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Memória Roda Viva

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Muhammad Yunus

2/10/2000

Microcrédito para população de baixa renda, uma idéia que está mudando a vida de grandes parcelas da população mundial

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Heródoto Barbeiro: Olá, boa noite! Ele afirma que é possível eliminar a pobreza do mundo. E tem uma fórmula para isso. É o microcrédito, uma operação de empréstimos para as parcelas mais pobres da população, que pode trazer melhores resultados que bilhões de dólares de ajuda externa. O Roda Viva entrevista esta noite o economista Muhammad Yunus, conhecido como banqueiro dos pobres, de Bangladesh, na Ásia.

[Exibição de vídeo sobre o entrevistado]

Comentarista: No prólogo do livro O banqueiro dos pobres está descrito o cenário onde o autor desenvolveu a idéia do microcrédito. Muhammad Yunus mora em um dos países mais pobres da Ásia e do planeta, Bangladesh. Embora tenha recebido 30 bilhões de dólares de ajuda externa, nas últimas décadas, Bangladesh não saiu da miséria. Além disso, o país é marcado por catástrofes naturais, que tornaram a situação ainda mais dura para os moradores. Nos últimos 20 anos, inundações e ciclones provocaram mortes, destruições, e deixaram muita gente desabrigada. A fome ainda afeta 40% da população. Foi nesse universo de dificuldades que Muhammad Yunus idealizou seu projeto de microcrédito, criando um banco para emprestar dinheiro aos pobres, sem grande risco para o financiador. Em seu livro, ele conta como essa experiência foi levada a 12 milhões de pobres de Bangladesh, expandindo-se depois para mais de 60 países. Muhammad Yunus propõe, com o microcrédito, uma mudança no conceito de ajuda econômica; ao invés de grandes empréstimos externos para o combate à fome e à pobreza, ele acha melhor uma ajuda direta às pessoas carentes. Com algum dinheiro, elas tomam iniciativas e acabam encontrando oportunidades de crescimento.

Heródoto Barbeiro: E para entrevistar o economista Muhammad Yunus, nós convidamos: Walter Barelli, que é secretário do Emprego e Relações do Trabalho de São Paulo; Carlos Graieb, repórter de cultura da revista Veja; Maria Clara do Prado, colunista econômica da Gazeta Mercantil; a economista Beatriz Azeredo, diretora da área de desenvolvimento social do BNDS, Banco Nacional de Desenvolvimento Social; o professor da Universidade de São Paulo, Paul Singer; Milton Gamez, repórter especial do Jornal Valor; Vicente Adorno, editor de internacional da TV Cultura; e o economista Thomaz Lanz, que é presidente de uma instituição voltada para o microcrédito. [...] Doutor Yunus, boa noite.

Muhammad Yunus: Boa noite.

Heródoto Barbeiro: Doutor Yunus, a idéia do microcrédito hoje está disseminada pelo mundo? Quantos países possuem operações semelhantes a essa que o senhor propôs para Bangladesh?

Muhammad Yunus: Pelo que sabemos, 65 países adotaram programas de microcrédito. Alguns são programas de âmbito nacional, outros são pequenos e localizados. Alguns criados por ONGs [organizações não governamentais], outros financiados por governos. Há uma grande variedade, mas em todos os continentes: Ásia, África, América Latina, América do Norte, Europa. Nos mais diferentes lugares, atualmente.

Thomaz Lanz: O programa do Grameen Bank, em Bangladesh, está principalmente voltado para as áreas rurais. Eu gostaria de perguntar qual é a experiência em outros países, desse mesmo programa, para as áreas urbanas?

Muhammad Yunus: Em alguns países isto foi muito bem sucedido em áreas urbanas. Um exemplo é Bangladesh, onde há programas de microcrédito urbanos. Outro exemplo são as Filipinas, em Manila, com uma grande área urbana. Nas favelas de Manila. E também nos Estados Unidos: foi feito um programa em Chicago, e agora há programas em São Francisco e em Nova York, no Harlem. E em outras cidades na Ásia e na Europa. Há muitas experiências urbanas neste programa.

Beatriz Azeredo: Professor Yunus, a experiência com microcrédito, no mundo inteiro, inaugura uma nova forma de trabalho, de interação com a população de baixa renda, da população empreendedora de baixa renda. Isso é uma mudança cultural no mundo inteiro e evidentemente mostra um desafio de multiplicação, ou seja, mostra como é que a gente sai do efeito demonstração - hoje no Brasil vive-se esse momento, o BNDS está diretamente envolvido - e efetivamente aumenta a cobertura do microcrédito para a população como um todo, de baixa renda. A minha pergunta é, na experiência do Grameen, quais são as armadilhas desse processo de disseminação, de aumento da cobertura, e quais os instrumentos que a experiência do Grameen demonstram para efetivamente consolidar esse processo?

Muhammad Yunus: Primeiro, a questão do empreendedor de baixa renda. No momento em que falamos em empreendedor de baixa renda, estamos separando uma parte da população de baixa renda, algo que eu reluto em fazer. Eu falaria das pessoas que normalmente não têm acesso às instituições financeiras para obter crédito. O grupo todo. Eu não favoreceria o empreendedor de baixa renda porque minha posição sempre foi que todas as pessoas têm capacidade empreendedora. Quando dizemos "empreendedor de baixa renda", estamos dizendo que outros não têm essa capacidade. Minha opinião sempre foi que alguns tiveram a chance de mostrar essa capacidade empreendedora, e outros nunca tiveram. Mesmo que perguntemos a ela, à pessoa que eu afirmo ter capacidade empreendedora, provavelmente, ela dará 1001 motivos para aceitarmos que ela não tem essa capacidade. Mesmo assim, eu não acreditaria nela. Porque a história, sua experiência de vida, a convenceu que ela não tem capacidade empreendedora, pois a sociedade nunca lhe deu uma chance para mostrá-la. Primeiro, precisa ser demonstrado a ela mesma que ela tem essa capacidade. E as pessoas aprendem rapidamente. Essa é uma questão. A questão seguinte é como mudar de um projeto de demonstração para um projeto global. Uma das coisas que eu enfatizaria é não seguir adiante antes de fazer uma preparação adequada. Às vezes, por motivos políticos, ficamos muito ambiciosos, porque temos que mostrar o que fizemos; e nossos egos e nossas emoções dominam a fase de preparação. Temos que nos conter, pois é preciso criar uma base. Se você for construir um edifício e tiver pressa para colocar a cobertura, não dará atenção ao andar térreo. Então, para construir um edifício alto, é preciso tomar cuidado com a fundação, para ela suportar a carga do edifício. É isso que eu digo. É uma curva exponencial: o crescimento será muito lento no início, mas, conforme for crescendo, irá ganhando velocidade. E, por fim, a velocidade será muito alta. Mas, na fase inicial, é preciso controlar a tentação de avançar rapidamente. Esse é um aspecto muito importante. E ao construirmos a base, os exemplos, torna-se muito óbvio e muito fácil construir as etapas seguintes. Acho que isso é algo que pode ser expandido para cobrir todas as pessoas. E eu sempre digo que o crédito deve ser aceito como um direito humano. Esse é o nosso objetivo, é onde deveríamos estar. Mas não vamos começar a dar dinheiro para todos hoje. Esse não é um bom programa.

Milton Gamez: O senhor poderia explicar qual é o segredo do sucesso do microcrédito? O pobre é bom pagador? Por que 95% dos empréstimos do seu banco são destinados a mulheres? Qual é o segredo para que as pessoas que recebam esse crédito usem o dinheiro para fomentar algum tipo de negócio próprio, e não para comprar comida, por exemplo? Quais são os mecanismos que o agente que concede o crédito usa para garantir o sucesso da operação?

Muhammad Yunus: O segredo não está no programa. Está na pessoa. É a pessoa que faz a diferença, que o faz funcionar. Só queremos construir um programa que se ajuste perfeitamente à pessoa. De certo modo, criamos instituições imaginando coisas sobre as pessoas, não observando de fato as pessoas. Começamos com uma abstração das pessoas e então trabalhamos nos detalhes das instituições. Quando se tenta pôr isso em prática, muitas vezes o ajuste não é correto. Então, quando construímos um programa, nós nos baseamos na experiência de como as pessoas reagem a cada uma das partes dele. Dessa forma, pode-se começar a explorar a capacidade delas. A única idéia preconcebida com a qual começamos nosso trabalho foi acreditar que as pessoas - o ser humano, em geral - é uma espécie muito criativa. É o que nos distingue de qualquer outra espécie. É a capacidade produtiva da pessoa, a inventividade, a engenhosidade. Essa foi nossa idéia preconcebida, foi onde começamos. Quando alguém diz: "Eu não sei nada, não sei o que fazer com o dinheiro", não acreditamos nele. Acreditamos como uma primeira resposta. Mas, lá no fundo, nós sabemos que ele descobrirá em breve que não é o que diz. É apenas uma crosta criada em torno dele pela sociedade, pelo ambiente em que vive, e que o faz dizer aquilo. Assim que abrirmos essa crosta, que rompermos essa crosta, ele ficará surpreso ao ver que é uma pessoa muita criativa. Nós esperamos por isso. Damos pequenas oportunidades, pequenas chances, para que ele agarre essa oportunidade. Fizemos uma coisa que deu certo para nós. Muitos dos nossos clientes são analfabetos. Bangladesh tem um alto índice de analfabetismo. Mas tivemos a idéia de que todos os clientes, ou toda pessoa que quisesse entrar para o programa, deveria ser capaz de escrever o próprio nome. E toda vez que dizíamos isso, respondiam: "Não, não preciso disso. Nunca aprendi. Se isso for uma exigência, não vou conseguir". Mas não desistimos, insistimos nisso. E aos poucos tornávamos o processo agradável para a pessoa. Ela escrevia uma palavra, depois duas palavras, pegávamos o nome pequeno para ser escrito rapidamente. E ela tentava uma vez, duas, uma semana, duas, três... E a pessoa aprendia. Ela escrevia na terra, com uma vareta, pois não tinha caneta ou lápis. E ela se surpreendia por escrever algo no solo. E alguém dizia: Você é Salma! E ela ficava surpresa por ter escrito, e alguém que não a conhecia podia ler o que havia escrito. Esse é um elemento de sucesso. É isso que falta à maioria dos pobres. Os pobres nunca provaram o gosto do sucesso. Assim, tentamos criar esse primeiro gosto do sucesso. Após esse primeiro gosto, eles estão prontos para o próximo gosto. Trazemos a pessoa para dentro, para sentir que ela não conhecia nada antes, e agora ela conhece. É assim que tentamos fazer. Depois disso, outras coisas se seguem. No Grameen, tentamos formar grupos de cinco pessoas. As pessoas perguntam: por que não emprestar a um indivíduo? Podemos emprestar para um, não há problemas. Mas, com cinco membros, há mais possibilidades de construir para o futuro. Por causa da responsabilidade e por causa do sentimento de dignidade que isso traz. Se eu fizer sucesso em um grupo de cinco, meu sucesso não será apenas financeiro, será social, pois mostrei aos meus quatro amigos que sou bom, que pude cumprir o prometido. E há um sentimento de competição, de poder ser melhor que os outros. Essas coisas ocorrem quando colocamos a pessoas em um contexto social. Depois ampliamos o grupo, totalizando 40 mulheres. E, entre 40 mulheres, quando se demonstra alguma coisa, o nível de confiança vai lá para cima. E a pessoa pode aceitar tarefas mais desafiadoras. E é isso que temos feito. E tornamos a coisa mais simples. Pelo menos, foi o que imaginamos, e acabou sendo verdadeiro. Fazemos as prestações muito baixas, com pagamentos próximos, prestações semanais. Perguntam-nos: Por que não fazer prestações mensais? Seria mias simples e seria menos custoso. Ir até um cliente a 13km de distância, todas as semanas, tem um custo alto. Ir uma vez por mês, seria um quarto do custo. Mesmo assim, insistimos na maior freqüência. Porque torna tudo mais fácil. E sempre que a pessoa faz o pequeno pagamento, semanal, ela está pronta para dar o passo seguinte. É como uma criança aprendendo a andar. Se os passos forem pequenos, ela ficará encorajada a dar o passo seguinte. Mas, se você a mandar dar um passo de adulto, sei que a criança terá muito medo de fazer isso. Ocorre o mesmo em qualquer experiência humana. Se você for aos poucos, uma coisa de cada vez, você vai ganhando confiança e prosseguindo. São essas coisas que tentamos construir. E, no conjunto, achamos que isso funciona devido à comodidade, à atratividade, e esse tipo de sistema de recompensas geralmente ajuda. Mas não dizemos que o Grameen é a solução final. Dizemos que o Grameen é o primeiro passo. Muitos programas serão criados, já foram criados e acrescentarão muitas outras características atrativas. E, aos poucos, isso ficará melhor e mais eficiente em termos de custo, mais atraente, terá melhores resultados, causará maior impacto.

Carlos Graieb: Professor, boa noite. Eu gostaria de fazer uma pergunta a respeito de crédito para consumo e para produção. Gostaria que o senhor discutisse a diferença entre esses dois tipos de crédito; porque, por exemplo, no estado de São Paulo, nós temos uma experiência muito bem sucedida no interior, com pessoas que têm feito empréstimos para consumo para as classes "C" e "D". No entanto, essas pessoas dizem: "Ah, os pobres nem sempre são tão bons pagadores". Nesse tipo de empréstimo que nós fazemos, às vezes a taxa de retorno não é tão alta. Eu gostaria de saber: o Grameen já teve alguma experiência, ou pretende emprestar para consumo? E esse crédito para consumo, entregue às classes mais baixas, tem alguma função no desenvolvimento do país?
 
Muhammad Yunus: Isso sempre me intrigou. Quando vim dos Estados Unidos, onde estudei, e me envolvi com esse programa, tentava encontrar meu caminho, ainda não sabia nada disso... Olhando para minha experiência, lembro-me de que eu costumava receber cartões de crédito pelo correio. Nunca os solicitei, eu era estudante. Todas as famílias nos Estados Unidos devem ser sufocadas por cartões de crédito. Imaginem uma grande economia distribuindo cartões para comprar coisas, para gastar dinheiro em produtos de consumo. A mesma economia, as mesmas instituições financeiras não emprestariam dez dólares para investimentos. Eu disse: "Um dia, vou criar um cartão de crédito para investimentos, para que a pessoa invista, ganhe dinheiro e me pague. É exatamente isso que fazemos agora. Não temos o cartão de crédito, mas damos o dinheiro para o investimento. Porque, com o investimento, cria-se a renda. Quando se cria a renda, gera-se o poder de compra, a pessoa pode gastar o dinheiro. Nos Estados Unidos, ocorre o contrário. Cria-se a despesa primeiro, fazendo a pessoa consumir, e depois vem a preocupação de onde virá o dinheiro, de como ela irá pagar as contas. Nós invertemos o sistema: criamos a renda primeiro e deixamos a pessoa decidir o que fazer com o dinheiro. No crédito para consumo, o interesse é o de vender as mercadorias, antes de fornecer a base para as pessoas, para que criem a renda para si mesmas. Se pudermos tirar as pessoas da pobreza, criaremos uma grande base para o consumo. Em Bangladesh, há 130 milhões de habitantes. Metade da população está abaixo da linha da pobreza, são miseráveis. Eles não podem comprar, para dar um exemplo, sequer uma escova de dentes para escovar os dentes. É um luxo escovar os dentes. É comum escovarem os dentes com os dedos, com carvão, ou com um raminho de árvore, mas não com uma escova. Mas imaginem que o nível de renda fique acima da linha da pobreza. Então, as pessoas poderão comprar uma escova de dentes. Será preciso 130 milhões de escovas e, a cada mês, serão precisos 130 milhões de tubos de pasta de dentes. Imaginem, numa economia como essa, como seria um negócio próspero ter uma indústria de escovas de dentes, ou de pastas de dentes. Aqui lutam, em comerciais de TV e jornais, poucos tubos de pasta de dentes, com uma minúscula base de consumo, porque a maioria não pode comprar. Sempre faz sentido trazer as pessoas para uma posição em que se tornem consumidoras por direito legítimo, e não porque alguém lhes deu um cartão de crédito, que as deixam com a corda no pescoço para pagar. Isso é uma espécie de chantagem. Prefiro criar uma situação em que a pessoa possa comprar o que necessita. É preciso observar essas coisas. Primeiro, você é um produtor, gera sua própria produção, e isso o torna detentor da renda, no processo, levando-o ao mercado, como consumidor. A mesma pessoa produz e detém a renda; é isso que eu digo. No Grameen, temos as duas experiências. O crédito para investimentos, que é basicamente o que fazemos. Se observar nossos empréstimos para moradias... o Grameen faz muitos empréstimos desse tipo, fizemos mais de meio milhão de empréstimos em Bangladesh. Empréstimos pequenos, mas é muito dinheiro para eles, US$300 ou mais. Um empréstimo típico é de US$300. Com esse dinheiro, faz-se uma bela casa: quatro colunas de concreto, um teto sólido, instalações sanitárias. Para a pessoa, é um palácio, em comparação com o lugar em que ela vivia. Muitos dizem que é um empréstimo para consumo. É moradia, não é um empréstimo para produção. Não quero discutir, pois sempre insisti que é um empréstimo muito produtivo. Para mim, é como uma fábrica: é o lugar onde a pessoa trabalha, a vida toda dela está sob aquele teto. Veja bem, se considerarmos um item de consumo, é um consumo em que não haverá problemas para recebermos o dinheiro de volta, por causa da capacidade daquela pessoa. E algo mais recente, que criamos há três anos, é o crédito educativo, para as crianças do Grameen. Encorajamos nossos clientes - 2,4 milhões de clientes, muitas famílias -  a enviarem os filhos para a escola. Sempre levantamos essas questões, e temos algo chamado "16 decisões". Uma delas é enviar os filhos à escola. Há três anos, tentamos rever a coisa toda. O que aconteceu com as crianças? Estão estudando? Foi uma surpresa muito agradável: 100% das crianças do Grameen estão estudando. Em Bangladesh, é normal crianças de famílias pobres abandonarem a escola. Não tivemos abandonos, todas estavam estudando. Muitas crianças não terminavam o ensino médio, porque não havia tradição de ir à escola e terminar os estudos. Agora, muitos haviam terminado o ensino médio. Muitos estavam em faculdades, em universidades, estudando medicina, engenharia. Então, criamos outro pacote, o crédito educativo. Para quem estivesse em uma instituição de ensino superior, o Grameen garantiria, em todos os casos, um financiamento de 100% da educação superior. Assim, os pobres não teriam apenas o lado financeiro, mas também o lado do aprendizado, da educação. Nós visamos à segunda geração. A primeira geração foi onde entramos: as pessoas não conheciam o Banco Grameen, e foi difícil para elas aceitarem um empréstimo. Mas as crianças estão crescendo brincando com jogos do Banco Grameen. Elas fazem jogos em que formam grupos e pegam dinheiro, como qualquer um joga Banco Imobiliário [jogo infantil de tabuleiro, que simula situações de investimentos financeiros, como compra e venda de imóveis, entre outros], pois isso faz parte de vida delas. É isso que visamos: a nova geração que está crescendo. Queremos assegurar que a educação seja completa. Então criamos isso. E funciona muito bem, a resposta foi muito boa. Se unirmos essas coisas, não em empréstimos de consumo isolados, mas as duas coisas juntas, isso funcionará melhor.

Vicente Adorno: O senhor diz que com esses microcréditos houve até uma quebra de tradição, que as crianças passaram a ir a escola, quando não era esse o hábito. Agora me chamou a atenção aqui uma coisa muito interessante: que 94% dos empréstimos são feitos para mulheres. E são elas que administram melhor o dinheiro, digamos assim. O Banco tem mulheres na direção? Ou ainda é um pouco cedo para isso, em face do aspecto tradicionalista da sociedade de Bangladesh?

Muhammad Yunus: 95% - ou 94% dos clientes, como disse - são mulheres. E as evidências nos mostraram que é muito melhor entrar na família pela mulher. O empréstimo rende muito mais em termos de benefícios para a família. As mulheres têm experiência para administrar recursos escassos muito bem, melhor do que os homens, na mesma família. Pois a mulher, em uma família pobre, tem a responsabilidade de esticar o que ela tiver para aquilo durar mais e ser mais bem aproveitado. Esses fatos foram confirmados pelos empréstimos que realizamos e que funcionaram. Por isso, nós mudamos nossa política de sermos imparciais e passamos a dar preferência a mulheres. O resultado é 95% de mulheres no Banco Grameen. Como clientes. Como conseqüência, também são proprietárias do banco. 95% dos proprietários são mulheres; mas, em relação à direção - não apenas à direção, mas a todos os funcionários - temos 12 mil funcionários, mas uma porcentagem muito pequena de mulheres. Tentamos desesperadamente manter mulheres no banco, como funcionárias. Mas fracassamos, devido aos problemas sociais causados para as mulheres. As famílias são contra suas filhas trabalharem no banco, porque nosso trabalho não é no escritório; esse é o problema! É um tipo de trabalho que exige que a pessoa vá de uma vila para outra e lide com mulheres pobres. É outro aspecto negativo, do ponto de vista dos pais. "Por que minha filha que fez faculdade trabalha com gente pobre?" Eles acham que isso reduz a atratividade dela no mercado do casamento [risos], por trabalhar com pobres. Ela deixa de ser glamurosa, este não é um trabalho glamuroso. O trabalho em um escritório é glamuroso: fica-se atrás de uma mesa, bem vestido, com boa aparência. Mas esse trabalho, não. E, também, o fato de uma garota andar muito não é algo bem visto. Então, aos poucos, elas saem. Em especial quando chega a hora de casar, porque toda jovem pensa no casamento, e os pais acham difícil encontrar um parceiro quando a garota trabalha no banco. Dessa forma, todas essas coisas - não entrarei em detalhes - têm um efeito negativo, e elas saem do banco. Não há como segurá-las. Atualmente, 8% dos funcionários que trabalham no Banco Grameen são mulheres. Nesse aspecto, não estamos nada bem. Mas na direção, sim. Entre três diretores gerais, há uma mulher. Vice-diretora, temos uma vice-diretora. Isso porque elas estavam comigo quando eu estava na universidade, elas eram estudantes. Ficaram no Grameen e chegaram à direção. Mas isso não compensa a fraca presença das mulheres em toda a hierarquia [Yunus sorri]. Sim, há um grande vazio aí.

Heródoto Barbeiro: Bem, nós vamos fazer um intervalo. Daqui a pouquinho nós voltamos ao nosso Roda Viva de hoje, com o nosso entrevistado, o economista Muhammad Yunus. Nós voltamos já, já.

[intervalo]
 
Heródoto Barbeiro: Voltamos aqui ao Roda Viva de hoje, com o nosso entrevistado, que é o economista Muhammad Yunus, de Bangladesh, autor do livro O banqueiro dos pobres. [...] Doutor Yunus, todas essas explicações que o senhor nos deu agora há pouco aqui no programa - empréstimos e a maneira pela qual ele funciona, e as suas idéias - isso só funciona numa economia capitalista ou pode ser aplicado também numa economia socialista?

Muhammad Yunus: A experiência atual já atravessou fronteiras. A idéia se aplica em qualquer situação ou estrutura econômica. Por exemplo, funciona na Europa, que é um mundo capitalista. Nos Estados Unidos, Canadá. Também, de modo similar, com grande entusiasmo, está sendo adotada na China. O Partido Comunista Chinês não apenas a endossou em reunião do Politburo [órgão político do Partido Comunista Chinês - PCC], mas adotaram como política do partido introduzir o microcrédito em toda a China. Eles adotaram isso como algo do partido, não é algo que está sendo feito e eles estão ignorando. É algo que deve ser feito, é parte do trabalho deles. Eles aceitaram isso dentro de sua própria estrutura. Isso é consistente com o que pregam. E também no Vietnã. O Vietnã tem um forte programa de microcrédito, através de várias organizações. Uma organização com a qual trabalhamos há um longo tempo é a Vietnam's Women's Union, a principal do Partido Comunista Vietnamita. A presidente da Vietnam’s Women's Union disse-me várias vezes: "Temos uma longa história de lutas com nossa organização, pelo partido e pelo país. Sempre tentamos fazer algo, dar um programa para as mulheres do Vietnã, mas eu nunca me senti tão bem até encontrar o modelo do Grameen, a metodologia do Grameen de microcrédito. Porque agora não são apenas palavras, são coisas concretas para as mulheres mudarem suas vidas. Nunca tivemos um programa com o qual as mulheres pudessem mudar suas próprias vidas. É importante para elas." Ela não viu nenhum conflito entre a idéia de economia que o país deveria ter e o microcrédito. Em todo lugar, isto se encaixa em qualquer idéia de estrutura econômica. Isso ocorre porque não é alguém de fora que muda sua vida. Você recebe o poder para mudar sua própria vida. E não é algo colocado dentro de você. É algo em torno de você que é removido para que você possa mostrar sua capacidade. Eu diria que isso está além dessa polêmica. Ao final de uma entrevista, nos Estados Unidos, alguém disse: "Eu não sabia o que você fazia até ouvir a entrevista. Agora, acho que, com esse tipo de trabalho, Jesse Jackson e Jesse Helms [políticos norte-americanos, dos partidos democrata e republicano, respectivamente]  podem comer no mesmo prato [risos]. Eles estão em pólos políticos opostos. Mas, pelo que diz, nenhum dos dois terá dificuldade em endossar e em promover sua causa. É onde todas essas idéias se unem. E fico muito feliz com isso.

Walter Barelli: É um grande prazer estar aqui com o senhor. Nós aqui no estado de São Paulo temos uma experiência de crédito produtivo popular e já está chegando a 70 cidades. Nós estamos emprestando cerca de US$1 milhão por mês, a partir do microcrédito, empréstimos de R$200 a R$5 mil com agentes de crédito, sempre no crédito produtivo popular. Agora, o nosso governador, Mário Covas [governador do estado de São Paulo de 1994 a 1998 e 1998 a 2001, quando faleceu, não tendo completado o segundo mandato], diz que banco do povo não é banco. Porque bancos têm banqueiros, fazem muitas exigências, não emprestam para o povo ou para o pequeno. O que o senhor acha dessa opinião do nosso governador?

Muhammad Yunus: Eu concordo que bancos convencionais ficam longe do alcance dessa massa de pessoas que precisam ter acesso ao crédito, desesperadamente, mas nunca conseguem. Elas tornam-se vítimas de agiotas que emprestam dinheiro. Gostando ou não, há leis contra eles, mas eles sobrevivem. Pois a necessidade deles é muito grande. E eles estão por toda parte em países onde há muitos pobres. Nas Filipinas, esse sistema é chamado de "5 e 6". Você pega cinco pesos emprestados de manhã e paga seis pesos à noite. 20% de juros por dia. Isso torna-se um enorme fardo para as pessoas. Isso existe no Brasil, tenho certeza, embora nunca tenha investigado, mas basta procurar para ver como é um negócio próspero. Mas os bancos convencionais não mexem nisso. Por causa das regras dos princípios que adotam. O princípio básico é: quanto mais se tem, mais se pode receber. É preciso ter muito antes de receber. Se você tiver muito, receberá muito mais. E você elevará seu nível de riqueza. Dessa forma, o sistema bancário está concentrando a economia nas mãos de cada vez menos pessoas. Ele está sempre atrás de pessoas com dinheiro, que detém muito dinheiro. O sistema é assim. Eu digo que não é ruim apenas por não chegar aos pobres, essa é uma coisa ruim. Mas também é ruim porque você está se distanciando das pessoas a quem atende hoje. Amanhã, você relutará em atender essas mesmas pessoas. Porque você então estará atrás de uma fatia mais acima e, aos poucos, você subirá. Minha explicação da crise asiática é baseada exatamente nesse princípio, emana desse princípio. Os bancos asiáticos iam atrás desse dinheiro, e essa gente tem tanto dinheiro que investem em todos os tipos de programas que não têm base sólida. E, um dia, tudo desabou e toda a economia correu grande perigo. Por que os bancos não emprestam dinheiro? Por causa de sua própria estrutura conceitual. Eles definiram que pobres não merecem crédito, sem ao menos tentar. Mas nós testamos um programa, assim como seu programa, ele funciona, e é uma proposta muito atraente para negociar com eles. E no mundo todo, isso foi demonstrado muitas vezes, os pobres pagam muito melhor do que os ricos. Em Bangladesh, temos um grande exemplo disso. Ricos que pegam emprestado dos bancos não pagam. E são pessoas poderosas, não se pode tocá-las. Eles controlam a política, controlam os negócios. Eles fazem os bancos lhes emprestarem mais dinheiro, para não se preocuparem com os empréstimos passados, que não estão pagando. Mas os mesmos bancos não emprestam para os pobres. Temos que reconhecer todo o mundo financeiro. É a única saída. Teremos de criar bancos exclusivos para pobres. Para que não haja chance de eles fazerem outras coisas. Na nossa experiência, quando criamos um banco para os pobres e deixamos uma porta aberta, aos poucos, ele vai indo para cima, abandona o programa para os pobres, e faz outra coisa. Assim, deve-se criar algo exclusivo para os pobres, de modo que, se ele falhar nisso, a única alternativa será fechar. Porque não haverá como fazer outros negócios. Mas é algo que vale a pena, em termos financeiros, pois é uma grande experiência, e em termos sociais, pois nenhuma sociedade deseja ver tantos de seus membros padecendo na miséria ou na pobreza. Isso não faz sentido em nenhum contexto.

Maria Clara do Prado: Eu queria retomar a pergunta que o Carlos Graieb fez no último bloco, só que sob um ângulo diferente. A gente sabe que a sociedade em Bangladesh é estratificada de uma maneira extremamente rígida, assim como na Índia e no Paquistão. Eu gostaria que o senhor fizesse uma avaliação no sentido de... O sistema do microcrédito, tal qual como foi implantado em Bangladesh, - e aparentemente bem sucedido - que impacto e que repercussão se poderia esperar de um sistema desse numa sociedade como a brasileira e a americana, onde você tem uma mobilidade social que não existe obviamente em Bangladesh? Parece-me que a preocupação do Banco Grameen é acabar com a miséria e dar às pessoas, que estão nessa camada, possibilidades de terem uma vida melhor e poderem educar os filhos. Mas, eu não sei se essas pessoas, devido ao fato de a estratificação ser tão rígida, por motivos obviamente culturais e religiosos, terão a mesma expectativa de avançarem socialmente como poderá acontecer na sociedade brasileira ou na sociedade americana. Eu gostaria que o senhor fizesse essa... Ou seja, o modelo do Grameen, tal qual ele funciona em Bangladesh, funcionaria no Brasil e nos Estados Unidos, do mesmo jeito?

Muhammad Yunus: Minha primeira resposta é sim. Não há diferenças entre Brasil, Estados Unidos ou Bangladesh. O dinheiro é um grande fator de eqüidade. Não importam quais sejam as diferenças sociais. Tudo isso é reflexo das diferenças econômicas que fomos incorporando. Assim, cada camada fica onde está. Se removermos esses aspectos incorporados, as pessoas vão se mover livremente, rapidamente, nas mais diferentes sociedades. Falarei da experiência do Grameen, depois falarei de outras questões, outros países. Temos uma população muito homogênea em Bangladesh. Diferente do Brasil. Falamos o mesmo idioma, temos a mesma origem étnica. Somos um país muito pequeno, equivalente a um estado de tamanho médio aqui, com 130 milhões de habitantes, amontoados. E está ficando cada vez mais apertado. Nesse contexto, pobre ou rico, basicamente, é uma população rural. Apenas 15% da população de Bangladesh é urbana. É o oposto do Brasil. E toda a população urbana tem raízes nas aldeias. É uma população de primeira geração, flutuante, que vem das aldeias. Eles trabalham nas cidades, intitulam-se urbanos. Seus filhos estudam nas cidades, mas seus pais moram nas aldeias. Nos fins de semana, os filhos voltam para as aldeias. Nas festas, voltam para as aldeias. Todas as festas são nas aldeias, pois suas famílias estão lá. É um mundo centrado nas aldeias. Temos 68 mil aldeias em Bangladesh, e se você perguntar a qualquer bengalês de onde ele é, quer seja no Brasil, ou em outro lugar, imediatamente, ele não citará Bangladesh, mas citará sua aldeia. Porque é de lá que ele veio, da aldeia. Essa é a estrutura. Além disso, é uma sociedade muçulmana. E o Grameen lida com mulheres. Mulheres pobres. Nada pode ser pior nessa sociedade, do que ser uma mulher pobre, em especial em uma sociedade muçulmana. Todas as restrições do mundo são impostas a ela. Se ela encontrar um modo de se destacar e progredir, então, seus filhos - como eu disse, visamos à segunda geração - poderão realmente deixar a pobreza. Essa é a situação. No início, ela tem muito medo de aceitar o dinheiro. O primeiro empréstimo é de cerca de US$30 a US$35, ela tem medo de aceitar empréstimo maior. E quando segura o dinheiro, pela primeira vez, ela treme, não acredita que alguém confiou a ela uma quantidade tão grande de dinheiro. Ninguém lhe confiava sequer um centavo. E essa organização cedeu-lhe todo esse dinheiro. Ela chora, lágrimas caem dos olhos. Esse é o ponto inicial. E ela paga o primeiro empréstimo, o que é uma grande experiência, pois ela nunca imaginou que pudesse pagar sequer uma prestação, pois todos diziam que ela não era ninguém. Mas semana após semana ela pagou as prestações, e, ao final do ano, o empréstimo estava pago. Ela sente-se uma mulher livre, pode erguer-se e gritar ao mundo: Posso cuidar de mim! Eu sou alguém!. E é esse sentimento que a tira daquela massa de mulheres oprimidas. Ela tem as rédeas de sua vida, pode cuidar de si mesma. Esse é o ponto inicial. Depois, ela quer ver a ascensão dos filhos, enviando seus filhos para a escola. Uma coisa que sempre fizemos foi encorajar os clientes a enviar seus filhos para a escola, já falei. Outra coisa, na época das eleições, quando há eleições gerais, queremos que 100% dos membros da família Grameen vão às urnas e votem. É uma campanha que fazemos. E temos conseguido que 100% dos familiares dos clientes do Grameen votem. Essa é outra coisa. Nas eleições de 1996 ampliamos isso. Não apenas nós vamos votar, vamos levar nossos vizinhos para votar. Não importa em quem, mas vamos votar. Em especial, as vizinhas, pois o Grameen é uma organização de mulheres. E elas levaram todas as vizinhas que conseguiram. Assim, a eleição de 1996 foi muito diferente. O índice de comparecimento foi de 73% em Bangladesh, em todo o país. Muito mais alto que em qualquer outro ano. Outra coisa impressionante: votaram mais mulheres do que homens naquela eleição. Isso nunca havia ocorrido em Bangladesh. O número de mulheres que votavam sempre era metade do número de homens. E eram os homens que levavam as mulheres e filhas para votarem em seus candidatos. Eles achavam que elas deveriam votar em seus candidatos. Na eleição de 1996 as mulheres não votaram nos candidatos dos maridos. Elas próprias escolheram seus candidatos. Assim, o Partido Fundamentalista em Bangladesh - o Partido Fundamentalista Muçulmano - foi literalmente arrasado, pois as mulheres não gostavam dele. Ele defendia muitas restrições às mulheres. Este foi um dos sucessos. Em 1997 houve uma eleição local. E nós fizemos a mesma campanha. Quando saíram os resultados, ficamos surpresos, de um modo muito diferente. Dessa vez, elas não votaram, foram candidatas. Ficamos surpresos porque eram mulheres muito tímidas para falar... Agora concorriam a cargos públicos. Mais de duas mil mulheres do Grameen foram eleitas nos conselhos locais. Duas foram eleitas como presidentes dos conselhos. Esse é um quadro totalmente diferente. Você falou da mobilidade, dei um exemplo de onde a mobilidade ocorreu, em poucos anos. E eu digo como ficamos surpresos, vendo as crianças do Grameen em universidade, cursando medicina, engenharia. Vindas de famílias sem nenhuma tradição escolar, mesmo no ensino fundamental, não havia tradição em toda a história da família. Elas não apenas entraram na história, mas a mudaram. Imagine quando elas se formarem. Onde estarão? Agora elas são tão boas quanto qualquer um. Entrar para uma instituição de ensino superior não é fácil, é preciso ter notas altas. Essa é outra parte da mobilidade. Darei um outro exemplo. Criamos outras empresas como a Grameen Phone. É uma empresa de telefonia celular, num empreendimento conjunto com a Telenor [provedor mundial de serviços de TV e de comunicação móvel], da Noruega. Estamos levando telefones celulares para as aldeias. Fazemos empréstimos para membros do Grameen, para a mulher comprar um telefone celular e para se tornar a "mulher do telefone" na aldeia. Ela vende o uso do telefone. É um novo negócio para ela: telecomunicações. Uma mulher que nunca viu um telefone na vida. Ela nem sabia que existia um aparelho chamado telefone. Nunca ouviu falar. Pela primeira vez, ela viu aquele Nokia, Ericsson, Motorola. Então, ela vence toda a surpresa e aprende aquele jogo. Ela aprende os números, ela não os conhecia, ela precisa aprendê-los, por estar no negócio. Agora ela tem um negócio, cobra por isso, e faz ligações para o mundo, para os Estados Unidos, Oriente Médio, Japão, onde quer que haja bengaleses. Eles ligam para casa, pessoas de casa ligam para eles, e ela ganha dinheiro. E quando vamos lá, três meses após ela receber o telefone, ou seis meses depois, e falamos com ela, ela fala como se estivesse a vida toda no negócio, como se as últimas 15 gerações da família estivessem nele, sabe tudo sobre ele. Imagine o que acontecerá com os filhos dela, o que acontecerá quando vier a próxima geração de celulares, com o WAP [Wireless Application Protocol, protocolo para acesso a aplicações e informações sem fio - internet móvel], com os serviços de internet. Tudo isso é possível... O ser humano tem muito mais capacidade do que imaginamos. Eles adaptam-se rapidamente, desde que vejam que faz sentido, que é útil para eles. Todas essas diferenças quanto à classe, religião, quanto a estar no fundo, desaparecem totalmente. Eu sei o que faço, estou dirigindo, sei para onde ir, não precisa me dizer. As barreiras não têm chance alguma. Só precisamos remover as barreiras que nós criamos para eles, e eles encontrarão seu próprio caminho. Minha experiência diz isso. E acredito piamente nisso.

Paulo Singer: Professor Yunus, eu sou um dos seus admiradores. Eu sou professor da Universidade de São Paulo, e usamos o seu livro sobre a sua autobiografia como material de um curso que eu dou sobre economia solidária. Eu queria aproveitar a oportunidade de colocar algumas questões. O Grameen Bank é de certa uma forma uma grande cooperativa de crédito. É a maior cooperativa de crédito do mundo dirigida aos mais pobres. Mas já existe desde o século passado uma tradição de cooperativas de crédito na Alemanha, em outros países da Europa. Eu queria saber em que medida o microcrédito e o movimento de cooperativas de crédito tem alguma continuidade? Ou não? Se são coisas completamente diferentes? E outra coisa que eu queria levantar é que a idéia do crédito solidário, o fato de cada grupo de cinco mulheres se responsabilizar por cada empréstimo individual, deve levar, a meu ver, também a associação em outras atividades produtivas, cooperativas quem sabe. Eu queria saber se experiências dessa natureza têm sido registradas?

Muhammad Yunus: Muito obrigado por usar o livro [Yunus sorri]. Obrigado. Gostaria de fazer um comentário sobre isso. Na minha opinião, nós, nossa geração, fomos às escolas e tivemos nossos conceitos formados nas escolas, e usamos esses conceitos para julgar o mundo. Não importa o que se diga em contrário, é muito difícil mudar nossos conceitos. Os jovens surgem com novos conceitos, novas idéias. Assim, discutir isso com pessoas que ainda não têm conceitos formados é um trabalho fantástico. Pois eles têm novas visões, novos olhos, mentes abertas para julgarem as coisas. Nós perdemos essa capacidade. Nossa mente é como uma rocha sólida. Independente dos argumentos, só procuramos formas de refutá-los, não mudamos nossos conceitos. Obrigado. Sob o aspecto cooperativo: Quando comecei, não pensei em anda disso, só queria resolver um problema muito local, uma coisa minúscula. Na época, eu não tinha nenhum projeto. Eu apenas reagia à situação e, gradualmente, um passo levou a outro e, quando eu pensei que era o último, ele levou a outro passo, que eu achei que era o último, e continuou assim. Agora eu vejo experiências no mundo todo: há semelhanças, mas também há diferenças. Uma diferença que vejo do crédito cooperativo: o crédito cooperativo é uma cooperativa de consumidores. Eles tentam conseguir dinheiro para comprar móveis, equipamentos. É o que acontece na maioria das vezes, comprar um carro, etc. Investimentos estão presentes, mas em uma pequena parte, não no grosso. E a segunda diferença é que no crédito cooperativo usa-se o dinheiro de todos. Não é o dinheiro de fora. E não é só isso. O dinheiro arrecadado não é usado apenas por membros, mas a maior parte é emprestada para fora. Em vez de trazer dinheiro para dentro. No nosso trabalho, temos poupanças. Temos, atualmente, US$160 milhões em poupanças dos clientes, pequenas poupanças. Mas emprestamos muito mais. Ano passado emprestamos mais de US$400 milhões. E, no total, emprestamos mais de US$3 bilhões. Mas isso não veio das poupanças. Emprestamos do mercado. Emitimos títulos e captamos dinheiro. As pessoas pegaram o dinheiro, esses US$3 bilhões, essas mulheres pegaram o dinheiro. Dar o dinheiro a elas não foi nada demais. Qualquer um pode dar. O detalhe é que elas pegaram o dinheiro e devolveram, com juros. E ninguém acreditava que fossem capazes de pagar mesmo pequenas quantias. US$1 bilhão, em Bangladesh, é muito dinheiro. E US$3 bilhões é dinheiro que não acaba mais. Essa é a diferença básica da idéia de cooperativa, se analisar sob um ponto de vista posterior, não copiamos, há diferenças. No começo, muitos diziam: Vocês são uma cooperativa, por que não usam esse termo? E eu dizia que, em Bangladesh, cooperativa é uma palavra feia. Porque o nome cooperativa, a lei de cooperativas foi usada por políticos para beneficiar pessoas que os apoiavam. Eles pegavam dinheiro do governo e os distribuíam, mas ele nunca foi devolvido. Hoje, se você diz que faz uma cooperativa, as pessoas sorriem, achando que é um ladrão, que rouba muito dinheiro. Nunca quisemos usar esse título, embora haja muitos aspectos de cooperativas no Banco Grameen. Afinal, é um banco de propriedade dos clientes. Esse é o aspecto básico de qualquer cooperativa, autogerenciamento, e é o que fazemos. Mas por causa do mau uso e por causa do modo como o termo, a instituição, o conceito, foi usado por nossos governos, um após o outro, achamos melhor ficar longe disso e seguir nosso caminho. E é assim que fazemos. Há projetos em comum, feitos em conjunto, no Grameen, mas nosso sucesso é pequeno nisso. Por um motivo: quando lidamos com mulheres, que são a maioria dos clientes, quando há um projeto conjunto, os maridos entram em cena. E eles começam a brigar entre si [risos].

Heródoto Barbeiro: Bem, nós vamos fazer mais um intervalo. Você está acompanho aqui essa entrevista com o economista Muhammad Yunus, o nosso convidado hoje aqui no Roda Viva. Nós voltamos daqui a pouco.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Voltamos ao Roda Viva de hoje entrevistando o economista Muhammad Yunus, de Bangladesh, que divulga a idéia de microcrédito, um financiamento especial destinado às camadas mais pobres da população, como forma de combater a pobreza no mundo. Doutor Yunus, qual é a contribuição que esse sistema que o senhor nos explicou até agora, aqui no Roda Viva, dá para a melhoria da distribuição de renda dentro de um determinado país? O senhor tem esse tipo de avaliação?

Muhammad Yunus: Nós não fazemos nenhum estudo desse tipo, mas há muitos pesquisadores fazendo trabalhos sobre o Grameen. Duas coisas ficam bem claras. Uma é que a renda das famílias que receberam crédito do Grameen vem crescendo ao longo do tempo. Um estudo diz que um terço dos clientes deixou a pobreza, e os outros dois terços estão a caminho disso. É um resultado muito concreto. Mas, normalmente, todos os estudos mostram que há um movimento ascendente muito positivo. No aspecto de nutrição, as crianças do Grameen estão muito mais bem-nutridas do que crianças de fora. No aspecto do planejamento familiar, disseram-nos que os clientes do Grameen adotam o planejamento familiar em número duas vezes maior que a média nacional. E as condições de moradia também são muito melhores. Observando esses aspectos, notam-se as mudanças positivas que ocorrem. A alfabetização entre crianças do Grameen é muito maior do que entre crianças de fora. Um estudo recente mostrou que a mortalidade infantil nas famílias do Grameen foi reduzida em 37%. Grameen não é uma organização de planejamento familiar e nem uma organização de saúde, mas há um elo positivo entre renda e fortalecimento das mulheres, e isso se estende a todos esses aspectos. Outro estudo nos mostra a contribuição do Grameen ao PIB. Esse estudo calculou que a contribuição ao PIB é de 1,4%, que é a mesma contribuição do setor elétrico do país. Analisando setor por setor, a contribuição do Grameen, envolvendo tantas famílias, torna-as contribuintes ativas para a economia, somando-se ao PIB.

Beatriz Azeredo: Professor Yunus, eu estive o ano passado em Bangladesh e tive a oportunidade de ver de perto um grupo solidário – 100% de mulheres – e de constatar a satisfação dessas mulheres, a auto-estima. E na fala de cada uma delas, a certeza de que os filhos terão uma vida melhor e diferente da que elas tiveram. O Grameen tem nas mulheres a sua maioria de clientes, e sempre o senhor apresenta a experiência do Grameen como uma experiência de mudança da sociedade. Na suai visão a mulher é um poderoso agente de transformação social?

Muhammad Yunus: Muito poderoso. Em primeiro lugar, elas influenciam seus filhos. Esqueça o mundo exterior, elas criam a próxima geração. Se o poder, a visão, a capacidade e a confiança das mulheres aumentarem, a dignidade será restaurada. Isso será transmitido para a próxima geração. As crianças da próxima geração serão muito diferentes, se a mãe delas for diferente. Isso, dentro da família. No aspecto exterior, se as mulheres forem ativas na sociedade será uma coisa muito positiva em países como Bangladesh, onde metade da população é de membros passivos na sociedade. Legalmente, eles têm todos os direitos, porque agora eles têm direito a franquias, ao voto, e muitos outros direitos. Mas eles não sabem disso, e se eles não sabem, são direitos inúteis. Participar de um grupo com cinco membros, elegendo a líder do grupo pode parecer ridículo – uma eleição em um grupo tão pequeno – mas é o primeiro gosto de um cargo público. “Minhas amigas confiaram em mim, e quero corresponder sendo uma boa líder”. Depois, um grupo maior, com 40 pessoas, elege uma líder central. Na primeira vez que uma líder central foi eleita, ela não sabia o que fazer; mas, gradualmente, ela foi sentindo o poder e, aos poucos, foi conseguindo representar sua opinião e a opinião de suas eleitoras. É um treinamento para a liderança, para descobrir e explorar sua capacidade. Eu diria que a economia e a sociedade estariam muito mais seguras e muito melhores nas mãos das mulheres do que na dos homens.

Carlos Graieb: Nós fizemos várias perguntas sempre supondo cenários estáveis. Eu gostaria de saber qual é a política do Grameen Bank no caso de um desastre natural, por exemplo. Bangladesh está muito sujeita a enchentes e a inundações. No caso do Brasil nós temos regiões que vivem na pobreza, muito em razão da seca. A seca, entre outros fatores, impede que as pessoas aumentem o seu nível de vida. Eu gostaria que o senhor respondesse a duas perguntas: primeiro, qual é a política do Grameen, caso uma pessoa perca a vaca, que comprou com o empréstimo, numa enchente? Em segundo lugar, o senhor conhece alguma experiência de microcrédito em regiões de seca, em que as dificuldades e as calamidades são muito prolongadas? Não é o caso da enchente, que vem e vai rapidamente; a seca fica por muitos anos. Então, o senhor conhece alguma experiência num ambiente desse, em que as condições naturais são muito difíceis de serem suplantadas?

Muhammad Yunus: Em uma instituição de âmbito nacional, que lida com pobres, se não pensarmos no aspecto dos desastres, a instituição estará fadada a desaparecer. Bangladesh é um país de desastres naturais, em particular, inundações e maremotos, algo muito comum. Em 1998, tivemos a pior inundação da história, algo nunca visto em Bangladesh. Dois terços do país foram atingidos. Em uma inundação normal, a água dura uma semana ou duas. Se durar três semanas, é uma inundação muito ruim, pois não se pode fazer nada por três semanas. Em 1998, dois terços do país ficaram sob a água, e a inundação durou dez semanas. Por dez semanas, não havia casas e nem lugares secos. Os únicos lugares secos eram as estradas. Imagine 130 milhões de pessoas, ou boa parte da população, tentando encontrar um local seco, e todas acumulando-se nas estradas: você perdeu seu gado, suas aves, seu lar, seu comércio, tudo. Após a inundação, começa-se do zero. No ano seguinte, a inundação não foi tão devastadora, mas, para alguns, foi. E recomeça-se do zero. É preciso ter um mecanismo para esses casos. E o Grameen tem essa política. Temos uma política muito elaborada, do momento em que a inundação começa até a pessoa voltar a trabalhar. Há um cenário diário de como proceder. E, quando a pessoa volta a viver, começa a reconstruir a casa e temos que dar outro empréstimo para moradia. Ela pode ter emprestado anteriormente, mas isso não é desculpa. Temos de reerguer a pessoa. Não importa o que se diga, porque não é bom negócio deixar as pessoas nas ruas e esperar o dinheiro voltar. Ele nunca irá voltar. Nossa prioridade, custe o que custar, é reerguer a pessoa e sua família, fazer com que ela volte a ganhar dinheiro. Se ela puder ganhar um centavo por dia – emprestar esse centavo para ela – então ela poderá conseguir 10 centavos, 50 centavos, um dólar, etc. Esse é um procedimento padrão elaborado para isso. Empréstimos para moradias, novos empréstimos. Outros empréstimos ficam computados, mais tarde tratamos. Nunca perdoamos dívidas. Isso não adianta com os pobres, pois eles ficam tentados a esperar para ver quando serão perdoados. Um perdão leva a outro, não tem fim. Todos os empréstimos podem se acumular, mas é preciso criar a capacidade para que possam pagar todos os empréstimos em um longo prazo. É o que fazemos. Essa é uma das estratégias contra desastres. Outra coisa – que citarei rapidamente, mas é muito elaborada – é que criamos várias empresas ao nosso redor. Já citei uma, a Grameen Phone. Há a Grameen Communications, Grameen Textile, Grameen Knitware... 22 empresas no total. Muitas delas dão ótimos lucros. Quem são os donos delas? Nós não somos os donos. Mantemos as empresas para vender as ações delas para todos os clientes. Criamos fundos mútuos, dedicados a comprar ações. Depois, os clientes compram as ações dos fundos mútuos e se tornam os donos das empresas que criamos. E os dividendos irão auxiliar em termos de subvenções, de aposentadoria. Servirão como aposentadoria, seguro para emergências, ou quaisquer outras necessidades, pois essas empresas darão dividendos estáveis, são boas empresas, e vamos criar mais empresas. Vamos comprar ações de outras empresas, para que possam investir nessas empresas, e a empresa de administração do Grameen vai cuidar dos investimentos. Essa é a estratégia básica.

Vicente Adorno: O senhor parece que vai indo sempre contra a corrente. Porque o senhor mesmo disse que no seu país, corporação virou um nome feio. E também os bancos têm má fama, tanto que o dramaturgo alemão Bertold Brecht [1898-1956] dizia: “Não há diferença nenhuma entre abrir um banco e roubar um banco”. Mas o senhor diz: “Instituições econômicas têm obrigação de dar respostas para problemas econômicos”, e tem tentado fazer isso. O senhor acha que pode convencer outras grandes instituições econômicas a adotar esse mesmo procedimento, a passar a ver o cliente não como uma coisa de risco, mas como uma pessoa que vem para acrescentar alguma coisa à sua instituição? E, por último, o senhor acha que com isso vai acabar ajudando a apagar essa má fama dos bancos?

Muhammad Yunus: Não quero melhorar a imagem dos bancos, quero mudar os bancos. Se eles têm uma má imagem, eles a merecem. Por que mudá-la? Mas é preciso trabalhar da forma certa. As pessoas devem sentir que o banco é um amigo, que ajuda as pessoas. E não basta ser amigo nos bons momentos, e nos maus momentos mudar de postura. Isso não é uma coisa boa. Os bancos devem aprender a ajudar. O caso do desastre foi um teste, as pessoas recorreram a nós como amigos: “Ninguém nos dá atenção, pode nos ajudar?” Eles estavam em dificuldades. O pessoal do Grameen tem uma orientação permanente para fechar os livros: não é mais um banco, é uma organização humanitária. Ajude seus clientes, encontre comida para eles. Se alguém ficar doente, dê tratamento, remédios, e encontre o melhor médico, para que sejam atendidos. E dê comida, pois eles não têm comida. Eles são seus clientes, são donos da instituição, são seus empregadores. Seu trabalho é garantir que o dono do seu banco esteja seguro nas suas mãos. Para que sinta que fizeram uma coisa boa ao criar o banco. É assim que a instituição deve ser. Não imagino uma instituição tornando-se um robô, pensando apenas em dinheiro e não nas pessoas. Não apenas os bancos, mas qualquer organização. Afinal, são instituições humanas, lidam com seres humanos em todos os aspectos. Eu farei isso. Se vão mudar, se vão me ouvir, é outra história. Se o exemplo do Grameen for verdadeiro, se metade do que falei for verdadeiro, as pessoas prestarão atenção. Se eles podem trabalhar assim, por que outros não podem? Se eu convencer você, seremos dois. Não preciso mudar o mundo todo, se eu mudar uma pessoa, será um grande sucesso, porque amanhã poderemos ser quatro. É assim que se mudam as mentalidades. Se mudarmos idéias e atitudes de muita gente, as instituições não poderão continuar da mesma forma, terão de mudar. Afinal, nada funciona isoladamente. De certa forma, estamos interligados. É preciso ter um impacto nas políticas. É isso que quero. Mas, primeiro, tenho de mostrar exemplos concretos. Não basta fazer belos discursos. Estamos cansados de belos discursos. Isso não nos afeta mais, pois já fomos enganados muitas vezes. Mas, em termos concretos, se você vir, puder tocar e se convencer, ninguém irá me deter. É isso que acontecerá.

Milton Gamez: O senhor descreveu a verdadeira revolução, mas muito pequena diante do tamanho da pobreza no mundo. Mais ou menos 20% da população mundial vive com menos de um dólar por dia. Isso mostra que houve um fracasso muito grande dos organismos multilaterais e do Banco Mundial em reduzir, significativamente, a pobreza. O senhor acredita que isso pode realmente ser mudado? É factível acabar com a pobreza? Os governos teriam que se envolver mais fortemente nesse combate? O que falta realmente para a gente conseguir tirar essa praga da humanidade? Nós vemos todos os dias fotos da África, onde 20% da população está contaminada com a AIDS. Parece que não há uma saída. O senhor acredita que haja uma saída?

Muhammad Yunus: Acho que sim, deve haver. Não podemos desistir, achar que não há saída. Com relação ao envolvimento dos governos. Não sou excludente. Não excluo ninguém. Não excluo idéias, não excluo parceiros. Sempre recebo todos e todas as idéias. Esta não é a única idéia que funciona. Há muitas idéias. Vamos trazê-las para dentro, em vez de discutir qual é a melhor idéia. Não faz sentido. Vamos pôr em prática aquela que funcionar. Se a sua funcionar, ótimo; se a minha, ótimo. Algum dia, se tivermos uma terceira que funciona, também a usaremos. Mas temos de acabar com esse problema que chamamos de pobreza. É uma cicatriz na civilização humana. Não faz sentido carregá-la para o novo milênio. Deveríamos ter acabado com ela no último milênio, antes de entrar neste. Mas agora que ela está aí, devemos fixar uma data. Além dessa data, ela não ultrapassará. Atualmente, um bilhão e meio de pessoas, como você disse, vivem com menos de um dólar por dia. Mas o número está crescendo, e já afirmaram que ele dobrará até 2040. Eu disse: “Que vergonha sequer pensar que dobrará, em vez de reduzir. Por que não calculamos para torná-lo zero em 2040, em vez de falar em dobrar? E o que precisa ser feito para zerá-lo? Se deve ser zerado em 2040, o que devemos comer hoje? No mundo, no meu país, no meu bairro, qual é o número que devemos atingir, e como fazer isso? Tentaremos de tudo para que isso aconteça. Mas isso precisa acontecer”. Acredito que, se as pessoas concentrarem-se em uma coisa, ela pode acontecer. Um exemplo disso foi quando um determinado presidente disse: “Queremos pôr os pés na Lua”. Todos acharam uma loucura. Mas aconteceu, chegamos à Lua. Então, se determinarmos uma data e nos comprometermos a isso, encontraremos um jeito. Talvez seja um, ou outro, mas encontraremos. E eu digo que é uma coisa global porque, atualmente, o número está crescendo. Se, de algum modo, pudermos demonstrar que o número não está mais aumentando, será um grande sucesso. E, no ano seguinte, se dissermos que reduzimos o número em apenas duas pessoas, será outro sucesso. Quando o número começar a cair, seja em uma ou duas pessoas, poder-se-á repetir isso todos os anos. Todos os anos, se o número se reduzir em duas pessoas, em um futuro muito distante, haverá uma data em que o número será zero. E poderemos pensar: “Podemos acelerar o processo? Podemos trazer a data para mais perto? Existe essa possibilidade?” Agora, eu digo que podemos acelerar, por causa da tecnologia de informação. Ela nos dá oportunidades sem precedentes. Podemos fazer qualquer coisa com ela. E funcionará melhor do que funcionou no passado. O mundo todo mudará automaticamente. Mudará ainda em nossas vidas. O mundo já mudou tanto nos últimos 20 anos. Pensamos: “Como vivíamos sem isso antes?”. Hoje, isso é realidade em toda parte. E daqui a dez anos, como será? Será como uma ficção científica. Daqui a dez anos, não 20 anos. Se essa é a velocidade do mundo, por que não usá-la para eliminar a pobreza, dar dignidade às pessoas, libertar a energia e a engenhosidade humanas, para que possam contribuir para todos, para o mundo? Estou totalmente convencido de que é factível, só é preciso acreditar. Acreditando, podemos fazer.

Thomaz Lanz: Professor Yunus, o Grameen Bank cobra 20% ao ano de juros, o que, certamente, não é um juro subsidiado. Eu gostaria muito de ter a sua opinião sobre o que vem a ser o nível de juro adequado para a concessão de microcréditos. Devemos, efetivamente, cobrar o custo do dinheiro, mais o custo administrativo das instituições, ou devemos dar uma parte do custo de dinheiro junto do microcrédito?

Muhammad Yunus: A posição que sempre adotei é a de que programas de microcrédito, cedo ou tarde, deverão se tornar sustentáveis. Não me oponho ao subsídio, a algo para dar um empurrão e fazê-lo andar. Mas o responsável pelo programa de microcrédito deve ter em mente que, gradualmente, deverá ser dependente de sua própria renda, e não de subsídios. Infelizmente, subsídios do governo têm um elemento negativo: uma vez que se consegue, acostuma-se a querer cada vez mais, em vez de reduzi-lo. Esse é o lado negativo. Devemos deixar bem claro que é preciso chegar a um nível auto-sustentável, rapidamente, o mais rápido possível. Esse é um critério básico. É um objetivo que devemos perseguir com toda a nossa energia. A segunda questão, qual deve ser a taxa de juros, claro que é preciso cobrir os custos, gradualmente, ao longo do tempo, mas isso não significa que você possa ser ineficiente, gastar muito dinheiro e passar a ineficiência aos pobres. Deve haver um teto, um limite além do qual não se deve ultrapassar. No nosso caso, prometemos a nós mesmos nunca ultrapassar 20%. Não importa o que for preciso. Mesmo que algo dê errado, o juro fique alto, devemos nos apertar. Temos de ser extra-eficientes para o limite ser 20%. Nós limitamos em 20%, porque cobramos duas taxas, uma é de 8% no empréstimo para moradias e de 20% para os outros empréstimos. Assim, a média ponderada é de 15%. Que é a taxa comercial em Bangladesh. Não devemos argumentar que é preciso mais dinheiro, taxas de serviço mais elevadas, devemos expandir... Se entrarmos nessa discussão, isso não terá fim. Poderemos sempre passar quaisquer custos extras para os ombros dos pobres. E concordamos em nunca fazer isso. Esse é outro limite que nos impomos. Outra organização pode não escolher 20%, pode escolher 25% ou 15%, mas é preciso decidir antes - e manter esse número, melhorar sua eficiência e reduzir os gastos, para que os pobres não paguem por seu mau gerenciamento. É isso.

Walter Barelli: Professor, nós estamos dedicados a resolver aqui a questão do emprego.  E o Banco do Povo trabalha nessa direção. Nós temos outros programas de auto-emprego, de qualificação dos trabalhadores, enfim, o envolvimento da sociedade através das condições municipais de emprego em mais de 300 municípios do estado. Eu gostaria de ver como a sua experiência se reflete no aumento do emprego através do microcrédito.

Muhammad Yunus: Nunca tentamos criar empregos por não temos capacidade em termos nacionais. Criamos alguns empregos dentro da família de empresas do Grameen. Das 22 empresas que criamos, algumas geram mais empregos; outras, menos. Mas nossa ênfase sempre foi no auto-emprego. Porque, se você esperar a criação de um emprego convencional, haverá poucas oportunidades de imediato. As pessoas precisam de algo imediato, não algo a longo prazo. Embora continuemos buscando essas chances, no momento, em vez de esperar ser contratado, contrate a si mesmo, crie seu próprio emprego, monte seu próprio negócio. Essa é a política, e o microcrédito ajuda a criar essa oportunidade, pois é o segredo para criar o auto-emprego. Outro trabalho que fizemos foi com nossos tecelões. Eles fazem belas roupas, mas não há mercado. Bangladesh tem mais de um milhão de famílias de tecelões. Extremamente pobres. Fazem lindas roupas. Mas não têm mercado em Bangladesh. Criamos uma empresa, é uma empresa comercial, que vende essas roupas, tecidas à mão em Bangladesh, na Europa e na América do Norte. Nós a chamamos de Grameen Check, é um tecido xadrez. Agora, temos uma resposta muito boa, o tecido é muito bom. Nos últimos três anos, vendemos o equivalente a US$35 milhões. Que é pouco, em relação à capacidade que temos. É uma situação incrível, eles são artesãos, têm uma tradição centenária em fazer tecidos, mas não têm abrigo ou comida. Quem falar que pobre não sabe fazer nada deve ir a Bangladesh. Têm um grande talento, são extremamente pobres. Tentamos criar essas oportunidades, essa é uma forma. Outra coisa que tentamos é a internet. Expandir o mercado, não só em Bangladesh, expandir para o mundo todo, inúmeras possibilidades. Até mesmo projetar websites é um negócio fantástico para jovens. São muito criativos, passam horas projetando websites de qualidade. O mundo precisaria de um website para cada pessoa. Será como um cartão de visitas: Todos precisarão de um. E alguém terá de projetá-los. E, se você for bom, o mundo todo o procurará. Criar um website é algo simples, mas manter um website é um trabalho duradouro, e um trabalho muito atraente. Depois de criado, é preciso mantê-lo. Todos os anos terá de mudar, acrescentar coisas, atualizar. São coisas atraentes. Muitos outros negócios estão surgindo. Como centros de chamadas para atender telefonemas. Sua empresa fica em São Paulo, mas, quando alguém liga para ela, alguém em Bangladesh atende. Alguém que aprendeu muito bem o português, para responder 10 perguntas. Além das dez perguntas, ele não entende uma palavra. Mas, nessas dez perguntas, ele é um perito. Então, ele responde essas perguntas. E você economiza dinheiro, e ele tem uma boa renda. Essa criação de empregos, internacionalmente, torna-se possível. O fornecimento de serviços de segurança à distância. Basta olhar o monitor. O monitor pode estar em São Paulo ou em Bangladesh. E você monta um sistema com vários monitores em algum lugar do mundo. Tudo isso é possível, e não se trata de empregos convencionais, e sim de um novo conceito de empregos, e isso está surgindo rapidamente e devemos estar atentos. É uma situação em que os dois lados ganham. Ganha quem oferece essas oportunidades, e ganha quem coloca seus serviços à disposição.

Heródoto Barbeiro: Doutor Yunus, muito obrigado por vir.

Muhammad Yunus: Obrigado.

Heródoto Barbeiro: Nós estamos encerrando o Roda Viva de hoje com a presença do nosso convidado, o economista Muhammad Yunus, e a nossa bancada de entrevistadores. Eu gostaria de agradecer a gentileza e a participação de todos aqui. Agradecemos também a sua atenção. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às dez e meia da noite. Tenha, portanto, uma boa noite, uma boa semana, e até segunda-feira que vem. Obrigado!
 

 

 
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