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Paulo Markun: Boa noite. Ele já fez tudo na vida ou quase tudo na vida. Foi carregador de malas, lavador de pratos, fotógrafo lambe-lambe, vendedor de túmulos e anônimo figurante em filmes de faroeste na Espanha e na Itália, até que se transformou em um dos mais importantes cineastas modernos. No centro do Roda Viva esta noite, o roteirista, produtor e diretor Hector Babenco, 52 anos. Ele nasceu na Argentina e tornou-se brasileiro por opção. Vive há quase 30 anos em São Paulo e, nesse período, produziu 8 filmes. O último deles entrou em cartaz no mês passado, no Brasil e na Argentina.
[Trecho do trailer do filme Coração iluminado]: Um homem se apaixona por uma mulher e, 20 anos depois, por uma outra mulher como se fosse a mesma mulher. Quem já viveu um amor sem limites sabe que esse amor é para sempre.
[Depoimento gravado de Babenco]: "Esse filme, para mim, é como uma forma meio tragicômica. Ele é uma ressurreição. A gente reconstruiu uma história, criou um conflito, selecionou personagens, todos eles existiam de alguma forma. Todas as memórias que vieram e que alinhavaram as memórias do filme são verdadeiras. São verdadeiras mas não como elas aconteceram, elas são verdadeiras como eu as lembrei."
[Comentarista - enquanto roda vídeo com imagens de filmes]: Babenco estreou no cinema em 1975, com O rei da noite, um drama ambientado no submundo paulistano dos anos 30 e 40. Depois, vieram Lúcio Flávio , o passageiro da agonia [1997], Pixote, a lei do mais fraco [1980], O beijo da mulher aranha [1984], Ironweed [1987] , Brincando nos campos dos senhor [1990]. O beijo da mulher aranha recebeu 4 indicações ao Oscar. O filme acabou não sendo premiado, mas William Hurt [ator americano, participou de filmes como Inteligência artificial e Filhos do silêncio] levou o Oscar de melhor ator. Pulando da tela para o palco, Babenco também experimentou o teatro, dirigiu a peça Louco de amor [1989], que também entra no terreno de personagens marginais que povoaram seus filmes e que, ele confessa, sempre lhe causaram fascínio. Mas no último filme foi diferente. Decepcionado com suas filmagens nos Estados Unidos e atormentado por um câncer linfático, que o levou a um transplante de medula óssea, Hector Babenco dedicou-se a vasculhar o próprio passado. Coração iluminado é um trabalho mais autobiográfico, um mergulho na memória desse jovem argentino de alma brasileira, ou desse cineasta brasileiro que sonhava com o cinema desde os tempos em que era argentino.
[Depoimento gravado de Babenco]: “Eu não me considero um diretor de cinema argentino, mas me considero um cineasta brasileiro. Eu escolhi o Brasil, certo? Eu escolhi o Brasil para ser a minha pátria, mas eu nasci na Argentina, o que eu posso fazer? Ninguém é perfeito.”
Paulo Markun: Para entrevistar o cineasta "brasileiro" Hector Babenco nós convidamos os jornalistas José Geraldo Couto, repórter e crítico do jornal Folha de S. Paulo; Evaldo Mocarzel, do Carderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo; Lorena Calábria, apresentadora do programa Metrópolis, aqui da TV Cultura; o diretor de cinema Beto Brant; o jornalista Okky de Souza, editor da revista Veja na área de artes e espetáculos; Ivan Isola, coordenador do Programa de Integração Cinema-TV, da TV Cultura; e o escritor João Silvério Trevisan. O Roda Viva, você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Boa noite Babenco.
Hector Babenco: Boa noite.
Paulo Markun: No seu filme Coração iluminado há um momento em que o personagem principal pergunta para um fotógrafo o que se tem que fazer se quiser se tornar um diretor de cinema. E ele responde, se não me engano, que a primeira coisa é saber contar uma história. Qual é a história que você pretende contar daqui para frente? Qual é a próxima história?
Hector Babenco: Se eu soubesse não teria vindo aqui hoje. [Risos]
Paulo Markun: Já estaria fazendo o filme?
Hector Babenco: Não sei, mas estaria viajando, estaria, talvez, mais relaxado e feliz. Eu tive um pai que era um grande contador de histórias. Um pai que foi até um conflito eterno, que eu perdi muito jovem, e a quem eu não soube dar o verdadeiro valor que ele tinha. Mas ele era um grande contador de histórias. Ele era um homem que contava histórias para viver, contava histórias para entreter os filhos. Eu acho que encontrei esse achado de dizer para fazer cinema, fazer uma história que a gente quisesse contar, porque era uma forma de dizer ao meu pai o quanto eu gostei das histórias que ele me contou e que nunca tive coragem de dizer a ele pessoalmente. Por isso esse diálogo está no filme. Muitas vezes os caminhos não são tão profundos, nem tão verdadeiros, nem tão definitivos. Eles, às vezes, obedecem a uma dinâmica interior do desejo do realizador do projeto, que decide inventar uma explicação para o seu desejo.
Paulo Markun: Mesmo que seja uma explicação para algo inexplicável?
Hector Babenco: É, porque o desejo não tem verbalização, quando a gente fala dele está mentindo. O desejo é cego, tem uma dinâmica própria. O desejo é forrado, o desejo vai, é o pulo de trapezista sem rede, quando você começa a explicar o porquê de um desejo, alguma coisa não está funcionando legal.
Paulo Markun: Em uma entrevista que você deu para produção do material da pesquisa, que o Roda Viva selecionou para gente, há uma afirmação que você diz: “Você só põe para fora uma história quando não consegue mais controlá-la dentro de si.” Ou algo nessa direção...
Hector Babenco: Eu sempre tive um movimento muito dramático nas minhas explicações porque eu tenho origem argentina. Por trás da origem argentina está o melodrama e, por trás do melodrama, está o tango e a morte, não é? E uma certa melancolia também, uma certa forma de achar que o drama é mais poderoso que a comédia, coisa que hoje renego totalmente. Não totalmente, mas acho que eu já bati forte demais nessa tecla e que eu estou com muita vontade de mudar a sintonia. Já passou do meu gosto, do meu olho, do meu desejo.
Paulo Markun: O próximo filme, então, pode ser, eventualmente, uma comédia?
Hector Babenco: Digamos que sim, mas não com muita certeza. Mas, respondendo à sua pergunta, quase sempre os filmes obedecem uma vontade, um ato volitivo, uma vontade muito forte, muito orgânica, muito visceral, de você querer contar alguma coisa. Pois, veja bem, a gente vive no Brasil uma situação de grande privilégio e de grande tortura. Como nós não temos uma indústria cinematográfica, ainda podemos tentar canalizar para um projeto nosso de cinema, podemos reinventar, passar a limpo, coisas que queremos dizer no trabalho e transformar isso num produto, fazer ele acontecer como filme. Já em uma indústria muito mais estruturada, você tem muito mais dificuldade de poder canalizar o desejo interior, uma coisa mais íntima, enfim...
Paulo Markun: A nossa miséria seria, em algum sentido, um processo de liberdade?
Hector Babenco: Ela é benéfica, de certa forma, ela é benéfica. Eu sempre digo, apesar de ser frontalmente contra qualquer tipo de opressão, ditadura, autoridade, sou um anarquista desde garoto. Jamais lutei, nem na esquerda e nem na direita, mas o meu trabalho tem uma transparência social, uma aproximação muito humana. Alguma coisa nos meus filmes está dentro de quem eu sou, o que me fez muitas vezes dizer e compreender que nos anos de ditadura se fizeram grandes filmes no Brasil.
Beto Brant: Babenco, por favor, não se entregue à comédia tão facilmente. [Risos]
Hector Babenco: Não, de jeito nenhum, não vai ser tão fácil.
João Silvério Trevisan: Babenco, eu gostei muito de você ter mencionado a questão do paradoxo entre a comédia e o drama, o seu ser argentino dramático, porque você produziu o Coração iluminado em um período complicadíssimo da sua vida, com a doença e tal. Eu, imediatamente, me reportei ao Caro diário, do Nanni Moretti [cineasta italiano, lançou Caro diário, um filme autobiográfico, em 1993], que é uma abordagem totalmente diferente. Você preferiu ir para o passado. Eu gostaria de perguntar por que, especificamente, o resgate desse momento, de quando você se viu diante da morte? Você resgata aquele preciso momento que é apresentado no Coração iluminado, por que não outro?
Hector Babenco: Silvério, meu querido amigo, se eu soubesse eu poderia ter optado por isso ou por outra coisa. Naquele momento me pareceu que era um ato de emergência. Naquele momento, senti uma necessidade, assim, foi quase impossível aceitar a idéia de que outra coisa pudesse ocupar o lugar daquela memória que estava me gritando para que eu não a esquecesse. Então, eu escolhi alguns picos, alguns icebergs. Eu sempre brinco com essas palavras: algumas polaróides que não queriam ir embora. E consegui juntá-las e fazer um mini mural, com a ajuda do Ricardo Piglia [escritor argentino], que colocou uma espécie de ordem no material proposto por mim, de todo o trabalho ao longo de vários anos. Eu achei que havia um ser argentino dentro de mim, que tinha ficado tremendamente nanico por ter vindo ao Brasil. Eu já disse várias vezes. Eu soterrei demais aquela coisa minha Argentina. De alguma maneira, essa minha visão não colegial, em nenhum departamento ideológico, nenhum departamento filosófico, se deve muito à educação que eu tive fora de casa. Ou seja, eu fugi de uma educação que não me interessava, do meu seio familiar, e fui reencontrar um outro grupo que me abriu as portas das utopias, das percepções, da maluquice, da capacidade de sonhar, a pouca importância do universo do real, do material, do prático, do sucesso, enfim. E eram anos que precederam os movimentos hippies, no final da década de 60. Eu sou de 46, eu vivenciei essas coisas com 16, 17 anos, nos anos 62, 63. Então, houve essa experiência amorosa, que na Argentina tem uma educação sexual, uma educação sentimental masculina e feminina, muito diferenciada do Brasil. Fomos muito reprimidos, há um certo cinismo nas relações, que são motivadas pelo medo, pelas convenções sociais, pelas repressões, pelo medo de sermos punidos pelos nossos pais, pela sociedade. Então, de alguma forma, eu deságuo em uma relação amorosa extremamente maravilhosa, poética, doida, com uma mulher divina, que era realmente a rainha da cidade, a mulher que muitos amigos já tinham tido algum caso. Era um ser livre, total, no meio de uma gaiola, que era aquela cidade pequena. E ela me leva para um final quase que tétrico. A gente praticamente fez um exercício de suicídio não anunciado, o que também mostra o nível de comprometimento que havia com a idéia romântica de morrermos existencialmente felizes, como ato de contestação à repressão da sociedade, não é? Então, eu quis homenagear isso. Agora, não me interessava fazer um trabalho em que ficasse no: eu me lembro que as coisas foram assim e assim as quero contar. Eu achava que aquilo era pequeno, achava que aquilo já tinha sido feito. Há representações na indústria cinematográfica, ao longo das últimas décadas, com esse tipo de discurso, com muito bom resultado. Tem o Nós que nos amávamos tanto [filme de 1974, dirigido por Ettore Scola], que foi um clássico da década de 70. Então, me interessava levar o personagem ao tempo presente, mas não me interessava continuar com o realismo da primeira parte, que para mim era uma espécie de universo encantado. Na segunda parte, eu queria optar por um discurso mais radical, uma coisa mais moderna. Eu queria sair do acadêmico, queria sair do figurativo e cair no conceitual, ponto. Então, inventei um personagem imaginário, que não existe, porque eu tinha que criar um elemento de ruptura para não continuar com o naturalismo da história, senão virava uma novela de televisão. Está certo?
Okky de Souza: Por que você resolveu levar a público essa sua prestação de contas com o passado?
Hector Babenco: Porque era o único que eu tinha, Okky.
Okky de Souza: Eu sei, mas, em geral, essas pessoas fazem de forma particular, vão reencontrar as pessoas, vão reencontrar o passado e você deixou isso em um filme. É por que você é um cineasta?
Hector Babenco: Pode ser, o Beto está me ajudando um pouco.
Beto Brant: Babenco, desculpa, mas é que você acabou fazendo um filme, apesar de você anunciar passionalmente a sua cidadania brasileira, você acaba fazendo um filme mais subjetivo e um filme argentino. Mas, eu queria dizer, retomar, porque você assumiu tão apaixonadamente seu lado brasileiro no filme Lúcio Flávio [Lúcio Flávio, o passageiro da agonia] que para mim é o melhor policial brasileiro de todos os tempos. É um filme que eu gosto muito. Eu queria saber exatamente o seu envolvimento com esse tema. Naquele momento, aquilo que te fez tão brasileiro, se envolver com temas como o do Lúcio Flávio, Pixote [Pixote- a lei do mais fraco]...
Hector Babenco: Veja bem, sou alguém que se entrega de uma forma total aos tópicos do cotidiano brasileiro, pelo menos para os meus olhos eram coisas aviltantes, essas matanças que haviam, indignamente anunciadas com placas e pedaços de jornal e que eram atribuídas a uma instituição meio metafórica chamada Esquadrão da Morte, que não tinha personagem, não tinha autor, não tinha mentor, não tinha financiador, como se fosse uma espécie de ato de Deus, que tem o direito de eliminar a quem não tem importância. E eu fui me entregando muito visceralmente a tudo isso. É óbvio que em um momento muito radical, em um momento em que minha vida estava no limite, que eu sinto um minguar de forças, que eu quero resgatar o mínimo de energia, eu fui me lembrar daquilo que eu tinha deixado, esquecido atrás. Porque eu me entreguei muito forte ao Brasil, eu me entreguei de uma forma total, como se não houvesse outra possibilidade. O Brasil não foi um exílio para mim. O exílio para mim foi a Argentina.
José Geraldo Couto: Com relação a essa sua relação com a Argentina e com o Brasil, você disse que voltar para Argentina para fazer esse filme, o seu primeiro filme argentino, primeiro realizado lá, fez você se convencer de que fez muito bem em sair da Argentina, porque você, de fato, reafirmou a sua decisão de não voltar mais para Argentina. Eu queria que você falasse desse aspecto. Por que você chegou a esse desacordo com o seu país de origem? Quer dizer, o que tem na Argentina de tão odioso, de tão difícil?
Hector Babenco: Não, quem sou eu para ficar dizendo o quê na Argentina tem de inaceitável ou não. Eu acho isso muito delicado. A gente não deve generalizar absolutamente em nada, nunca. São movimento sísmicos. O ser humano é uma pessoa à deriva. Assim que eu me concebi, quando era muito jovem, eu achava que a gente não era obrigado necessariamente a permanecer no lugar aonde a gente tinha sido gerado. Então, isso que aparentemente era um sentenciamento romântico de um menino de 15, 16 anos, que eu acabei exercendo, teve um preço, teve um custo, gerou um comportamento em mim, gerou uma forma de ser, de sentir e de pensar complexa, na medida em que você é uma pessoa meio apátrida, uma pessoa muito sem rumo. Há um momento em que você precisa de raízes. São as raízes que te dão força para crescer de alguma forma. Eu fui plantar as minhas raízes no Brasil, depois de uma longa peregrinação. Então, eu não lembrava mais o que eu deixei na Argentina. Eu posso fechar os olhos agora e me lembrar coisas que eu sei porque deixei a Argentina, mas na época eu não sabia. Então, eu estaria mentindo, dizendo que naquela época eu deixei a Argentina porque tinha medo disso ou daquilo, porque só hoje eu estou compreendendo isso. Eu tinha medo do anti-semitismo argentino, tinha medo do exército argentino, tinha medo da polícia argentina, por ser um país militarizado, um país que julga tudo em função de hierarquias de trabalho. Não há humor na Argentina, não há preto na Argentina. Eu, quando cheguei aqui, fiquei encantado pela cor preta, pela mulher preta, você entende? Eu fiquei encantado com um mundo aonde as pessoas não usavam paletó. Havia sol, havia verde. A Argentina é uma coisa muito cinza, muito melancólica. É quase catastrófica a extravasão de qualquer motivação de alegria na Argentina. Não sei, aconteceu, eu tinha 17 anos quando estive no Brasil. Também me desencantei muito com meus pares no Brasil. Os jovens brasileiros, com os quais eu me relacionava, todos eles eram de média burguesia, ou burguesia alta, todos de esquerda, com os seus Simca Chambord [automóvel de luxo fabricado no Brasil na década de 60], com os seus Aero Willis [outra marca de automóvel da mesma época]. Eu venho de uma formação muito mais austera, muito mais severa do ponto de vista de militância, em qualquer área que a gente quisesse escolher. Tanto assim que não fiquei no Brasil, eu fui embora. Só voltei ao Brasil muitos anos mais tarde. E aterrizo no Brasil porque não podia entrar na Argentina, porque eu era desertor do exército. Então, uma série de circunstâncias não organizadas, não planejadas, que me fizeram escolher o Brasil como uma terra da qual eu trazia vagas e remotas lembranças. Eu me lembro que eu lia muito Raul Bopp [1898-1984], Jorge de Lima [1895-1953], era o meu mundo. O meu mundo era poesia, o meu mundo era música. Eu me lembro ter ouvido pela primeira vez o movimento tropicalista e encontrar a manifestação do Brasil, eu amava aquilo, independente do que ideologicamente aquilo representava naquele momento. Enfim, eu tive uma viagem muito pessoal no Brasil. Talvez até por eu ter me entregado tanto ao Brasil que eu decidi que eu estava em falta com o meu pedaço argentino, porque foi isso que eu quis recuperar no momento em que eu quis contar a história.
Paulo Markun: A Argentina aceitou bem isso?
Hector Babenco: Não.
Paulo Markun: Essa sua história...
Hector Babenco: Eu diria que a Argentina está passando por um momento de formação muito complicado. A Argentina está perdendo a sua identidade muito velozmente, coisa que o Brasil ameaçou perder e, de repente, há alguns bolsões de regionalismo no Brasil que impedem que o Brasil se desfigure totalmente. A Argentina está virando, está pasteurizando muito rápido, realmente.
Lorena Calábria: Como foi com as pessoas que foram retratadas?
Hector Babenco: Com eles foi uma farra.
Lorena Calábria: Você reencontrou esses personagens?
Hector Babenco: Reencontrei algumas delas. Eu marquei às 10 horas da manhã com um deles, o único que eu tinha relação, alguma relação ao longo dos anos. Aquele que tinha a banca de jornais e queria ser escritor. Ele me disse, inclusive, uma frase muito linda que eu acabei colocando no filme, mas depois cortei, porque achava que era pouco compreensível para um público que não fosse argentino. Quando perguntei a ele: por que você não acabou o seu livro? Ele disse: "Eu não acabei ele porque tinha medo de morrer". Como se acabar o livro fosse sinônimo de morrer. Eu acabei cortando porque achei que era um pouco complicado demais. Mas ele trouxe mais 3 da patota. Ele trouxe aquele grupinho do cassino, que hoje é um médico psiquiatra famoso, que faz tratamentos através das reencarnações do paciente das vidas anteriores...
Paulo Markun: Quer dizer que eles ficam mais ou menos na mesma tribo?
Hector Babenco: Todos ficaram na marginal, todos são perdedores absolutos. Eles não serão jamais entrevistados, nem pela Folha, nem pelo O Estado, Veja, jamais terão um automóvel, não têm idéia de nada. Eu o levei em um restaurante, tirando uma pizzaria ele nunca tinha ido em um restaurante, não sabia nem ler o menu, não sabia escolher, e eu acabei escolhendo para todo mundo, peixe.
Beto Brant: E a mulher? Você reencontrou a mulher?
Hector Babenco: A mulher é uma tragédia. Sim, a reencontrei bem antes. Ela se chama Teresa. Ela trabalha hoje em dia de governanta de um homem muito sofisticado, muito rico, argentino, que tem uma fundação de arte. E ela é uma espécie de governanta da vida pessoal dele. Cuida do cabeleireiro que chega às 10 da manhã, um gay assim, muito fosforescente na sociedade argentina.
Evaldo Mocarzel: Mas como é que foi esse encontro com ela?
Hector Babenco: Ela me deixou um recado no Mont Real [hotel], onde estava hospedado, e eu marquei um encontro a noite com ela, em uma cafeteria. Ela veio com a irmã e com uma filha. A filha, realmente, queria saber que época eu tinha tido um namoro com a mãe dela porque ela estaria preocupada em saber quem era o pai. A gente teve uma conversa muito tranqüila, disse que para ela interessava saber quem era o pai e a gente viu, pelas datas, que eu realmente não poderia ter sido. Eu tinha saído quase um ano antes da Argentina. E, então, saí, fui jantar com a Teresa. Jantamos e achamos engraçado, rimos muito. Eu pensava: que coisa mais absurda, o que ela estará pensando de mim. E ela imaginando o que eu estaria pensando dela. Ela é uma senhora, hoje em dia, e eu ainda me vejo como um menino, apesar de que eu não sou mais um menino. E, de repente, ela pára o carro e me diz: "Hector, você se lembra como a gente era maluco?". E eu disse: é claro, a gente era super maluco, não é, Tereza. "Você se lembra que a gente transava no carro do seu pai que ficava na garagem daquela casinha?. E eu falei: claro. Mas meu pai não tinha um carro. Eu morava em apartamento, nunca tive casinha. Ela me confundiu com outro cara! E eu acabei fazendo um filme em homenagem a essa mulher. A mulher me confundiu com outro cara, 30 anos atrás [risos]. Então, veja você como o outro tem uma existência própria. A gente custa a acreditar que o outro não divida essa mesma emoção, essa mesma paixão, o mesmo interesse que a gente tem pela outra pessoa. Foi uma demonstração muito forte. Foi muito bonito.
Evaldo Mocarzel: Deixe eu perguntar uma coisa, só complementando, o Coração iluminado é o seu filme mais pessoal, não é?
Hector Babenco: Não, sei não.
Evaldo Mocarzel: Eu conheço todos os filmes e acho que seja o seu filme mais pessoal. É um filme, assim, radicalmente autoral, que você fez em um momento de extrema necessidade de sobrevivência, em todos os sentidos. Eu acho até que é um filme que tem uma espécie de libelo contra essa pasteurização naturalista que está o cinema hoje. Qual o espaço ao cinema de autor hoje, nessa indústria cinematográfica globalizada? O espaço para o cinema de autor.
Hector Babenco: Beto, responde esta por mim. Eu passo a palavra.
Evaldo Mocarzel: Você perdeu patrocinadores porque mudou?
Hector Babenco: Não são patrocinadores. A palavra patrocinador é um franco modelo cultural brasileiro, de produção cultural brasileira. Os estrangeiros são produtores. A figura do produtor é a figura que às vezes engloba a figura do financiador e às vezes não. Não necessariamente...
Evaldo Mocarzel: Mas você perdeu uma grana quando mudou a língua do inglês para o espanhol.
Hector Babenco: Não, é claro. Eu teria vendido para o mundo inteiro. Mas até aí são regras do jogo. Eu não posso chorar porque eu prometi um filme e quando determinando meio tem um poder de marketing, de venda, faz com que a pessoa dê dinheiro, e o faz garantindo a participação de alguns atores, porque ele repassa o filme para os territórios em que ele venderá os filmes. No momento que eu abri mão dos ingredientes que ele estava vendendo, ele delicadamente disse: "Babenco, adoramos o filme, adoramos o seu projeto, mas sem A, B, C, D, e E, que eram as pessoas que nós vendemos com o filme, eu quero lhe dizer que faça o senhor boa viagem". E eu fiquei a ver navios.
Evaldo Mocarzel: E Willem Dafoe [ator americano], saíram nesse...
Hector Babenco: Saíram os que estavam há dois anos na espera para fazer o filme. Por sorte do filme. Eu não me arrependo até hoje por ter decidido fazer o filme em língua original, porque foi um ato que vejo como de uma certa coragem. Muitas vezes a coragem se mistura com a imprudência, se mistura com vaidade. É complicado ficar dando definições. Não é legal.
Evaldo Mocarzel: E o cinema de autor, hoje? Você acha possível, você acha que...
Hector Babenco: Eu acho que cinema de autor é todo filme.
Evaldo Mocarzel: ...que de repente essa é uma linguagem tão visceral que tem que se adaptar às normas do mercado para poder contar uma história bem contada, para ter o mínimo de público, para o projeto se bancar? Ou você acha que o artista deve lutar por essa visceralidade, essa coisa genuína, que você tentou e colocou na tela do cinema?
Hector Babenco: Olha, eu tenho muito medo da palavra artista. Eu tenho muito medo da palavra autor. Eu tenho muito medo da palavra visceralidade. Eu acho que todo filme tem um autor. Até o filme mais corrupto, mais mercenário, mais feito exclusivamente para o oportunismo do momento, é um filme de autor. O autor é um oportunista. Então, eu acho que, partindo desse princípio, todos nós somos autores. Os que fazem filmes de 300 trilhões de rubias e os que fazem de 12 mil reais. Todos somos autores. Como todos os escritores que publicam livros são escritores. Você não pode dizer que um autor é mais autor do que outro. Você não pode dizer que, sei lá, Paulo Coelho seja menos escritor que do que o Silvério... Há gosto para tudo.
Ivan Isola: Hector, não haveria um gênero? Hoje, não seria o cinema autoral um gênero... [Mocarzel fala ao mesmo tempo e Babenco não responde para Ivan Isola]
Hector Babenco: É, aí que está. Eu não sou trouxa. Mas você não pode pôr um cartaz dizendo: eu sou autor. Porque é pretensioso e a gente tem que ser humilde...
Ivan Isola: Sim, mas o mercado trata o cinema autoral como um gênero, hoje, não mais como alguma coisa que pertença à visceralidade.
Hector Babenco: Mas eu não posso estar em todos os estágios da vida de um desejo. Eu estou em alguns estágios da vida de um sonho e, em outros, o sonho tem que andar sozinho. Ele tem que encontrar o seu grau de adaptabilidade na realidade na qual vivemos. A realidade que nós vivemos é catastrófica. Nunca foi mais desastrosa. Nunca foi mais infeliz. Nunca foi tão pouco generosa e criativa com as manifestações. O que a gente vive hoje é um isolamento, assim, uma invasão de idiotices generalizadas. As pessoas vão hoje ao cinema, praticamente, para comer pipoca. Antigamente, ia-se ao cinema e se comia pipoca. Hoje se diz: já que vamos comer pipoca vamos ver um filme. Então, realmente está complicado.
Paulo Markun: A pipoca tem melhorado muito!
Hector Babenco: A pipoca tem melhorado muito, pelo que comem... Eu não como, detesto fazer barulho no cinema, sou uma pessoa que ainda respeita a tranqüilidade do outro.
Evaldo Mocarzel: Você rejeitou vários roteiros. Hollywood te mandou vários roteiros antes de Coração iluminado que você não quis dirigir...
Hector Babenco: Sabe por quê? Porque eu não seria a pessoa certa para fazer esses roteiros. Eu estaria mentido para eles e mentindo para mim mesmo. Eu não seria da competência que eles precisavam para fazer esses projetos. Eu sei das minhas limitações. E, ao dizer isso aos produtores internacionais, eles tomam isso como um ato de falsa modéstia, como um ato de vaidade, como sendo um cara presunçoso. No fundo, estou defendendo a proposta deles, porque eu não saberia fazer decentemente o filme que me propuseram. Por exemplo, então, eu dizer: eu não sou a melhor opção para vocês para fazer esse filme que vocês querem fazer. Ao invés de isso ser visto como um ato de sinceridade, é visto como um ato de arrogância. Este é um mundo muito maluco, cara. Está complicado saber qual a diferença entre entretenimento e cinema. Houve um dia - eu falava isso em um cafezinho com os amigos antes de entrarmos aqui - que se falava que o cinema era uma sétima arte. Eu me lembro dessa frase. Que sétima arte, hoje? Tem mais dignidade um comercial de televisão de 15 segundos, eu comentava há pouco, do que o cinema. De arte não ficou mais nada. Então, é complicado saber que espaço a gente ocupa. Se a gente quer ter um pensamento mercadológico, para saber o que a gente faz, para quem, como e porquê, a gente dá um tiro na cabeça. Quem é o nosso público? Quem é o nosso mercado? Qual é o discurso que esse mercado quer? Qual é o filme que esse mercado quer? Eu decidi, em um momento muito caprichoso da minha vida, que eu me permiti fazer um filme que nem mamãe me deixaria fazer do jeito que eu fiz, porque eu fiz do jeito que eu quis. Cantei e bordei. Assumo toda a responsabilidade do Coração iluminado. Eu fiz um filme tentando recuperar, assim como quis recuperar alguns personagens da minha adolescência, o prazer de ir ao cinema quando eu tinha 16, 17 anos. Que era de você estabelecer uma parceria com o sonho do outro, de você viajar no encantamento do outro. Eu me lembro quando vi o Rocco e seus irmãos [clássico do cineasta italiano Luchino Visconti, de 1960] é inesquecível, cara. Quando vi O sétimo selo [clássico de 1957], de Bergman [cineasta sueco Ingmar Bergman], e quando eu vi Pillow Talk [de 1959, dirigido por Michael Gordon], com Doris Day e Rock Hudson. Foram inesquecíveis.
João Silvério Trevisan: Tem uma cena do Sétimo selo muito clara na...
Hector Babenco: Pois é. Quando eu vi, sei lá... E eu queria pegar quitutes intelectuais. Estou indo ao cinema comercial, quando vi Vera Cruz, quando vi Trapézio [de 1959, dirigido por Carol Reed], com Tony Curtis. Eu ia de noite com o papel higiênico aqui [mostra os pulsos], imitando a bandagem do trapezista, e ficava a noite inteira soltando o trapézio. Soltava, voltava, pegava, e ia embora com o trapézio [mostra com os braços]. Então, eu via que passava com o cavalo e o mendigo que está no filme. Então, havia as 2 referências: havia o sonho que o Burt Lancaster me dava, namorando com a Gina Lollobrigida [mencionando os personagens do filme Trapézio], com aquela roupa branca maravilhosa. E havia o mendigo, que passava na porta em um cavalo e que a gente ia nas frestinhas olhar, nunca com meu pai, mas com o meu irmão, na sala de casa, que dava para a rua. Então, sei lá. Eu quis fazer um filme onde a gente ainda fosse co-participante, co-viajante, co-piloto de uma experiência, em que se descobre com uma certa perplexidade como trazer um mundo de pessoas e de situações que são alheios ao cotidiano. Então, eu quis tentar recuperar isso com uma história minha. Sei lá. Espero que não seja punido com isso mais do que estou sendo.
Paulo Markun: Babenco, nós vamos fazer um rápido intervalo. O Roda Viva, com Hector Babenco, volta daqui a instantes, até já.
[intervalo]
Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o cineasta Hector Babenco. Você pode participar do programa fazendo perguntas pelo telefone ou pela internet. E a pergunta de Luciano Guimarães, universitário de São Vicente, no litoral de São Paulo, que é a seguinte: "Você e o Walter Salles fazem o cinema humanista", segundo ele. "Até que ponto o fato de os brasileiros não estarem interessados apenas em entretenimento mudou a visão do nosso cinema? O que você acha do filme Central do Brasil?"
Hector Babenco: Bom, é uma pergunta muito ampla, muito comprida, muito extensa. Eu acho, primeiro, que não é o Walter Salles e eu que fazemos o cinema humanista no Brasil. Acho que tem muita gente que vem fazendo isso, até antes do que a gente. Eu acho que a gente... A gente quem? Cara-pálida? Sei lá, é um pouco confusa a pergunta e um pouco confusa a minha resposta. Eu acho que humanista também é um pouco abrangente, é um pouco... Eu acho que é bom que alguém se interesse em saber sobre cinema brasileiro. Eu acho que é bom a gente saber se ele viu o filme em São Vicente, no litoral de São Paulo. Mas é pouco o cinema brasileiro que provavelmente passa por lá. Eu acho que Central do Brasil é um belo filme, um filme tenso, um filme digno, um filme bem estruturado e que foi feito com o pensamento certo para o mercado correto. Ele está seguindo um caminho praticamente prognosticado pelo próprio Waltinho [Warter Salles] e também é um grande ato de conquista, de autoconfiança, de um realizador, o seu terceiro filme ter sido concluído com a forma que ele quis fazer.
Ivan Isola: Eu notei, no fim do primeiro bloco, uma certa amargura sua diante da banalização, da vulgarização, da quantidade de produtos audiovisuais que nos lotam os olhos e os ouvidos e não deixam nem o recesso. E me lembrei que o pai dos irmãos Lumière [os franceses Auguste e Louis Lumière, considerados pais do cinema por terem inventado o cinematógrafo, máquina de fimar e projetar] disse que aquela invenção não tinha futuro. Qual é o futuro que você vê para o cinema?
Hector Babenco: Eu acho que o cinema... O que é o cinema? É um ritual. É uma manifestação grupal dividida simultaneamente com outras pessoas em um espaço público. É história, aventura, acontecimento. Eu acho que, à medida em que a sociedade vai se tribalizando de uma forma mais chata, pouco criativa, com uma relação cada vez maior com a imagem eletrônica, onde temos o mundo praticamente mapeado, os locais onde a gente poderia, deveria, gostaria de ir, através da televisão, com cada vez menos possibilidades, a não ser em uma velhice, com 60, 70 anos, poderíamos viajar como turista... Eu acho que o cinema ainda representa a grande opção. Eu estava lendo outro dia que as vendas e aluguéis de vídeo-cassetes tem decrescido muito nos últimos 2 anos e tem voltado a haver um consumo para o cinema. A pergunta que me deveriam fazer é: que tipo de cinema está querendo ser consumido, está sendo consumido hoje? E quais são os mecanismos de oferta que há para esse público? E é aí que a porca torce o rabo. Aí que a gente começa a perceber que há uma quantidade maior de público que vai ao cinema ver os mesmos filmes. É como um país que não tem classe média, você passa a ter exclusivamente uma tropa de elite, em que todo mundo se concentra em ver grandes filmes. Aqueles filmes que faziam o recheio do mercado, em que cada um iria encontrar o seu trivial, simples, aquilo que mais interessava a cada um de nós, está começando a desaparecer. Ou vê na televisão ou não vê. Ou vê como um produto não diferenciado. Acho que aí a mídia tem tido uma participação razoável e inteligente nos últimos anos, não por amor ao cinema, mas por medo de perder o bonde do consumo, de tentar revitalizar, revigorizar, redescobrir, dar valor a quase tudo, quase que sem critérios do que é mais ou menos importante. E eu acho que isso tem alimentado a curiosidade das pessoas para saberem dos filmes, mas não necessariamente para consumi-los. E eu não sei. Hoje, temos custos de produção muito terríveis, iguais aos do primeiro mundo, embora em um país de quarto mundo, com poder aquisitivo... Se o cinema custasse 2 reais, teria 10 vezes mais espectadores. Com um ingresso a 6, 7, 8, 9, 10 reais, é óbvio que temos um decréscimo de público muito grande. Eu acredito fundamentalmente no vigor do cinema como meio de expressão. Eu acho que faz parte da tradição que acompanha o homem desde os seus primórdios, pela necessidade oral de querer deixar um legado falado, de poder dizer alguma coisa. É quase dentro de uma leitura psicanalítica. É um pouco como lutar contra a morte: você passa a existir porque você se individualiza através da história que você conta para alguém. Essa necessidade de contar uma história para alguém funciona no nível cotidiano. Todos nós temos uma história para contar para alguém, ou gostaríamos de ser lembrados por uma história, porque é uma coisa que já faz parte da condição humana. E utilizar o instrumental chamado máquinas e luzes, que foram fazer com um vídeo, uma câmera, para de alguma forma contar uma história. Eu acho que no fundo a idéia romântica, meio infantilóide, que tínhamos, que o cinema poderia mudar o mundo, ou fazer uma revolução, ou mudar os hábitos de todos, era uma balela. Mas, sim, é verdade que o cinema é a única arma capaz de manter o pensamento e a fantasia do ser humano viva e em estado de alerta.
Lorena Calábria: Babenco, e teatro? Agora eu queria falar de teatro, porque você está falando tanto do cinema, da mídia e o teatro sobrevive meio à parte da mídia. Ele não precisa necessariamente de uma divulgação, de uma indústria. Não precisa dessa indústria que o cinema precisa para sobreviver. Você, na sua juventude, esteve muito envolvido com o cinema e com o teatro. Você participava de um grupo, meio que assistindo, não sei direito. Depois, você teve uma experiência de dirigir um texto do Sam Shepard [ator e dramaturgo americano] e nunca mais voltou ao teatro. Quem representa o teatro na sua vida, na sua carreira?
Hector Babenco: O teatro, veja bem, eu comecei fazendo teatro. Descobri a minha vocação com 14 anos em um grupinho de escola que veio um senhor de teatro dirigir. Eu encontrei um mundo encantado, fiz uma peça de O'neill [Eugene O'neill, dramaturco americano, (1888-1953)], fizemos, enfim, Deserto sobre os ombros, aí conheci Tennessee Williams [pseudônimo de Thomas Lanir Williams, dramaturgo americano, (1911-1983)], fui conhecer ... Então, comecei a desabrochar brutalmente pelo teatro. O cinema foi uma opção tardia, vamos dizer, porque eu via muito cinema. Agora, o teatro é uma manifestação em estado puro. O cinema é uma arte industrializada, é uma arte que sofre diversos processos de manipulação até chegar ao seu consumo. O teatro é uma coisa feita viva, toda noite, de uma forma diferente. Talvez, um método de trabalho com um grupo de pessoas que inventam maneiras de contar uma história. Depois de 10 noites seguidas, você verá 10 histórias diferentes, apesar de elas poderem ser muito parecidas, porque é a mesma tecla. Então, o teatro tem a mentalidade quase do século XVIII. Sei lá, é uma coisa antiga que tem tido manifestações extremamente de vanguarda, muito modernas e muito interessantes, porque se apropriam do instrumental mecânico, das artes visuais, do conceitual, de representação da palavra, através do verbo, através do texto, da manifestação corporal, é uma coisa muito rica o teatro. O teatro vai dizer a coisa do corpo, da voz, enfim. Vejam por exemplo, Cacilda [Cacilda Becker, atriz, ícone do teatro nacional (1921-1969)], o Sérgio [Cardoso, ator, (1925-1982)]. É uma lindeza total, aquele último ato, completamente desorganizado, totalmente incoerente. É a conclusão da caretice da primeira parte, eu viajei, realmente, eu viajei. Eu não saberia fazer uma coisa dessas. Eu não saberia trabalhar com alguma coisa, Beto, que a gente não corte [risos]. Não dá! Não dá para você interromper, cortar e colar com uma fita crepe com outra situação.
Evaldo Mocarzel: Mas, por exemplo, a direção de ator, você tem, enfim, um método que me parece ser bastante sofisticado de direção de ator. Marília Pêra [atriz], em O rei da noite [1975], Pixote, que você fazia uns laboratórios com os meninos. A Meryl Streep [atriz americana], ouvi dizer que, depois que ela morre em Ironweed, ela ficou 40 minutos estatelada no chão. Ela embarcou tanto no personagem que você achou que ela tinha morrido. William Hurt te considerava uma espécie de vampiro, depois do O beijo da mulher aranha. Como é que você dirigiu a Maria Mendonça [Maria Luisa Mendonça, protagonista de Coração iluminado] nesse filme? Dizem que você só fala na orelha do ator, como é que é? Você aprendeu no teatro esse método de dirigir ator? Como é que você dirigiu a Maria Mendonça? O que você falou para ela? Como é que você dirigiu? Você deu um grito? Você fala baixinho, no pé do ouvido?
Hector Babenco: Olha, eu sempre acho que escolher um ator é um processo muito misterioso de sedução. Se vou escolher ele para fazer um papel, ele para fazer outro, ela para fazer outro. Eu posso elaborar 300 discursos para acionar esse perfil, cabelo, luz, teste, tom da voz, o perfil... Há uma coisa que não dá para descrever o que é. Porque o ator, apesar de ele achar que ele está representando para a câmera, não é verdade. Ele está representando para o diretor. Há um processo de sedução total, de submissão, na qual o ator quer fazer uma demonstração para o diretor e o diretor sabe que o ator está fazendo isso para ele. A câmera é um mero objeto terciário, que é o responsável pela captação dessa coisa, mas há um fluir secreto aí, que funciona, pelo menos no meu caso, eu aposto nisso. Então, as minhas escolhas são quase sempre nesse sentido e meu grande método de trabalho é deixar o ator fazer o que ele gostaria de fazer, depois eu recorto. Eu jamais levo um ator para minha visão de personagem por uma razão muito simples: eu não tenho. Eu não sei o que a pessoa tem que fazer, eu não sou uma pessoa maquiavélica, que tem a capacidade de construir o seu desejo. Eu funciono na base do instinto. A minha seqüência, a minha filmagem, ela é improvisada desde às 7 da manhã. Eu chego às 7 da manhã e em 10 minutos eu decido o que eu vou fazer.
Paulo Markun: Você chegou a reclamar de alguns atores americanos pelo excessivo profissionalismo. Porque o cara dizia assim: "O que você quer que eu faça?".
Hector Babenco: Aí não dá. Quando o cara diz: o que eu faço? Você percebe que fez uma escolha errada.
Lorena Calábria: Com quem, Babenco? Você pode dizer o nome?
Hector Babenco: Não tive problemas. Ele é inexistente, ele é tão inexpressivo, quanto a Scania-Vabis [montadora de caminhões], a do caminhão [risos]. É até maldade falar mal dele. [entrevistadores insistem] Não, são aqueles atores que chegam e dizem: bom, onde é que eu sento? Não sei, você que está fazendo o personagem, escolhe você a sua cadeira. Se eu achar que aí não dá, eu levo para outra cadeira. Mas deixa ver o que vem com ele. Os atores se preparam, fazem laboratório, lêem livros, não dormem.. Ué, vamos dar uma vazão para ele. Deixa ele brincar, depois a gente fala: faz desse outro jeito. Você vai manipulando um pouquinho, mas é bom trabalhar com o impulso do ator. É um ser vivo, é uma pessoa que de alguma forma terá sua imagem impressa quimicamente na película.
Lorena Calábria: Mas no caso a Maria Luiza, você acreditou mais na intuição da Xuxa, foi uma indicação da Xuxa Lopes [atriz, também atuou em Coração iluminado. Na época era mulher de Babenco]?
Hector Babenco: Ela [Xuxa Lopes] tinha feito um workshop com o Yan Michalski [diretor e crítico teatral (1932-1990), um dos fundadores da Casa das Artes de Laranjeiras de formação de atores], no Rio de Janeiro, e voltou me dizendo: "Olha, não sei quem você está pensando para fazer o personagem, mas tem uma menina lá que fez um trabalho fantástico. Acho que ela tem um tipo fortíssimo." Até metade da filmagem me chegavam informações, pelos maquiadores, costureiros, que a Maria Luiza perguntava por que eu a escolhi. Mas ela realmente chegou... Mas o talento é dela, seria sacanagem eu atribuir a tutelagem do papel dela. Ela veio com uma dimensão de limite tão tênue entre a loucura e a ironia, entre a sexualidade e a sacanagem, e ela tem uma certa leitura dos momentos mais psicóticos do personagem, onde ela ri da própria atitude. Ela tirou, eu diria, um lado "borrão", argentino meu, que havia no roteiro e ao qual ela deu vida, que eu não conseguiria nunca imaginar. É muito grande e é muito dela.
Evaldo Mocarzel: Como é que você enxergou, como você orientou, para ela estar tão tomada daquela maneira?
Hector Babenco: Bom, primeiro ela é uma atriz. Ela tem um poder de concentração muito interessante. E aqui sou obrigado a fazer um pouco de manipulação de informação. Exemplo, é quase menos difícil fazer um personagem com um instrumental tão rico como o que ela tinha no roteiro, como é complicado fazer um personagem como o que a Xuxa [Lopes] faz, que não sabe de onde vem, para onde vai, não tem nome. O que ela representa é a projeção de um ser de sexualidade absoluta, que está aí para roubar um coração de um homem, ou de todos os homens, ou daquele homem. Então, não há elementos de estudo de personagem, a não ser trabalhar essa coisa. Eu dei para ela ler, eu me lembro, aqueles livros, o ensaio sobre o mito de Lilith [da mitologia, que remete à sexualidade e fertilidade da mulher], que só fala o que Lilith representava na mitologia, no Antigo Testamento, do poder das trevas, o outro lado da Lua, a saliva, a baba.. Então, não havia absolutamente nenhuma informação técnica para compor um personagem. Aí, você vê que as pessoas são capazes de criar um personagem quando entram em uma viagem. Para os meninos era mais fácil, porque os personagens dos dois homens foram escritos, até porque, de alguma forma, eu escrevo com outro nome. Eu tentei ficar sempre, extremadamente, no limite da intervenção. Eu não queria ser o que faz as coisas na história.
Paulo Markun: E o filme que era para ser a história de um homem, virou a história de duas mulheres.
Hector Babenco: Virou a história de duas mulheres. Duas mulheres marcando um homem para sempre. Muito engraçado, porque não foi concebido desse jeito. As meninas tinham uma importância na história, mas o importante era a viagem desse personagem. À medida que eu ia filmando, eu ia percebendo que as mulheres eram realmente o pivô, eram realmente a energia do filme, que rolava em função da procura da mulher, do que a mulher representava dentro da história.
Paulo Markun: A primeira cena da Xuxa Lopes, eu não sei se estou maluco, mas ela fala português?
Hector Babenco: Ela fala português na igreja. Ela fala: "Nenhum homem, porra!". Ela que inventou.
Evaldo: Mocarzel: Foi até para dar uma idéia dúbia, de prostituta brasileira, ou não? Alguns comentários que eu ouvi com relação ao filme, as pessoas estranham muito essa cena da facada, que ele mata. É uma cena deliberadamente grotesca, na medida em que ele está exorcizando uma projeção, e as pessoas, com um olhar mais naturalista queriam uma cena...
Hector Babenco: Queriam que eles acabassem em Cancún, com um pacote comprado pela Stela Barros [agência de turismo]. [Risos]
Evaldo Mocarzel: Você acredita visceralmente na ficção e de alguma maneira a ficção toma vida e adquire vida própria. De alguma maneira, ela te reinventou também, a sua própria história, porque você não tem pleno domínio sobre sua própria história. De que maneira a ficção te reinventou como ser humano, como argentino, como brasileiro?
Hector Babenco: Aí já fica um pouco denso demais. Eu estava falando no começo que queria fazer comédia, mas o interessante desse processo, tentando ver se encontro uma resposta para a sua pergunta, é que o filme passa a ser uma terceira entidade. Não é mais aquilo que você concebeu, aquele desejo que te motivou. Ele vira uma outra coisa, vira uma outra entidade, com vida própria, com exigências próprias, com mecanismos e necessidades apropriadas ao que ele veio a dizer.
Paulo Markun: Babenco, nós vamos fazer um rápido intervalo. O Roda Viva, com Hector Babenco, volta daqui a instantes, até já.
[intervalo]
Hector Babenco: Bom, eu acho que o Pedro está enganado. A única vez que comprei os direitos de uma obra foi Galvez, o imperador do Acre. Eu nunca possuí nenhuma outra propriedade intelectual escrita para adaptação em cinema. Tem um pequeno conto do João Ubaldo Ribeiro [escritor, membro da Academia Brasileira de Letras], uma coisa muito recente, tem um ano e pouco, mas é uma coisa curta, de dez minutos. E qual era a primeira pergunta? [Markun diz que é sobre o Galvez] Pois é, o Galvez foi uma coisa... O Márcio é uma pessoa que faz parte da minha história, o autor, Márcio Souza. Eu conheço ele desde quando ele chegou à São Paulo. Ele não era ainda nem escritor e o livro era um roteiro de cinema, que se salvou de ser pessimamente filmado com um prêmio da Secretaria de Cultura, de 18 latas de negativo, na época da Boca do Lixo [região da cidade de São Paulo onde eram produzidos filmes bastante populares e de apelo sexual, na década de 1970], que o Galante [Antônio Polo Galante, um dos maiores produtores do cinema da Boca do Lixo] iria produzir. E, então, ele vira escritor, escreve o livro e eu decido fazer o filme. Depois, o complicador foi que ele ficou muito grande, muito caro para filmar nos locais onde a ação se desenvolveria. Não só os locais são muito complicados, porque é na Amazônia, mas se passa no final do século passado e começo deste século [XX]. É um filme que requer uma produção estrangeira, que eu nunca consegui para fazer filme em português. Talvez eu conseguisse fazer se fosse um filme falado em língua inglesa. Aí eu me pergunto o quanto o projeto perderia do seu encanto, da sua raiz, do seu humor. Mas o Galvez é um livro adaptado já pelo Leopoldo Serran [roteirista].Inclusive, uma adaptação muito bonita, que algum dia eu gostaria muito de fazer, mas eu não tenho cacife, nem capacidade para captar os recursos que o filme requer para ser perfeito.
Lorena Calábria: Tinha uma história também de fazer Tristessa [romance de 1960], de Jack Kerouac [escritor americano, (1922-1969)], que você e o Tom Waits [cantor e ator americano] tiveram uma conversa e manifestaram interesse? Você gosta muito da literatura beat, não é? [Literatura beat: O lançamento do romance On the road (algo como: "na estrada"), escrito por Jack Kerouac, entrou para a história como uma das obras fundadoras do movimento beatnik, na década de 1970, dando origem à mítica beat generation (geração batida, que havia sobrevivido à guerra). Ao lado de escritores e poetas como Allen Ginsberg, William Burroughs e Neal Cassady, Kerouac tornou-se símbolo dessa geração constestadora que contribuiu para as importantes mudanças culturais inciadas na época]
Hector Babenco: Eu... É quase tudo que mais gosto. E o Tom Waits é uma figura que parece ter saído de qualquer livro do Jack Kerouac, parece que foi pinçado de lá, sei lá. E a gente queria muito fazer Anjo subterrâneo, aquele personagem da mulata, a gente queria muito fazer. Depois, a gente ficou sabendo que o Coppola, o Francis [Francis Ford Coppola, cineasta norte-americano, diretor de Poderoso chefão] iria fazer em 16 milímetros o On the road. Depois ele acabou desistindo de fazer. Mas eu acho que, sei lá, é tão difícil fazer um filme que representa de uma forma tão poderosa uma atitude existencial, porque ele é um filme que passa dentro das pessoas, não no que acontecia fora do universo das pessoas.
Lorena Calábria: Geralmente os filmes inspirados na geração beat são muito caricatos também, não é?
Hector Babenco: Quase sempre. Tudo aquilo que tenha alguma referência com o real sempre vira uma palhaçada. A televisão tem feito isso: biografias, filmes sobre situações já conhecidas. Acho que no cinema cabe o mistério, a descoberta, outras coisas. Mas tentar fazer um Kerouac seria fantástico. Um coisa que eu queria fazer é o Jack Pollock [1912-1956], o pintor expressionista nova iorquino. Uma coisa que eu queria fazer é um filme sobre o Kafka [escritor tcheco de língua alemã e origem judaica, (1883-1924), autor de A metamorfose e O processo]. Eu acho que não funciona. Você vê, o Visconti [Luchino Visconti (1906-1976), cienasta italiano], que poucas vezes pisou na bola, quando foi fazer O estrangeiro [filme baseado no romance de Albert Camus (1913-1960, escritor franco-argelino que escreveu A peste] foi uma tragédia realmente. O Quarteto de Alexandria é um grande livro, do Lawrence Durrell [(1912-1990), escritor britânico], quando foram fazer o filme: picaretagem total. Os livros que dão grandes filmes são, normalmente, uma literatura de segunda.
Lorena Calábria: Você parte normalmente de um livro. No caso do Coração iluminado, eu me lembro de uma entrevista em que perguntaram para você a primeira pergunta do Markun: qual é o seu próximo projeto? E você disse: "Eu não tenho ainda um projeto. Eu tenho o título: ' Foolish Heart'." É uma música que você ouvia muito? [Foolish Heart, música que fez sucesso com Fank Sinatra e, mais recentemente, com Joss Stone - cantora inglesa]
Paulo Markun: Ele já deve ter o título do outro, é que ele está ...
Lorena Calábria: Pois é. Este foi o único caso. Eu queria saber, desde o final dos anos 80, pelas entrevistas que a gente lê, você já tinha esse projeto?
Hector Babenco: No caso do "Foolish Heart" é verdade. Eu não sabia o que eu queria, eu sabia o que eu não queria. E achava encantadora a idéia de usar de tema a música do Will Evans que eu ouvia quando era garoto, que era o "Foolish Heart". Eu achava que tinha uma coisa...
Evaldo Mocarzel: Você parte da música? Eu li uma entrevista sua também em que você fala de sua convalescência na sua segunda cirurgia. Você ficou 60 dias em uma convalescência e você ouvia música, música...
Hector Babenco: Eu cantava. Eu ouvia e verbalizava do jeito "macarrônico" que saía.
Evaldo Mocarzel: Você tem a música no processo de criação...
Hector Babenco: As músicas do Coração iluminado são canções muito bonitas. Não dá para pôr tudo que você gosta, mas eu sempre faço uma pequena homenagem. Agora, tem uma pequena peça, de menos de um minuto, de um autor russo, Skryabin [Alexander Skryabin (1872-1915)], tocando piano. Essa é a peça musical que ela toca quando entra na loja de pianos, ela senta com uma mendiga e ela toca um pequeno improviso no piano. É uma música que eu ouvi durante anos, todos os dias. Há músicas que foram marcando a minha época, foram marcando os tempos, momentos da minha vida. Uma época eu ouvia muito jazz, uma época eu ouvia muita música clássica, muita música étnica, música iraniana...
Paulo Markun: A música de fundo do Coração iluminado, se eu não estou enganado, não que ela toque, é um tango, não é?
Hector Babenco: Não. Fugi do tango como o diabo foge da cruz.
Ivan Isola: Eu gostaria que você falasse um pouco do Zbigniew Preisner [compositor polonês de trilhas sonoras], que segundo a minha opinião, é um...
Hector Babenco: É um grande compositor contemporâneo. É o homem que fez toda a música do filme do Kieslowski [Krzysztof Kieslowski, diretor polônes, (1941-1996)], o Preisner. E ele já fez muito mais coisa, coisas muito fortes, muito poderosas e eu levei ele da Polônia para São Francisco [nos Estados Unidos] para fazer a música de Brincando nos campos do Senhor. A gente tem que falar disso e do Lúcio Flávio agora.... Eu levei ele para lá e ele era um músico que jamais tinha saído de Cracóvia. Eu tinha ouvido um decálogo dele e eu gostei. Os americanos queriam muito, me deram todo o cardápio dos músicos americanos, tentar impulsionar o pulsar do filme de uma forma mais... Queriam cavalgadas e, assim, na floresta não há cavalgada, o calor é muito grande e não tem cavalo [o filme é sobre um casal de evangélicos que busca catequizar índios na Amazônia]. Então, é lento, tudo é devagar. Você vai de canoa. Então, não adianta você pôr música... Não é Indiana Jones. Então, eu descobri lá um eslavo maluco, em Cracóvia, vendi a idéia para o Saul Zaentz [produtor] à tarde, levei ele para comer um peixe grelhado e disse: escuta aí. E o velho se encantou. Tem uma origem eslava, judaica e polonesa. Trouxemos o Zbigniew da Kracóvia para São Francisco e ele fez a trilha sonora de Brincando nos campos do Senhor. Então, quando decidiram a música desse filme, era mais ou menos o processo da história. Eu sabia tudo o que eu não queria, mas não quem eu queria, e me lembrei do Zbigniew. Mandei um vídeo para ele, na Polônia, e já não era o mesmo Zbigniew. Hoje, ele cobra 500 mil dólares para fazer uma música e grava lá, com a orquestra do Penderesky, em Varsóvia, a flauta na catedral do século XIV, não sei onde... É um maluco total. E ele decidiu me fazer uma música por um preço módico, que nós tínhamos na época, que era 100 mil dólares. Ele disse: "Quanto você tem? Eu vou fazer o que eu puder com essa grana, vou pagar os músicos e o meu trabalho não está incluído. Me dê os direitos, uma porcentagem dos direitos de disco se você fizer." Ele fez uma música de graça, praticamente, 50 e poucos minutos de música. E ele queria gravar um clarinete em uma igreja de pedra. Um dia ele me liga às 3 horas da manhã, a gente estava em diferentes horários, eu estava dormindo, e diz: "Temos um problema." E eu: mas o que foi? "Chove há 3 dias e não posso gravar o clarinete dentro da igreja." Este é o personagem.
Lorena Calábria: Você falou do Brincando [nos campos do Senhor], que eu considero um filme bastante pessoal também, porque você bancou o projeto e teve vários acidentes de percurso. Você só citou um até agora, que foi esse pequeno, esse particular com o Tom Berenger [ator americano, protagonista no filme]. Eu queria que você falasse mais desse filme, porque de um certo modo ele pode ser comparado, guardadas as devidas proporções, com o que o Coppola passou ao filmar Apocalipse Now [1979]. Foi o seu Apocalipse Now? E em que medida todos esses problemas durante as filmagens influenciaram o resultado dele.
Hector Babenco: Veja bem, é um projeto que traz um carisma e um peso muito grande. Foi um grande clássico na década de 60, da cultura pós-hippie, esse livro chamado At playing in the fields of the Lord [de Peter Matthiessen], Brincando nos campos do Senhor. Ele é uma espécie de segunda versão de um livro chamado Gates splendor, que é sobre histórias de missionários religiosos americanos indo para a América Central e sul da América para catequizar os índios, mas, na verdade, sendo financiados por grandes empresas de mineração norte-americanas, como Alcoa. Isso com total alvará de trabalho pelo Ministério do Exterior norte-americano, que utilizam esses postos avançados desses padres como verdadeiros postos de aterrissagem de... Enfim, de mapeamento, e até durante a Guerra Fria. Eu poderia falar horas sobre isso. Há livros, inclusive, que mostram a ação dessas igrejas, digamos, paralelas, americanas, que são mandadas para o centro-américa para criar bases de proteção em territórios fronteiriços. Imagine você, na década de 50, o Brasil não tinha fronteiras. Roraima nem existia. Eu acho que o estado de Roraima é de 60, 70 e poucos. Aquilo era uma nação desconhecida, com fronteiras na Bolívia, Peru, tudo aquilo. Eram todos focos manipulados, mapeados, cadastrados com tecnologia de ponta, que era o radar e o rádio, que era que faziam os mapas, coisa que a aeronáutica brasileira nem tinha sequer. Então, era um filme que tinha um peso muito grande. O livro saiu em 64, de uma experiência de um antropólogo da Universidade de Santa Bárbara com o Peter Matthiessen, que é naturalista. Eles passaram um ano com os Yanomami [índios] na Venezuela e eles escreveram esse livro. O livro foi comprado de primeira mão, assim que ele saiu foi comprado pelo John Huston [diretor de cinema, (1906-1987)], para ser feito pela Metro-Goldwyn-Mayer [MGM, produtora]. Chegaram a fazer o primeiro roteiro e não deu certo. O segundo roteiro foi feito para o Arthur Penn [diretor], que também não foi feito. O terceiro roteiro foi com o Marlon Brando [(1924-2004), ator e diretor] dirigindo. Tem um artigo de 10 páginas, que fala toda a gênesis do Brincando nos campos do Senhor, no momento que o livro saiu, foi o momento que o filme foi feito, em 89, 90. Saul Zaentz comprou os direitos de 3 empresas que tinham os direitos do livro e os direitos adquiridos em dinheiro para receber de quem fosse fazer o filme. Ele pagou os direitos mais caros da história do cinema, porque ele teve que ir recomprando. Ele passou 2 anos com os advogados dele querendo recomprar o livro. Era um livro que ele queria fazer antes de Um estranho no ninho [1975, o filme, dirigido por Milos Forman, ganhou cinco Oscars], feito pelo Jack Nicholson [ator]. Este homem telefonou um dia na minha casa, eu estava vendo Fantástico [progrma da Rede Globo] e ele fala que era o Saul Zaentz, que queria me mandar um livro. Foi a única vez na minha vida, com 52 anos, que alguém me ligou para procurar alguma coisa. Nunca aconteceu antes e nunca aconteceu depois. Foi alguém que me telefonou para dizer: "Eu quero você, eu vou mandar um projeto e gostaria muito de saber a sua opinião."
Ivan Isola: Você diz um produtor?
Hector Babenco: Produtor. Sim, porque ele era quem tinha os direitos do livro e me convidou para dirigir. E ele me diz: "Se ler o livro e se interessar, quero que saiba que estamos em outubro e eu não posso voltar a falar com o senhor até o Natal, porque o Milos Forman [cineasta] tem uma opção para dirigir este filme. E ele me disse que até o final do ano me dá uma resposta." [Alguém tenta interromper] Estou contando um pouco de como se faz um filme, porque as pessoas acham que fazer um filme é dizer: "vamos nessa". Então, são projetos que enrolam anos.
Beto Brant: Quando você aceitou o projeto? Qual foi o seu enfrentamento?
Hector Babenco: Eu não aceitei o projeto. Eu disse a ele o que me interessava do projeto. Eu falei que tinha uma área do projeto, do livro, que está totalmente deficiente, que está visto com olhos míopes, que é a realidade do índio brasileiro. O nativo no livro é folclórico, é Disneylândia. Os outros personagens são de verdade, a quem ele criticava de uma forma tremenda. Não tinha uma visão, digamos, protetora desses pastores fajutos em função dos outros. Os índios eles desconheciam, os outros eles criticavam. Eu disse que só me interessava fazer o filme se pudesse restabelecer uma igualdade de pesos e medidas entre as forças da ocupação. Só me interessa porque é uma história do Holocausto. É uma história do modelo mais moderno que o homem, depois da Segunda Guerra Mundial, conseguiu criar para aniquilar o inimigo que não existe, que são primitivos ainda, praticamente o último grande grupo que há no planeta, que são os Yanomamis. Eles foram aniquilados durante 2 décadas. Consequentemente, em 60 e 70, deságua nessa coisa do ouro. Enfim, eram registros enormes.
Beto Brant: Como é que você fez? Você viajou pela região?
Hector Babenco: Fiquei um ano viajando. Fiquei um ano preparando.
Beto Brant: E você pediu esse tempo para a sua ausência?
Hector Babenco: Só vou fazer quando tiver um roteiro que agrade você e agrade a mim. Demorou um ano e meio para isso acontecer. Eu falei com ele em janeiro, nós começamos a trabalhar em março e o filme só começou a ser filmado em julho do outro ano. Houve 3 roteiros, portanto, tempo integral, e passamos 10 meses viajando. Passei 4 meses treinando grupos de indígenas em uma fazenda que alugamos, para poder fazer as aldeias. Foram 6 meses de pesquisa, em iconografia, habitat, música, canto, enfim.
Paulo Markun: E o resultado?
Hector Babenco: Você é que tem que falar. O filme é a história dos índios. Como os índios não são judeus, não se ganha o Oscar [risos]. Não sobra ninguém para contar a história.
Evaldo Mocarzel: Porque é um filme que tem tudo para arrebatar Oscar de atores. Tem a trilha do Zbigniew Preisner e é um filme belíssimo sobre incontáveis aspectos. O Saul Zaentz, depois, com O paciente inglês, ganhou todos os Oscars. Era um filme assim... O que aconteceu para ele não ter sido... Foi o lançamento? Foi mal lançado?
Ivan Isola: Será que, Hector, não é uma questão que diz respeito um pouco à cultura americana, à incapacidade que eles têm de se verem desconstruídos? Talvez seja também um pouco do problema do Ironweed , da ousadia de desconstruir a América.
Hector Babenco: Eles são os personagens mais, digamos, representativos da alma norte-americana, da alma anglo-saxônica, esses pastores, pertencentes a igrejas que vão levar a palavra de Deus ao mundo. De repente, eu trago esses personagens para um território que para eles é inóspito, onde as incorreções comportamentais se evidenciam de uma forma suprema. Você percebe o cara que tem tendência para ser marqueteiro. Você percebe o cara que tem sua fragilidade. Você percebe a mulher insatisfeita. Você percebe o desequilíbrio emocional do personagem e você percebe que os personagens, ao serem tirados do seu habitat normal, não conseguem reagir aos seus desejos, mas sim a um comportamento pré-estabelecido pela igreja, para eles funcionarem desse jeito. Provavelmente, os americanos não gostaram de ver os seus heróis que abrem mão de sair de seu habitat, da sua família, do seu território, para um ato de bem, à rigor, entre aspas, para levar a palavra de Deus e são discriminados, maltratados e aniquilados de uma forma tão impiedosa.
Ivan Isola: É um pouco é o problema do Ironweed também, de certa forma...
Hector Babenco: Totalmente. O abandono da família e o alcoolismo são os 2 males mais presentes, estão no cotidiano da classe média norte-americana. Disso não se fala. Não se pode falar disso.
Lorena Calábria: Quando foi lançado nos Estados Unidos, se não me engano, no Natal, foi considerado um filme sério, triste demais para essa época do ano. Não é isso?
Hector Babenco: Não me lembro.
Lorena Calábria: Foi. É o que está registrado nos jornais. Ele foi considerado triste demais para essa época do ano, porque os filmes de Natal são filmes com mensagens mais otimistas. Qual explicação para ele não ter ido bem?
Hector Babenco: Veja bem, eu tenho certeza que se o Ironweed fosse feito com Paulo Autran e Marília Pêra, teria sido bem aceito no Natal, porque não era a realidade deles.
Lorena Calábria: Estou falando dos Estados Unidos.
Hector Babenco: Foi feito com 2 ícones da cultura americana, o Jack [Nicholson] e a Meryl [Streep]. Então, é muito difícil. No livro tem uns diálogos maravilhosos. É uma coisa de uma dimensão poética, uma coisa super interessante, e foi difícil para eles segurarem.
João Silvério Trevisan: Vamos falar um pouquinho da sua trajetória no cinema brasileiro, rapidamente, de um aspecto bem particular. Você é um caso muito estranho. Você é "um estranho no ninho". Você não pertenceu ao Cinema Novo, não pertenceu à Boca [do Lixo], você passou por todos eles, mas você sempre foi o Hector Babenco. Eu acho que nesse processo há um elemento muito interessante, que é a relação entre o criador e o homem de negócios. Eu estava comentando outro dia com meu irmão, conversando com ele, o Antoninho Trevisan, da Trevisan Associados, que é a empresa que faz auditoria da HB Filmes. Ele me disse que ele estava absolutamente perplexo e encantado com a capacidade que você tem de gerenciar esses trabalhos de produção. Inclusive com a transparência com que você trabalha com os produtores, que é uma coisa rara no cinema brasileiro. Você tem auditoria durante todo o processo e em cada momento do processo você está mandando informações para os produtores. Certo? Ele disse que tira o chapéu para você, em função do profissionalismo, que você é o cineasta mais profissional, de longe, do Brasil. Minha pergunta é: como é que funciona na trajetória do cinema brasileiro esse Hector Babenco criador e homem de negócios?
José Geraldo Couto: Eu queria que você falasse um pouco também da sua inserção no cinema brasileiro. Na verdade você se diz um cineasta brasileiro, mas a gente sabe que a sua inserção no mercado brasileiro é muito conflituosa, digamos, é muito complexa. Você me disse uma vez, por exemplo, que o Lauro Escorel, que é um diretor de fotografia, a primeira vez que trabalhou com você olhava meio torto, porque você era considerado um cineasta de mercado. Ele tinha a experiência dele e essa era um pouco uma visão generalizada entre os cineastas brasileiros, eu imagino. Demorou um pouco para conseguir se impor entre os cineastas brasileiros, justamente porque você não participou desses grupos, dessas patotas, coisa e tal. Houve um processo de afirmação sua e talvez até tenha passado pelo plano de execução nacional. Então, você aceito pelos cineastas brasileiros, pela inteligência da indústria cinematográfica como um cineasta brasileiro, um cineasta importante, um cineasta...
Hector Babenco: Veja bem, eu acho que de todas as academias, só interessa as que forem de más letras, de boas letras, a mim, não me interessa falar. Para mim não interessa o ego, os acertos. Se acertou, você tem medalha para a vida inteira. O importante é você estar sempre à procura. Eu sempre tive a necessidade, como todo o filho de imigrante, de ser cooptado pelo meio social. Isso nunca aconteceu no Brasil. Mas eu sempre queixei, dentro de mim, da recusa que eu sentia por parte do outro, de me aceitar como um deles. Com o tempo, fui percebendo que o outro não existia. Que o outro existia em terceira pessoa em alguns ensaios, em alguns momentos, mas não havia aquelas pessoas que eu imaginava como um grupo. Eu percebi que um grupo é um grupo. Grupo é uma mentira. O grupo não existia. O grupo era um grupo.
João Silvério Trevisan: Esse grupo que você está se referindo é o Cinema Novo?
Hector Babenco: Existia um movimento estético, político, revolucionário, com filmes interessantíssimos, que me fizeram optar por essa cultura. É óbvio que eu amo o cinema brasileiro, mas eu nunca vi ele como uma unidade, uma espécie de time de futebol.
Ivan Isola: Mas nem mesmo como unidade estética. O Cinema Novo tinha, talvez, uma identidade política, mas unidade estética não.
Hector Babenco: Eu posso dizer que a viagem de todo o diretor de cinema que não se vê em terceira pessoa é muito solitária. Eu sempre recusei me ver como alguém que estava ocupando um espaço na história ou qualquer coisa. Acho que se ocupa algum espaço por alguém na linha pessoal e mais ninguém, o que me interessa é que os filmes, de alguma forma, fiquem no inconsciente das pessoas. Que fique alguma coisa nas pessoas, independentemente do rótulo que eles foram arquivados. Essa sensação de não fazer parte fica até como um nutrimento, como uma necessidade, como uma forma de você se autoalimentar. Já que você me rejeita, eu tenho que me autoabastecer, tenho que ser próprio sobre mim mesmo, não posso depender de ninguém. É um fenômeno muito forte. O Rio de Janeiro rejeitou o meu filme totalmente. A imprensa ignorou, a classe cinematográfica ignorou. Imagine você, que sai como defensor do meu filme, de uma forma, assim, ostensiva, viva voz, alguém que eu nem conheço, que é o Rogério Sganzerla [cineasta, (1946-2004)]. Sai dizendo que o filme é isso, que o filme é aquilo, que o filme “patatipatatá”. Eu não conheço o Rogério, eu o vi 2 vezes na minha vida. Porém, eu vi O bandido da luz vermelha [de Sganzerla] umas 10 vezes, provavelmente. Quer dizer, eu vi tudo. E eu não conheço o personagem que fez aquilo.
João Silvério Trevisan: Ele foi rejeitado como você. Ele sabia como a coisa funcionava.
Hector Babenco: Não sei. Alguém me fez uma pergunta?
Paulo Markun: E o lado empresarial? O Toninho Trevisan ligou para fazer a mesma pergunta.
Hector Babenco: Eu disse para um ministro, em uma viagem de avião, que me fez algumas perguntas um pouco ingênuas à respeito de como funcionava o cinema nacional na realidade, na prática, e eu falei: tem minha firma, se quiser ver. Porque, para você ter uma atitude de honestidade perante o mercado, você não pode ter telhado de vidro. E eu acho que a gente fez as coisas corretamente sempre, tentou ter uma postura honesta perante o mercado. Eu, talvez, seja o único diretor-produtor, ao longo dos anos que a Embrafilme [extinta empresa estatal, produtora e distribuidora de filmes] de alguma forma fez parte da nossa forma de fazer cinema, que jamais levou um centavo da Embrafilme. Todos os diretores, sem exceção, no primeiro mês, eles liquidavam suas contas e débitos com a Embrafilme. Então, aí que vem uma certa bronca, de ver que eu nunca fui atendido com a mesma qualidade e com o mesmo respeito que outros cineastas, que deram várias, repetidas vezes, provas de seu amadorismo e da sua incapacidade profissional, com a mesma qualidade. Então, sei lá, eu tenho um sócio, que é uma pessoa muito especial, muito respeitável, Francisco Ramalho [roteirista e produtor de cinema], que é um homem que se junta a mim no momento de desencontro da vida, que também não tem definição. Ele é o responsável, ele é o meu outro lado, é a pessoa que cuida de mim e cuida dessa pequena empresa que nós temos.
João Silvério Trevisan: É uma doçura de pessoa, não é?
Hector Babenco: É uma doçura de pessoa. Então, o Ramalho é a pessoa responsável por representar a minha ideologia dentro do campo contábil, do prático, do administrativo, do político, porque ele é uma pessoa de verdade, um grande profissional cineasta.
Paulo Markun: Você fez duras críticas ao sistema oficial de financiamento do cinema brasileiro, ou de não financiamento, como é o caso do governo Fernando Collor. Aliás, em uma entrevista de 91, você disse que os meios que haviam sido utilizados de respiração artificial do cinema tinham acabado. Dizia, depois, que se a atitude que há em respeito à cultura é a mesma que há em outras áreas, certamente, o Brasil vai voltar ao século XIX. E fazia a seguinte pergunta: "Mas quem há de ficar para contar a história do Brasil? Eu fiz o 'diabo na terra do sol' [fazendo alusão ao filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, 1962] com o governo Collor, quem vai contar a história do Brasil daqui para frente?".
Hector Babenco: Não sei nem responder. Quer dizer, o Collor, provavelmente, vai para a vala comum dos trapalhões e o diabo vai ficar com o Guimarães Rosa, com o Machado de Assis, sei lá.
Paulo Markun: Mas há um caminho...
Hector Babenco: Eu acho que o governo do Fernando Henrique [Fernando Henrique Cardoso, governou o país em dois mandatos, de 1995 a 2002] obviamente tentou de uma forma muito corajosa, muito frontal, devolver uma atividade à produção cultural, que estava totalmente definhada, maltratada e apodrecendo nos porões. Muito mais maltratados à partir da democratização do país, que durante os anos de ditadura. Que fique muito bem registrado, apesar de eu ser totalmente contra a ditadura, pois havia um elemento opressor, havia um tipo de diálogo nas entrelinhas e por debaixo do tapete, na época da ditadura. Com raríssimas exceções, a atividade nunca cessou na ditadura. Dentro do que foi possível fazer, obviamente. E nos anos que se seguiram, no governo Sarney [José Sarney, governou o país de 1985 a 1990] e governo Collor, foi um desastre total e absoluto. Nós caímos na mão de... Enfim...
Evaldo Mocarzel: Hoje fala-se de renascimento do cinema brasileiro. Há quem diga reengenharia do cinema brasileiro, com a Lei do Audiovisual, que fez voltar a produção de filmes. O que você acha, dentro desse momento de reengenharia, poderia ser colocado em prática para a indústria deixar de ser eternamente embrionária?
Hector Babenco: Veja bem, não sou eu quem tem que dar essa resposta. Eu acho que a gente, como profissional do ramo, o Beto [Brant] e eu, aqui neste grupo, pode apontar os problemas que a gente tem. Agora, as soluções requerem um pouco mais de tempo, de paciência e de pessoas para visualizar o contexto como um todo, não simplesmente um problema individual. É óbvio que esses modelos implantados pelo Ministério da Cultura são absolutamente positivos. É óbvio que eles vieram para tentar impulsionar os modelos de produção. Mas eles são extremamente sem raízes. São extremamente ingênuos. O mercado é muito mais esperto, muito mais habilidoso, muito mais complexo, do que pensar que com produção exclusiva nós nos abasteceremos, não é? Eu acho que esta é uma grande conversa, um grande discurso. Eu imagino, espero, gostaria, que se o ministro, que pode estar me ouvindo neste momento [em 1998, Francisco Weffort, era ministro da Cultura], que realmente é uma chamada brava em cima dele, que não pode continuar essa pluralização de captação de recursos de uma forma assim tão democraticamente aberta quando não há um mercado. Porque, o que vai acontecer? Vai haver uma produção de cinema muito grande e não vai haver escoamento da produção. Eu acho que nós estamos vivendo um momento de ocupação, sim. Vou usar um vocabulário da década de 60: não se achar de esquerdinha babaca. Nós estamos vivendo um momento de protecionismo do produto estrangeiro contra o produto nacional. É um problema que aciona vários modelos industriais brasileiros, não só o audiovisual e o cinema. Eu acho que estamos vivendo um momento muito complicado, porque temos custos de primeiro mundo e modelo de consumo do quarto mundo. Vivemos um momento onde temos uma única rede de televisão produtora de cultura, porque as outras não têm recursos para fazer absolutamente nada. Então, vivemos um monopólio da Rede Globo de Televisão, que, ao mesmo tempo, é produtora e veiculadora de produto e não terceiriza absolutamente nenhum serviço. Então, vivemos em um país onde a língua única falada, no Brasil, Portugal, é inexistente do ponto de vista de mercado. Então, obviamente, a gente precisa de proteção, a gente requer espécie, temos que ter um "frágil", escrito no braço, ou nas costas, senão a gente desaparece. É muito simples. A gente desaparece. A gente vive contra o ódio dos burocratas economistas formados em Harvard [referindo-se à universidade norte-americana], que usam terninho Armani [grife italiana de alta costura] e achando que lei de incentivo, que as regras de mercado, tem que viabilizar o que é possível, sem absolutamente nenhum tipo de favorecimento fiscal. Ao mesmo tempo, não leva em consideração que todas as indústrias de base são subsidiadas, direta ou indiretamente, a automobilística, a imprensa. O que é a televisão? Uma concessão dada de graça para um grupo particular, um negócio de 5 bilhões de dólares por ano, que não deixa nada ao Estado, a não ser o imposto de renda. É dada de graça a concessão. Então, veja bem, há vários mecanismos velados dentro do modelo que vivemos no Brasil, desse falso liberalismo que foi imposto pela goela, que não tivemos nem direito de escolha. Então, se a gente quer fazer preservar a cultura cinematográfica como mercado, como cultura, como produto, como manifestação estética de um jeito de ser brasileiro, a gente precisa sentar em uma mesa, repensar que papel ocupa o cinema internacional fazendo a cabeça do nosso público e de que forma a gente pode policiar isso, sem que o policiamento seja uma coisa ostensiva, ou que atente contra os princípios básicos de liberdade de expressão. Enfim, é um jogo complexo. Agora que o Ministério soltou as rédeas da produção não pode ficar cantando os louros de que há produção. Eu acho que agora é o momento, e nós somos adultos o suficiente, maduros o suficiente, para sentar, para informatizar o Ministério, para ter reformulações de que tipo de negócio se quer do cinema no Brasil. Quanto faturar por ano? Em que região? Quanto desse dinheiro é exportado? Quanto fica no Brasil? Quantos empregos isso gera? Qual a importância que tem o cinema estrangeiro. Que tipo de business é esse? Onde podemos nos encaixar? Todas estas perguntas mercadológicas inexistem para o Ministério da Cultura. Pessoas de muito boa índole que estão no Ministério da Cultura desconhecem o kung-fu do dia a dia. São pessoas de formação acadêmica bem intencionadas, na totalidade absoluta, que respondem a toda e qualquer pergunta que você faça, mas não são pessoas de produção e cinema. Não é um gesto trivial. É uma indústria cara, que bem organizada pode passar a ser uma fonte de empregos enorme, pode representar uma indústria dentro de um país de 170, 180 milhões de habitantes. Mas isso requer uma política de atendimento ao setor. O cinema brasileiro não tem política nenhuma de atendimento ao setor.
Paulo Markun: Tomara que este discurso final que você fez seja ouvido, efetivamente, pelo ministro Weffort e que essa perspectiva de tratar o cinema como um negócio realmente aconteça.
Hector Babenco: Eles não estão lá para fazer os filmes. Eles estão lá porque nós fazemos filmes. Há uma inversão de valores. Eu não preciso do ministro para fazer cinema. Ele precisa de mim para ser ministro da Cultura.
Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista. Obrigado aos entrevistadores. Inúmeras perguntas que não foram feitas serão encaminhadas ao Babenco e a gente volta na próxima segunda-feira, sempre às 10h30 da noite. Uma boa noite e até lá.