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Memória Roda Viva

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Nana Caymmi

22/2/1993

Irreverente e autêntica, a cantora fala sobre carreira, casamentos, filhos e o relacionamento com outros artistas

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Jorge Escosteguy:  Boa noite. No Roda Viva, que começa agora pela TV Cultura de São Paulo, nós vamos falar de música popular brasileira. No centro da roda está sentada uma cantora de gênio em muitos sentidos: gênio forte, temperamental, agressivo e gênio interpretativo. Nana Caymmi, 50 anos de idade, 30 de disco, 26 de palco, 3 filhos e 2 netas, é a nossa entrevistada desta noite, no Roda Viva. Para entrevistar Nana Caymmi esta noite no Roda Viva nós convidamos: Maria Amélia, da TV Cultura, Celso Fonseca, do Jornal da Tarde, Alex Solnik, da revista Interview, Regina Etcheverria, da revista Ícaro, Carlos Renno, jornalista e letrista, Roberto Cômodo, Jornal do Brasil e Aimar Labaki, crítico de artes em espetáculos da TV Bandeirantes. Lembramos aos telespectadores que o programa de hoje foi gravado e, portanto, não haverá perguntas ao vivo. Boa noite, Nana.

Nana Caymmi: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Podemos começar com a sua fama de temperamental, agressiva e briguenta. Como é que está esse ânimo, continua forte esse gênio ou já acalmou um pouco com os 50 anos?

Nana Caymmi: Não, eu devo esse título à imprensa. Até que eu não me acho assim, uma pessoa briguenta, porque eu não saio discutindo coisas que não são da minha alçada. Tem vários incidentes em casas noturnas. Por exemplo, eu discutir com o dono da casa porque acho que o serviço deve parar. É uma questão de educação. Então, você tem que ensinar para burro velho como é que ele tem que atuar, porque, no que você pede bebida, a mesa do lado também quer se servir. Então, não é uma coisa só minha, incomoda todo mundo.

Jorge Escosteguy: Mas você tem gênio forte?

Nana Caymmi: Eu briguei por isso já, mas eu falo...

Jorge Escosteguy: Você pelo jeito é assim: eu faço o que eu quero e ninguém manda eu fazer o que tenho que fazer?

Nana Caymmi: Não, eu acho que é o seguinte: ele me contrata, eu faço, não deu certo, eu vou embora. Então, não há multa nesse sentido e ele paga os garçons. Eu tenho 1 hora e 15, 1 hora  e meia de show. A pessoa não vai ficar morta de sede. Ela pede antes a bebida, pois a casa comporta que você peça um wisk, vinho ou cerveja. Essas são as discussões, mas o gênio forte está no meu trabalho, porque eu preciso de concentração para cantar. Eu não sei dizer uma letra com 30 falando, garçom passando e outro escolhendo pastel. Então, prefiro cantar em estádio, me sujeitar ao que muito artista faz por um período, que é cantar com os outros jogando lata de cerveja, bombom Sonho de Valsa e você fica saindo dos escombros. Então, alguma coisa interpretativa, que me desgasta profundamente, que é o meu cantar, eu não vou fazer com barulho.

Jorge Escosteguy: Agora, você acha que esse estigma, vamos dizer assim, quem vem da imprensa ou das pessoas, prejudicou um pouco a sua carreira? Porque você é reconhecida pelos críticos e por todos como uma grande cantora, uma das maiores da música popular brasileira. Isso de certa forma prejudicou um pouco a sua carreira no momento em que você ficou sem gravadora, sem shows?    
 

Nana Caymmi: Não, eu não acho. Não pelo gênio, assim, não pelas coisas que eu digo de cara. Acho que não prejudicou em nada. Isso nunca aconteceu isso comigo.

Maria Amélia Lopes: Qual o momento que você considera mais barra pesada na sua vida pessoal e musical?

Nana Caymmi: Pessoal foi o acidente do meu filho. Não tem mais, eu já perdi a pose depois disso, perdi o rumo. [Seu filho, João Gilberto, sofreu um grave acidente de moto, no Rio de Janeiro, em 1989, e ficou com sequelas neurológicas]

Maria Amélia Lopes: João Gilberto?

Nana Caymmi:
O João Gilberto. E a coisa mais importante da minha carreira foi ganhar o Festival da Canção [Festival Internacional da Canção de 1966, realizado pela TV Globo, quando Nana interpretou "Saveiros"]

Maria Amélia Lopes: Debaixo de vaia?

Nana Caymmi: Debaixo de vaia. Ouviu quem quis, porque eu estava contando com dinheiro que eu iria ganhar [risos]. Em uma miséria franciscana, com 3 filhos, o João Gilberto tinha acabado de nascer, jorrava leite do meio peito.

Jorge Escosteguy: Você tinha voltado da Venezuela recentemente e você tinha se separado?

Nana Caymmi: Tinha o festival, foi em 66, João Gilberto nasceu em 66, em 17 de junho, e eu ganhei o festival em setembro, outubro.

Jorge Escosteguy: Agora, só para esclarecer sobre o seu filho João Gilberto, um pouco antes a gente estava comentando sobre isso, o seu filho não se chama João Gilberto porcausa do cantor João Gilberto [músico considerado o criador da batida de violão da bossa nova], com quem você namorou inclusive? 

Nana Caymmi: Pois é, não foi uma homenagem direta para o João [cantor]. Seria até pouco perto da admiração que eu tenho por ele. É que o João nasceu no mês de São João e o o próprio João Gilberto, que eu chamo João Gilberto pai, decifrou porque o meu filho se chama João Gilberto. Ele dizia: "Porque aquele bundão do seu marido se chama Gilberto?" [Risos]. E ele nasceu no meio disso.

Jorge Escosteguy: No meio do São João.  

Nana Caymmi: Gilberto é um médico venezuelano, pai dos meus 3 filhos, e já arranjaram pai para tudo que é filho meu no decorrer desses 30 anos. Dizem que é Gil [referindo-se ao cantor Gilberto Gil], cada um diz...

Alex Solnik: Não tem um filho com o Gil também?

Nana Caymmi: Não, não, inclusive foi uma coisa bastante dolorosa que aconteceu com nós dois. O destino é terrível. Eu estava com o meu filho no CTI [Centro de Terapia Intensiva] de São Vicente e o dele estava no CTI da Beneficência Portuguesa. A imprensa ficou reclamando, mais uma vez, porque Gil não visitava meu filho. E eu dizia: porque não é filho dele. Simplesmente por esse motivo. [Pedro Gil, filho de Gilberto Gil, morreu na ocasião citada, vítima de um acidente de automóvel, aos 19 anos].

Roberto Cômodo: Uma vez você disse que se casou no tapa com o Gil. Como que é essa história?

Jorge Escosteguy: Foi quase no tapa? 

Roberto Cômodo: Quase no tapa?

Nana Caymmi: Foi porque o Gil fez uma coisa, a meu ver, bastante condenável. Ele largou a mulher grávida, faltando segundos para parir. Ele foi para a Casa de Saúde ver Belina [Belina de Aguiar, primeira esposa do cantor] ter a última filha [Marília de Aguiar Gil Moreira], se não me engano, praticamente com a mala fora de casa. Eu disse: Gil, você não tem que fazer isso. Espera mais um pouco. Ele tinha criança pequena e foi um rompante bastante violento da parte dele, como tudo de Gil é muito violento. As atitudes dele naquela época então... Havia sido há 25 anos.

Maria Amélia Lopes: Mas você o acolheu assim numa boa?

Nana Caymmi: Não. Não ficamos juntos ainda naquela época não.

Jorge Escosteguy: Foi um grande tumulto

Nana Caymmi: Só depois, quando a menina nasceu, ele foi ver, ficou com Belina, e tudo isso a tapa mesmo. O tapa foi por causa da família dele. 

Maria Amélia Lopes: E a sua família aceitou bem o namoro com o Gil?

Nana Caymmi: Não, mamãe é um pouco racista. Ela dizia: " Aquele negro." Porque o dela é um ariano, não é. [Risos] O meu é preto, o dela não [em tom de deboche]. Ela não queria. É aquela coisa: baiano artista e crioulo, pronto, danou-se.

Jorge Escosteguy: E João Gilberto, ela também não gostava dele?

Nana Caymmi: Não, com 15 anos ela botou banca mesmo: "Mais um baiano?" Naquela época ela me trazia de rédia curta. João não teve muita moradia lá em casa não.

Aimar Labaki: Você casou com um venezuelano médico por causa da sua mãe, ou não?

Nana Caymmi: Não, eu casei... [risos]

Aimar Labaki: Esse ela gostava ou não gostava?

Nana Caymmi: Ele bebia com o meu pai. Esse ela gostava sim. Escolheu abrir o caminho

Aimar Labaki: Você passou anos na Venezuela, desculpa [interrompendo]. Você passou anos na Venezuela?

Nana Caymmi: 5 anos.

Aimar Labaki: Nesse tempo você não cantou?

Nana Caymmi: Não, eu só vim ao Brasil fazer disco. Por isso que eu tenho mais tempo de disco, como ele disse, do que de palco. Eu gravei muito. Sempre que eu vinha visitar meus pais, passava por aqui e fazia. É a grande fase do Elenco [gravadora onde grande parte do acervo da bossa nova foi produzido]  e a minha saída da Odeon [gravadora Odeon Record], porque era só Odeon na época [e passou a chamar-se EMI-Odeon].

Aimar Labaki:
Você tem alguma saudade da Venezuela?

Nana Caymmi: Eu nem me lembro como era. Primeiro, porque eu fui numa época, no final da ditadura "braba", eu não me lembro do interior, onde eu criei as meninas [Stella Teresa e Denise Maria, suas filhas]. Morava na beira da praia, que é estado Falcón, uma coisa bastante distante de Caracas. Caracas eu não tenho nenhuma noção de como seja, de como esteja.

Celso Fonseca: Só para me localizar: sua relação com o Gil foi pré-exílio do Gil?  

Nana Caymmi: Foi, claro que sim. Eu conheci Gil em 66. Ele, Gal e Betânia [Gal Costa e Maria Betânia] estavam fazendo o mesmo festival e ele me vaiando, inclusive. Quer dizer, aquela música mole, não sei o que, era totalmente diferente do que ele fazia. Isso foi em 66. Em 67, eu fiquei o ano todo com ele e todo 68 com ele. Em 69 é que houve o grande "rebu", com a saída deles daqui.

Regina Etcheverria: E para você como foi esse período?

Nana Caymmi: Esse período foi conturbado, bastante conturbado, mas eu não podia nem pensar em ir para a Inglaterra com ele pelos meninos. Imagine, eu ir para Inglaterra, nem pensar. Eu não tinha feito, não havia um peso político atrás de mim como tinha em cima de Gil e Caetano. [Caeano Veloso e Gilberto Gil, após terem sido presos pela ditadura militar, ficaram exilados em Londres, na Inglaterra, entre 1969 e 1972] 

Aimar Labaki: Falando dessa época, você chegou a falar que a pessoa com quem mais você conversava era o Torquato Neto [Torquato Pereira de Araújo Neto, poeta, jornalista e compositor, (1944-1972)]. Qual a lembrança que você tem do Torquato?

Nana Caymmi: Ah, todas.

Aimar Labaki: Fala um pouquinho dele. 

Nana Caymmi: Foi uma pessoa adorável, tirando os suicídios, que a cada meia hora ele se matava [risos]. Afora isso, eu achava ele o máximo, gostava da companhia dele e da Ana [Ana Maria Silva Duarte], mulher dele. A gente saía muito e eu tinha muito carinho. A casa dele era muito gostosa, na ladeira Tabajara [Rio de Janeiro]. Às vezes ele vinha para São Paulo, ficava com a gente aqui no Danúbio [hotel], a gente não tinha apartamento ainda, porque os titulares, os ricos da família, eram eu e Gil. Quer dizer, o resto não tinha dinheiro, nem Gal, nem Torquato, enfim. Aquele mundo de poetas. Então, nós éramos o centro aqui para eles em São Paulo.

Aimar Labaki: E como artista?

Nana Caymmi: Ah, como poeta não existe. Eu estou cantando no meu show "Pra dizer adeus" e vou cantar "Eu te amo", que é uma canção dele com o Gil. Tem muita coisa do Torquato. Eu tenho intenção de fazer até a festa dele agora, no começo do ano.

Maria Amélia Lopes: Quer dizer, Nana, quando ele realmente conseguiu o suicídio, finalmente entre aspas, não chegou a ser uma surpresa pra ninguém que convivia com ele? 

Nana Caymmi: Não, para mim nunca foi uma surpresa. Como Maysa [referindo-se à cantora Maysa Monjardim, (1936-1977)], ele tinha dentro dele a morte.

Roberto Cômodo: Nana, você passou pela bossa nova, gravou discos, passou pelo Tropicalismo, mas não se ligou nunca a nenhum desses movimentos. Por que isso? Por que essa coisa de uma intérprete?

Nana Caymmi: Porque eu acho que movimentos são coisas arriscadas e podem até ficar para trás. Eu, sendo uma cantora solo, vingaria muito mais... Eu tive sempre como exemplo o meu pai, que sempre foi uma figura forte dentro da música, fazendo o que era dele sem modismo. Isso eu acho que é importante. É aquele tubinho preto que você usa para batizar, para enterrar, para casar, para qualquer coisa, entendeu? Então, isso é mais ou menos a minha carreira e eu me baseei na roupa da Piaf [Edith Piaf, (1916-1963), cantora francesa que sempre se apresentava de preto], de qualquer jeito eu estou bem, o importante é interpretar para vocês rirem ou chorarem. 

Alex Solnik: Estão comemorando os 30 anos da bossa nova. Você está se sentindo parte dessa comemoração?

Nana Caymmi: A bossa nova começou muito antes para mim, lá em casa, muito antes mesmo. Quando ela surgiu em disco, já era uma coisa muito forte na minha vida.

Alex Solnik: Como é o seu jeito em casa?

Nana Caymmi: Ah, com o Tom, com o Vinícius [referindo-se ao maestro, músico e cantor Tom (Antônio Carlos Brasileiro de Almeida) Jobim (1927-1994) e ao poeta, compositor e cantor Vinícios de Moraes, (1913-1980)], quer dizer, você ser filha de Dorival Caymmi já é um grande prêmio de Deus, não é? Eu tive tudo que é de arte na minha mão e tenho hoje. 

Jorge Escosteguy: Você sempre tirou isso de letra? Quer dizer, o fato de ser filha do Caymmi, você sempre tirou isso com bom humor, achou ótimo, isso nunca te prejudicou de alguma forma?

Nana Caymmi: A educação vem de Minas Gerais. É a minha mãe que não gosta de deslumbramento. Estrela é da porta da rua para fora, para dentro são pessoas comuns. Isso mamãe educou os 3 [incluindo os irmãos Dori e Danilo Caymmi], nenhum tem esse estrelato todo na cabeça não. E todo mundo sabe que papai é um rabo de cometa, mas ele sempre foi muito simples com a vida dele, tem as normas dele de vida, nunca se deixou influenciar por dinheiro.

Jorge Escosteguy: Eu não digo pelo seu comportamento como pessoa, digo mais como cantora. Ou seja, o sucesso, ou essa coisa de ser filha do Caymmi, isso nunca deixou você preocupada, se as pessoas estavam gostando por isso ou estavam ajudando por aquilo?

Nana Caymmi: Eu nunca parei para pensar não, porque, sabe o que acontece? Eu tive a certeza de que cantava dentro da minha própria casa. Quer dizer, eu era muito solicitada pelos amigos de meus pais para cantar E os amigos eram barra pesada, só tinha cobra. Assim: canta aqui, Nana. Então, eu olhava para trás e era o maestro de ópera, que eu não sabia nem quem era. De repente: meu Deus, esse homem é coisa pra caramba! É verdade, eu era muito menina quando já me solicitavam. Então, para eu cantar, subir em um palco, não tem esse mistério e eu nem iria sair dali me achando com o rei na barriga. Eu vi muita estrela em casa, muita gente importante, muita mulher cantando bem, como Elizete, a Lenita. [Elizeth Cardoso, (1920-1990), e Lenita Bruno, (1926-1987)].

Alex Solnik: Dá para situar esse início da bossa nova? Você falou no Tom, Vinícius.. Entre Tom e João [Gilberto], teve alguém que começou antes, ou foi junto? Quem começou a bossa nova, foi o Tom ou foi o João Gilberto?

Nana Caymmi: Dolores Duran [Adiléia Silva Rocha, cantora cujo nome artístico foi Dolores Duran, (1930-1959)] e Tom Jobim já eram café pequeno antes do João Gilberto chegar de Juazeiro, se não me engano, não tenho as datas aqui, não li nada sobre isso, mas eu acho que eles começaram muito antes. Não sou especialista em música não.

Alex Solnik: O João se integrou depois então?

Nana Caymmi: Eu acho que sim, porque ele morava no Rio há muitos anos, mas João sempre foi muito trancado, muito arisco, muito difícil. O Tom já era mais da noite. Era um pianista que ia ganhar a vida na luta. 

Maria Amélia Lopes:  Nana, o que provoca mais tensão? A hora que você entra no palco para começar a cantar ou estar sentada na platéia para assistir um show do João Gilberto? [o cantor tem fama de exigente e ranzinza por criticar a infra-estrutura das casas de shows] 

Nana Caymmi: Ah, eu ri muito nessa platéia desse auditório, na última vez [risos]. Agora é assim: se o meu show fosse assim, eu já entraria gargalhando, porque foi engraçado. Você atrai muito barulho quando você não quer barulho. É como eu, atraio garçom, porque eles ficam atrás de mim como abelha, eles adoram me dar pastel na hora que eu não quero [risos]. Basta você falar que não gosta de uma coisa, porque ela surge mesmo, no que ele abriu a boca...   [Alguém pergunta se quando ela está no restaurante aparece algum garçom]. Eu sei que na hora que o nêgo [João Gilberto] começou a cantar caiu uns sposts, deu uma microfonia, várias pessoas olharam para trás achando que era uma explosão. Para você ver o que é você atrair. Mas devia ter muito dinheiro no jogo, dinheiro pra cacete, porque ele olhou, aplaudiu e continuou, porque a multa que ele teria... Depois da multa que ele teve no Municipal, Deus me livre se ele levantasse  [referindo-se a um show no Teatro Municipal do Rio de Janeiro].

Alex Solnik: Mas antigamente ele parava em uma situação dessas?

Nana Caymmi: Mas era cachê de miséria, agora é cachê por aquele porte, cachê cerveja, meu filho, cobiçadíssimo, e tinha o Tom lá trás também, que iria ser a surpresa da noite, tinha todo esse modismo.

Aimar Labaki:Você briga com garçom, briga com dono de bar, quando estão falando, estão servindo e você está cantando, sempre foi assim ou você já teve que engolir sapo? 

Nana Caymmi: Não, não engoli sapo não. Eu ia embora e eu batia quando eu via. Peguei uma faca enorme uma vez e disse: eu vou matar você, hoje eu acabo te matando. Eu era apenas uma crooner. Foi uma época da minha vida que eu tive que ficar no Rio, porque eu tinha uma filha doente e que precisava de uma assistência mais forte. Eu não podia viajar muito. Então, ele me deu um emprego lá, cantei 9 meses. Todo dia eu pedia demissão. Um dia ele não quis dar e tinha um tal de Pierre, que era um cearense com a cabeça desse tamanho: "Nana, pede com essa faca e leva lá que ele vai te dar hoje a demissão e te pagar". Poxa, depois ele riu, mas na hora que ele me viu na cozinha com um punhal dizendo: "eu vou matar você hoje". Aí o cara ficou verde.

Alex Solnik: Nana, qual é a cantora brasileira que canta bem, que você gosta de ouvir, fora você?

Nana Caymmi: Isaura Garcia [1919-1993] é a primeira ainda.

Celso Fonseca: E jovem?

Nana Caymmi: Dessa geração nova eu vi a...

Celso Fonseca: Marisa Monte?

Nana Caymmi: Eu vi pouquíssima coisa, muito pouca. Eu acho que em termos interpretativos, eu não tive um trabalho para fazer um julgamento assim. Eu vi a Adriana Calcanhoto um pouco. A Marisa Monte eu não vi até hoje e tem nêgo que já disse que eu falei que eu não gosto, mas até hoje eu não vi a moça cantando, nem mais velha, nem mais loira, nem mais pelada. Eu encontrei com ela na Odeon, escorada pelo Nelson Mota [produtor e crítico musical] e mais nada. Eu não sei que cantora é. Eu vi a Cássia Eller [1962-2001] cantando uma canção na TV Educativa também. Quem mais que eu vi? 

Alex Solnik: E Leila Pinheiro?

Nana Caymmi: Leila Pinheiro, gosto da Leila Pinheiro

Aimar Labaki: E a Cássia, você gostou do que você viu?

Nana Caymmi: Ela é impressionante, mas vai ter pouco tempo de corda vocal.

Aimar Labaki: Por quê?

Nana Caymmi: Eu acho que ela puxa demais. Alguém deveria avisar ou dar uma cuidada, não sei, falta manha ali. Ela está forçando uma coisa...  

Aimar Labaki: Mas tem talento?

Nana Caymmi: Tem talento e muito, tem muito talento. Mas ela é doida.

Roberto Cômodo: O que você acha do ecletismo dessa moça? 

Nana Caymmi: Doida no bom sentido.

Aimar Labaki: Pra você dizer que ela é doida...

Alex Solnik: Doida em usar a voz assim, você diz?

Nana Caymmi: Fazendo exatamente o que não pode.

Roberto Cômodo: O que você acha desse ecletismo, dessas novas cantoras, do repertório?

Nana Caymmi: Tudo começa assim, depois acabam todas com "cantinho e violão" [frase figurativa da bossa nova - risos]. Mas é bom, porque tem que ser assim, porque se eu não chamo a atenção vocês nem olham, não é? A verdade é essa. Eu acho que tem que sair como a Daniela [Mercury] fez. Ela se entregou logo, vamos fazer dinheiro, se der certo ou não. Ela é bonita, jovem, sabe dançar e tem uma formação de família boa. Ela sabe que se samba da Bahia não der certo ela vai pegar um "cantinho e violão" e vai cantar o que ela quer e o que ela gosta. Ela já botou o Tom Jobim do lado.

Maria Amélia Lopes: Você falou em formação de família?

Jorge Escosteguy: Você falou em tudo sobre a Daniela, menos se ela canta bem ou não? Ela sabe dançar, mas ela sabe cantar? Você disse que ela tem uma boa família, é jovem e sabe dançar?

Nana Caymmi: Mas eu não ouvi também, gente. Eu não fui ao show. Até acabei de encontrar com ela. Eu não consegui ir ao show, porque minha vida também é um sufoco de trabalho. Para eu sentar, para ouvir alguém.. Foi  por casualidade eu ir no show do João Gilberto, porque eu cheguei em uma segunda-feira e corri para assisti-lo, mas eu não tenho essa sopa.

Alex Solnik: Você gostou, qual foi sua crítica do show?

Nana Caymmi: Eu sempre gosto. O repertório está imbatível. Ele canta afinado como ninguém, foi buscar no baú o Fernando Lobo [jornalista e compositor (1915-1996)]. Ele abriu o cemitério para as nações amigas. Ele foi buscar uma coisa que, meu Deus, quem fez isso? Eu sei que nós estávamos todos assim: quem fez isso? Porque a impressão que dava para aquela platéia ignorante é que ele iria cantar pobreza. Teve gente até que disse ele foi lá fazer o "qüem, qüem" [referência à música famosa que João Gilberto fala do pato], porque ele não queria mais saber do pato. Baixaria, não é?. Porque João não deixa de ser um artista fantástico.

Jorge Escosteguy: Mas ele cantou o pato?

Nana Caymmi: Cantou.

Carlos Renno: O que é para você cantar bem? 

Nana Caymmi: Primeiro, para que eu saiba que você canta bem, ou que não canta bem, eu tenho que te ver. Eu não estou te vendo, eu estou te olhando, não estou te olhando, essa é uma interpretação, eu entro dentro da letra. Primeiro, boa voz, não é? Senão você está danado. Segunda, colocação boa de ar. Sensibilidade é a primeira coisa. Não adianta você passar uma coisa que eu vou ficar olhando e comendo batata. 

Carlos Renno: O que faz você cantar uma música? Como uma música te agrada pessoalmente?

Nana Caymmi: Primeiro, a melodia.

Carlos Renno: Melodia.

Nana Caymmi: Já deixei muita música bonita de lado porque a letra medíocre, aquela coisa feita com 3, 4 pessoas. Gente, quando mudar a letra eu canto.

Carlos Renno: E você faz letra, Nana?

Nana Caymmi: Não, só trabalho com música. Não sei. 

Carlos Renno: E a letra para você?

Nana Caymmi: Ah, se puder ser acima de Vinícius está bom [risos].

Alex Solnik: Está faltando boa letra na praça?

Carlos Renno: Sim, mas você já cantou compositores, digamos, abaixo de Vinícius e canções bonitas também?

Nana Caymmi: Sim, claro que sim. Eu gosto de como a Fátima [Fátima Guedes] escreve, como ela fala do desamor, que é ela, não é? Eu gosto do jeito que o Dudu Falcão faz letra, esse lançamento meu, também é bem raspado, é uma coisa bonita.

Carlos Renno: Em relação a sentimentos, o que a letra deve passar?

Nana Caymmi: Ah, não sei qual é a intenção, tem muita coisa, pode passar amor, pode passar ódio, pode passar revolta, pode passar solidão, tem tantos sentimentos bravos aí. Tem uma que passa tudo, "Eu sei que vou te amar" [de Vinícius de Moraes e Tom Jobim], por exemplo, que nêgo canta como se fosse uma coisa leve, ela é pesada como carregar um caminhão nas costas.

Carlos Renno: Desesperadamente [referência à letra da música].

Nana Caymmi: Desesperadamente.

Maria Amélia Lopes: Você estuda, educa a voz, faz alguma coisa assim para manter a voz, Nana?

Nana Caymmi: Eu tenho uma senhora respiração.

Maria Amélia Lopes: É?

Nana Caymmi: Agora, fico sem beber gelado, evito falar em dia de espetáculo, faço uma reclusão, fico meio... 

Roberto Cômodo: Você tem algum ritual antes de dar um show

Nana Caymmi: Eu, se pudesse, não faria nada, porque tudo que a gente faz é nocivo. Se estão fumando muito eu apelo para o whisky, apelo para o Red coffee, que é o whisky com café, é um purgante você beber sem essa intenção e eu adoro bebida. Então, esse recurso é o último que eu uso. Eu não gosto de usar, mas tem que usar em casa noturna pelo cigarro, porque, por mais que se peça, não adianta. 

Regina Etcheverria: Eu não sei se você disse, mas por que você disse que é a cantora dos neuróticos?

Nana Caymmi: São essas letras. Porque quando eu acabo, abro o camarim, o povo entra e diz: " Meu Deus, que show maravilhoso, eu até chorei." Entendeu? Coisas assim, que eu odeio, porque me lembra mamãe.

Regina Etcheverria: E você gosta disso?

Nana Caymmi: Não é uma questão de gostar, mas não é minha intenção que você vá a um show meu e saia em lágrimas [risos], porque não foi eu quem fiz a canção. Eu apenas escolho e interpreto da maneira adequada, sabe? Porque eu trabalho a letra, eu estudo muito a letra, eu vi muitas delas serem feitas. Então, eu tenho todo um envolvimento emocional com elas também. Agora o fato de eles entrarem no camarim e dizerem: o seu show estava maravilhoso, você cantou divinamente bem, mas eu chorei que nem uma louca. Bom, desabafa, o problema não é a intenção, mas gostaria que fosse diferente.

Celso Fonseca: Você preferia um outro tipo de identidade do público?

Nana Caymmi: É claro que sim. Eu não canto isso só porque quero, deve ter o meu lado português, italiano, sei lá, essa mistura de raças que a gente tem e que forma uma espécie de masoquismo. Isso me cansa, isso me dilacera a interpretação.

Carlos Renno: O que você preferiria que prevalecesse nos comentários das pessoas a respeito dos seus shows, no camarim? 

Nana Caymmi: Que não chorassem, mas chorar é bom, para uns é até bom, porque tem gente que tem dificuldade nesse tal de chorar. Eu não tenho essa dificuldade de botar para fora qualquer coisa. E pode me fazer um dano terrível, mas ela engasgada, aqui, não fica, por isso essa fama.

Alex Solnik: Nana, mudando um pouco de assunto, de vez em quando surge essa polêmica, agora surgiu com a Beth Faria [atriz] na Veja, discutindo a maconha. Eu queria saber se você acha que a maconha devia ser proibida ou não, que é uma discussão que a Beth Faria começou?

Nana Caymmi: Olha, eu não tenho idéia desse assunto em relação aos outros. Eu tenho bastante problema com a maconha, eu não gosto, não acho legal, para mim qualquer fumo é proibitivo, mas a maconha faz um dano enorme. Eu tenho um filho que precisa de memória com urgência, porque os anos estão passando, já vai fazer 3 anos do acidente, e João é maconheiro, entendeu? Desse tipo assim, de achar o prazer na fuga que a maconha dá, de parecer uma espécie de cara meio imbecil, é uma coisa que... As experiências que eu vi, que eu tenho com a maconha, são as mais boas possíveis. Então, para mim...

Regina Etchecerria: Como você age em relação a isso com seus filhos?

Nana Caymmi: Com o João Gilberto eu seguro o que posso, como ele está sob domínio médico e meu, eu tenho que me virar. 

Regina Etcheverria: Sim, é um caso excepcional.

Nana Caymmi: Porque ele perde a memória. Quer dizer, ele perde, não adianta o que nós pretendemos, porque ele tem que recuperar o que perdeu.

Regina Etcheverria: Mas como é a sua postura com seus filhos em relação a isso? Você reprime, você conversa?

Nana Caymmi: Com as meninas nunca tive problema não.

Regina Etcheverria: Você desaconselha?

Nana Caymmi: Não dentro de casa...

Alex Solnik: Você acha que devia ser proibido ou não? Quer dizer, legalmente, você acha o quê?

Nana Caymmi: Legalmente, eu deixaria passar, eu não proibiria a maconha, eu não sou de proibir nada. Não acho que proibir seja a palavra exata, ainda mais em um ambiente distorcido. Deixa fumar até entupir. Eu já comprava assim uma pacoteira e deixava. Se meu filho não tivesse esse problema, minha cabeça iria para esse lado de proibir. Eu acho muito forte proibir.

Alex Solnik: Outras pessoas que você viu usar, você acha que causou dano? A maconha, não digo cocaína?

Nana Caymmi: Eu sei de pessoas que, por exemplo, ficam meio abestalhadas, precisam na hora e na hora estão inertes. A maconha entorpece, ela deixa a pessoa sem ação. Eu já vi bastante isso na minha frente.

Alex Solnik: Ela é improdutiva de certa forma? 

Nana Caymmi: Ela é improdutiva. Ela dá uma leseira, a pessoa fica ainda mais dendê, como se diz.

Aimar Labaki: Mas o álcool também não trai? 

Nana Caymmi: hein?

Aimar Labaki: O álcool, que você gosta? 

Nana Caymmi: O álcool detém o fígado, você não pode ficar... O cigarro, aparentemente, não te causa tanto dano, mas vai ser uma coisa que com o tempo... O álcool não, bateu, valeu, é porrada. Você toma mais de 3 doses além do previsto e bum. 

Aimar Labaki: Você continua bebendo em quantidades industriais? 

Nana Caymmi: Eu nunca bebi em quantidade industrial.

Aimar Labaki: É história? Conversa?

Nana Caymmi: Eu gosto de bebida, adoro ver garrafa e adoro bar. E porque meus filhos me davam um trabalho do inferno, porque a casa tinha que ser deles, a vida inteira eu me limitei em bar. Então, eu tenho 22 anos de Antonius, na varanda ou dentro, com os amigos. Quer dizer, é uma vida sempre em bar, porque ficava entrevista, tudo...

Jorge Escosteguy: Quer dizer que sua vida particular é na rua, para não atrapalhar sua vida com seus filhos? 

Nana Caymmi: É verdade, exatamente, sempre foi na rua minha vida particular.

Jorge Escosteguy: E continua assim?

Nana Caymmi: Isso acabou com os meus casamentos e continua [risos].

Alex Solnik: Mas também, outros começam no bar. 

Nana Caymmi: Sai um e entra outro.

Regina Etcheverria: Os 3 continuam com você?

Nana Caymmi: Dois ficam comigo e agora tenho mais netos.

Maria Amélia Lopes: Nana, quantos casamentos foram?

Nana Caymmi: Deve ter uns 11 ou 10 mais ou menos.

Roberto Cômodo: com 11 ou 10 casamentos você ainda se sente romântica?

Nana Caymmi: Eu não toparia casar de novo. Agora acho que estacionei mesmo, não tenho mais gás para essa coisa, tanto homem tirou o suco. João Gilberto já acabou com o que restava. 

Celso Fonseca: Nana, entrando nessa questão afetiva, você realmente teve um caso com Jack Ickx, que era um piloto de Fórmula 1 de um apuro técnico enorme, todo mundo que gostava de Fórmula 1 citava muito Jack Ickx, um piloto belga. Você chegou a namorar o Jack Ickx?

Nana Caymmi: Foi um pouquinho, não foi muita coisa não [risos], porque a corrida passa logo e depois a gente não pôde se encontrar na... É namoro de Fórmula 1. Quando fala em Europa eu já me arrepio toda. Eu fujo de estrangeiro. Eu sou daqui mesmo, não saberia morar em outro lugar no mundo.

Aimar Labaki: Você tem boas histórias com estrangeiros?  

Nana Caymmi: Tenho. 

Jorge Escosteguy: Só um minutinho, desculpe. Nana, antes de você responder a pergunta do Aimar, quero registrar a presença de mais um convidado no Roda Viva, que é o Jean-Yves de Neufville, da revista Qualis. Por favor, Nana.

Aimar Labaki: Você riu porque deve ter tido uma boa lembrança, não quer contar para gente não?

Nana Caymmi: Eu já me casei com um venezuelano, depois me casei com catalão...

Aimar Labaki: Catalão, esse deve ser bom.

Nana Caymmi: É verdade. 

Alex Solnik: Nana, você já se casou com algum bissexual? 

Nana Caymmi: Ah, eu não mandei examinar não [risos]. Tem gente que fala de vários dos meus maridos, mas eu não sei se eram. O Cláudio Nutti [cantor], por exemplo, até hoje nêgo duvida. O Cláudio é uma moça, parecia um Jesus Cristo. Realmente, quando eu acordava, parecia que estava dormindo com Jesus. Eu tinha essa impressão.

Maria Amélia Lopes: Nana, ele tem quase a idade da sua filha. Como foi isso?

Nana CaymmiI: O Cláudio tem 35, ou 36, e ela tem 30.

Maria Amélia Lopes: Então, como era essa convivência:? De alguma forma ele não era mais próximo dela?

Nana Caymmi: É, podia até ser, mas a cabeça do Cláudio era mais para mulher velha. Ele não tinha não tinha saco para minhas filhas não. Foi um grande amigo delas, durante 5 anos, foi um grande pai.

Maria Amélia Lopes: É?

Nana Caymmi: Grande pai.

Roberto Cômodo: Você chegou a declarar que ele foi o marido mais maduro.

Nana Caymmi: Foi a pessoa que mais ajudou em função do relacionamento com meus filhos. Na época mais conturbada, que é a adolescência, que é a pior, que eu saía de um para outro com uma violência enorme, que são todos escadinha e isso cansava, nessa hora, eu falava: "Cláudio, fala com eles, pelo amor de Deus". 

Maria Amélia Lopes: E seus filhos trataram bem essa coisa do seu namorado jovem?

Nana Caymmi: O Cláudio foi a segunda pessoa a viver comigo depois do pai deles. O primeiro foi Gil. Aliás, Gil não viveu com meus filhos. O Gil vivia no Rio de visita. O Gil, quando ia para o Rio comigo, ele ia para casa de Belina com as meninas. Ele aproveitava, via as filhas dele e eu via os meus. O ponto da gente era aqui em São Paulo, na Record.

Alex Solnik: A família do Gil tinha alguma bronca de você?

Nana Caymmi: Ai, queriam me ver morta, pisada na lama .... [alguém pergunta o motivo] Porque ele saiu [do casamento] com Belina esperando neném no último mês.

Alex Solnik: Eles achando que você...

Nana Caymmi: Achando que eu tinha forçado alguma barra e eu estava na casa de meus pais, mesmo que Gil quisesse que a gente morasse junto, naquela ocasião, eu não tinha meios. Eu estava com um filho de 6 meses, as duas meninas pequenas, recém chegada da Venezuela, seria um "rebu" na minha vida. 

Alex Solnik: Mas. concretamente, o que fizeram os pais dele em relação a você?

Nana Caymmi: Os pais dele mandaram matéria paga para todos os jornais de São Paulo e do Rio me chamando de tudo que tinham direito. Diziam que eu vivia drogada, que eu vivia bêbada, enfim, essas coisas. Naquela época, mais do que nunca, era a "sagrada família" que valia e viravam as costas. Até provar o contrário, se passaram 20 anos. Um belo dia eu fiquei sabendo que doutor Gil [José Gil Moreira, médico, pai de Gilberto Gil], que foi autor da matéria, escreveu para meu pai, pediu para se encontrar com ele e meu pai se recusou, porque o mal já estava feito. O que a família sofreu, o que eu sofri, o que meus filhos iriam sofrer, isso já estava feito, isso já tinha sido registrado, e só por um jornal de São Paulo, porque os outros se recusaram, avisaram meu pai e seguraram. Um jornal daqui [São Paulo] saiu. Deve ter alguém que tenha isso no arquivo, mas foi bastante duro. 

Alex Solnik: Essa canção que o Gil fez agora para o seu pai foi uma espécie de reconciliação?

Nana Caymmi: Não, isso não, porque nunca, em um só momento nesses anos todos, com exceção do tempo que ele ficou na Europa, nós nos separamos de Gil. Quando eu digo nós, é papai, eu, Dori e Danilo. Não, nenhum pouco. Gil, na família, sempre teve o maior conceito e nos aproximamos mais com a morte de Pedro. 

Maria Amélia Lopes: Nana, quando o Gil gravou "Marina" em um ritmo mais acelerado, soube que seu pai ficou louco da vida.  [Referindo-se à canção "Marina", composta em 1947 por Dorival Caymmi]

Nana Caymmi: Não, papai, não. 

Maria Amélia Lopes: Não?

Nana Caymmi: Não.

Maria Amélia Lopes: Não gostou muito, por ser meio roqueiro, assim e tal?

Nana Caymmi: Não, que nada.

Maria Amélia Lopes:  Não?

Nana Caymmi: Não, acho que não. Papai é muito boa maré nessa história.

Maria Amélia Lopes: Boa maré? Mas é que existem em 3 velocidades: devagar, muito devagar e Dorival Caymmi [risos].

Nana Caymmi: Quase parando, é assim mesmo.

Maria Amélia Lopes: É? 

Nana Caymmi: Nada, ele gosta que cantem. Agora mesmo está o povo todo cantando "Minha jangada vai sair para o mar" em um ritmo de trio elétrico. Ele tem que achar que é bom, pois deixa ele ...

Alex Solnik: No caso dele, não é a maconha a responsável pela velocidade, é a água de coco mesmo? [Risos]

Nana Caymmi: Papai, eu não sei, acho que ele anda fumando escondido, se drogando [risos].

Alex Solnik: Mas você sabe que o pai da Rita Lee [cantora], quando ficou mais velho, começou a fumar maconha. Vai ver que o Dorival também.

Nana Caymmi: Será? [Risos] Aí é que vocês vão ver, meu pai deitado em uma rede nunca mais levanta... (risos)

Jorge Escosteguy: Nana, sobre essa frase que você disse uma vez: "Comprem meu disco, me amem, mas me deixem só."

Nana Caymmi: Eu disse isso?

Jorge Escosteguy: Disse.

Nana Caymmi: Aonde foi que eu disse isso?

[Alguém diz em tom de ironia]: Depois alguém copiou em uma campanha para presidente [risos]. 

Jorge Escosteguy: Segundo a imprensa diz, “me deixem só” seria uma forma de lidar com a fama, com os fãs e com as pessoas...

Nana Caymmi: Não sei porque eu disse isso não, mas deve ter um grande motivo, não me lembro, não me lembro mesmo. Não me lembro.

Regina Etcheverria: Por que você anunciou que iria parar de cantar em 91? Eu li uma entrevista que você diz que em 91 abandonaria a carreira iria morar no mato para compor? 

Nana Caymmi: Não, não é questão de abandonar a carreira. Eu acho que a gente chega em um momento que tem que fazer um pouco menos de trabalho. Isso todos vocês, a intenção é essa, fazer o mínimo possível, porque a carreira da gente é uma roda viva, é isso aqui. Você sai de um estado para outro vertiginosamente, quando começa sentir o clima de Manaus, já passa para Cuiabá, isso tem sido uma tônica na minha vida. Então, a minha intenção, quando disse que queria parar, era essa: plantar alguma coisa e ver crescer, porque já é hora. Então, eu disse: com 50 anos vai ser lindo, eu vou colher alface, ouvir passarinho. Mas não, nada disso. João levou uma trombada... Quer dizer, um filho irresponsável voltou minha vida para trás. Mesmo que eu quisesse, querida, o sonho acabou.

Roberto Cômodo: É difícil ser mãe, mulher e cantora?

Nana Caymmi: Não tenha dúvida. Eu não criei os meus em creche. Eles foram para o jardim de infância com 5, 6 anos. Então, é batalha dura criar filho, imagino o que as mulheres e homens estão passando hoje. 

Alex Solnik: Você disse uma vez que é a única cantora com filhos, não é?

Nana Caymmi: Que fez, assim, uma carreira com filho.

Alex Solnik: Você criou os 3 filhos?

Nana Caymmi: Criei os 3 filhos.

Alex Solnik: Mas tem a Baby Consuelo [cantora], com o dobro e aqui...

Nana Caymmi: Mas ela veio bem depois de mim. Quando ela apareceu... Os meus filhos estão com 30 anos, a outra tem 29, o outro tem 26.

Alex Solnik: Por que você acha que as cantoras brasileiras não têm filho, geralmente?

Nana Caymmi: Eu fiquei vendo pelas amigas de minha mãe, pelas cantoras da geração do meu pai. A Elizete [Cardosos] tinha 1 só, a Isaura [Garcia] tinha 1 só, a Emilinha [Emilinha Borba (1923-2005)] tinha 1 adotivo, Marlene [nome artístico de Victória Boinaiutti de Martino] tinha 1 adotivo. Fiquei vendo o histórico de mulheres com casamentos e filhos, poucas têm, saem com esse rabo de foguete.

Alex Solnik: Você acha que existiu uma fase recente da música brasileira de uma certa... Prevaleciam cantoras, digamos, homossexuais. Você acha que havia uma certa barreira para quem não fosse, havia um boicote?

Nana Caymmi: Primeiro que é difícil não saber, saber ou adivinhar, não sei. Você sabe que eu nem percebi isso, mas é verdade [risos]. Tenho uma porção de colegas aí...  É verdade. Tem esse esquema de uns 25 anos para cá, do homossexualismo. É isso mesmo, pode ser que seja isso.

Alex Solnik: Para você não?

Nana Caymmi: Para mim é indiferente, são todas grandes amigas minhas, vivo com elas divinamente bem. Aliás, eu não acho filho bom negócio, nem ser mulher é um grande negócio também.

Alex Solnik: Você nunca sentiu que a sua carreira tivesse algum prejuízo por causa de você não ser desse grupo?

Nana Caymmi: Olha, qualquer prejuízo que a minha carreira tenha foi porque a cabeça das pessoas queriam mais da filha do Dorival Caymmi do que ela podia dar, ou não dar. Já me julgaram antes de eu abrir a boca, que é muito do brasileiro fazer isso. Você, antes de provar o feijão, já diz que está salgado. Então, você não sabe como é uma coisa e você faz uma dissertação sobre esse assunto sem o menor preparo. Em relação a mim aconteceu muito isso por ser filha do Dorival Caymmi. Dori deve ter sofrido isso e Danilo também um pouco.

Jorge Escosteguy: Mas do que podia dar como cantora, em relação ao repertório, como pessoa?

Nana Caymmi: Como tudo, como pessoa, como cantora, como tudo. Você sabe que o Brasil é assim: basta ser filho de para você ser mais questionado que o outro. Eu não sou retirante, não vim do norte, nem do nordeste, entendeu? Eu nasci no Rio de Janeiro, onde saía tudo. Então, não havia esse deslumbramento que você me perguntou no começo, não podia ter, porque tudo aconteceu na minha casa. Quando não acontecia na minha casa, acontecia na casa de um amigo do meu pai. Então, eu não vim com uma mala no ônibus São Geraldo [empresa de transporte] ávida por sucesso, nem queria uma casa, uma cobertura na Vieira Souto, isso nunca foi meu lema. Sempre quis minha casinha na fazenda, lá com meus pais, com minha família. Bastante diferente.

Jorge Escosteguy: Carlos, por favor.

Carlos Renno: Você é carioca?

Nana Caymmi: Sou do Grajaú.

Carlos Renno : E filha de baiano e mineira? 

Nana Caymmi: Exato.

Carlos Renno : O que cada uma dessas três pontas, Rio, Minas e Bahia, representam para você?

Nana Caymmi: Na música tudo, porque eu peguei um pouco lá de Minas e um pouco lá da Bahia. A intenção é não deixar que o repertório do papai se dilua. Peguei tudo, tenho as manhas todas de baiano, as manhas todas de mineiro, trabalho um pouco em silêncio, aprendi a ficar calada em certas situações. Isso veio da minha mãe, essa história de contar dinheiro atrás da porta, não confiar muito em banco, essas coisas todas são da mamãe.

Jorge Escosteguy: Você contava muito dinheiro atrás da porta?

Nana Caymmi: Era para fugir dos meus filhos.

Carlos Renno: E do baiano, quanto aparece?

Nana Caymmi: O baiano tem a indolência, tem a preguiça, bastante do lado do meu pai, de não gostar de sair de casa, gostar muito do seu canto, da sua gaiola. E tem todo esse lado dele que eu captei. Aliás, todos os filhos são assim. Infelizmente ninguém é muito chegado a sair, a grandes festas, todo mundo é muito reservado.

Carlos Renno: Os seus filhos são mais ligados à baianidade ou mineridade?

Nana Caymmi: Os filhos?

Carlos Renno: É.

Nana Caymmi: Não sei. Danilo é muito mineiro, Danilo é bem a mãe dele. 

Carlos Renno: Não, os seus filhos? 

Nana Caymmi: Ah, os meus não, os meus já são do outro lado.

Carlos Renno: Rio?

Nana Caymmi: É, são bem cariocas. 

Carlos Renno: Mas você estava dizendo dos irmãos?

Nana Caymmi: É, eu pensei que estivesse falando dos meninos. Dori já é mais homem do mundo. Dori, teve uma certa hora que parou a vida para ele. Se ele continuasse aqui no Brasil, ele não iria ... Não se usa mais grandes orquestras, agora você pega um teclado e as pessoas dizem: ai, que bonitinho. Faz som de bateria, som de piston, som de flauta.. Essas vergonhas do mundo atual. O Dori lá [Estados Unidos], trabalhando com orquestra, que é um tesão que ele tem. Ele telefona contando as coisas que fez com Quincy Jones [empresário musical, produtor e compositor de trilhas sonoras] e Danilo foi o último a sair do casulo. Se não fosse a terapia, se não fosse uma boa análise, ele ainda ficaria com aquela timidez, segurando tudo. Ele é muito tímido, mas agora ele tomou... 

Jorge Escosteguy: Você também fez terapia muitos anos?

Nana Caymmi: Fiz com... [cita o nome de seu terapeuta, mas fala muito baixo]. Eu não tinha noção de criar filho, eu não sabia o que era filho. Até parir, a barriga linda, fazer o enxoval, tudo era é um sonho. Depois que você apresenta aquele troço já dando problema com 5 anos...

Jorge Escosteguy: Mas pelo visto o resultado não foi... Quer dizer, você acabou de dizer que filho não é um bom negócio?

Nana Caymmi: É muito cansativo, você se acaba.

Jorge Escosteguy: Sua terapia levou você para um outro lado?

Nana Caymmi: Isso, é um reconhecimento. Antes, eu não diria isso para você. Hoje, eu digo para você que se eu pudesse não teria nenhum, seria igual as minhas colegas de profissão. Nem pensar. Criava um cachorro, lindo [risos]! Fazia um zoológico, eu e o Fasano, divino, comprava os bichos do Fasano, fazia qualquer negócio, cheio de homem na casa. Filho não.

Roberto Cômodo: Você fez muitos anos de análise, ou não? 

Nana Caymmi: Fiz 11, porque eu faltava muito também, pelo meu trabalho. Fiz em grupo, até estava me lembrando que era mais ou menos isso... 

Maria Amélia Lopes: Nana, você chegou... posso? [Interrompendo]

Jorge Escosteguy: Por favor, Maria  Amélia.

Maria Amélia Lopes: Você chegou a proibir o seu filho João Gilberto de seguir a carreira artística?

Nana Caymmi: Não, ele cantou comigo a primeira vez.

Maria Amélia Lopes: Então, mas alguém me disse uma vez que você não queria que ele fosse cantor. Não existiu essa história?

Nana Caymmi: Não, se eu não quisesse eu não teria levado ele para a Odeon [gravadora] para gravar comigo, pelo contrário. 

Maria Amélia Lopes: Mas que você teria retardado esse começo de levar ele junto? 

Nana Caymmi: Não, ele nunca mostrou dom em nada. Ele não quis estudar. Desde o primário que eu estou tendo problema com o João Gilberto. Em colégio, ele é um menino, entendeu, dos anos rebeldes, ele é bastante difícil. 

Maria Amélia Lopes: Você acha que ele pode vir a cantar?

Nana Caymmi: Não sei por quanto. Acho que com o tratamento que ele fez, com um mundo de remédio, com um mundo de coisa, a voz que eu ouço ele falar, que eu ouço ele cantar em casa, não é legal. Eu agora já não botava a mão por ele.

Maria Amélia Lopes: Você diz para ele que não é legal?

Nana Caymmi: Ele sabe disso. Eu falo para ele. Eu falo porque verdade quem diz é a mãe. Se a mãe não diz, é ela que tem que voltar a fazer terapia. Eu tenho que dizer essas coisas para evitar de ele fazer, mas assim mesmo ele insiste em dizer: “Você podia me por no seu show.” Ele está ainda... É difícil, quando o filho retarda por acidente é muito difícil, a barra é pesada.

Celso Fonseca: Nana, só voltar um pouco, você acha que toda essa tecnologia na música empobreceu a produção musical?

Nana Caymmi: Tranquilamente. Agora, vocês estão pedindo compositor, música bonita e coisa boa, nessa geração vai ser um pouco difícil.

Regina Etcheverria: É, você não está encontrando nesse pessoal novo repertório para você? 

Nana Caymmi: Não, nem para mim e nem para ninguém. Não só eu não. 

Alex Solnik: Mas é a crise dos compositores, os compositores estão compondo mal?

Nana Caymmi: É, claro que sim, são os filhos dos hippies, ninguém estudou nada. Então, hoje em dia estão sentindo falta do estudo. Agora vai ter que parar tudo para estudar.

Aimar Labaki: Nana, dos 3 irmãos você foi a única que não desenvolveu a composição também. Você compôs pouca coisa. 

Nana Caymmi: Ai, porque eles foram ter filhos bem tarde, meu amor [risos]. Eu cuidava dos meus filhos. Imagina fazer música lá em casa? Agora, quando eu disse que iria largar tudo e iria fazer...

Aimar Labaki: Mas você tem vontade?

Nana Caymmi: Mas eu morro, eu fico entalada para fazer música.

Aimar Labaki: Mas você tem talento também para isso?

Nana Caymmi: Eu fiz várias músicas.

Aimar Labaki: Eu sei que fez algumas, mas não é a tônica do seu trabalho?

Nana Caymmi: Eu não sei se eu tenho talento, mas eu queria. Mesmo que eu não tenha, eu vou abortar meu talento, não tenho como jogar isso fora. 

Aimar Labaki: Você está planejando, então, trabalhar nisso?

Nana Caymmi: Sim, se ninguém cantar, ótimo, canto eu. Mas eu queria fazer, seria um prazer de fazer, mas está difícil. 

Alex Solnik: Nana, você falou agora pouco que as pessoas esperam mais de você. Eu vejo, assim, todo mundo... Quer dizer, eu não vejo ninguém dizendo que você é uma má cantora, ou que você é uma grande cantora, ou que você é a maior cantora do Brasil, não ouço ninguém dizer: "ela é uma péssima cantora". Eu ouço: "ou é grande ou é a maior de todas". Então, você não acha que faltou um pouco de máquina para você deslanchar também? 

Nana Caymmi: Talvez porque eu tenha rejeitado a tal da máquina, eu sempre rejeitei muito.

Alex Solnik: Por que você rejeitou? 

Nana Caymmi: Por ser filha do Dorival Caymmi.

Regina Etcheverria: E por que você queria fazer?

Alex Solnik: Mas como foi esse momento, que uma máquina esteve disposta a investir em você e você recusou? Quando foi isso?

Nana Caymmi: Olha, todo produtor que entra no estúdio, se eu for fazer o que ele quer, eu não tenho a crítica especializada de música me enaltecendo. Eu não teria o repertório que eu tenho hoje. Eu teria entrado no modismo que ele perguntou. Eu teria estado em todos os movimentos de música no Brasil: Tropicalismo, bossa nova, mal, mel, mil, não, estou fora.

Roberto Cômodo: Alguma gravadora já tentou mudar seu repertório? 

Nana Caymmi: A primeira coisa que elas fazem é mandar um produtor desavisado conversar comigo. Aí eu toco ele a tiro, né?

Roberto Cômodo: Você sempre produziu seus discos, não foi? Pelo menos no começo?

Nana Caymmi: Sempre.

Roberto Cômodo: Sempre.

Nana Caymmi: Sempre, quando não produzo sozinha chamo o Milton e ele me ajuda, Danilo me ajuda, Dori me ajuda. Eu tinha Dori do meu lado, gente. Se eu tenho Dori Caymmi do lado para que vou pedir mais alguém? Ficava na porta bebendo...

Jorge Escosteguy: Nana, agora vamos falar um pouquinho da sua carreira. Você sempre disse o que quis, tanto em nível de repertório, de show, de interpretação etc. Que balanço você faz da sua carreira? Quer dizer, como é que ela está hoje, o que você está fazendo, se valeu a pena essa intransigência, vamos dizer assim, no bom ou no mal sentido, de fazer sempre o que você quis? 

Nana Caymmi: Bom, primeiro, valeu a pena, não tenho a menor dúvida que valeu a pena. Segundo, que hoje se fala em Custódio Mesquita [compositor, (1910-1945)], uma das pessoas que, graças a mim... Há muita gente na canção popular que mataram, ou que morreram, e que eu estou conseguindo segurar, porque a memória é muito curta. Uma das coisas mais importantes que eu tenho feito é isso: não deixar o passado ficar tão passado assim como deixam. A Beth [Carvalho] cuida lá do samba, que é Cartola [nome artístico de Argenor de Oliveira, (1908-1980)], entendeu? Outros compositores da pesada, famosos e bons, como a Alcione [cantora de sambas conhecida também como: Marrom], enfim. Elas não deixam cair nesse lado a música brasileira e eu, da minha parte aqui, não deixo cair a outra.

Jorge Escosteguy: E a carreira como vai? Quer dizer, com o momento em que você ficou sem gravadora? Inclusive se lamentou disso no Brasil.

Nana Caymmi: Mas eu não estou sem gravadora.

Jorge Escosteguy: E você disse que é assim quando as pessoas ficam velhas.

Nana Caymmi: Mas eu não estou sem gravadora. 

Regina Etcheverria: Mas por que você saiu da Oden, Nana?

Nana Caymmi: Eu saí, porque estava discutindo royalties na ocasião com os diretores e advogados. Eles queriam me dar um royalty que não era o padrão normal, começaram a me pagar o padrão normal a partir do segundo disco, e eu falei: olha, eu não fiquei louca ainda.

Regina Etcheverria: Quantos anos você ficou lá?

Roberto Cômodo: 27 anos. 

Nana Caymmi: Eu fiquei na Odeon tanto tempo que agora...

Regina Etcherria: Coisa de 27 anos?

Nana Caymmi: Não. Saí 2 vezes da Odeon. Com o casamento... Eu comecei com "Acalanto" [canção de Dorival Caymmi, lançada em um disco de 1960, quanto a artista estréia no cenário musical], com meu pai...

Regina Etcheverria: 1961?

Nana Caymmi: 61, não é isso?    

Regina Etcheverria: É.

Nana Caymmi: Depois, eu voltei para a Odeon, no auge do Odeon, quando estava Clara [Clara Nunes, (1943-1983)], quando estava Milton Nascimento, Djavan, tinha um cast invejável. Agora, 3 anos atrás, quando eu comecei a discutir com a  Odeon sobre problema de royalty, sobre problema de contrato, o João sofreu o acidente e eu não cuidei mais de gravadora. Fiz 2 discos nesse intervalo, que é o Família Caymmi em Montreux, na Suíça, [álbum gravado em show de 1991] e fiz uma lembrança de 25 anos de carreira para a Sony Music, [álbum O melhor da música brasileira, de 1992] que é o que está rodando aí. Até o Clodovil [costureiro e apresentador de TV] estava a pouco tempo mostrando a série...

Roberto Cômodo: Brasileira?

Nana Caymmi: Isso. Uma série de discos. Então, eu fiz para relembrar os 25 anos e cantar compositores que eu não podia gravar. 

Roberto Cômodo: Qual teu melhor nisso?

Regina Etcheverria: Você ficou com alguma esperança de ganhar o Grammy, quando você foi a...? [Nana foi indicada ao Grammy de 1990, considerado o maior prêmio internacional da indústria da música, pelo álbum Só louco, lançado em parceria com Wagner Tiso]

Nana Caymmi: Quando houve com Wagner Tiso [músico, arranjador e compositor]? Ah, claro, a gente sempre tem. Imagina você ser indicada para o Grammy? Eu e Wagner, claro, a gente não abriu champagne antes, mas estávamos ávidos. Primeiro que a subida em vendas foi uma coisa brutal e se falava no mundo inteiro.

Celso Fonseca: Qual o efeito da indicação? É um efeito imediato, quer dizer, existe uma resposta conseqüente?

Nana Caymmi: Não, nem tanto. Não tem uma resposta, tem depois que você ganha.

Aimar Labaki: Qual é o seu melhor disco? Qual o disco que você gosta mais?

Nana Caymmi: Que eu gosto mais é um da CID [gravadora], que é o que está o "Beijo partido", "Só louco" [refere-se ao álbum Nana Caymmi, 1975], que meu pai diz atrás: "Andei por onde andei e todo caminho deu no mar."

Aimar Labaki: É o melhor que você já fez?

Nana Caymmi: Que eu gosto é, que eu mais sinto, assim.... O Milton [Nascimento] faz o contracanto de "Ponta de areia", eu acho o repertório imbatível, as orquestrações são muito bonitas. E o outro com o César [Cesar Camargo Mariano, músico], que foi uma coisa assim que eu tirei...

Aimar Labaki: Voz e suor? [álbum de 1983] 

Nana Caymmi: Voz e suor.

Aimar Labaki: Que é o mais...

Jean-Yves de Neufville: Como você vê o CD hoje nessa coisa de preservar o seu passado musical?

Nana Caymmi: É lindo isso, nunca pude imaginar com tudo que eu tenho de aquariana, de olhar para frente, de achar que, poxa, surgiu uma máquina dessa como o CD revisando tudo... É preciso muito dinheiro, porque, eu pelo menos, tenho discos que eu olho para a capa e fico dolorida. Minha coleção de Sinatra [Frank Sinatra, (1915-1998), um dos maiores cantores norte-americanos], por exemplo, fico meio apaixonada de abrir mão, mas vai chegar um momento em que a gente terá que ser prático na vida. O CD foi a coisa mais bonita que podiam ter feito. O som é maravilhoso. 

Jean-Yves de Neufville: Então, no ano que vem parece que a Odeon está querendo lançar uma coleção 2 em 1, 2 álbuns seus em CD. Você está sabendo disso?

Nana Caymmi: Não. Não estou não. 

Jean-Yves de Neufville: Não?

Nana Caymmi: Se vão fazer é ótimo, porque só fazem isso depois de morto e eu viva vai ser um show, vou beber por causa disso. 

Maria Amélia Lopes: Você vai querer interferir de alguma forma?

Nana Caymmi: hein? 

Maria Amélia Lopes: Porque são 2, é o repertório de dois discos em um CD. Você vai querer interferir de alguma forma?

Nana Caymmi: Não, eu nunca interferi, a Odeon já é mestre em fazer isso. A Odeon várias vezes já fez isso comigo, porque basta sair um disco novo que as gravadoras fazem isso. Eu já estive em várias gravadoras como a RCA, como a CID.

Maria Amélia Lopes: Atrapalha? 

Nana Caymmi: Não, não atrapalha, porque o público não se engana. Quando gosta muito, as pessoas vão conferir para saber se o repertório é o mesmo. É como eu, quando compro Pavarotti [Luciano Pavarotti, (1935-2007)] e não caio assim ....

Roberto Cômodo: Você gosta de ópera, não gosta?

Nana Caymmi: Eu gosto muito. O clássico em geral, eu sou apaixonada e canalizada por ópera também.

Alex Solnik: Qual é o disco brasileiro que você compra, o CD brasileiro?

Nana Caymmi: Olha, tem muita coisa, instrumental tem muito, comprei Rafael Rabello, Paulo Moura [citando instrumentistas], muita coisa. 

Alex Solnik: Dupla caipira você comprou algum [risos]?

Nana Caymmi: Não.

Jorge Escosteguy: O que você acha da música caipira? O que você acha dessa... 

Nana Caymmi: Gente chata, eu não acho nada [risos]. Tem alguma coisa para achar? Pergunto eu a você. Você gosta?

Jorge Escosteguy: Não sei, estou perguntando a você. Você é a entrevistada.

Nana Caymmi: Eu não gosto não. Eu não compro. Eles ganham lá o dinheiro deles, cada um vai para sua casa plantar seus tomates, suas batatas...

Jorge Escosteguy: Lulu Santos [cantor] estava certo ou estava errado no que ele falou?

Nana Caymmi: O Lulu está certo no que ele falou. Eu não vou assinar embaixo, não tenho nada contra que as pessoas ganhem dinheiro e tudo isso. Agora, massificar rádio e televisão com isso é um absurdo. Estão se aproveitando de uma situação, como tudo, não é? Que sempre vem assim.

Alex Solnik: É uma música sem qualidade, você diria?

Nana Caymmi: Não têm não. Eles mesmos vão chegar uma hora em que vão ter que sacudir o baú, porque não dá.  

Alex Solnik: São 2, 3 acordes e...

Nana Caymmi: Exatamente, é como o mau rock. O rock ruim é duro.

Alex Solnik: Que também durou pouquinho e já...

Nana Caymmi: Já cai mesmo.

Jorge Escosteguy: E o Brasil tem rock bom, você ouve rock brasileiro?

Nana Caymmi: Tem o Paralamas [Paralamas do Sucesso] que é bom, o Legião é boa [Legião Urbana]. 

Celso Fonseca: Lobão [músico]? 

Nana Caymmi: Lobão, tem algumas coisas que eu gosto. Gosto e vou assistir, sou amiga dele.

Celso Fonseca: Titãs, você gosta?

Nana Caymmi: Titãs acho muito escandaloso, muito barulhento. Prefiro mais o rock dos Paralamas, mais dançável, curte mais minha cabeça. Também, só faltava, uma velha agora enrabichada com rock. 

Aimar Labaki: Falando do seu gosto. Meu remédio para dor de corno sempre foi um litro de whisky e a coleção de disco de Nana Caymmi. O que Nana Caymmi toma quando está com dor de corno?

Nana Caymmi: Sinatra.

Aimar Labaki: Sinatra? 

Nana Caymmi: E whisky. 

Aimar Labaki: É?

Nana Caymmi: Aquele velho, quanto mais velho melhor.

Aimar Labaki: É?

Nana Caymmi: Ah, largo tudo. Sou louca por ele, não só por ele, é o modo de dizer, mas boto minhas negas todas, que eu tenho uma coleção de mulher em casa... 

Aimar Labaki: Música francesa não?

Nana Caymmi: Francesa, Léo Ferré [músico italiano que viveu em Paris, na França,1916-1993].

Aimar Labaki: O que você falou de Piaf.

Nana Caymmi: Piaf nem tanto, porque as músicas estão meio batidas, mas o que eu mais gosto da França é Leó Ferré.

Alex Solnik: Elis Regina [1945-1982] você gosta de escutar?

Nana Caymmi: Não ouço há muito tempo Elis. 

Alex Solnik: Você gostava?

Nana Caymmi: Gostava, não dela, mas do que ela cantava.

Alex Solnik: Dela como pessoa você não gostava? 

Nana Caymmi: Não tive muito trato com ela e foi bastante duro. Nós duas juntas foi brabeza.  

Alex Solnik: Não deu? 

Nana Caymmi: Não, porque eu era amiga de Ronaldo [jornalista, compositor e produtor Ronaldo Bôscoli (1928-1994), foi casado com Elis Regina] e envolvia o casamento. Elis misturava muito a estação. Ronaldo e Elis misturaram muito o meio de campo. E aí eu que saía fora.

Alex Solnik: Tinha ciúmes de você?

Nana Caymmi: Não, eu era amiga de Ronaldo, como era amiga de Miéle e Anita [Luís Carlos Miéle, produtor musical] e os casais se encontravam. Ela era casada com Ronaldo e quando as brigas surgiam, entravam os amigos no bolo. Elis resolvia botar todo mundo no milho, crucificar. Até que ela veio para São Paulo e nunca mais... Só via a gente de vez em quando. E eu me lembro uma vez que João Gilberto estava no programa dela e eu fui meio que vetada, fui meio que mandada embora. 

Aimar Labaki: Como foi sua experiência em TV? Você teve um programa por um tempo? 

Nana Caymmi: Eu tive programa. 

Aimar Labaki: Como que era isso, que TV era, como que era o programa?

Nana Caymmi: Canção de Nana, canal 6, na TV Tupi. 

Aimar Labaki: Quanto tempo?

Nana Caymmi: Ah, até casar, a minha carreira durou 9 meses.

Aimar Labaki: Você tinha jeito para a coisa, para entrevistar, para... 

Nana Caymmi: Eu acho que eu não tinha muito não, porque as pessoas que eu levei, Valzinho [Norival Carlos Teixeira, (1914-1980)] o... Quer dizer, não tinha compositores da pesada, ninguém entendia muito bem [risos], não iria dar muito ibope, João Gilberto. 

Aimar Labaki: Você levou Valzico na televisão, é isso?

Nana Caymmi: Levei muita gente na Canção de Nana, tinha muita...

Aimar Labaki: Sobrou alguma coisa, tem alguma coisa?

Nana Caymmi: No meu aniversário de 15 anos foi uma coisa linda, porque eu tive João Gilberto, Silvia Telles [1934-1966], Lenita Bruno [1926-1987], o Trio Iraquitan cantando lá em casa para mim. Foi uma festança, porque sou eu e meu pai, eu faço em 29 de abril e papai é 30 de abril. Então, assim meus 15 anos foi uma coisa de outro mundo. Eu fiquei fascinada de ver esses astros todos cantando.

Aimar Labaki: Você nunca mais fez TV?

Nana Caymmi: Eu faço TV só assim nessa base de entrevista. Eu condeno muito a televisão feita no Brasil atualmente. 

Aimar Labaki: Você não gosta?

Nana Caymmi: Não, eu não acho muito justo, eu não acho com quem...

Jorge Escosteguy: Condena em que sentido? 

Nana Caymmi: Não há musicais sérios. Até o último homem que tentou fazer isso e fez bem foi o Vanucci.

Jorge Escosteguy: E esses clipes, essas coisas que passam na televisão, o que você acha?

Aimar Labaki: Na MTV, por exemplo?

Nana Caymmi: Eu não vejo quase nada, mas 70% é de estrangeiros.

Aimar Labaki: Você fez um ensaio?

Nana Caymmi: Não são feitos com os brasileiros, sempre dizem que é muito caro, a gravadora tem que estar por trás, não sei quem tem que estar por cima e outro tem que estar por baixo. É muito dinheiro, você fica olhando e pára no tempo. Foi um prazer e até logo.

Aimar Labaki: Mas você fez um ensaio aqui para a TV Cultura este ano. Você não gostou?

Nana Caymmi: Mas esse tipo de coisa eu faço, sempre fiz, nunca me recusei a fazer.

Aimar Labaki: É, mas você disse que não tem coisas boas na TV, nem musical?

Nana Caymmi: Sim, mas isso fica sempre na Cultura e na TV Educativa. Quer dizer, não acontece nada, os músicos ganham muito pouco, os programas são uma vez por ano. Por exemplo, não tem uma coisa que você diga que é mensal, ou diga sobre um show tal, não fazem porque não tem verba, não tem isso, não tem aquilo. 

Aimar Labaki: E rádio, a rádio sempre te tratou mal? 

Nana Caymmi: Rádio eu acho adorável. A coisa que eu mais ouço é rádio. Agora eu até descobri que uma rádio que só toca clássicos.

Aimar Labaki: Você toca na rádio?

Nana Caymmi: Ouço muito.

Aimar Labaki: Não, você toca nela, você? 

Nana Caymmi: Eu? Pouco. Quer dizer, lá no Rio tenho noção de quanto, porque vem pela Socimpro [Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Autorais], mas não tem muita execução. Tem na hora que não é nobre, na hora nobre não sou eu, são as chamadas vendas, quando a máquina está atrás para pagar para que seja tocado. Por essa razão eu não, respondendo a pergunta dele.

Regina Etcheverria: Vamos apimentar um pouquinho. O Caetano Veloso escreveu agora no Globo, na ocasião dos seus 50 anos, uma definição a seu respeito, que eu queria que você analisasse para eu ver se você concorda ou não. Ele disse: "Como pode alguém ser tão vulgar e tão nobre ao mesmo tempo? Hoje, ela ainda xinga, ainda grita, ainda mente, mas já é tudo uma auto paródia feita por uma mulher capaz de grande serenidade?" 

Nana Caymmi: Isso é verdade. Ele tem toda razão.

Alex Solnik: Você é nobre, é monarquista? [Risos]

Nana Caymmi: Não, pelo amor de Deus, parlamentarista. Do Caetano, isso ainda é mentira, essas coisas são mentiras para eu mesma, de pensar que está tudo bem, de que as coisas vão mudar, mais ou menos nesse sentido. Essa coisa de eu morar na mesma rua que ele, a gente se fala muito pouco, eu respeito a privacidade dele e ele a minha. Ele ficou com muito pudor de me ver depois do acidente do meu filho. Ele não sabia o que dizer, pois já vinha com a bomba do filho de Gil. Foi muita coisa. Caetano é muito emotivo e a gente sabe do amor muito grande que temos um pelo outro. Porque eu faço show nos lugares e Caetano ia muito em show meu. De 3 anos para cá ele se omite. Ele não vai nem agüentar pela forma que ele sabe que eu canto. Isso o atinge profundamente. 

Regina Etcheverria: E você acha que ele te definiu bem?

Nana Caymmi: Eu acho que sim, qualquer coisa que ele escreva sobre mim é fantástico.

Jorge Escosteguy: Nós falamos de João Gilberto, como é que foi a história do João Gilberto em Montreux [Suiça]. Você se queixou dele? 

Nana Caymmi: Não, eu defendi Wagner Tiso, sabendo que ele estava mentindo. 

Jorge Escosteguy: O que aconteceu? Porque ficou meio no escuro. 

Nana Caymmi: Porque, é o seguinte: nós éramos 5 passando o som e tínhamos um horário previsto, um horário que fica catalogado, porque com os suíços você imagina o que é o relógio. Então, aqui você entra, aqui você faz xixi, aqui você canta, aqui você pisa, aqui você sai. Então, era por ordem: João Gilberto passar o som, depois Caetano, não, João Gilberto, João Bosco e Caetano. Porque João Bosco e João Gilberto iriam tocar só com o violão e olha que eles fazem a coisa direito. Quem iria entrar com banda tinha que vir primeiro, para depois desativar aquilo tudo, porque nós éramos os primeiros. Quer dizer, o Wagner Tiso primeiro, eu, depois entrava Caetano, limpavam o palco e entravam os dois de violão, que já vinham excursionando pela Europa. Aí, o João, o que fez? O João deu meia volta, meia ré, meia trave, foi não sei para onde com Octávio Terceiro [músico]. Eu vi, que eu estava observando, porque eu não falei com ele nada, fiquei distraída com cara de... Eu falei: vai ter coisa aí. Passei meu som e fui dar uma entrevista para a TV francesa. Quando eu desço, eu olho para o Octavio Terceiro: onde foi o João, Otávio? Vocês não vão embora para o hotel? E ele: "João foi passar o som." Eu falei: o quê? Foi passar o som? Eu pensei: tem mutreta aí. E avisei para o Wagner: Wagner, o João mexeu no som de novo. E não deu outra coisa. Nós iríamos gravar um disco e quando o Wagner pegou o piano para tocar, o som estava pela metade, modificado, estava equalizado para violão, equalizado para ele [João Gilberto]. Quer dizer, as duas primeiras músicas, ou três até do Wagner, que iria sair em disco, não saíram. Eu reinei sozinha no disco de Montreux, comigo e Wagner, que é esse que foi para o Grammy. Cantei, praticamente... O Wagner deve ter 2 músicas tocadas só. Os 5 instrumentais do Wagner foram prejudicados, porque o João voltou para  a Europa... Ele é muito vivo. 

Alex Solnik: E você acha que ele fez de propósito isso?

Nana Caymmi: Tranqüilamente, ele sabia que iria dar galho, porque depois não iria ter condição.

Jorge Escpsteguy: Mas, por que ele faz isso? É da personalidade dele fazer esse tipo de coisa? 

Nana Caymmi: Porque ele é... Acho que ele se basta. Ele é uma coisa assim... É uma pessoa que não olha se está interferindo no outro, entendeu? Ele passa por cima das coisas quando é o sumo dele, a coisa que ele vai fazer, a música dele. Ele não olha para os lados, não tem aquela coisa do coletivismo e companheirismo. É o que eu sinto. Eu não sei porque, eu nunca trabalhei com ele. Eu participei de um show no qual ele estava. Fiz a minha parte e ainda fui para a platéia com o Caetano, sentamos no chão, fomos assistir o mestre. Até acho que, se ele quer fazer isso, faz. Eu não faço isso com um colega, eu não faço isso, não vou... Se é intencional ou não prefiro acreditar que não seja, entendeu?

Alex Solnik: Nesse show do João, você percebeu que ele prejudicou o Tom [Jobim] de alguma forma? Porque o Tom saiu se queixando também desse caso?

Nana Caymmi: Sim, o som do piano do Tom não existiu, estava abafado, como se ele estivesse pisando todo tempo no pedal do som. Agora isso foi um problema que o Tom não deve ter testado direito o som dele. O João, lá na frente, com microfone e com violão, tem alguma coisa? É que a picuinha dos dois é de duas velhas, entendeu? Eu não tenho mais saco para velho não.

Jorge Escpsteguy: Qual é a picuinha das duas velhas?

Nana Caymmi: Porque um, naquela época da bossa nova, chegou no Carnegie Hall [casa de shows em Nova Yorque, onde Tom Jobim se apresentou em 1962], reclamando que o outro não comprou o sobretudo dele, umas histórias sem pé e nem cabeça, que eu não vou estar presa à isso? [Risos] 

Maria Amélia Lopes: Agora, o Tom disse na coluna do Zózimo [Zózimo Barroso do Amaral, jornalista, (1941-1997)], que iria dar o troco. Você acredita nisso?

Nana Caymmi: Ah, eu não acredito em colunista que... Se bem que Zózimo não está no Rio, está em Miami , fugindo da polícia e querendo matar bandido e polícia também. [Risos] 

Alex Solnik: Mas a coluna é do Zózimo e do Fred Sulter. O Fred está aqui.

Nana Caymmi: Hein?

Alex Solnik: A coluna, essa coluna chamada Zózima, feita pelo Zózimo e pelo Fred Sulter.

Nana Caymmi: Sim, mas o Zózimo não tem nem tempo de fazer isso. Essas coisas que eles estão gerando agora, de João Gilberto e do Tom, não acredito que o Zózimo esteja com cabeça para falar bobagem.

Alex Solnik: Não, mas tem o outro, tem o segundo dele, que é o Fred Sulter, que está no Rio. A coluna é dos dois.

Nana Caymmi: Tem. Tomara a Deus que não seja verdade isso que você quer dizer para mim. É verdade? 

Alex Solnik: Não, não, só quis te dizer que são duas pessoas que fazem. [Risos]

Nana Caymmi: Se vai dar o troco, jogar o piano do João amanhã, eu vou ficar, eu perder meu show e vou ficar em São Paulo. Essa apoteose eu não vou perder, cara. Vai ser um sonho os dois se matando. É verdade, porque eu não vi... [risos]

Alex Solnik: Eles têm que resolver esse problema uma hora, não é?

Nana Caymmi: Mas não há nada para se resolver. É uma coisa de um sobretudo, eu acho que é isso. E essa história da bossa nova, de perguntas com respostas, assim, atravessadas: quem é que fez isso? Eu acho que o Tom Jobim está acima de qualquer coisa, porque ele é o criador. O outro [João Gilberto] criou um estilo de tocar, um estilo de cantar que, assim, com pouca voz, com uma senhora amplificação ali dentro, que só falta enfiar o microfone dentro para sair aquela sonoridade. É um gênio, ótimo. Mas o Tom Jobim.. Eu não sei se puxo mais sardinha para o Tom, mas devo estar puxando. [O comentário de Nana refere-se a uma discussão sobre quem seria o criador da bossa nova

Aimar Labaki: Você acha que o Rio de Janeiro tem saída? Você tem saudades daquele Rio? Fala um pouco disso, você tem saído no Rio de Janeiro?

Nana Caymmi: Se tem saída... Eu espero, porque senão eu mandava castrar meus filhos, não queria neto, não queria nada. Eu sonho em voltar a passear na praia sem me agarrar com segurança, sem estar preocupada que o João Gilberto, diga de quem é filho ou neto

Aimar Labaki: Em quem você votou para prefeito?

Nana Caymmi: Agora? César Maia, desde o primeiro turno foi no César Maia [eleito prefeito do Rio de Janeiro pelo PMDB em 1992]. 

Aimar Labaki: Você acha que ele pode ajudar a resolver?

Nana Caymmi: Se não pode ele é carioca, cara. Está morando lá, tem filhos lá dentro, tem a chilena dele, foi refugiado, está lá e vai fazer, tem que fazer alguma coisa. Eu segui pelo menos o que o Marcello [Marcello Alencar, eleito prefeito do Rio de Janeiro pelo PDT em 1986] fez, que deu uma pintura, passou um baton na cidade. Porque alguma coisa que esse prefeito fez a favor foi melhorar o aspecto do aeroporto, onde vão saltar as pessoas que vão continuar fazendo o Brasil, não é? Ou continuar jogando o dinheiro aqui dentro.

Celso Fonseca: Já te passou pela cabeça deixar o Rio?

Nana Caymmi: Não. E esse sítio que eu sonho e almejo fica a 40, 50 minutos. Não penso e nem largo, agora meus pais estão velhos, não vou nem pensar. Já tive proposta de tudo quanto foi jeito para morar fora. Eu não me adapto não, gosto daqui. Queria que essa palavra consertar... Porque a sociedade do Rio de Janeiro fez uma coisa abominável, botou grade, começou a engradear tudo, todo mundo com cofre, todo mundo com grade, agora ninguém mais sai. Eles estão arrebentando as grades, eles estão passando por cima da grade, estão passando por cima das garagens e tirando o carro lá de dentro, por quê? Porque foi mais prático nessa onda, onde o brasileiro tapa o racismo, tapa a burguesia, tapa certas coisas da janela. Hoje você está vendo que não adiantou colocar grade em toda a cidade. A cidade está toda fechada, mas essa grade também se rompe. 

Aimar Labaki: Quando você falou da sua ligação com o Gil, quando ele foi para o exílio, você disse que você não estava tão ligada à política quanto ele e o resto das pessoas. Você tinha alguma ligação política?

Nana Caymmi: Tinha bastante.

Aimar Labaki: Você chegou a militar? Me fala um pouco disso. 

Nana Caymmi: Cantava para a família de presos políticos em faculdades, universidades, só para arranjar dinheiro para manter os presos. Quer dizer: continuem lutando que estamos aqui para manter vocês. 

Aimar Labaki: Durante a ditadura você ficou fazendo isso?

Nana Caymmi: Sim, o tempo todo trabalhando.

Aimar Labaki: Você pertenceu a  algum partido, você chegou a militar? 

Nana Caymmi: Nunca, não tenho essa vontade de partido também, sou contra esse negócio, eu já brigo antes, eu prefiro fazer. Me chama que eu coopero em tudo, mas não me credencie em partido não. 

Aimar Labaki: Na relação com o Gil isso pesava? Porque ele sempre teve uma posição mais atuante.

Nana Caymmi: Ele nunca interferiu e eu nunca interferi nas coisas dele. Ele não é homem de dizer que se deve seguir aquilo ou o que se deve fazer. Não. 

Jorge Escpsteguy: Agora, você disse que o Gil é muito violento, mas ele nunca passou essa imagem de violento, ele sempre passou a imagem... 

Celso Fonseca: Ele passa de pessoa intempestiva?

Aimar Labaki: Quer dizer, de zen ele não tem nada?

Nana Caymmi: Acho que não, tem o gênio da flor. Pisava o canteiro, é verdade.

Jean-Yves de Neufville: Ele chegou a compor especialmente para você várias músicas? 

Nana Caymmi: Eu sempre achei que "Domingo no parque" [ música do álbum Gilberto Gil, 1968] fosse para mim, que ele matava ali no... [risos] Mas, depois, a outra mulher dele disse que não, o Gil disse que não.

Jean-Yves de Neufville: Você gostou de cantar agora "Zabelê" [de 1996]? 

Nana Caymmi: Adorei, adorei.

Jean-Yves de Neufville: Por quê? 

Nana Caymmi: Fui buscar isso no baú. É uma canção que eu fazia dupla com ele na antiga Excelsior [extinta rede de televisão, que ficou no ar entre 1960 e 1970] e tem muita coisa. Eu fiz com Gil "Bom dia" [1967], que é música minha e letra dele. Fiz muita coisa, muita coisa corrigia, eu ajudava nas letras. Eu ajudava: isso aqui podia ser assim e dava outra conotação. A gente trabalhou muito junto em música.

Jean-Yves de Neufville: Porque ele diz que nunca, ou muito pouco, compôs para outros artistas. Na verdade, ele é muito egoísta, ele só compõe para ele e muito pouco? 

Nana Caymmi: Não, eu acho que isso não é verdade não, pode ser que ele tenha dito isso.

Jean-Yves de Neufville: Foi a Gal [Costa] que falou isso para mim.

Nana Caymmi: Foi a Gal que disse? Ela deve ter as suas razões. Eu acho que não. Eu me lembro que ele fez  "Luzia Luluza" [1967], eu sei porque as canções eram feitas do meu lado, eram feitas comigo, eu me sentia parte delas. Pode ser... Inclusive, foi nesse casamento que saiu o disco da Tropicália, lindo, que o Duprat [maestro, (1932-2006)] fez. Foi Duprat, exatamente.

Aimar Labaki: Você disse que "Domingo no parque" pode ter sido feita para você, por quê? Ele te pegou com outro? 

Nana Caymmi: Não. 

Aimar Labaki: Não. E nos seus 10 casamentos como foi sua relação com essa coisa da fidelidade?

Nana Caymmi: Eu nunca transei muito bem essa fidelidade não.

Aimar Labaki: Fala um pouquinho.

Nana Caymmi: Isso é uma coisa que até me preocupava, depois deixou de preocupar, essa coisa de momento. Você está com vontade de fazer isso e você faz. Eu passei a minha vida de forma intuitiva, nessa parte e também com o casamento,... 

Aimar Labaki: Seu marido era ciumento?

Nana Caymmi: ...dado ao fato de eu não viver maritalmente. Eu ficava casada e era todo um esquema de casamento, mas eu sempre tinha minha casa com meus filhos. Só vivi com o Cláudio os 5 anos de casamento. Então, o Cláudio era dentro de casa. O Cláudio foi uma das poucas pessoas a quem eu fui realmente fiel. 

Aimar Labaki: E ciúme? 

Nana Caymmi: Isso foi a tônica, isso era um inferno, porque o ciúme era pelos meus horários. Eu não transo horário também [risos]. É verdade, se o papo está bom eu não me preocupo se eu tenho compromisso mais sério. Meus filhos estão bem. Quer dizer, as crianças passavam no Antonios, já sabiam que a mãe estava ali com Chico, com Tom, com Marcos Vasconcelos, com o próprio Vinicius. Saía do almoço, os meninos vinham do colégio e passavam: mãe, eu posso isso, assim e assim? Pode, eu estou aqui no Antonios. Porque o apartamento era perto, a casa era perto, minha vida girava em torno. Mas para homem isso é o fim da picada, eu estar com 20 homens conversando sobre música. Às vezes estava até tratando de trabalho e coisa futuras, projetos, e eles estavam em outro setor, ou médico, engenharia, sei lá que diabos era.

Maria Amélia Lopes: É verdade que você queria namorar o Paulinho da Viola [cantor] e o Gilberto Gil não deixou?

Nana Caymmi: Não, isso foi uma safadeza que eu fiz com o Paulinho. Paulinho é tímido pra cacete e falei: se não fosse por causa do Gil eu te agarrava, tarado [risos]. Era o sonho das mulheres, de todas daquela época, embrulhar o Paulinho e levar para casa. 

Carlos Renno: Para você a infidelidade sexual basta para acabar casamento ou não?

Nana Caymmi: Para certas pessoas basta, para mim não.

Carlos Renno: E para você?

Nana Caymmi:
Acho que lavou está novo [risos], não tem essa, não existe essa. Eu não sei se é porque eu tive uma educação diferente, não foi uma coisa rígida, foi uma coisa ensinada e explicada. Tudo o que eu queria saber meus pais me explicavam. Meus dois irmãos, eu sabia como atuavam e talvez eu tenha imitado o conceito do homem nessa história também, entendeu? Mas o homem não suporta que a mulher tenha esse tipo de comportamento. “Olha, não vim aqui para te receber no aeroporto porque eu estava com seu amigo assistindo a Xuxa.” [Risos] Isso pega mal pra cacete. Já aconteceu de ligarem: “não vou não, acabou.” Não sei se é loucura ou se é por aí mesmo.

Alex Solnik: Vem cá, você achou muita loucura esse álbum da Madonna, as fotos, você achou exagerado? [Referindo-se ao álbum Erotica, lançado pela cantora Madonna em 1992]

Nana Caymmi: Eu não vi não, mas acho que ela está no direito dela, pode fazer isso, tem que fazer. Eu não acho nem apelativo. Acho que ela é louca mesmo e tem vontade de fazer e faz. Prefiro a Madonna a esse débil mental desse crioulo que fica fazendo essa fantasia e está mal, se modificando todo, fazendo quilos de operações.

Alex Solnik: Michael Jackson?

Nana Caymmi: Exatamente. Ele é uma caricatura, já a Madonna não. Acho ela super sadia, ela deve ser uma caretona de marca maior. Eu acho que ela não é nada daquilo que está anunciando, deve ter muito dinheiro investido nessa história.

Alex Solnik: Marketing e muita grana, não é?

Nana Caymmi: Exatamente. Ela tem mais é que ficar como o João Gilberto: caem os spots e chega "lá, lá, lá lá lá", cantando. Porque é muito dinheiro para ela não sair pelada, não é?

Maria Amélia Lopes: Nana, o Danilo me contou uma história de uma vez em que ele estava pensado seriamente em largar a música e fazer cinema. Ele já tem até um roteiro pronto, que iria chamar Na cama com mandona, estrelado por Nana Caymmi. Você concorda?

Nana Caymmi: Ele é um cínico, vagabundo. Agora não, há 20 anos atrás eu topava esse filme. Agora não dá mais.

Jean-Yves de Neufville: Dessas cantoras americanas tem algumas que para sua voz, para o seu trabalho, te inspiraram tecnicamente?

Nana Caymmi: Carmem McRae. [Cantora de jazz, americana, (1920-1994)]

Jean-Yves de Neufville: Carmem McRae

Nana Caymmi: É, que eu mais amo é Carmem McRae, depois Ella Fitzgerald [1917-1996], Sarah Vaughan [1924-1990]. Outras mulheres que me inspiraram muito são as brancas, o pessoal da ala branca, que é Rose Clooney [1928-2002], que é Peggy Lee [1920-2002], Jo Stafford, tem muitas. O meu conhecimento da música de lá foi grande por causa de papai, Dori e outros amigos. Sempre ouvi muita música americana e em comparação com a brasileira, a nossa é muito melhor.

Jean-Yves de Neufville:
E você trabalhou muito tecnicamente a sua voz. Você teve aulas?

Jean-Yves de Neufville:
Trabalhei a respiração.

Jean-Yves de Neufville:
Respiração.

Nana Caymmi: Sei respirar bem e isso aprendi com médicos e professores.

Jean-Yves de Neufville: Como foi esse trabalho com a respiração?

Nana Caymmi: Quando o sistema nervoso fica assim, quando você começa uma carreira, como essa menina que falei há pouco tempo, como Daniela [Mercury], ela está totalmente afônica e tendo show para fazer, se você está trabalhando a voz, você não tem esse problema. É só respirar, saber respirar. Porque, falando você gasta água, você canaliza mal, sai o ar todo em uma frase só, em uma palavra sai todo o ar que você tem acumulado. Cantando você pode controlar. Canta com uma vela na frente e faz todo um trabalho. 

Jorge Escpsteguy: Nana, você trabalhou isso com o médico?

Nana Caymmi: Não soprar a velinha.

Regina Etcheverria: Não soprar a velinha.

Jorge Escpsteguy: Trabalhou isso com médico? Você disse que você fez...

Nana Caymmi: Quando eu perdia a voz, eu fazia o seguinte: eu estreei, cantei o Acalanto e fiquei muda no dia seguinte, com uma distensão nas cordas vocais. Com Elis aconteceu isso também, porque é muito impacto. É muito difícil você encontrar uma orquestra, como eu encontrei na Tupi [TV Tupi, primeira rede de tevisão brasileira, cuja concessão durou 30 anos, a partir de 1950], meu pai do lado e não sentir nada, ser extremamente fria, não é?

Jorge Escpsteguy: E aí você ficou sem voz?

Nana Caymmi: Fiquei muda no dia seguinte. O médico falou: "Só tem uma solução, ou ela vai ficar muda, um mês sem falar, ou aprender a respirar."

Celso Fonseca: No começo do programa você observou que a Cássia Eller tem sobrecarregado muito a voz, você teve o cuidado de dosar a sua voz? 

Nana Caymmi: Não, eu leio a letra primeiro, faço um laboratório para entender o que o poeta quis dizer, depois eu releio a letra e faço a medida da respiração. Então, eu vou cantando e vou vendo aonde vou jogar o ar fora, qual a letra final de cada frase melódica em que eu vou jogar o ar, para voltar e consegui respirar. Você veja os líricos, eles não fazem o menor esforço para soltar aquela infâmia, que é dobrar todo circuito, os 90°. Isso é o que o popular tem que fazer, porque se você joga o emocional junto com o ar, você distorce. Eu vi a rouquidão dessa moça e fiquei apavorada.

Aimar Labaki: Mas é só técnica? Você diz que as pessoas vão na cochia e choram muito?

Nana Caymmi: Não, não, isso não existe.

Aimar Labaki: Então, quando você está no palco é só técnica?

Nana Caymmi: Eu faço isso, estou dizendo, há 30 anos que o meu [médico] otorrino, Emílio Lima Sobrinho, me ensinou, me mandou para um professor de graduais para controlar isso. Relaxamento no chão, deitar e jogar o ar, soprar, não deixar a vela apagar quando você joga principalmente a letra “a” para fora. Tudo isso foi feito e há muitos anos. Então, a técnica hoje sobrepõe, não tem que parar para cantar e... 

Jorge Escosteguy: Essa coisa da vela como é?

Nana Caymmi: É um exercício que você tem que fazer toda um mecanismo de cantar sem a vela balançar. "Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver, a espera de viver ao lado seu, por toda minha vida..." [cantando] Eu enchi tanto de ar que dava para fazer mais duas frases dessa.  

Jorge Escosteguy: Balança o coração, mas não balança a vela.

Nana Caymmi: Não balança mesmo. Mata o freguês.

Aimar Labaki: Isso vale para o repertório também? Quer dizer, quando você escolhe o repertório, você estuda a letra, isso também é um depoimento pessoal quando você canta? 

Nana Caymmi: Claro que sim, quando eu faço um roteiro... Por isso que em direção, essa gente que enche a boca: “Não, eu vou dirigir o show de fulano.” Tem que pedir muita opinião ao intérprete, porque em cada música existe uma jogada de ar maior do que a outra. Não é só pelas letras, pela melodia, pela situação, por onde está. Não, tem também o ar que você vai jogar e casa noturna mata, acaba. Eu estou fazendo uma temporada, quando eu chego a aceitar casa noturna é porque é um determinado tipo de público, porque é irrespirável você cantar com muito ar condicionado e muito cigarro. Outra coisa é bebida. Todo mundo acha que não, que o nêgo canta, mas depois da segunda ou terceira dose de whisky já não se domina a voz, ou qualquer outra bebida. A bebida é tão danosa quanto o cigarro. 

Jorge Escpsteguy: E quando você faz show em casa noturna você não bebe? 

Nana Caymmi: Não.

Aimar Labaki: Ou bebe como emergência para segurar?

Nana Caymmi: Só emergência. Se eu pudesse teria um bule de café ou chá para ir esquentando e tirar o dano que faz o cigarro, porque o cigarro começa a raspar aqui e as pessoas dizem: “Ela não gosta, ela não repete, ela não faz bis.” Mas é que é muito sacrificado, você cantar 22 músicas e ainda fazer mais um.

Celso Fonseca: As platéias de um modo geral são educadas?

Nana Caymmi: Não.

Celso Fonseca: Não?

Nana Caymmi: Não, no Brasil não, no Brasil não.

Celso Fonseca: Você teve uma experiência com a platéia no Masp [Museu de Arte de São Paulo] que foi ótima, não é?

Jorge Escosteguy: Você se lembra de alguma platéia educada?

Nana Caymmi: Se eu me lembro de uma platéia educada?

Jorge Escosteguy: Uma platéia educada no Brasil?

Nana Caymmi: Ah, lembro, que é isso, os outros estados são fantásticos. Quando falo em platéia mal educada eu falo Rio. É a minha cidade e santo de casa nunca fez milagre. É horrível. Segurar o carioca é fogo, ele é disperso, quer aparecer mais que os outros. Paulista é tímido, bota o rabo na cadeira, fica morto ali, mas não faz barulho [risos], a não ser se estiver drogado, de porre, se a mulher saiu com outro e só. A paulista é tímido como o cão, é um sonho cantar.

Aimar Labaki: Inclusive em lugar aberto, não é? Você fez o vão do Masp, por exemplo, que foi uma maravilha.

Nana Caymmi: Também, eu eu lancei um disco no Vou Vivendo [bar de São Paulo] e já fiz bares aqui que pensei: bom, aqui vou ter que ter pulso. Porque você tem que saber dominar aquilo ali. São 300, 400 pessoas cantando, você não pode dar chance, nem dar muito intervalo, não se fala com o público também, se falar pronto, gera...

Jorge Escosteguy: Qual é o seu esquema, vamos dizer assim, para dominar a platéia? 

Nana Caymmi: Meu amor, não tiro nem para cuspir. É pá, pá, pá, uma atrás da outra. Aplaudiu, o acorde já é mandado. Vai embora, meu filho, porque atrás vem gente e o povo está bebendo, porque se deixar vira polêmica. Cada um pede uma coisa, a outra diz "maravilhosa", a outra grita “nós te amamos”, vira um escândalo.     

Aimar Labaki: Show da Ângela Ro Ro, então, você odeia?

Nana Caymmi: Eu disse a ela que eu não vejo. Ela foi me assistir agora e eu disse: Ângela, como é que pode, você fuma feito uma condenada, acabou de dizer nos jornais que não está bebendo e está enchendo a caveira de champagne aqui. Ângela, olha a sua voz. Ela tem 2 ou 3 shows para fazer essa semana, sem contar a temporada, mas ela não se cuida, não adianta.

Aimar Labaki: E o show dela é metade papo, metade música, não é?

Nana Caymmi: Mas ela conta a vida dela e quer que eu faça o mesmo.   

Aimar Labaki: É uma maravilha, aliás.

Nana Caymmi: ....e eu digo: existe uma diferença entre eu e você. Eu sou uma intérprete. E, aí, ela me olha assim.....

Aimar Labaki: Nana, você faz essa distinção entre cantora e intérprete?

Nana Caymmi: É óbvio. Cantora canta "larar, liririu". Nêgo pode estar no motel que não está nem aí. Agora, cantora intérprete não. Intérprete qualquer coisa tira a concentração.

Aimar Labaki: Quem que está na primeira?

Jorge Escosteguy: Há mais intérpretes ou cantores no Brasil?

Nana Caymmi: ...tocando, dançando, rebolando e o pau come.

Maria Amélia Lopes: Quem está na primeira linha hoje, Nana?

Roberto Cômodo: Quem são as grandes intérpretes hoje?

Nana Caymmi: Olha, por exemplo, o Emílio [Emílio Santiago] consegue fazer essas duas coisas. O Emílio consegue, mas, por exemplo, ele está em uma linha de dança agora, de fazer show que ele pode dar adeus para a mãe, falar com pai dele, com a avó e seguir ali, porque ele faz um tipo de coisa que sai na urina, se eu fizer isso eu estou campada. 

Jorge Escosteguy: Ali ele é o cantor? 

Nana Caymmi: Exato, é o cantor. O Danilo está fazendo laboratório, o Danilo está entrando no palco na minha linha, porque o importante é pegar o emocional. Se o Emílio tivesse chance, se ele não fosse vendagem de disco, se ele não tivesse usando as misérias, ninguém olhava para nossa cara... Ele até cantava, mas ninguém ouvia. Agora ele teve que pegar essa linha por quê? Porque estão cobrando disco, porque a empresa está dando força, daqui a pouco estão dizendo que ele está repetindo, que ele está um saco, mas ele está conseguindo ter as coisas dele. Ele ficou 6 anos ou 5 sem gravadora. Então, isso tem um preço. Mas quando puder, tenho certeza que Emílio volta a ser intérprete de concentração, de jogar o coração mesmo.

Jorge Escosteguy: Ele está pagando o preço de cantor, no caso?

Nana Caymmi: Está pagando o preço de cantor.

Roberto Cômodo: Entre as mulheres, quais são para você as grandes intérpretes hoje?

Nana Caymmi: Olha, nossa maior intérprete, que jogava o coração desse jeito? Tinha a Isaura em São Paulo, a Maysa, capixaba brava [cantoras já citadas em uma pergunta similar], cantava também de jogar o coração. Tem muita gente para eu lembrar aqui, agora. Tem muita gente, é que a cabeça não consegue lembrar.

Regina Etcheverria: E Gal e Bethânia? [Gal Costa e Maria Bethânia]

Nana Caymmi: Bethânia joga com o emocional. A Gal não. A Gal consegue ser cantora. Ela vai, dança, sapateia, vê todo mundo, se a luz não está ela focaliza, ela vai e não sei o quê. Ela sabe que aquela câmera vai focalizar, que aquilo vai acontecer e que aqui está a marcação de luz. Eu não sei nem onde está a luz e duvido... Bethânia tem que ensaiar muito essas marcações, porque senão ela também não faz. Ela entra na música e vai embora, não vê marcação de nada. Para nós, intérpretes, você tem que ter um cuidado enorme com posição de luz. É tudo marcado no palco com altas cruzes para gente se lembrar que tem que estar ali nessa música, naquela música aqui. No caso, trabalhar com palco muito grande, mas Bethânia é uma senhora intérprete. 

Jorge Escosteguy: Para você isso é muito difícil? O show, o palco, as coisas? 

Nana Caymmi: Para mim não. A pessoa não tem trabalho comigo na marcação, porque eu quase não canto com microfone na mão. Eu seguro muito pouco o microfone. Ele vai sempre em cima, porque eu domino mais, porque se eu fecho os olhos e viajo na música, eu estou perdida. Porque o bom do intérprete é que você canta uma canção e você fica lembrando dos acontecimentos, quem fez e o que aconteceu. Então, você vai, você flui, você vai embora.

Jorge Escosteguy: Quer dizer que rola tudo isso na sua cabeça quando você está interpretando?

Nana Caymmi: Rola tudo isso na minha cabeça.

Jorge Escosteguy: Está lá, desligou?

Nana Caymmi: Desliga mesmo. Eu estava cantando sábado em Copacabana e fiz uma viagem. É verdade [risos].

Jorge Escosteguy: Para onde você foi, Nana?

Nana Caymmi: Para Copacabana mesmo. Para Copacabana mesmo. A cabeça fica... São muitas coisas acontecendo ali. É uma energia muito violenta que você capta, que você dá. E se falarem, se passar o tal do pastel, é fogo. O garçom levou um escracho está semana que eu chamei o maitre no palco. Olha que eu estava há muito tempo sem fazer isso.

Jorge Escpsteguy: Onde foi? 

Nana Caymmi: No Jazz Mania [extinta casa de shows do Rio de Janeiro]. Porque eles dão uma trégua, eles pedem que reserva de mesa chegue até 9h30, 9h da noite, sei lá. Já era 11h15 e o show não tinha começado. Eu disse: não, eu vou começar. Os músicos já atacaram, começaram a tocar a parte deles, e eu entrei, ainda tinha garçons  servindo. Eu deixei a primeira música, deixei a segunda, na terceira eu disse: olha, se continuar eu vou terminar o espetáculo. Eu acho uma falta de respeito, amanhã eu não estou aqui. 

Jorge Escosteguy: E qual é a reação do público quando você ou dá bronca no garçom ou já aconteceu de chegar no músico, por exemplo? 

Nana Caymmi: Não, geralmente com o músico eu brinco. Eu não tenho nenhum... Olha, eu pago demais para eles, pago até bem para eles, que são grandes, são veteranos como eu na música. Eles não levam esculachos não. Eu brinco muito. Tem um músico meu que é metido a jogar tênis e ele vinha pegar a guitarra todo troncho, com o violão mais troncho ainda e eu falei: está vendo, é o que dá essa vida de miséria que você leva e eu que pago o pato por causa do seu tênis, não é? Aí, chamava ele de desgraçado, ninguém entendia aquilo, mas era entre eu e ele ali. Isso eu me perco muito em palco, falando essas coisas da intimidade dos 5 ali em cima. Mas com garçom não. Agora eles estão até mais acessíveis comigo.

Carlos Renno: Nana, para uma cantora e intérprete, como você diz, certamente é muito importante o elenco de compositores, de preferência excepcional. Eu lembro de seu pai falando de Carmen Miranda e se referindo a ela como alguém que sabia escolher muito bem seu repertório, que tinha à disposição um elenco de compositores de altíssimo nível, a começar por ele próprio. Na produção mais recente da música brasileira moderna, os últimos grandes nomes, os nomes mais significativos, como produção que se destacou de compositores compondo a partir de bases brasileiras, os últimos nomes surgiram, praticamente, nos anos 70, como Djavan, João Bosco e outros. Eu acredito que para você, que canta música brasileira e alguns tipos específicos de músicas brasileira, seja difícil achar um repertório à altura da sua voz. A quem você acha, a quem você atribui essa falta de gente nova transando um trabalho a partir de bases brasileiras, tradicionalmente brasileiras, e fazendo algo novo a partir disso? 

Nana Caymmi: Tem algumas coisas aí feias. A primeira é falta total do estudo, não é? Todo mundo acha que ser artista é fácil, que a coisa é feita assim, que basta um grande produtor e a máquina estar atrás. Mas o que é bom fica. Está provado que o que não é bom vai embora. Isso está acontecendo. Então, não está aparecendo muita coisa. Está aparecendo muita coisa, mas ninguém está cantando. Eu tenho recebido fitas, sempre recebi fitas com músicas, tem muita gente fazendo música, e não está acontecendo nada. 

Carlos Renno: E a impressão que você tem desse material que você recebe, de maneira geral?  

Nana Caymmi: É primária a melodia, primária a letra. É o que eu chamo de brincadeira, que é show dos filhos de hippies. 

Jorge Escosteguy: Só não está acontecendo nada porque é primário?

Carlos Renno: Você atribui isso, principalmente, à questão do estudo, mas não há outros fatores também? 

Nana Caymmi: Além da inspiração, tem que ter um pouco de noção do instrumento. 

Carlos Renno: Sem dúvida.

Nana Caymmi: Eu já vi compositor que não toca nada, assim, sem nem saber acompanhar. Quer dizer, sem harmonia nenhuma. Então, você fica meio bestificado. Eu mesma me privo da intimidade de ... No palco eu devo ter 3 ou 4 compositores comigo. Quer dizer, o Luiz Alves faz música, Luizão Paiva, que é o pianista, faz música, o Luiz Alves é contrabaixo, Cláudio Guimarães trabalha muito bem com letra, mas ainda não surgiu no meu caso uma motivação para cantar alguma coisa deles. A medida em que eu tenho a gravadora, que já tem duas propostas para estudar sobre isso, eu vou procurar saber. Sueli [Sueli Costa] está aí, viva, fazendo música. Fátima Guedes também. É como você diz, é gente que vem dos anos 70. Está difícil uma coisa nova, mas eu sei que vou achar como achei Dudu Falcão. Eu descobri Dudu através de um músico, o Novelli [Djair de Barros e Silva], que me entregou a fita. Hoje ele está aí, dono da trilha junto com Danilo de Riacho Doce, Teresa Batista [cita novelas e mini-séries da Rede Globo], tem músicas em todas as novelas. Quer dizer, ele pegou primeiro o filão, que aquilo é uma guerra de foice, você entrar no núcleo de novela. Todo mundo sabe que ali tem compositores sentados o dia inteiro produzindo só para isso e o chefão fica sentado ali dizendo: é essa, essa não. Danilo pegou o filão. 

Carlos Renno: O Dudu faz letra e música?

Nana Caymmi: O Dudu faz as 2 coisas. Danilo faz as 2 coisas. E isso foi uma sorte, uma vantagem, pois há 4 anos que eu estou sugando o Dudu, mas vai um dia acabar. 

Jorge Escosteguy: No bom sentido? [Risos] 

Nana Caymmi: Perigoso! 

Celso Fonseca: Talvez você não saiba, a nova geração do rock, em São Paulo, só compõe em inglês e só canta em inglês. É um fenômeno comum também no Rio. O idioma de trabalho é o inglês. Você acha isso nefasto?

Nana Caymmi: Eles podiam ir embora, tirar passaporte e ir embora. As mães até iriam gostar [risos]. Porque ser mãe de roqueiro é uma desgraça, meu filho. Imagino o que não deve sofrer essas mães. Aliás, até conheço algumas. Eles podiam ir embora, já que falam o inglês e gostam de rock. Pronto, olha o aeroporto aí. Podiam facilitar a ida deles, porque também tem quilos de bandas de rock, mas algumas sobrevivem, não é? Não tenha dúvida que eles estão também em uma maré difícil de criação. Isso eu sei. Eles tinham que saber o português primeiro, para poder escrever em português. 

Celso Fonseca: É mais fácil falar no inglês.

Nana Caymmi: Exato, o país não sabe falar seu idioma, quanto mais inglês. É fácil de enganar, não é? Bota um baby e tudo que tiver "b" e vamos embora. 

Jorge Escosteguy: Jean, por favor.

Jean-Yves de Neufville: E da Bahia, não sai mais nada? É um caldeirão que parece que continua a ferver musicalmente, não sei...

Nana Caymmi: Mas a Bahia é um estado independente do Brasil. Eu até mandei um recado para Antonio Carlos [Antônio Carlos Magalhães, líder político da Bahia, (1927-2007)] pedindo a independência, para ser um país, porque a música deles hoje é a música deles apenas.

Jean-Yves de Neufville: Então, lá você não está encontrando um repertório para você? 

Nana Caymmi: Olha, o que eles estão fazendo tem de tudo, tem o Jerônimo, que surgiu, novo. Mas eles têm agora um mecanismo que ali mesmo eles se alimentam. Eles mesmo gravam, eles mesmo tocam e ganham seu dinheiro. Isso eu achei fantástico. Então, ainda não quero mexer naquele filão, acho que não. Gal andou cantando canção do Olodum [grupo de percussionistas], mas eles estão abastecendo a mulherada que está começando, como Daniela. Eu até posso ir lá ver alguma coisa. Eu tenho ido sempre à Bahia.

Jorge Escosteguy: Desculpe interrompê-la, mas o nosso tempo, infelizmente, está esgotado. Gostamos muito da entrevista. Acho que todos nós e os telespectadores. O seu gênio é ótimo, ao contrário do que as pessoas possam dizer. Nós agradecemos a sua presença.... 

Nana Caymmi: Ai, que lindo, vou casar contigo. 

Jorge Escosteguy: ... aqui no Roda Viva, dos companheiros jornalistas e dos telespectadores. Lembrando a todos que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às 9h da noite. Até lá e uma boa semana a todos.

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