quadra, como a gente chama. Isso não existe mais. Por que não existe mais? Porque hoje já existe um compromisso por parte das escolas de samba de ter um samba enredo pronto em um determinado período, porque precisa ser gravado, ser lançado, porque aquilo tem que estar pronto antes do Natal, porque tem uma vendagem muito grande. Quer dizer, a pressão é muito forte. E é natural que de baixo de uma pressão dessa...Você vê a média dos sambas, sempre tem um ou outro samba que se destaca, que é mais interessante. Mas é por essa razão que você ouve grande parte dos sambas e eles parecem que são repetição, são repetição daquilo que já foi feito, aquelas mesmas palavras, mesmos clichês melódicos. É a mesma coisa. Por quê? Porque essa prática, que de certo modo era democrática...Por exemplo, os compositores tinham um tempo de fazer o seu samba, lançavam na quadra, as pastoras ouviam, aprendiam ou não. Era um outro tempo, não tinha esse compromisso, o samba era escolhido quase perto do carnaval, nem eram gravados, um ou outro era gravado. Depois que essa coisa ficou assim. Quer dizer, esse compromisso levou a isso. É possível que daqui algum tempo exista, já pelo uso e pela prática, compositores novos que tenham uma outra mobilidade e que possam criar dentro desse tempo. Mas o pessoal mais antigo o que fez? Eles se afastaram. Por quê? Porque há muito interesse, há uma coisa que implica muito dinheiro, apesar de estarmos afastado de escola de samba. Eu tenho informações de que a vendagem, não só de disco, mas de execução e tudo, implica em um dinheiro alto e as editoras já ficam em cima dos compositores: “Olha edita aqui.” Tem esse dinheiro, então, é natural que saia tiro.
 
Maria Amélia Rocha Lopes: Vira uma guerra.
 
Paulinho da Viola: Porque é uma guerra. É uma verdadeira guerra. Esse leva não sei quanto para defender, aquele leva... É evidente que vai ser uma guerra.
 
Luís Antônio Giron: Em 66 você compôs um samba enredo para a Portela [escola de samba do Rio de Janeiro] não foi?
 
Paulinho da Viola: Foi.
 
Luís Antônio Giron: “Memórias de um sargento”, esse tempo era outro?
 

Paulinho da Viola: Era outro tempo. Eu sou novo nessa história. Eu era novo na época, tinha 22 anos, 23 anos, quando eu fiz esse samba e ganhei o samba da Portela. Ele foi disputado na quadra com um samba de um grande compositor chamado Valter Rosa, que já tinha alguns sambas e era uma pessoa prestigiada, em uma época em que a ala de compositores de uma escola de samba era muito prestigiada pelas diretorias e pelo corpo da escola, tinha peso em decisões, se reuniam e discutiam uma série de coisas. Discutiam até certo ponto uma política para a escola. Quer dizer, é natural que com essas transformações, outros interesses nesses setores começaram a ser esvaziados, porque eles não interessam mais. O que faz uma ala de compositores se ela não faz, por exemplo, sambas de quadra, que era o que enriquecia esse universo? Grandes sambas que foram cantados por inúmeros cantores à partir da década de 50, vamos dizer assim, não digo nem para trás, oriundos da escola de samba, eram dos mestres. Eram sambas do Cartola [Angenor de Oliveira, o Cartola, foi um dos compositores mais importantes da música brasileira, autor de canções como “O mundo é um moinho” e “As rosas não falam”, (1908-1980)] do Silas [Silas de Oliveira, (1916-1972)], do Osório [Osório Lima], do Candeia [Antônio Candeia Filho, (1935-1978)], de autores de escola de samba, cantores recentes, quando o samba estava sendo muito executado, como Roberto Mineiro, Clara Nunes [(1943-1983), uma das mais reconhecidas intérpretes de sambas], poderia citar inúmeras aqui, iriam fazer o quê? Procuravam o samba da Velha Guarda, os sambas que já tinham sucesso nas escolas, todo mundo cantava, essa coisa acabou. Porque agora os interesses, e tudo que gira em torno de uma escola de samba, são em função de uma outra coisa. Acho que isso merecia uma ampla discussão, porque o samba é uma coisa importantíssima, essa coisa que sumiu: não sumiu. Hoje você tem escola de samba no Japão, na Noruega, na Alemanha, tem grupos fazendo samba e tudo.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Paulinho, antes do intervalo nós falávamos do pagode. Faltou você falar sobre o pagode.
 
Paulinho da Viola: Sobre essa questão da escola de samba naturalmente teria mais coisas para falar, sobre essa trajetória, principalmente nos anos 70, como é que essa coisa foi. Bom, a questão do pagode é o seguinte: uma coisa que eu sempre observei com relação ao pessoal do samba é que o pessoal do samba curte mesmo, os compositores, pessoal que freqüenta o samba, é ir para um botequinhozinho, onde tem um pandeiro e um cavaquinho, e o cara fica cantando samba, cantando verso. Isso eu reparava muito. Você saia do ensaio e tinha sempre uma boquinha, tinha assim uns 20, 30, 10, não sei quantos, mas o pessoal estava sempre cantando samba. Eu sempre achei isso a coisa mais gostosa, porque é uma coisa que aproxima mais, as pessoas falam mais diretamente, você pode ouvir os acordes do cavaquinho. É a coisa mais gostosa, mais descontraída, sempre teve pessoal do samba no botequim cantando samba.
 
Tarik de Souza: Paulinho, foi por isso que você fez o “No pagode do Vavá” [música do álbum A dança da solidão, 1996] ou não? Você foi uns dos primeiros a falar em pagode como uma instituição.
 
Paulinho da Viola: Porque esse termo pagode, dentro do samba, é uma coisa usada há muito tempo assim. Olha, eu vou num pagode na casa de não sei quem. Agora que virou realmente um estilo de música, um tipo de samba, vamos dizer assim. Porque de uma certa maneira é. Eu acho que é. Agora, esse lance do pagode é o seguinte: na medida em que as escolas começaram a crescer, desenvolver um trabalho com uma perspectiva diferente daquela que nós tínhamos e outros tinham, que era os compositores cantarem seus sambas, apresentar seus sambas enredos, aquela coisa deixou de ser uma casa onde as pessoas se reuniam, onde os antigos se encontravam, ficavam tomando a sua cerveja, conversando. E essa coisa começou assumir com essa coisa terrível, essa coisa imensa com esses compromissos. Cada vez mais você começava a ouvir dentro das escolas de samba o samba enredo executado maciçamente. Cada vez menos você começava a ouvir o samba de rua. Esse fenômeno eu acompanhei bem. No caso da Portela, abria o ensaio, cantava-se o hino da escola, vinham os compositores, já tinha feito uma relação, um vinha cantava um samba, outro vinha cantava outro, a bateria entrava, o cavaquinista acompanhava, cada um ia cantando seu samba, distribuía seu prospecto, essa coisa foi indo para um ponto que já não dava mais para distribuir, os compositores foram sendo cortados, foram diminuindo. Então, chegou em um ponto que não se cantava mais nada, só cantava samba enredo. E algumas escolas, isso eu não vi, mas as pessoas me garantiram isso, algumas escolas no Rio de Janeiro começaram inclusive nem a cantar só o samba enredo, começaram a cantar músicas do Ritchie [Richard David Court, o Ritchie, cantor americano radicado no Brasil, autor de sucessos como “Menina veneno”]. Tinha que aprender o samba de qualquer maneira, mas era uma coisa massificante. Então, o que faz o pessoal do samba? Bom, alguns foram realmente para suas casas, não saíram mais, mas a maioria não deixou de fazer o seu samba, o seu pagode, por causa disso. Então, aquele botequim onde todo mundo ficava começou a crescer mais. Lembro que em alguns...Quando eu ainda freqüentava esse negócio de escola de samba, já tinha o pessoal do Fundo de Quintal [grupo de samba], que já fazia nas quartas-feiras a reunião deles, e dizia o seguinte: “Olha, é nessa hora que a gente canta os pagodes da gente, o samba. Ninguém vem, fica só a gente, é gostoso à beça, vê se você aparece lá.” No sábado não, no sábado era uma festa, era o bloco que fazia o ensaio, mas durante a semana tinha um horário. Esse horariozinho durante a semana, em que meia dúzia se reunia, começou a crescer, crescer, crescer, começaram aparecer boquinhas, como na casa da Doca [Jilçara Cruz Costa, conhecida como Tia Doca, cuja casa ficou famosa por reunir grupos de samba e pagode] em Osvaldo Cruz. Era uma coisinha pequenininha, que o pessoal da Velha Guarda se reunia, daqui a pouco tinha assim centenas de pessoas. Isso começou a se espalhar pela cidade toda, quando a mídia tomou conhecimento disso, o Zeca Pagodinho já era um sucesso no subúrbio, a Jovelina Pérola Negra [cantora de samba, (1944-1998)]. Eles são fantásticos, sempre fizeram o maior sucesso e continuam fazendo. Se fizer uma festa com Zeca Pagodinho vai todo mundo para lá. Por quê? É uma coisa tão forte, tão forte, tão forte, que ficou impossível de fechar os olhos para aquilo. Pelo contrário, era um prato cheio.
 
Jorge Escosteguy: O Itamar Assumpção queria fazer um pergunta para você.
 
Itamar Assumpção: Você falando tudo isso...A maioria das perguntas você respondeu durante essa ausência toda, essa falta que fez... Quando eu estive na Alemanha, agora em novembro, eu já tinha estado lá em maio, e quando fui pela primeira vez foi aquele choque. Eu nunca tinha pensado em sair do Brasil. Aliás, a minha preocupação era divulgar a minha música no Brasil, eu estava assim: como vou fazer para divulgar a minha música? Rádio não toca e não sei o quê. Essa dificuldade de sempre. E sempre recebendo a força, por exemplo, da Clementina, do Cartola, sua. Então, vamos dizer que na época em que a gente estava no processo de demonstrar essa linguagem da música popular que é diferente, que é essa riqueza, essa diversidade que é muito complicada entender. Quer dizer, hoje eu percebo um pouco mais a confusão das coisas. Por exemplo, o pessoal na rua: “Que tipo de música você faz?” Olha, eu faço uma música que... Olha, eu não faço samba, quem faz samba é Paulinho da Viola, eu sempre falo isso para quem me entrevista. O que eu quero dizer é o seguinte: eu e o Arrigo [Barnabé], a gente veio com uma linguagem de música em que a gente aprendeu a ver essa diversidade. Então, quando o Arrigo comenta sobre você, quando eu comento, é porque faz parte da nossa formação. A sua harmonia, a sua melodia, como você canta, é imprescindível para quem quer fazer música, uma música comprometida com uma coisa mais séria, que é o caso da música popular brasileira, que é uma das mais ricas do mundo. Então, voltando no caso da Alemanha, na primeira vez eu fui com um trio de baixo, guitarra e bateria. Então, quando eu conheci o Rogério Duprat [maestro, (1932-2006)] foi uma surpresa quando ele disse: você tem um astral de Jimi Hendriks [guitarrista americano]. Foi o primeiro papo da gente. Eu comecei a perceber a complexidade da MPB. De repente, durante o tempo em que a gente tentou passar essa linguagem nova, a coisa de estar acrescentando, de estar pelo menos com esse compromisso com a história da música, porque o que acontece é que as pessoas pararam de ouvir. Por exemplo, é um absurdo alguém no carro, no táxi, falando do Paulinho da Viola: “Mas eu achei que ele tinha morrido. Ele desapareceu.” Acontece também que eu fui procurar seu disco, não encontrei seu disco e aí falei: poxa, eu tive que batalhar tanto para meu disco ser lançado na hora exata. Eu gravei meu primeiro disco pela Continental [gravadora] no ano passado, o meu primeiro gravei em 80, segundo em 82, terceiro em 85, e vim gravar outro em 87. Então, eu ficava achando: puxa, o Gil, o Caetano, a gente daqui olhando, Paulinho da Viola, como que eles nos vêem? Como se aproximar? Quer dizer, a gente com aquela coisa, mas eles são eles, aquele monstro sagrado do Paulinho da Viola, aquele monstro sagrado do Gilberto Gil e a gente aqui com esse sonzinho, como que a gente faz para ser compreendido sem ter um espaço? Então, como não dava para definir a minha música, como não dava para definir “Sinal fechado”, de repente: é marginal, o cara que cria problema. Mas quando eu percebi isso, eu fui para a Alemanha, eu fiquei assustado quando me convidaram para comemoração do centenário da abolição, na Alemanha, dia 13 de maio de 1981. Mas eu falei: o que está acontecendo? Eu ir para Alemanha e para comemoração? É minha abolição artística. É minha abolição. Então, eu estive lá e a primeira vez o pessoal estava esperando samba. Sai de lá pensando: o que será que aconteceu? Quando voltei em novembro, voltei com o trio...

Jorge Escosteguy: Pediria apenas para que você que abreviasse um pouquinho.

Itamar Assumpção: Eu vou terminar. É importante falar isso, porque eu conheci ele [o Paulinho] hoje. Eu acho muito importante para quem está assistindo ver como é difícil a coisa. Quer dizer, a coisa é complicada. Eu acho até um absurdo ficar fazendo umas perguntas objetivas, se toda essa história que tem tudo a ver. Então, essa individualidade artística sua... Por exemplo, a gente cruzou em um programa pela primeira vez e fizemos uma coisa juntos. Essa facilidade que o nosso brasileiro tem de fazer coisas que é reconhecida no mundo. Então, eu voltei para a Alemanha e voltei com as vocalistas Suzana Salles e a Ná Ozzetti. A Suzana Sales fala muito bem alemão. Então, eu preparei um trabalho para que eles entendessem a minha poesia, que é uma poesia e que tinha poetas como Paulo Leminski, gente ainda desconhecida pelo grande público no Brasil. Então, eu vejo que essa dificuldade toda, depois de mais de 1 ano que eu gravei o disco, eu ainda não sou executado em rádios. Eu já vi você no Fantástico [programa da Rede Globo], já foi todo um lançamento feito e agora o disco não tem...Quer dizer, no momento em que você procura, que é a hora desse desânimo, que todo mundo está no Brasil, se não tem o disco ele não tem como voltar. Até gravei “Maremoto” nesse último disco, um samba, que é o primeiro samba que eu faço. Eu tinha pretensão de convidar você, foi muito tumultuada a produção e eu não convidei você.
 
Paulinho da Viola: O próximo eu aceito.

Itamar Assumpção: Então, eu queria saber o que você acha dessa arte negra? Por exemplo, Luiz Melodia [cantor], que também tem muita dificuldade por ele não ser um sambista. Na Alemanha, já foi lançado esse disco meu em CD também. Eu apresentei para a Continental, para uma gravadora que queria gravar, lançar os meus 2 discos independentes. Em um determinado momento da carreira, eu percebi que o negócio era eu e minhas pernas, porque eu tenho muito público. Como você disse, você vai e está lá o pessoal. Eu vou ficar batalhando, fazer disco em gravadora, quer dizer, você perde esse tempo de convívio com o público que é o que mais interessa para a gente. Então, eu acho assim, na volta eu tive o maior exemplo de receptividade, não só na Alemanha, como na Holanda e na Áustria. Você nunca pretendeu, não pretende, internacionalizar essa música sua, que é brasileira, essa linguagem que aqui ainda é desconhecida?

Paulinho da Viola: Como eu falei, eu tenho algumas experiências fora daqui bem interessantes e interessantes por esse aspecto que a gente já sabe. Essa expectativa que a gente sabe que existe em relação à música brasileira, porque o que se sabe também é o seguinte: não sei se uma outra música no mundo teve força suficiente de resistir a essa coisa avassaladora, que é esse som meio igual, essa coisa até certo ponto ficou meio pasteurizada que foi invadido todos os países. Eu acho que a música brasileira tem uma força que fez com que ela resistisse um pouco a isso. Essa coisa que você está me contando é muito comum. Veja o pessoal do samba, por exemplo, que eu acompanhei de perto e observei algumas coisas no comportamento do povo do samba em relação aos outros, como eles vêem a gente, o que os outros acham da gente. Normalmente, as pessoas se assustam um pouco. Desde que eu me entendo por gente o samba feito pelo pessoal de samba, pelo pessoal de escola de samba, sempre foi olhado com certa desconfiança. Então, você começa a perceber que isso é uma história muito antiga.
 
Itamar Assumpção: Eu identifico essa coisa sua, que eu esqueci de colocar em tudo que eu disse. Eles me falaram muito, os alemães, que ficavam impressionados com o meu sentimento, de eu falar do meu lugar, da minha gente, que isso para eles era uma coisa que eles tinham perdido. Eles não sentiam isso. Então, por exemplo, isso eu sinto quando você fala da sua vivência dentro de um universo que é o samba, nesse sentido que você diz.

Paulinho da Viola: A sua pergunta não é fácil de responder, porque você está falando de uma coisa assim um pouco... Você está falando do sentimento, mas esse sentimento, essa coisa que você põe, que você cria, o resultado disso, que pode ser experimental, que é o seu trabalho, que é uma coisa que você quer dar a sua contribuição. Você quer acrescentar um dado que você julga novo, muitas vezes você encontra a maior barreira. Quer dizer, isso você já deve saber por experiência, que a questão do novo é uma questão muito delicada. Primeiro a definição do que é novo. Normalmente o artista não tem muita consciência. Ele supõe muitas vezes que está fazendo um trabalho que é novo - muitas vezes é uma coisa nova - mas muitas vezes ele mesmo não tem como definir aquilo, nem teorizar sobre aquilo. A teoria, a conceituação, vem depois, as vezes por outras cabeças, de pessoas que têm uma visão daquilo e explicam aquilo. Normalmente, a arte é um pouco diferente, ela vem com toda uma força, depois as pessoas começam a avaliar aquilo, que implicações tem aquilo, de onde vem. Normalmente é assim. Você tem que considerar esse aspecto. Tem que considerar que a coisa é quase sempre vista como exótica, porque não pode ser compreendida. Isso não é só na música. Toda história da arte moderna tem essa questão, entendeu? Principalmente quando é uma coisa vinda dos africanos ou dos negros, que não são africanos, é sempre uma coisa... Eu estou falando de algo que eu sentia no samba. Por isso digo que o samba é uma coisa que as pessoas sempre falam com uma certa revolta às vezes, como se fosse uma coisa consagrada. E por que tem esse espaço todo? Por que só se fala de samba? Esse negócio de samba... Eu já cansei de ouvir. Os produtores dizem assim: “Tem que acabar com isso”, só faltou dizer tem que matar esses caras todos. Essa história é muito antiga e ela é muito complexa, porque ela envolve inclusive a história do povo negro no Brasil. Toda discriminação sofrida, até pelo Cartola, que você citou aí, que disse que se surpreendia ao dizer: “Poxa, se eu andasse com um violão em 1930, 1920, a polícia me pegava de cassete como pegou muita gente, prendia, batia, matava. Hoje em dia eu estou sendo homenageado aqui no sambódromo.” Essa história é muito complexa.

Jorge Escosteguy: Só um minutinho, o Carlos Callado tem uma pergunta para o Paulinho.
 
Carlos Callado: Então, é justamente por isso o seu disco, esse disco que o Itamar falou que ainda não chegou na loja, que se chama Eu canto samba? Ele começa com a faixa “Eu canto samba” e tem uma repetição da mesma faixa que é a última. Para quem foi esse recado? Tem ressentimento nesse recado?
 
Paulinho da Viola: Não, não tem nenhum ressentimento. É apenas um gesto de amor mesmo, de declaração de amor mesmo. Eu quero que seja assim: eu canto samba [aponta para ele próprio]. Não é nada disso, é um gesto. Eu canto samba porque eu gosto, porque é gostoso, porque eu me divirto, porque é uma coisa que tem muito a ver com o meu universo, com as coisas que eu gosto.
 
Maria Amélia Rocha Lopes: Paulinho, há poucos dias morreu a dona Vicentina, que você cita em “No pagode do Vavá” o feijão da dona Vicentina. Só quem é da Portela sabe, a gente não é então não sabe, mas dizem que o feijão é uma coisa divina. A ausência dessas pessoas assim, como dona Vicentina, como Clementina de Jesus [1901-1987], muda muito o samba? Quer dizer, essa Velha Guarda, esse pessoal que vai indo embora. O que acontece com o samba na ausência dessas figuras ilustres?

Paulinho da Viola: Na verdade, o que vocês estão perguntando não são coisas simples de responder, porque envolve muita coisa. Isso que eu estou falando aqui, de ter observado desde menino essa coisa do pessoal do samba, eu acredito que isso aconteça não só com o pessoal do samba, aconteça com outras formas de música por esse país afora. E não acontece só com o povo negro não, acontece com o povo brasileiro, que é essa coisa do popular, da linguagem popular, não vai aqui nenhum ressentimento, vai apenas uma constatação, que não sou só eu que faço, que vai desde o nível do preconceito contra o que é novo, aquilo que eu não conheço e então não gosto, não quero ouvir porque me incomoda. Entende como que é? Eu acho que a arte não é só isso. Ela incomoda, ela tem que incomodar de alguma forma, mas ela não precisa só incomodar não. Às vezes ela não incomoda e é forte também, sabe? Ela é uma reflexão, ela induz a uma reflexão, a ter uma relação pura de prazer. É uma idéia, não precisa ser uma coisa só para incomodar, para o cara ficar com ... Quer dizer, esse tipo de preconceito que existe contra o experimental, existe também contra o desconhecido, a forma popular, entendeu? Puro preconceito mesmo, porque existe a linguagem oficial, existe aquilo que foi oficializado, aquilo que é redundante, aquilo que vende, aquilo que acostuma, existe uma média, existe uma inteligência mediana, um sentimento mediano, uma coisa média e isso tem um peso também muito grande. Dentro disso tem coisas interessantes também, tem coisas que fazem parte da vida que a gente tem que levar em consideração. Agora, existe mais ou menos os extremos. Quer dizer, aquilo que é o desconhecido e que muitas pessoas reagem mal contra isso, mas desde a coisa mais sofisticada, às vezes até a coisa também sofisticada, mas que é vista como uma coisa simplória, como a coisa do ingênuo, como algo que não tem elaboração nenhuma. Posso fazer mil análises aqui que eu não vou chegar a ela. Eu vi, por exemplo, um artista desse nível, no caso, Clementina de Jesus, levantar um estádio, chegar em praça pública e levantar milhares de pessoas. Isso é uma força, cara, que não dá para... Quer dizer, não é qualquer consideração que você faça, que crítica você vai fazer diante de uma... Vai falar o quê? Eu poderia citar inúmeros artistas pelo quais eu tenho uma grande admiração que vivem e sofreram muito esse preconceito. E continuam sofrendo, esbarram nessa questão que você coloca, são vistos com meus olhos, são vistos com uma coisa de ingenuidade. Então, é algo que, se não pega pelo coração, então não pega.

Luís Antônio Giron: Você conheceu Pixinguinha não conheceu?
 
Paulinho da Viola: Conheci.

Luís Antônio Giron: E você agora inspira Picassos Falsos, você inspira Itamar Assumpção, você inspira o Arrigo, o Herbert Viana. Você está em um choque de tempo. Você fala que há um preconceito contra o novo, mas também há um preconceito contra o passado.

Paulinho da Viola: Existe sim.
 
Luís Antônio Giron: Nesse seu disco Eu canto samba, você canta o “Não tenho lágrimas”, uma música de 38, 37, de Patrício Teixeira. Eu queria que você fizesse um pouco essa ponte, queria que você me dissesse como que você resolve sempre em seus discos gravar uma coisa antiga e isso?


Paulinho da Viola:
Existe esse meu envolvimento com esse mundo. Esse universo é muito caro para mim. Eu não vejo como o aquilo que já foi feito, mas apenas como algo que já ficou no tempo, sabe? E que eu vou fazer uma análise de todos os elementos que tem ali. É muito simples, eu explico tudo aquilo, de onde vem, porque foi feito, em que circunstâncias e não sei o quê. Mas eu acho que a arte e a vida é muito mais do que isso.

Jorge Escosteguy: Por exemplo, quando você grava “Nervos de aço” [do álbum Nervos de aço, de 1973].
 
Paulinho da Viola: Do Lupicínio Rodrigues [1914-1974], exatamente. Quando eu gravei, por exemplo, “ Pra quê mentir” [álbum Memórias cantando, de 1973], de Noel Rosa [1910-1937].
 
Jorge Escosteguy: Você podia dar uma canja, fazer um trechinho para o pessoal se lembrar?
           
Paulinho da Viola: “Quero chorar não tem lágrimas...” [cantando] No caso, eu não tinha a menor intenção de gravar essa música. Eu fui procurado pelo pessoal da novela, que disse: “Olha, a gente acha que essa música vai ficar muito bem na sua voz.” Insistiram muito, ligavam, fiquei preocupado, falei: não tenho intenção de gravar, porque estou gravando um disco agora e isso pode trazer problema. Eles queriam que eu gravasse um disco deles, porque eles fazem um disco da trilha da novela. Aí, me disseram “Não, você pode até incluir no seu disco. Isso não tem o menor problema.” E eu: posso incluir no meu disco? Meu disco está fechado, mas como tem uma música curtinha que vai encerrar o disco, se eu colocar uma outra música não tem problema. Eu fiquei com o compromisso de rever e me ocorreu de fazer um arranjo onde eu pude de uma certa maneira colocar isso que eu tenho falado aqui, que fica difícil de definir. Eu poderia falar nos acordes que eu usei, porque eu usei na primeira parte uma linguagem mais de agora, fazendo um tipo de violão de acompanhamento de samba, onde não tinha o baixos, onde tinha o contratempo de baixo. Fazer uma algo mais de bossa, vamos dizer assim, um termo que defini mais ou menos essa forma. Na segunda parte vira um maxixe, que o samba nem na forma original foi gravado com um maxixe. Isso aconteceu um pouco dentro do estúdio também. Eu não fui para lá e disse: agora vai ser assim, depois faz um maxixe. Não, os próprios músicos começaram a sentir isso. O meu pai tocou a segunda parte. Ele não tocou a primeira e o violão dele não é um violão de bossa. Ele até faz umas bossas, mas o violão dele é aquele violão do choro, que é uma coisa difícil e uma coisa rara também. É uma coisa que muitas pessoas se emocionam. Então, porque eu vou ter algum tipo de preconceito contra isso? Posso levantar uma questão de análise, por exemplo, colocar aquilo no tempo, mas isso não explica nada. Isso pode explicar o seguinte: agora a gente deve fazer dessa forma porque existe toda uma mídia, existe todo um novo comportamento, uma nova tendência. Mas é só isso a vida? Não, a vida é tudo. Você vê que no final do samba tem uma cadência atonal. Agora, como eu fiz isso eu não sei. Foi uma coisa que eu senti ali e que ficou diferente. Tem uma cadência com 3 ou 4 acordes completamente fora da harmonia da música, mas está inserida naquilo. No final tem uma batucada, que o samba vai acabando em forma de batucada, aí já é o arranjo, já é uma outra leitura. Como se diz agora, é tudo assim, é uma releitura daquilo. Pode ter agradado uns. Outros mais tradicionais: pó, mas mexeu no samba, não sei o quê. Por exemplo, eu vi o Arthur Lins com um samba meu. Eu não poderia jamais dizer: será que deturpou o meu samba? Eu jamais podia ter um comportamento desse, porque eu gravei um samba da Velha Guarda da Portela acompanhado de um sintetizador.

Carlos Callado: E apanhou muito por causa disso.

Paulinho da Viola: É. E eu ouvi coisas que eu não gostei.
 
Jorge Escosteguy: O pessoal reclamou muito, Paulinho?
 
Paulinho da Viola: Não houve esse tipo de coisa. Eu acho que até o próprio autor...
 
Jorge Escosteguy: Qual era o samba?
 
Paulinho da Viola: “Tenho visto com esses olhos que a terra há de comer, coisas que as minhas carnes...” [cantando] Com a Velha Guarda é definitiva. Essa gravação foi feita em 70, quando eu produzi o disco com eles. Então, quando eu fiz essa outra forma, foi porque achei que dessa maneira eu não estava deturpando nada, estava emprestando uma maneira minha de ver, mas sentindo da mesma maneira, com o mesmo sentimento, uma referência. Eu acho se eu pegasse o pessoal de violão, cavaquinho e tudo, eu iria fazer uma repetição de uma coisa que não tinha o menor sentido para mim. Você entende? Então, nisso eu jamais poderia dizer. Acho que até o compositor, ele não falou nada por uma questão de elegância e por gostar muito de mim, o senhor Armando, que é um grande figura lá da Portela, seu Armando Santos, foi presidente da Velha Guarda muito tempo, foi até presidente da Portela também. Ele não deve ter sentido, ele deve ter se incomodado um pouco. Mas ele sabe que foi um gesto do maior amor e carinho.
 
Jorge Escosteguy: De homenagem.
 
Paulinho da Viola: Claro que foi.
 
Jorge Escosteguy: Tarik de Souza tem uma pergunta.
 
Tarik de Souza: Queria perguntar exatamente dentro do tema da Velha Guarda, emendando a pergunta de Maria Amélia. Qual é a sua relação com a Velha Guarda? Como que a Velha Guarda funciona para você? É uma espécie de fio terra, como que é?
 
Paulinho da Viola: Eu tenho alguns fios terra, já de alguns aqui, mas são muitos, são muitos. A Velha Guarda é uma paixão, mas porque eles são pessoas que apaixonam. Eles não apaixonam a mim, eles apaixonam diversas pessoas. A Vicentina mesmo que você falou, que faleceu, eu vi uma coisa da Vicentina aqui em São Paulo, quando fizemos a homenagem da semana de 22 [Semana de Arte Moderna], 50 anos da semana de 22, que foi na Fundação Getuúio Vargas. O Elifas [Elifas Andreato, artista gráfico] fez uma direção junto com o Trimano [Luiz Trimano, artista gráfico]. O que a gente vai fazer? Os estudantes estavam a fim de fazer, de promover. Eu falei: vamos trazer a Velha Guarda. Ótimo. Trouxemos a Velha Guarda e a Velha Guarda tinha lançado aquele disco de 70, que foi um sucesso, mais do que a gente esperava. Quando chegamos foi um sucesso, porque a estudantada nunca tinha visto aquilo. De repente entra um monte de crioulo de mais de 60 anos dançando e cantando coisas que eles nunca ouviram. Foi um choque, ao mesmo tempo foi uma reação de muito carinho, de amor mesmo, uma coisa diferente. Não era um festival, era uma festa. Então, as pessoas começaram a dançar. Sabe como que acabou esse show? Acabou bem no espírito daquilo que a gente pretendia. Acabou com a Vicentina, ela cantava também tudo, no final ela entrou com uma bandeja de pastéis que ela tinha feito. Entrou dançando, aquela figura linda, enorme, com aquela bandeja. Aí, neguinho invadiu o palco, começou a comer pastel, acabou todo mundo comendo pastel, cantando samba. Foi o final do show, foi ótimo!
 
Jorge Escosteguy: Nosso tempo está se esgotando, já está em cima, o papo está muito agradável, está muito bom, mas nós temos que encerrar o programa. Eu agradeço a sua presença, agradeço a presença dos nossos convidados. O Roda Viva termina por aqui e volta na próxima semana, às 9h30 da noite. Muito obrigado e boa noite a todos.
 
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