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Memória Roda Viva

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Denise Stoklos

5/3/2001

Considerada uma artista completa, Denise Stoklos narra sua trajetória e fala da importância do teatro para a sociedade

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Paulo Markun: Boa noite. Ela defende um teatro que tem o mínimo possível de efeitos especiais e o máximo de teatralidade pura, e foi, justamente, através dessa procura que ela criou um trabalho próprio de muito originalidade, que abriu um dos maiores espaços já conquistados pelo teatro brasileiro no exterior. O Roda Viva entrevista esta noite a diretora, autora, atriz dramática e mímica, Denise Stoklos.

[Comentarista]: Há trinta e dois anos é assim, sozinha no palco, substituindo a fantasia da composição, como ela diz, pela presença viva do ator. É o teatro essencial de Denise Stoklos de palco nu, onde o gesto é a força que critica, questiona e clama por inovação. Denise já criou uma dúzia de peças que ela encenou em mais de 30 países, em sete idiomas. Múltipla de si mesma, levou a sua produção também para o cinema, fotografia, música e literatura. Seus livros reúnem os textos de suas idéias e traçam os horizontes de sua arte. Este espetáculo é o mais recente de Denise Stoklos, Louise Bourgeois: faço, desfaço, refaço, foi gravado em maio de 2000 no teatro Lá Mamma de Nova Iorque e será montado brevemente no Brasil.

Paulo Markun: Para entrevistar Denise Stoklos, nós convidamos o sociólogo Danilo Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo; o jornalista Alberto Guzik, crítico de teatro do programa Metrópolis e do Jornal da Tarde; a jornalista Marici Salomão, colaboradora do Caderno Dois do jornal O Estado de S. Paulo e coordenadora da dramaturgia do CPT, Centro de Pesquisa Teatral do Sesc; a escritora Sônia Régis, doutora em semiótica da literatura e professora da Faculdade de Filosofia e Comunicação da PUC de São Paulo; o ator Pedro Brício da Companhia Teatral do Movimento e o ator Guilherme Weber diretor da Sutil Companhia de Teatro. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília, e como este programa foi gravado, ele não permite a participação dos telespectadores. Boa noite, Denise.

Denise Stoklos: Boa noite.

Paulo Markun: No seu livro Teatro essencial há uma definição que acho que poucos atores assinariam em baixo, pelo menos com orgulho. Você diz aqui: “No meu país sou talvez a única atriz que vive exclusivamente de teatro, não faço televisão, publicidade ou cinema, não dou workshop e nem participo de nenhum evento coletivo. Não possuo nenhuma outra fonte de renda, nunca recebi patrocínio para montagem dos meus trabalhos, o único patrocínio que eu tenho é o do público”, diz você. Mais do que uma afirmação, digamos, de um compromisso, ou de um projeto de vida,  tem algum tipo de insatisfação nessa declaração?

Denise Stoklos: Não, não, inclusive, quanto à última parte, a questão dos patrocínios, como esse livro foi escrito em 1987, muita coisa aconteceu a esse favor.

Paulo Markun: Pelo menos patrocínio você já teve? 

Denise Stoklos: Com certeza, muito bem vindo, inclusive do Sesc. Sem o Sesc eu não trabalharia neste país, que tem me apoiado desde o meu retorno de Londres quando eu comecei o meu trabalho solo aqui e tem sido meu constante parceiro em todos os trabalhos.

Paulo Markun: Mas você mantém a coisa do trabalho solitário?

Denise Stoklos: Sim, e essa questão da televisão, eu gostaria, se possível, nunca precisar fazer televisão especialmente nos moldes em que a televisão comercial é feita. Tenho planos, projetos, idéias, vontades de fazer televisões que não trabalhem com esse tipo de padrão comercial. Tanto na TV Cultura como nessas TVs abertas, que têm o mínimo de público possível, onde haja mais liberdade de um formato.

Paulo Markun: Sei. Mas essa coisa de trabalhar sozinha, e em outro trecho do livro você diz, que você não está preocupada com nenhuma coisa a longo prazo, a curto prazo mais exatamente, e que você não quer, se eu estou traduzindo certo, você não quer deixar nada além do objeto do teu trabalho. Isso de um lado não tem um dado que é a história de "uma andorinha sozinha não faz verão", quer dizer, a gente só fazer o nosso trabalho, e dizer, olha eu faço o meu e ponto final, é isso?

Denise Stoklos: Bom, na medida em que a minha formação é de socióloga e jornalista, portanto, minhas preocupações sempre são relativas a essas duas áreas, de comunicação e de assuntos que envolvem a comunidade. Todos os espetáculos dizem respeito à transformação de uma sociedade, então nunca são auto-referentes, auto biográficos – pessoais - neste sentido. São pessoais na medida em que é o testemunho, meu, integral e coerente com aquela proposta desenvolvida em cena de acordo com o tema do espetáculo, portanto, eu não considero que seja isolado. Eu me isolo quando eu sou convidada, por exemplo, a participar de uma exposição de fotografias com outros grandes atores e que me dizem que será um prestígio estar lá dentro, e eu considero um desprestígio, porque estaria junto com atores que tem feito o que eu considero concessões, trabalhado para televisões que promovem todo esse trabalho da indústria cultural, que é o de fazer o público se acostumar e se habituar cada vez mais a aceitar uma não vida, uma pouca vida. Então, nessa questão de que a comunicação, a arte, pode ter cara de comunicação e de arte, mas simula, artificializa a emoção e, com isso, faz com que o telespectador volte para casa no dia seguinte capaz de continuar a levar aquela não vida, porque ele teve a impressão que ele recebeu alguma coisa de emoção, através do sensacionalismo, sentimentalismo, coisas assim.

Alberto Guzik: Eu queria que você começasse pelo começo. Quando você teve o impulso da atriz, quando é que você decidiu que você queria fazer o que você faz? Como é que começou?

Denise Stoklos: Isso foi desde muito cedo, sabe Guzik. Eu acho que, mais ou menos, aos seis anos eu fiz essa descoberta de que eu era mulher sul americana, contestadora, de uma família não aristocrata, autora e atriz de teatro, isto é, tudo para dar errado, em compensação, tudo que me possibilitaria um dia a ser mãe, que é para mim o evento mais importante da minha vida.  E desde então, eu vivo exercitando esse trabalho dentro de casa, para a minha família, para os amigos da minha família, no colégio, na escola.  E é o que eu sinto em qualquer lugar do mundo onde eu esteja. Eu sinto que o mesmo tipo de comunicação que eu busco, é aquele que eu buscava lá, aos seis anos, quando eu assistia circo na minha cidade, os filmes da Atlântida que são a minha formação. [chanchadas]

Sônia Régis: Eu gostaria de conjugar a sua resposta a uma pergunta minha com relação também ao seu início.  Porque hoje você tem um público fiel que a acompanha há  mais de trinta anos, acompanha a sua evolução performática. A crítica lhe é bastante favorável e as suas realizações aparecem cada vez mais fortalecidas, ao contrário de muitas estréias teatrais que aparecem fortalecidas e vão esmaecendo. Eu vejo que desde a sua estréia em 1968 a sua inquietação, a inquietação da sua inteligência e sua sensibilidade se exacerbaram e vem se exacerbando cada vez mais. Então a minha pergunta é, dentro dessa essencialidade que é a sua proposta, qual é o propósito, qual foi o propósito de fazer teatro em 68 e qual é o seu propósito hoje?

Denise Stoklos: Eu sinto que vai se radicalizando mais. Ao contrário dos convertidos ao neoliberalismo, eu acredito que cada vez mais aqueles valores que eu aprendi ali a conhecer através daquele momento em 1968, a primeira peça foi sobre a mais valia, e você foi uma das que escreveu a primeira crítica que eu recebi e, aliás, foi aquilo que todo artista gostaria de ter como a primeira crítica, porque analisava tudo que tinha de deficitário, difícil, complicado no espetáculo, as carências todas. Mas também dizia que era o primeiro vôo do pássaro cujas asas iriam se fortalecer. Então, me deu sempre muita esperança, isso. E, naquele momento, onde eu aprendi que estávamos em sociedade e que se meu vizinho não melhorar, eu também não vou melhorar, ficou gravado em mim e eu nunca mais esqueci disso. É um comprometimento espiritual, carnal com essa busca de uma sociedade justa. Então, todos os espetáculos estão voltados a essa perspectiva, a perspectiva de transformação. Um professor de filosofia uma vez me disse; que na Grécia antiga os doentes ao procurarem os médicos, eles recebiam um fármaco. Um fármaco misturado com determinados alimentos, ele pode ser um veneno ou um remédio, um curativo e, junto ao fármaco, eles receitavam peças de teatro que eles deveriam assistir, e essa peça iria funcionar para aquele fármaco. Peças, sempre, evidentemente, sobre a natureza humana, e as doenças nossas são todas de natureza humana. Então, isso sempre me ficou como um sentido de que o teatro é um curativo, e as pessoas o procuram por isso também. Eu vou ao teatro para isso, para me revigorar das minhas buscas de amor e de liberdade. São essas as eternas buscas da natureza humana.

Marici Salomão: Eu te perguntaria uma coisa, então, sobre o modo de usar estes remédios que, em Vozes ressonantes é o último espetáculo que você apresentou aqui no Brasil, você cita uma fala do geógrafo Milton Santos [1926-2001, advogado por formação, foi um geógrafo importante por discutir os problemas da globalização. Entre outros, escreveu Por uma nova geografia (1978) - ver entrevista no Roda Viva] que você admira muito, senão me engano, é ele que diz isso, que o artista é o comunicador, eles não devem aderir ao seu tempo, eles devem criticar o seu tempo, eles têm a obrigação de criticar o seu tempo, não aderir. Será que os artistas, a classe artística, nós os comunicadores estamos cada vez mais aderidos, vamos dizer assim, para sacudir as pessoas, para fazer o seu grito junto com os públicos?

Denise Stoklos: Eu acho. Eu compreendo que a maioria da nação, do povo brasileiro, está insatisfeito mesmo, é uma maioria insatisfeita, é uma maioria em movimento, é uma maioria em transformação, em busca de revolução, nada mais do que isso, simplesmente isso. Isso é uma mudança de sistema mesmo. E apenas uma minoria, uma elite que não busca, está satisfeita e conserva e quer manter este status quo. E, então, eu acho que qualquer comunicação buscando e apontando a busca, à vontade de novos caminhos é mais correspondente a um desejo geral de comunicação do que a uma, a uma pequena parcela.

Paulo Markun: Mas você, você não. No teu trabalho você não atinge essa maioria, é a minoria dessa elite tal que vai assistir o seu trabalho?

Denise Stoklos: Eu acho que não, eu só falo com a maioria, talvez a maioria que chega ao meu teatro seja uma quantidade pequena, mas a elite não vai ao meu teatro. Existe já todo um planejamento, um projeto cultural tal, a própria forma de anunciar o espetáculo, a forma como o espetáculo é montado onde ele não tem nada requintado dentro de um padrão aristocrata, burguês. O meu cabelo, que para elite está faltando pintar a raiz, um vestir meio grunge. Quer dizer, tudo afasta já de cara qualquer possibilidade de um satisfeito com o sistema entrar no teatro, porque ele não vai encontrar nada lá, mas, quem vem, é parte da maioria, que é insatisfeita e que se revigora nessa comunhão, que é para isso que o ritual do teatro, o dentista está ocupado durante o dia, o professor está ocupado com a sua tarefa, o alfaiate está ocupado na sua tarefa, ele não está se exercitando para montar um espetáculo. O ator está em casa estudando, então à noite ele [alfaiate] vai lá, se senta, e pede para o ator trazer para ele uma experiência que corresponda a todos, para que ele possa olhar aquela experiência e ter uma oportunidade melhor sobre aquilo, para agir com uma maior solução sobre aquilo. Então, esse é o sentido que eu busco realizar e estar quites com o público.

Danilo Miranda: Denise, seguinte: você tem uma trajetória estabelecida, consagrada como alguém que traz, provoca, discute, coloca na mesa, no Brasil, fora do Brasil, nas mais diversas línguas, enfim, eu percebo que cada vez mais você vai ao ponto, você se coloca de uma maneira mais firme, etc. E percebo também que o público jovem se interessa cada vez mais também. E eu acho que é uma coisa que você fala muito para esse grupo inquieto, essas pessoas que têm uma perspectiva de mudança, de transformação, etc. Como você vê realmente essa função, esse papel educativo da arte? Ou seja, alguma coisa que vá além, não é só comunicar, não é só denunciar, mas é propor alguma coisa que diga que é possível alguma outra forma de organizar as coisas. E isso você vai juntando com manifestações, opiniões, vai recorrendo a figuras históricas importantes, que já tiveram o seu papel ou pessoas que estão atualmente atuando, como o caso do professor Milton Santos agora mencionado, e outros no passado, enfim, tem um papel educativo nisso, quer dizer, eu não quero chamar de uma ação escolar, que não tem nada a ver, mas tem um papel educativo. Eu queria que você explorasse um pouco isso, porque você tem falado muito com os jovens.

Denise Stoklos: É, eu espero que tenha esse papel educativo, Danilo, especialmente porque quando eu falava dessa questão toda de nascer de uma família aristocrata e tudo, ser sul americana, isso me prepararia para ser mãe é porque a mãe sul americana, de uma forma geral, aristocrata, ela tem seus filhos como aliados de transformação e não para conservar o Estado. Então, ela recebe através dessa nova geração sempre as informações. Essa possibilidade de mudança vem deles, você aprende, você não dá nada, você só recebe deles, e eu sinto que nesse sentido, principalmente, eu estou muito aberta e acabo falando aquilo que esses jovens talvez não encontrem a todo o momento. Então,  como é um teatro, portanto uma expressão artística, não há nenhuma função de direcionar a um determinado lugar e, sim, de abrir a possibilidade de saber, que há uma força que pode ser dinamizada dentro de cada um. E há uma originalidade que deve ser mantida, apesar de que o recado todo da nossa estrutura, do nosso sistema não seja original, não seja criativo, adapte-se...

Danilo Miranda: Agora Denise, você tem respostas com relação a isso, você tem procuras para workshops, para gente participar nos trabalhos com você, não tem?

Denise Stoklos: Bastante, Danilo, bastante. As pessoas se interessam e não só as da área artística, educadores principalmente, porque é claro que é muito sedutor esse tipo de trabalho teatral onde você é o autor, o diretor, o ator e o coreógrafo de sua própria cena. Essa... Esse tomar conta, que foi uma coisa que aconteceu comigo depois da maternidade, que aí eu assumi que eu poderia e deveria aceitar a minha autoria, que eu comecei escrevendo. Mas depois eu parei e fui trabalhar com grandes diretores de teatro com quem eu aprendi muito, especialmente com o diretor {e ator] Antônio Abujamra, que é uma figura importantíssima na minha vida, que eu admiro imensamente e depois disso eu parei esse tempo todo em que meus filhos estavam crescendo, eu amamentava, era uma relação onde eu aprendi que o quê eu precisava agora era colocar o meu depoimento. Aquela coisa, se eu quisesse escrever como Shakespeare [(1564-1616) escritor britânico considerado poeta nacional inglês e maior dramaturgo da literatura universal. Escreveu grandes clássicos da literatura como Romeu e Julieta e Otelo, o mouro de Veneza] não escreveria uma linha, mas o que eu posso escrever, nem Shakespeare poderia, porque ele não nasceu em Irati [interior do Paraná], não é brasileiro, não sofre essas loucuras todas. Então, eu descobri que qualquer testemunho, qualquer depoimento é importantíssimo, e eu até diria dentro de uma política cultural, no Brasil. Eu entenderia que pudesse ser mais importante que aparecesse ou que fosse patrocinado espetáculos de grupos jovens, de autores novos, até mais do que de clássicos, tenho até essa impressão, porque é o que nos falta muito este ser autônomo, dono de sua terra, eu acredito que isso os jovens esperam ver.

Pedro Brício: Denise, na Europa existe uma tradição maior dos atores, dos clowns, até dos mímicos realizarem espetáculos solo, explorando o talento de cada um, a capacidade de cada um, e aqui no Brasil parece que os atores estão sempre atrás de um personagem, atrás de um texto e você tem dado cursos de performance composition. Então, eu queria saber de você, se você vê que é possível ensinar ou desenvolver com os atores esta capacidade de cada um realizar o seu teatro essencial, se é uma possibilidade ou se...?

Marici Salomão: Eu poderia só complementar isso e você poderia aproveitar e diferenciar, talvez melhor para todo mundo, o que seja este teatro de "ficção" e esse teatro de "fricção", que você disse que depende também do público, como gravetos fazendo fogo. Eu queria que você falasse um pouco mais sobre isso.

Denise Stoklos: Foi um jogo de palavras que eu encontrei para tentar definir essa diferença entre um teatro de ficção, onde o ator tenta ficar parecido ao máximo com aquele personagem. Vamos pegar um, vamos pegar o Marcelo Mastroianni [(1924-1996) ator e mito do cinema italiano. Trabalhou muito com o diretor Frederico Fellini. Seu filme de maior sucesso é La dolce vita com atriz Anita Ekberg, em 1960]. Quanto mais ele ficar parecido com aquele padre que ele quer que você acredite, com aquela batina, ele tão será melhor e mais genial. E no tipo de teatro que eu busco, eu vou fazer o padre Antonio Vieira [(1608-1697) padre jesuíta e escritor português, grande  orador, é considerado um dos mais influentes personagens do século XVII destacando-se como missionário em terras brasileiras] sem batina, e sem movimentações relativas àquela época ou impostações daquela retórica, daquele momento, mas o meu interesse é o quanto eu posso tornar atual aquele pensamento do padre Antonio Vieira. Isto é, atual, acontecendo naquela hora, que fique vivo à platéia o discurso naquela hora, isto é, que o público esteja a partir daquele momento, sabedor daquele discurso também e também como no sentido da palavra em inglês do actual, que seja ali, naquele momento. Portanto, eu não posso ter uma interface de uma ficção, eu tenho que estar eu mesma acreditando naquelas palavras, elas não são mais do padre Antonio Vieira. Se eu as estudei e escolhi para colocá-las naquele trecho é só porque elas se tornaram minhas. Vários trechos eu escolho, e eu não consigo transformar em meus, meus mesmo com os meus gestos, com minha entonação, com o meu tempo, com a minha pausa. Então, eles não entram no espetáculo. Então, isso eu chamo de teatro de fricção, porque ele precisa dessa fricção do público com o ator, senão ele não acontece, e no [teatro] de ficção, a platéia assiste e diz, mas é um padre mesmo e nesse não, ele está entendendo o Vieira e ele está reagindo ao Vieira, por exemplo.

Paulo Markun: Mas você acha, desculpe te interromper, você acha que um é pior que o outro?

Denise Stoklos: Não, eu acho que não há categorização em... Arte é tão diversa, imagina estilos e a diversidade é maravilhosa. A minha escolha é essa. E essa é a minha proposta e, talvez por isso, que esteja sendo vista como um método, um sistema e tenha sido estudado em universidades, já por se compor de algumas regras até que conduzem a esse tipo de teatro. Evidentemente porque a minha preferência é essa. Espetáculos que me comovem, contêm isso e eu não estou sozinha só que, evidentemente, são linhas diferentes. Eu não poderia dizer que é uma linha como a do Dário Fo [Dário Fo (1926-), escritor, dramaturgo, ator e regista italiano, foi Prêmio Nobel de Literatura de 1997], a quem eu tanto admiro, mas me satisfaz.

Marici Salomão: E de quem você já fez o Orgasmo adulto, inclusive.

Denise Stoklos: Um espetáculo dele.

Paulo Markun: Eu acho que nós perdemos, desculpe, a gente perdeu a pergunta do Pedro, ela ficou perdida na parada. 

Pedro Brício: Você falou exatamente isso agora que o teatro essencial é o método, eu queria saber se nesses cursos que você tem dado, você enxerga que ele é aplicável a outros atores, cada ator poderia fazer o seu teatro essencial?

Denise Stoklos: Sim, absolutamente. Isso que eu acho a grande magia de um teatro essencial, que foi o nome que eu escolhi dar para esse jeito de fazer. Porque cada um tem uma idiossincrasia e cada um tem posturas e tempos e pausas e tons e timbres que tornará aquele padre Antonio Vieira de outra forma, vivo, atualizante, atual. Então, o que eu posso dar nesses workshops, que eu não tenho dado há muito tempo, comecei a dar no Sesc assim que eu voltei de Londres em 1981, parei por um bom tempo e dei no Sesc Ipiranga o ano passado, de uma semana, e depois durante o semestre todo ano passado na New York University, no departamento de performance study. Aí, eu trabalhei bastante essa possibilidade, inclusive com esses atores que eram alunos mestrandos e doutorandos em performance. Ali tinha gente do mundo inteiro, então cada um trazia realmente uma relação até política com as suas causas, e foi muito interessante porque num dos momentos eu tive uma discussão com eles sobre o “para quê” mesmo, para quê, a validade. Eu estou muito nessa crise mesma: para quê? Eu não tenho muita certeza, eu nunca tive medo de nada, eu sou meio ousada para afirmar, mas sempre com muitas dúvidas. E agora, mais do que nunca ainda, e aí numa das aulas eu perguntava: para quê eu vou estar aqui trabalhando para formar vocês performancer, se inclusive o próprio exercício é tão abandonado. Você veja: se você comparar um solo do Dário Fo ou uma peça enorme, um espetáculo imenso do Robert Wilson [Robert Wilson (1941-), diretor, dançarino e coreógrafo americano] que é cheio de efeitos retóricos, onde o ator é praticamente não utilizado nessa questão de testemunho próprio. No mercado, uma peça do Robert Wilson pode ser caríssima, e é paga no mercado, mas não se paga a um solo do Dário Fo. Por quê? Porque é um ator só e essa é a justificativa do mercado. E eu quero inverter isso, eu acho que justamente por ser um ator só, deveria ser muito mais bem pago, porque gasta mais, o técnico no Bob Wilson pode ser substituído. As máquinas quebram, troca o parafuso. Mas o Dário Fo não dá para trocar parafuso e desgasta-se permanentemente. Ele cria tudo sozinho. E, sozinho com uma multidão se comunica, que, aliás, é uma das coisas que eu também gosto no meu próprio trabalho. As oportunidades que eu tenho, principalmente fora do país, de me apresentar em teatros muito grandes, 3000 lugares, 2000 lugares, como na Argentina, na Finlândia, Taiwan, Cuba, na Suíça, porque é muito mais interessante o fenômeno de uma pessoa sozinha se comunicar com muita gente e ainda ser teatro, do que uma pessoa sozinha com um público muito pequeno, é intimista, é meio que óbvio a comunicação.

Alberto Guzik: Isso engata uma pergunta que eu queria te fazer sobre espaço.

Denise Stoklos: Eu só gostaria de completar a resposta que eu tive de uma aluna americana. Ela disse assim, que é uma coisa que eu acredito, mas ouvir através de um jovem, eu me senti mais segura quando ela disse: “Não, mas eu acho que o teatro desse jeito, que é uma performance, que é ao vivo, que é o atual, atualizante, é a arte do futuro, porque nós estamos cada vez mais tecnológicos, mais virtuais. E, então, o homem vai precisar ir ao lugar aonde ele se encontre com gente viva, ao mesmo tempo, onde o tempo esteja escorrendo ao mesmo tempo para todos, naquele momento. Então acabou sendo o teatro como sempre, essa história de a... o teatro está em crise, o teatro está morrendo, cada vez mais ele fica a arte mais, mais vanguarda, mais possível, a única talvez mais viável daqui a um certo tempo, porque ela oferecerá ao homem aquilo que ele dificilmente encontrará: o outro.

Guilherme Weber: Eu queria perguntar. Você falou no bloco passado das suas apresentações no exterior, de você ter levado todo o seu repertório para diversos países. O T.S. Eliot falou num livro dele chamado De poesias e poetas, que ele achava que era impossível traduzir a emoção primitiva, através do idioma que não seja no qual você pensa originalmente. Como é que você trabalha contra essa teoria? Como é que você busca acionar o sistema emocional representando em outro idioma?

Denise Stoklos: Essa questão que eu falava, os espetáculos que eu escolho montar são, sempre a metáfora deles, a discussão é sempre sobre a natureza humana. O trilho no qual eles percorrem pode ser o tema do Cristóvão Colombo, Mary Stuart, mas a relação discutida em cena sempre diz respeito a assuntos que são universais, como eu citei a questão do espetáculo Fax para Colombo. Eu falava dessa lei de Colombo aonde chegava uma cultura estrangeira aqui e devastava a terra do índio e que isso era uma metáfora para toda a cultura que a gente introjeta e devasta nossas terras internas, nossos índios internos e não temos um intercâmbio com ela. E isso todo mundo sofre, não só em termos culturais como muitas vezes em termos pessoais ou emocionais. Então, em qualquer lugar acaba a comunicação, mesmo sendo a mesma. É muito interessante observar isso, e esse espetáculo que eu mencionei, por exemplo, tinha o mesmo tipo de reação bastante emocionada, tanto no Brasil, quanto na Argentina, quanto na Finlândia ou na Alemanha, nos Estados Unidos e poderiam aparentemente ser contraditórios, né.

Guilherme Weber: Mas além dessa identificação temática, assim como que você aciona o mecanismo emocional seu como atriz num outro idioma?

Denise Stoklos: É porque...

Guilherme Weber: De que forma isso processa no seu organismo?

Denise Stoklos: Para mim, o espetáculo todo tem diversas camadas. Tem aquela camada bem aparente, como na peça Casa é uma comédia, um espetáculo “clauwnesco” de uma mulher que não se adapta dentro do seu apartamento, da sua casa e, na camada mais metafórica, é o ser humano habitando o lugar onde ele está desconfortável. Desconfortável pelas próprias regras que se criaram desse sistema, onde a comida da geladeira não alimenta, a cama não serve para descansar, o instrumento não é manejado com maestria e esse personagem só fica livre a hora que toda convenção da casa é retirada de cena, onde um contra-regra é chamado, é pedido para tirar tudo de cena e aí começa a ficar quente, aí começa a ficar caseiro o espetáculo, e então, nesse [espetáculo] essa é uma boa explicação de como minha relação com os temas sempre são de ordem universal, de natureza humana, como eu dizia, e aí em qualquer idioma isso não vai me alterar a enunciação do problema da questão.

Sônia Régis: Se me permite, Denise, eu gostaria de dar continuidade um pouco a essa universalidade que impregna a particularidade, personalidade do ator. Porque eu acho muito interessante, você mesma diz, que a concepção formal do seu teatro essencial corresponde à aproximação política dos temas, em que o ego do ator funciona como emissor de experiências coletivas e não como fonte de vivências pessoais, apenas, o que corresponde um pouco à ousadia de Borges, [Jorge Luis Borges Acevedo (1899-1986) escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta argentino] a ousadia ao dizer que o escritor nada dá ao mundo, muito pelo contrário, ele apenas é uma mente receptora. Eu acho interessante esta questão porque cada vez mais me parece que aquilo que alguns criticam em você, você está num bloco do eu sozinho é absolutamente universal, é exatamente o oposto, o contrário, porque a vivência do artista se aproxima muito dessa universalidade, parecido com o que o Scliar [Carlos Scliar (1920-) pintor, gravador, desenhista, ilustrador, cenógrafo e roteirista gaúcho], o pintor, também deu como resposta ao jornalista, que eu achei magnífica. O jornalista perguntou: quantos minutos ele levou para pintar uma tela, ele disse: 20 minutos e sessenta e quatro anos, [risos] porque tudo está ali representado. Eu gostaria de saber se você acha que a responsabilidade essencial do artista é essa responsabilidade cívica de contar a sua experiência, que é parecida ou se atualiza ou atualiza a experiência do outro, do semelhante?

Denise Stoklos: Acho sim, porque estamos todos em busca de uma felicidade, de uma realização e...

Sônia Régis: E qual seria o papel dessa personalidade ou desse mecanismo externo do ator?

Denise Stoklos: É ter cada vez mais um exercício político de independência, porque quanto maior for a sua independência, mais livre e capaz você será de tocar em qualquer tema ou circunstância que detone no expectador determinadas estruturas que se você não dá aquele curto circuito de um fato reconhecido publicamente, ele não atinge naquele tempo de espetáculo a compreensão de um determinado fato.

Sônia Régis: Então quanto mais particular, mais universal?

Denise Stoklos: Isso.

Sônia Régis: Voltando inclusive a questão da linguagem, eu lembro também o Borges novamente, que dizia que nenhuma página de literatura, uma página excelente de literatura perdeu por ser traduzida, recopilada, etc, quer dizer, a essência permanece. Seria isso?

Denise Stoklos: Certo, a idéia é essa. A idéia é essa que, e tenho recebido respostas de que isso acontece por isso que eu me entusiasmo em continuar pesquisando nessa linha e também de que cada vez fique mais simples o espetáculo, mais diretos. Vozes ressonantes, que eu pensava que era um espetáculo tão, tão simples que, portanto, era quase uma narrativa, quase um jogral, depois eu descobri e percebi que conseguiu ser o mais direto e dramático e com cenas que constroem aquela montanha russa de sensações onde na alquimia do dramático, do cômico, do gênero, das pausas, dos tempos, cria aquele lúdico do mágico, porque teatro é o lúdico, dali é uma...

Sônia Régis: A essência básica seria a emoção?

Denise Stoklos: Completamente, completamente, mas eu sempre penso que o teatro não é um passatempo, é um ganha tempo, e que teatro é... ele... A emoção é sempre cada vez mais difícil. Quando eu apresentei Mary Stuart, na Suécia, a primeira vez teve uma conferência de imprensa antes e estava lá uma coreógrafa dos filmes, das peças do Bergman [Ernst Ingmar Bergman (1918-2007) dramaturgo e cineasta sueco]. E ela assistiu à conferência, depois ela foi assistir o espetáculo no terceiro dia. No primeiro dia, tinham ido alguns atores do Bergman e que se levantaram para aplaudir na primeira fila, isso trouxe uma repercussão na imprensa muito grande: a temporada ficou lotada todos os dias. Aí, no último dia, ela foi assistir. Me esperou no camarim durante muito tempo, eu saí, ela disse: “Olha eu gostei muito do espetáculo, mas eu quero te dizer que para uma atriz brasileira eu esperava mais emoção”. Aquilo me doeu, mas me doeu tanto e eu estava naquela turnê toda ensaiando o Fax para Colombo que eu ia estrear em Colônia, na Alemanha. Eu já tinha passado pela Dinamarca, pela Holanda, ensaiando o espetáculo. Aí foi a deixa, foi àquela crítica construtiva dela, aquela orientação que ela me deu que me levou a colocar no final do espetáculo Gracias a la vida e eu me jogando no chão. Quer dizer, coisa que eu jamais pensaria em fazer, acharia “sentimentalóide”, é numa terra, a gente sabe nesse fio da navalha que é entre aquilo que fende a emoção, o kitsch, como diz o Umberto Eco [(1932-) escritor, filósofo, lingüista e grande pensador italiano que escreveu, entre outros, o romance O nome da rosa], a reprodução da emoção e a emoção. Mas, a emoção mesmo é muito, muito difícil e eu estou sempre buscando me aprofundar nisso.

Sônia Régis: A emoção é difícil porque existe um desvio excessivo da nossa, do nosso aparato sensorial atualmente, é isso?

Denise Stoklos: E porque para o próprio emissor, o ator, é muito complicado você entrar em contato com essa emoção.

Sônia Régis: São seres simbólicos, né?

Alberto Guzik: Deixa eu perguntar para você sobre a questão do espaço. Sair um pouco desse terreno da abstração, da teoria, da idéia que jaz atrás do espetáculo, queria te perguntar a tua relação física com o espetáculo. É prodigiosa a tua desenvoltura em cena. Você consegue, efetivamente, dominar o público numa sala de 100 lugares como o Crowe Plaza e numa sala de 3000 lugares como o Guaira. Quer dizer, isso não se dá sem um determinado tipo de postura do artista. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso, a diferença entre essas diferentes gradações de, enfim, de geografia, que você tem que dominar para efetivamente se comunicar com o espectador. Em segundo lugar, eu queria que você falasse um pouco sobre o gesto. Eu te conheci no final da década de 1960, começo da década de 1970 como uma atriz, atriz que chegava em cena, compunha uma personagem, ia lá e representava, uma atriz extraordinariamente forte, mas uma atriz. Daí você estuda mímica e volta da Europa uma fera, uma outra atriz, uma atriz de uma potencialidade extraordinária, de uma precisão gestual rara, de uma habilidade na colocação corporal que é quase única no teatro brasileiro. Eu queria que você falasse também, além de falar sobre a tua relação com o espaço, que você falasse dessa questão do gesto. Quando é que você descobriu que era preciso estudar o gesto do jeito que você estudou?

Denise Stoklos: Eu sempre fui uma atriz muito física porque essa coisa de ser de uma cidade do interior, sempre estava lá brincando nas barras, jogando futebol, sempre uma vida muito atlética, natação e vendo muito circo, então, muito física sempre. Depois, eu fui estudar em Londres com Desmond Jones mímica contemporânea, que é a mímica de onde saíram todos os mímicos. Aí, durante o curso eu já fui discordando de algumas coisas, porém, fui me instrumentalizando de uma disciplina corporal que eu não tinha antes: alguns sistemas que eu desconhecia, como o de isolamento, trabalhar com articulações isoladas, espasmos e tudo mais. Depois disso, eu fui fazer um curso em São Francisco com outro aluno também de Etienne Decroux [(1898-1991) ator, conhecido como o pai da mímica moderna tem grande influência no teatro contemporâneo] que é o Leonardo, que depois do curso foi para Bali, passou dois anos fazendo teatro balinês, onde ele foi desfazendo os gestos. E com ele eu aprendi muito, eu cheguei assim do curso de Londres para ele, e ele disse: “você está escondida atrás do gesto, está escondida atrás da virtuosidade do gesto, eu não quero ver o gesto, eu quero ver qual é a sua opinião sobre o gesto”. E aí ele, durante o curso eu também não fui gostando muito, já queria sair, ele disse: não, não saia, volte à noite, depois do curso diário, e vamos trabalhar só nós dois, sozinhos. Eu ponho uma câmera na frente e vamos trabalhar. Aí, só com a câmera, ele era um belo professor porque ele sabia olhar. Só o olhar dele em mim me proporcionava querer trabalhar e apresentar coisas para ele. Onde ele queria que eu dissolvesse o gesto, até que o gesto fosse o movimento, a tomada do espaço fosse adquirindo um sentido que nem eu mesma conhecia. Esse tipo de trabalho foi fundamental para mim. Eu voltei e continuei desenvolvendo esse trabalho, que passou a ser um dos meus fundamentos. O próprio Leonardo já parou de trabalhar com essa área, está trabalhando numa área de assistência social e tal, esteve até me assistindo quando eu estive em São Francisco numa apresentação, mas ele foi muito fundamental nisso. Então, eu trabalho com espaço e com a "des-facetação” dos gestos, isto é, o gesto não é o óbvio. O gesto que a gente usa para o cotidiano ele não serve ao teatro porque ele pode ter outro código em qualquer outro país, mas o gesto que surgir da minha afetividade e for o tanto que eu uso para me deslocar da gravidade, o esforço que eu faço para colocar meu braço pra me deslocar da gravidade será a intenção, a expressão, e isso não tem erro. Isso é universal. E, então, é esse trabalho que eu me dedico em relação ao gesto que você me perguntava.

Alberto Guzik: E o espaço?

Denise Stoklos: E o espaço é isso, a minha linguagem, o meu texto é o espaço. É recortando o espaço que eu faço o espetáculo. Que lugar eu ocupo e qual eu não ocupo é o conteúdo do espetáculo. Parece um pouco abstrato, mas, na verdade, é muito prático isso. Inclusive eu só posso ensaiar fazendo, eu não posso pensar, se eu pensar, ah! Ai eu vou fazer uma cena assim, ela é maravilhosa, eu levanto vou fazer, não sai, não existe, ela só sai da realização e por isso que ela se torna pessoal, infinitamente pessoal, porque vai depender da minha altura, das minhas dimensões, e por isso que cada teatro...

Alberto Guzik: E da tua emoção também, é claro.

Denise Stoklos: E cada teatro essencial, portanto, também será único por qualquer um que o execute e dependerá dessas...

Paulo Markun: É possível fazer isso que você preconiza em grupo?

Denise Stoklos: Sim, nessas aulas e nesses workshops são feitos em grupo.

Paulo Markun: Não, eu digo, explicitar isso no palco em grupo, quer dizer você fala em questões e temas que eu imagino que sejam complicados de se resolverem sozinhos, mas se resolvem. Agora, na hora que você tiver meia dúzia para que todas as pessoas atuem na mesma direção com algum significado comum conjunto, não fica mais complicado?

Denise Stoklos: Tudo é muito complicado, principalmente para mim, tudo é complicadíssimo. Eu mal me suporto de tão complicado que é tudo. Mas é possível também, claro, precisa de muito esforço, muito trabalho, muita concentração e muitos vazios também.

Paulo Markun: Há quem faça?

Denise Stoklos: Sim, nesse curso mesmo que a gente fez no Sesc Ipiranga em dezembro era uma turma onde a gente realizou coisas absolutamente sensacionais mesmo, de resultados. Foi uma semana intensiva. E muito vem de uma coisa inconsciente, porque é muito com o inconsciente que se trabalha nesse trabalho. É de desfazer gestos, de que esses gestos sejam criados a partir de uma necessidade, a hora que há uma necessidade ele surge e é pessoal, e é universal, porque não surgiu nada que não seja muito íntimo quanto à natureza humana.

Paulo Markun: Qual é o gesto mais universal que existe? 

Denise Stoklos: São todos, todos que se, que venham desse, desse lugar, que não venham de convenções.

Guilherme Weber: Dentro dessa particularidade do seu trabalho, dessa criação solitária, quando você sente falta de um diretor, quando você sente falta de ter um outro ator ao seu lado?  

Denise Stoklos: Eu sinto muita falta. Eu gostaria de ter diretores. Gostaria. Já comecei a ter assistentes de direção nos meus, nos meus dois últimos espetáculos, já tive. Tenho vontade de contracenar, estou com muita vontade há muito tempo de fazer uma peça com meu filho Ubiratan que é um ótimo ator, e estou esperando oportunidades para que isso aconteça. Amigos meus acham que eu devo trabalhar com atores jovens, como foi aquela grande oportunidade que eu tive de trabalhar com você e com o Ricardo Bittencourt [Teatro Oficina] no espetáculo Mais pesado que o ar - Santos Dumont onde eu aprendi tanto, onde eu virei a narradora apenas do espetáculo e vocês eram todo o núcleo daquilo que foi tão importante para mim, aprendi tanto. Então, há em pauta também esse desejo, mas como eu trabalho com muitos projetos, sempre tenho muito, porque eu trabalho no delírio.

Danilo Miranda: Denise, exatamente sobre esta questão de quantidade de coisas, de projetos que você faz, eu gostaria de colocar uma questão sobre, mais no plano, digamos, político aqui no país, que é o seguinte: claramente você tem um reconhecimento, uma aceitação e um apoio, e um suporte mais internacional do que local, de certa forma. Isso pela quantidade, pelos convites, pelas oportunidades, pela maneira como você é conhecida no mundo inteiro nesse circuito de teatro. Como você interpreta este fato? Ou seja, trata-se de uma, digamos, dificuldade com algum grupo especial, com algum setor, com alguma maneira de atuar, de uma coisa diferente? Eu sei que é uma questão um pouco mais delicada, mas é uma questão que eu acho importante ser explicitada na medida em que isso poderia trazer, de alguma forma, um esclarecimento, um aprofundamento maior da presença de Denise Stoklos no trabalho, digamos, no teatro, no cenário do teatro brasileiro.

Denise Stoklos: Primeiro Danilo, eu acho que é questão socioeconômica mesmo nos separa. E nesses países, principalmente na Europa, que eu me apresento muito, é evidente que as preocupações sociais e econômicas são de outra ordem. Há tempo e há possibilidade das pessoas irem mais ao teatro. Há mais companhias de teatro, há mais propostas, e aí, conseqüentemente, o público, a crítica especializada, o meio acadêmico têm também a oportunidade de avaliar e categorizar o meu trabalho, como uma coisa específica e dar um valor que tem dado. No Brasil a gente já tem tantas dificuldades. Querer que o público vá ao teatro, eu sei que já é querer muito mesmo, eu sempre conto com isso. Acho que, pôxa, há tantas coisas tão mais básicas para serem resolvidas: saúde, educação, que a cultura mesmo, eu sei que ela é até, é quase imoral às vezes. Quando eu vejo coisas assim muito caras, produções muito caras, eu mesma fico muito chateada quando os meus próprios espetáculos se vêem, às vezes, conformados assim. Então, uma das condições que eu vejo é essa mesma: de a gente viver com muita dificuldade aqui e o teatro virar quase um supérfluo para a maioria.

Marici Salomão: Queria até aproveitar este gancho que o Danilo levantou e lembrar que [o espetáculo] Louise Bourgeois [sobre a escultora francesa (1911-)] que estreou em [Lá Mamma] Nova York, e que trata dos pensamentos e da obra dessa grande artista plástica que é a Louise Bourgeois, uma francesa radicada nos Estados Unidos de 89 anos. Quando você estreou esse espetáculo, no ano passado, disse numa entrevista no passado que era quase um luxo trazer esse espetáculo para o Brasil porque ele é sofisticado, ele lida com as questões do ser, os medos, a angústia, a criação e que no Brasil as nossas preocupações são com fome, violência, saúde, educação, etc e tal. Quer dizer, de qualquer forma vale a pena oferecer esse "biscoito fino", como diria Oswald [Oswald de Andrade (1890-1954) poeta, romancista e dramaturgo, ícone do modernismo brasileiro] ao público brasileiro, você pode ter fornadas assim, fornadas e fornadas de biscoito e não ter quem comer?

Denise Stoklos: Eu também acho que há uma diversidade. Tudo pode ser possível no teatro, tudo interessa quando é feito com essa decência. Com a minha preocupação social desses temas mais básicos, sou muitas vezes chamada de panfletária e adoro isso, que pelo menos alguém está fazendo isso, não porque parece essa coisa e ouço muitas vezes dizer, mas não existe mais teatro político. Ninguém está mais interessado, o teatro está tão alienado, e eu estou fazendo. Quer dizer, imagina, têm muita gente fazendo, mas parece que não existe parece que acabou lá, no [teatro] Arena, no [teatro] Oficina, porque, ainda mais porque os nossos problemas não acabaram e se intensificaram porque agora estão legitimados pelo voto, os mesmo critérios. Então, a batalha é mais árdua ainda e o teatro não tem porque não deixar de debater esses temas e refletir sobre eles.

Paulo Markun: Eu estou enganado ou você fez um preâmbulo à resposta de Danilo e ficou faltando uma parte aqui da resposta? Ou é só isso?

Denise Stoklos: Não. Eu acho que vai acabar se completando agora, porque quando o Louise Bourgeois, por exemplo, que foi o espetáculo que eu fiz lá [faz referência ao local] o ano passado, primeiro seria um parênteses muito grande em todo esse encontro. No ano passado, aconteceram coisas muito importantes para mim, pessoalmente. Assim, na minha carreira, que foi o professor Milton Santos ter feito uma entrevista junto comigo, que me qualificou imensamente, o Sesc reafirmar o seu apoio ao meu trabalho no Brasil. Louise Bourgeois me receber e acabar construindo o cenário do espetáculo, me permitir fazer o espetáculo. Eu fui para casa e escrevi: minha família, o público da minha terra e Louise Bourgeois me aplaudiram, dois pontos: ou uma artista. Porque ela me aplaudiu, fiz uma cena lá e ela me aplaudiu e bravo e tal, ela falou: você é muito real.

Marici Salomão: Apesar de quase você quebrar a geladeira da casa dela, você foi mostrar as suas performances.

Denise Stoklos: E ela gostou muito do barulho da geladeira batendo, ela gosta de coisas violentas.

Marici Salomão: Uma marreta.

Denise Stoklos: E eu também. E então foi muito bom porque foi muito agressivo, foi tudo.

Marici Salomão: Uma fricção mesmo, né?

Denise Stoklos: Completamente. Ela me deixa muito perdida sempre. Ela faz isso. Ela sabe que ela é sempre a mais velha da sala, a mais experiente. Então, o que ela dá para as pessoas que a buscam é sempre uma lição inesquecível, ela desmonta completamente a pessoa e vê o que é que a pessoa, o que a faz levantar-se de si mesmo, o que é que sobe, o que é a sua essência. Só então ela fica satisfeita. O processo todo é bem doloroso e foram quatro meses de convivência excepcionais assim para mim, de uma riqueza absoluta. O primeiro dia que eu estive no estúdio dela, aquelas peças enormes, e ela tão pequenininha, eu fiquei muito emocionada, pensando que todo mundo na rua carrega também aquela imensidão interna que eu via naqueles objetos de ferro. Só que nem todos expressam como ela, mas todos têm este mudo interior alucinado, atormentado, como ela diz. Ser artista é estar em tormento, permanentemente, porque você está em encontro com seus medos, suas dificuldades, suas incertezas e seus abandonos principalmente, somos todos abandonados de alguma coisa, né? Enfim, esse espetáculo, foi muito importante à criação, e é um espetáculo que temos, está em cogitação com o próprio Sesc de a gente trazer para cá, mas é complicado, sim, porque envolve todo esse transporte das três, dos três módulos que são muito grandes, muito pesados que ela fez especialmente para o espetáculo e o pessoal da criação que acabou sendo todo lá de Nova York mesmo. Então, não é uma coisa fácil de acontecer. Eu mesma entendo que o Danilo tem sido totalmente compreensivo com as minhas insistências, mas eu acho que acabará sendo feito, uma hora ou outra, e acho importante, sim. E é um espetáculo onde essa questão da emoção pura, eu me jogo mais, mais, então para mim é muito difícil, meio, é muito desgastante e não, porque é revigorante, mas é.

Marici Salomão: Auto transformador, talvez?

Denise Stoklos: Sempre né, qualquer um, qualquer espetáculo, todos os dias eu sempre pergunto, onde é que está a escada de incêndio para eu fugir. Por que eu fui fazer isso aqui? Sempre olho aquele palco lá fechado, penso..., não, espera aí. Os grandes, Moliére [Moliére (1622-1673) literato, ator e dramaturgo francês], Shakepeare, todos eles já enfrentaram isso aqui, alguém tem que fazer isso hoje, já que eles não estão aqui, vamos pelo menos por respeito a eles e continuar esse processo. Aí eu entro, é na base do empurrão, assim, para respeitar os grandes criadores que não estão mais aqui para fazer.

Paulo Markun: Há várias razões pelas quais o teu trabalho é mais conhecido fora do Brasil do que no Brasil. Apresentou razões que ninguém contestaria, como, por exemplo, o fato de que se vê mais teatro lá na Europa do que aqui, que a vida lá é melhor do que aqui. Eu quero saber além disso. O que mais?

Denise Stoklos: Acho que por toda essa dificuldade mesmo de exercício teatral aqui, os próprios intelectuais que tratam do teatro e que poderiam projetar, portanto, trabalhos como o meu, nem todos eles têm uma formação das diversas possibilidades que o teatro apresenta como essa, de um teatro essencial, de um teatro solo que não seja apenas um monólogo. Isto é, uma peça escrita por um autor, tem um diretor, já na decodificação e ainda um autor na outra decodificação e este teatro é um teatro quase unitário. A própria coreografia também nasce deste mesmo ser emissor, então, para avaliar isso, nem todos estão preparados. e então, eu vejo que a maior parte dos críticos, por exemplo, de teatro, que já me eliminaram, neutralizaram, nem falam sobre o meu trabalho, são sempre críticos que conhecem bastantes trabalhos clássicos e entendem que o teatro é o teatro de ficção apenas.

Paulo Markun: Quer dizer, para ser grosseiro: falta curriola para o bloco do seu sozinho?

Denise Stoklos: Não, não, não. Mas muito, eu não posso reclamar, você sabe disso, de espaço em mídia, eu mesma não posso. E sempre que eu falo disso, eu falo muito dos grupos jovens. É claro que seria muito melhor que eu tivesse a mesma projeção que eu acabo tendo lá fora, lógico, mesmo porque eu teria um acesso a essa maioria na maior quantidade dela. Então, isso é restringido a um, digamos, um boicote implícito porque não se considera aquilo importante e inclusive porque como eu tenho esta atividade muito no exterior, me apresento muito fora. As temporadas aqui são muito curtas, e isso nunca é, por exemplo, noticiado. “Olha aproveite porque é só esse pouco tempo”.  É visto como mais uma companhia qualquer que está sempre em cartaz, que mora aqui. Então, esse cuidado não existe. Não é só por uma questão cultural, acho que é uma falta de informação mesmo. Muitas vezes eu vejo anunciado assim: a mímica hoje se apresenta em francês na Aliança Francesa. Como já aconteceu de eu fazer o espetáculo inteiramente em francês, no palco da Aliança Francesa, ensaiando, treinando para ir me apresentar em Paris ou em Genever, e sai no jornal assim: "a mímica", não se faz nem a relação de que mímica pura mesmo eu fiz o último espetáculo em 1982. A partir de então, eu já fui agregando a questão da voz e do gesto ao mesmo tempo, e que é uma das coisas que diferenciam os meus trabalhos, e que, então, ao não ser categorizado, ele fica sem atenção. Então, fica daí sem uma atenção maior que o Danilo me perguntava: por que é que eu vejo isso? Várias teses têm sido escritas, aqui no Rio. Foi escrita pela Cristiane Moura [Cristiane Moura (1963-) coreógrafa, dançarina e atriz brasileira, é mestre em teatro] pelo Pedro Brício [Pedro Brício (1972-) ator e diretor de teatro] foi escrita agora, uma outra de mestrado, nos Estados Unidos foi escrita pela Suzi Capó [jornalista] na New York University, foi escrito um ensaio na Dicki University, na Finlândia, agora, foi publicado um outro ensaio, enfim, isso tudo vai ser publicado em um livro que eu acredito que daí, talvez, essa lacuna de informação eu possa estar dando e também eu sei que eu sou um pouco acusada ou denunciada pelo próprio público que me freqüenta, que está comigo há muito tempo, de que o fato de eu não deixar gravar imagens do espetáculo para a televisão, que é uma coisa que eu não faço desde 1987, que eu descobri e entendi que é uma traição ao tipo de teatro que eu faço que é totalmente energia, fricção, ele não aparece através da câmera, ele não aparece, ele aparece uma outra coisa que vai contra o próprio espetáculo. Então, eu resolvi que não gravaria mais, não mostraria cenas e muitos programas de divulgação de calendários culturais dizem, não tem imagem então não tem divulgação. Eu digo: então, ok!, vamos ficar sem divulgação.

Marici Salomão: E, por exemplo, no exterior pode acontecer, já teria acontecido isso de você não dar imagens para as TVs?

Denise Stoklos: Já também, muito. Em nenhum lugar eu gravo,  nenhum lugar. Já fiquei de fora de vários festivais e tal. Eu mostro, dou fotografias.

Marici Salomão: Que limita a divulgação. 

Denise Stoklos: Limita profundamente, mas mesmo assim eles aceitam. Eles aceitam como, no mínimo, como uma excentricidade e respeitam como uma escolha, uma característica. Aqui não é respeitado e é, inclusive, maltratado. Isso, não tem, então, não vai ter divulgação, não entra. Aí não sai nem no roteiro cultural, isso acontece permanentemente. Eu sei que isso eu também poderia talvez contornar, e isso está acontecendo, porque a minha filha Thaís que trabalha com design, com vídeo, ela está fazendo um documentário, sobre um trabalho já há algum tempo, meio em off, e acompanhando viagens e aí talvez a gente, juntas, consiga encontrar um olhar da câmera que transmita aquilo que eu acho que chegará ao telespectador do que é o espetáculo. Aí eu acho bem viável. E sinto falta mesmo de não poder fazer isso e as pessoas mesmas reclamam, como é que eu vou saber que a peça está em cartaz se você não anuncia. Há uma contradição aí também. Então, não é só uma falta de uma cultura, de uma determinada área da crítica, não toda. Guzik por exemplo, me acompanha desde os primeiros trabalhos, desde Maldição.

Paulo Markun: Quer dizer, noto que aqui se trata de uma ação entre amigos. [risos]

Denise Stoklos: Mas completamente, aliás. Aliás, o meu público também é o público mais bonito do Brasil, porque é um público inteligente, um público que opta, que vai a um espetáculo que não está nem anunciado pela mídia. E só gostam de mim pessoas inteligentes. [risos]

Sônia Régis: Denise, você tem se mantido numa posição constantemente ética. Aliás, você é o ser mais ético que eu conheço fazendo arte, analisando alguma arte e eu vejo que você leva em conta, você acabou de dizer inclusive, que o médico, o professor, o jornalista escolheram uma determinada vocação para servir a si e ao outro e também vão ao teatro e, lá, é você que está exercendo esta vocação. Hoje em dia está na moda as pessoas não se afirmarem nessa escolha. As pessoas estão no lugar ou como jornalistas, médicos, dentistas, ou porque foi a primeira oportunidade, ou alguém deu emprego, elas estão lá, não sabem bem porquê. Você afirma esse seu lugar como uma escolha. O que você acha que aconteceu para o sujeito hoje se desobrigar desse espaço, do seu discurso, do seu lugar. Por que quê saiu de moda a questão ética?

Denise Stoklos: É porque o convite é cada vez mais, ele está mais sofisticado para se aderir às velhas questões de injustiças sociais, são as velhas questões e o convite está mais sofisticado, está mais requintado. Agora tem o nome de globalização. É a única possibilidade do velho imperialismo, do não dar caminho próprio ao seu país. Então, a tendência está sendo, e como está cada vez mais violenta e difícil à sobrevivência fora deste sistema, a tendência é que se moralize a conversão ao conservadorismo e isso acontece inclusive, infelizmente, na classe artística porque é assim que fica mais fácil se conseguir patrocínios, tal. Eu sou uma prova viva disso porque eu sempre mando os meus pedidos para todos os lugares possíveis que tem essa prática de dar patrocínio e 99% são projetos negados e vejo outros aprovados na mesma lista que contém, invariavelmente, algum ator.

[]: De novela?

Denise Stoklos: É. Ou então que é uma peça garantida porque é um clássico ou que não garante nada porque, como falamos aqui, o importante, o interessante, o espetáculo de teatro é a interpretação dele. E quanto mais liberdade e exercício de independência você tem, mas possibilidade tem de se interpretar um clássico que está tratando de temas absolutamente profundos e livres e não arregimentados a um sistema em vigor, nenhum, né.

Alberto Guzik: Denise...

Denise Stoklos: Respondi Sonia?

Sônia Régis: Sim.

Alberto Guzik: Eu queria que você falasse do humor no seu trabalho. Seus espetáculos são muito engraçados. Você é uma comediante extraordinária em cena. É uma clown consumada e consegue fazer um humor muito requintado que vai desde o físico até um humor lírico, muito delicado e muito suave. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso, eu queria que você falasse sobre a importância do humor na sua, enfim, na sua criação.

Denise Stoklos: É aquela frase que eu disse há pouco, até é uma paródia de um personagem de Dostoievski [Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) escritor, uma das maiores personalidades da literatura russa, é autor, entre muitos outros, de Crime e castigo e O idiota]. Ele chegou aos sessenta anos e descobriu que ele só podia se tornar canalha, e nada mais. Então, aquela coisa de que aos seis anos eu me descobri, e comecei a rir e não parei mais, e tem essa questão mesmo, também você rir das insuficiências. E rir das insuficiências é uma das formas de libertação. Bergson [Henri-Louis Bergson (1859-1941) filósofo francês] fala disso, tal, quer dizer, é impossível também dentro do teatro, que o teatro ele é todo esse mosaico, esse jogo, ele não é uma narração, uma narrativa apenas, não é uma conferência, ele tem que ter todos os jogos teatrais e aí o humor é absolutamente fundamental, principalmente quando se critica coisas.

Paulo Markun: Agora você é bem humorada na vida real?

Denise Stoklos: Não me faça perguntas pessoais aqui. Eu sou, eu gosto da comédia, mas também sou atormentada, extremamente atormentada, muito...

Paulo Markun: Mas humor é um ingrediente que você coloca conscientemente?

Denise Stoklos: É. Minha mãe é muito engraçada, ela conta e reconta os mesmos casos, a gente pede para [ela] contar de novo. Meu avô tinha... Ele conversava com o primo dele, sentado na varanda, conversando; então, um contava para o outro as mesmas histórias, um dia começava um, “oi! tem aquele caso”, o outro falava assim, “Não. Deixa que essa, eu que conto hoje.” Quer dizer, é uma, um contar, a narrativa, a maneira de contar aí que era interessante. Então, eu fui criada dentro desse ambiente, todo mundo sempre rindo muito, quer dizer, esse privilégio eu tive de me deixar confiante de que esse humor...

Paulo Markun: E nesse humor tem o ingrediente também de não se levar muito a sério?

Denise Stoklos: Também. Apesar de que, por tudo que eu falei aqui, parece que eu me levo profundamente a sério. Mas volto a dizer que ese teatro essencial é uma possibilidade. Claro que não estou afirmando que é o resultado definitivo, o único caminho e tal. Aprendi muito com Louise Bourgeois também nessa convivência, que é essa artista plástica não tão conhecida aqui no Brasil, por também todas essas dificuldades culturais que a gente tem. Mas ela é considerada, talvez, uma das mais importantes artistas vivas e além de ser escultora, desenhista, escritora, ela é uma pensadora.

Danilo Miranda: Tem uma obra aqui no MAM [Museu de Arte Moderna] de São Paulo, importante.

Denise Stoklos: Tem.

Danilo Miranda: Umas aranhas.

Denise Stoklos: Tem uma sala Louise Bourgeois e ela fez agora também esculturas para a inauguração da [...] e acabou de fazer um auto retrato que é assim surpreendente, maravilhoso, ela com 89 anos, acabou de fazer um que é todo em tecido, encarnado e costurado e a cara dela mesmo, então a gente vê que ela acabou de fazer um gesso agora, as feições, ela tem eternas ebulições se resolvendo no contato da sua produção, ela é muito instigante e quando a gente se reuniu para enfim escrever como seria o programa do espetáculo, teve dois curadores, o assistente dela é quem cuida de tudo que é o Jerry Golovoy que acompanhou toda montagem também e o Paulo Requerof que é um curador e muito amigo da Louise, ele adora a Louise, a Louise adora ele, apesar dele dizer que é o Jerry que entende em que tom a Louise espirrou, mas eles se conhecem, então é lindo ver isso. Ela tem uma paixão muito grande pelo Paulo e foi o Paulo que conseguiu com ela que eu fosse recebida por ela à primeira vez. Depois do embate a gente acabou tendo este encontro que foi muito, muito importante para mim. E a Louise na hora de a gente escrever o que iria para o programa, ela dizia, bom então escreva porque que você está fazendo essa peça, posso trazer daqui a dois dias? Não, escreva agora. Bom... Quando eu li o livro eu, está bom, está muito bom, pode começar assim. Eu me inspirei. Acabou? Ela disse: Jerry leia. Ela ficou de olhos fechados. Tem muito eu, me, comigo, a mim. Tire. Uma das primeiras coisas que a gente aprende na educação francesa é não se referir a si. Há muito a aprender com Louise Bourgeois.

Marici Salomão: Eu vou fingir que eu não ouvi o que você falou, eu queria te perguntar uma coisa. Da mesma forma que você não é mais só mímica, mas é uma performance, você também não é uma artista, você é uma multi artista. Você canta, você toca, você fotografa, você grava, bom... mil e umas utilidades, mas eu queria saber um pouquinho como é essa postura da mulher dentro de um papel mais convencional. Como é que é a Denise Stoklos assim? Faz feira? Faz supermercado? Fica vendo televisão até tarde? Eu queria só para fechar um pouco essa coisa assim, dorme até tarde? Como é que é essa vida do dia a dia?

Denise Stoklos: Quando eu estou estudando um tema brasileiro eu vejo muito, muito, muita televisão, muito, muito, muito, vejo tudo que todo mundo está vendo, vejo tudo, tudo, fico bem informada do que está acontecendo.

Marici Salomão: Vê novela também? Assiste novela?

Denise Stoklos: Vejo tudo até agüentar. E é por isso que eu sei avaliar a TV Cultura que eu assisto incondicionalmente, a TV Senac, porque são, você consegue aí realmente diferenciar o que têm ideologia atrás, ideologias velhas e padrões que são mais do que, dentro daquela indústria cultural que são feitos para te acomodarem a alienação de ser, então é brutal ouvir tudo isso e também para sentir esses temas que se tornam no espetáculo, dar esses curto circuitos que vem à tona e as pessoas se relacionam daí com coisas mais de um funil mais profundo, mais alguma coisa que detone naquele coletivo. É isso, mas minha vida é profundamente de trabalho, porque eu adoro assim o que eu faço e estou sempre com muitos delírios, isto é, estou sempre montando muitos espetáculos paralelos, muitos, porque eles demoram muito tempo também, demoram anos, Louise Bourgeois eu comecei a estudar, fazia já 3 anos já que eu estava estudando o livro dela quando eu fui fazer.

Paulo Markun: Qual é o próximo?

Denise Stoklos: O Louise Bourgeois é o que está já estreado em maio...

Paulo Markun: Já que você trabalha em tantos, deve ter um outro?

Denise Stoklos: Tem, tem...

Marici Salomão: Aliás, tem dois no mínimo, que eu sei, mas eu não sei quais são.

Denise Stoklos: O Louise Bourgeois está pronto, eu já traduzi, está pronto para estrear aqui, e está convidado para ser apresentado na Holanda, não, Cuba vai outro espetáculo, Noruega também vai outro, mas tem uns outros países que o próprio Jerry Golovoy tem sugerido que seja levado este espetáculo, porque eles estiveram muito juntos e foram parceiros mesmo, então o espetáculo ficou. A Louise gosta.

Danilo Miranda: Você mantém o repertório meio inteiro? 

Denise Stoklos: Mantenho o repertório inteiro, faço todos os espetáculos e tento fazer sempre cronologicamente. Chego num país primeiro eu apresento o Mary Stuart, daí, na Noruega vou voltar agora, vai ser Casa que é o segundo na criação, porque aí eu vou me atualizando, Nova Iork, por exemplo, que é o lugar que eu mais vou ao teatro, eu estou totalmente atualizada, o Louise Bourgeois foi feito lá, então eu devo voltar com um desses próximos que eu estou.

Paulo Markun: Mas qual é o próximo? Você está fugindo da pergunta.

Denise Stoklos: Então eu sempre faço, como são delírios, e você sabe de onde vem delírio, lírio era aquele sugo onde o, se plantava e delírio era quando saia do sugo. Mas é onde se jogam as sementes, uma delas acaba brotando, é quase uma questão do pânico também, de pensar tanto e ficar tão alucinada com tanta coisa e também volta à idéia do Pan, do Deus Pan, que tocava gaitinha lá na floresta e todo mundo ficava lá, acertadinho, toca gaitinha, os mais sensíveis ficam ouvindo vão atrás, aí o danado para de tocar, todo mundo fica perdido na floresta e aí alguns se perdem e alguns tentam achar um caminho. E o que eles conseguem daí é achar um caminho próprio, então esse é o, esse é o, esse se confrontar do pânico, esse medo, onde está a escada de incêndio, faz com que eu tenha sempre muitos, muitas idéias, muitos projetos, não interessa que sejam muitos, porque um daqui a pouco amadurece, o outro vai ficando mais próximo, surge uma oportunidade para fazer muito mais aquele tema do que o outro, então eu tenho vários, vários e que eu vou trabalhando neles lendo, me acostumando com a idéia, cortando coisas, às vezes editando, digitando texto e cortando, editando, reescrevendo, muitos espetáculos eu começo com um texto e acabo escrevendo um meu inteiramente sobre aquilo, porque não tinham ali coisas que eu queria que tivesse ou o que tinha eu queria que fosse diferente, então eu estou o tempo inteiro trabalhando, esse é o meu dia a dia e é muito prazeroso, então isso faz também com que eu veja muitos poucos espetáculos, esteja muito por fora do que a moçada está fazendo, isso também é ruim. Para mim, acabo muito deslocada, muito isolada também daí, é uma classe.

Pedro Brício: Nessas viagens que você faz, lá fora, se apresentado para os países, de todo mundo, os críticos, eles identificam uma brasilidade no seu trabalho? Porque você busca muito essa comunicação trans-cultural, né? Com as platéias e aí eu fico pensando nisso, eles identificam essa brasilidade, porque aparentemente você poderia ser tanto uma brasileira, quanto uma croata, uma alemã, como é que é isso?

Denise Stoklos: Muito, muito, eles identificam sim, essa própria energia, talvez assim extrovertida que o Guzik falou no humor talvez, esse se jogar em cena, porque esse medo sempre de entrar faz com que eu sempre entre assim, na base do "ou vai ou racha", assim agora vai começar, eu pus placa.

Pedro Brício: Você fica nervosa ainda antes de entrar em cena? 

Denise Stoklos: Por demais, eu penso, eu pus a placa lá fora, hoje tem espetáculo, vai ter que ter; as pessoas estão aí, então, e sempre faço assim, é o último espetáculo da minha vida e se for o último também, eu quero que as pessoas tenham visto um bom espetáculo, e depois eu sou público também, eu vou ao teatro, aquela uma hora e meia, nunca mais vai voltar para as pessoas que estão ali. Então eu tenho que oferecer uma hora e meia valiosa de tudo que o meu teatro, pelo menos, possa oferecer. Então, eu sempre entro para o meu máximo, se não sai o meu máximo, a sensação é extremamente desconfortante. É de uma tristeza, uma melancolia que nada, nada satisfaz até o próximo, onde eu possa recompor aquela falta que eu tive com o público de não ter dado o máximo, porque o tempo não saiu certo, porque alguma coisa aconteceu que não esteve na minha mão por algum motivo quase alquímico, porque as ligações ali são tão sutis, o tempo certo de dizer uma coisa, a pausa exata.

Pedro Bricio: Se a platéia não está reagindo do jeito que você está acostumada, isso interfere na cena?

Denise Stoklos: Não, eu acho que a platéia pode, tem que reagir como quiser, ela tem o direito de não gostar, detestar, vaiar, levantar-se, ir embora. O ator é que tem que servir a platéia e a função dele é sim justificar, ele já saiu de casa, ele já deixou seu filho, seu amante, sua namorada, seu livro em casa, ele já está ali, quer dizer, você tem que tornar aquilo único para ele, válido. Então tem que oferecer e tem que chegar até ele.

Alberto Guzik: Como é que você se prepara para um espetáculo antes de entrar em cena, tem algum ritual?

Denise Stoklos: Além dos meus trabalhos físicos que também são permanentes.

Alberto Guzik: São muito exigentes fisicamente os teus espetáculos, né?

Denise Stoklos: É, e esses trabalhos físicos são permanentes, sem uma disciplina, eu não tenho hora, não começa tal hora e acaba tal hora, é uma disciplina regral, o meu trabalho físico e vocal em casa o tempo todo. O tempo todo eu estou em contato com isso o que acabo criando uma espécie de um banco de gestos que, às vezes, eu digo, puxa isso aqui é uma combinação que um dia eu posso usar para alguma coisa, e daí eu estou ensaiando alguma coisa, eu digo: "ah! Agora entra aquele andar, aquela coisa e tal", então por isso que vai tudo se avolumando, por isso que eu tenho que trabalhar o tempo todo, ou escrevendo, ou trabalhando fisicamente porque depois vão se juntando e na hora da concentração lá, eu tenho um tempo evidentemente de preparação onde eu sei que ali não serei eu essa pessoa que você perguntou como é que é aquela que vai a feira, o público não está interessado naquilo mesmo, ele está interessado em ver alguma coisa através de mim, então eu tenho que ter uma ausência de ego absoluta tenho que fazer com que todo mundo se interesse profundamente por aquilo que eu vou trazer, dizer, mas não por mim, por que senão não rola, acaba daí em mim, porque eu acabo, agora o tema, as coisas que vem depois, essas não acabam, são dele, então o que eu tenho que fazer é conseguir essa alquimia de que a tensão seja tão grande naquilo que eu estou carregando que não pare em mim e além do mais eu faço uma espécie de uma concentração que quase assim. Meio, meio esquisito de falar parece meio místico, mas não é místico mesmo, é quase energético, mas bom, a eletricidade também a gente não enxerga e está aí, então é assim de sentir todo mundo que está lá, cada pessoa que está ali sentada tem uma história diferente, uma vida diferente, uma altura diferente, uma classe social diferente, e eu quero chegar até cada um. Eu quero que aquilo tudo, ou seja, até cada um individualizado e eu acho que esse tipo de concentração provoca alguma, alguma dimensão outra, que não é dessas, não sei, esses dias meu filho estava falando dessas cinco dimensões que a gente conhece três, bom, como eu não entendo nada disso, vou dar um exemplo da maneira como eu entendi, provavelmente errado, mas me serve como a metáfora para isso aí. Se você desenhasse para uma pessoa, que só conhece as duas dimensões, um círculo em volta dela, ela nunca sairia dali, porque ela não sabe que ela pode pular, que tem outra dimensão, então para nós também, uma quarta dimensão imaginar atravessar uma porta com a porta fechada, a gente não consegue imaginar porque a gente não conhece, não corporifica, não intelectualiza essa quarta dimensão ou a quinta e tudo mais, mais eu quero, eu acredito que o teatro mexe com essas coisas, mexe com, às vezes até acontece de pessoas que por um acaso na platéia que tem essas coisas com mediunidade ou trabalham com coisas paranormais de virem me falar que enxergaram coisas, assim, enfim, eu acho, mas eu acho que isso é do teatro, ele trabalha com isso, não é só com o texto e com a coreografia, é com essa...

Alberto Guzik: Energia, né?

Denise Stoklos: É, e que não teria um nome ainda porque eu acho que nos falta, a gente afinal só desenvolveu ainda 10% do cérebro, quer dizer tanta, tanta coisa que é capaz e eu acho que como teatro é arte, e arte está sempre para tratar de coisas mais sutis, se você se coloca essa disposição eu acredito que elas venham até você e eu sou agnóstica mas em Dionísio eu acredito. Acredito no Deus pagão eu acho que eu tenho alguns credos libertos.

Guilherme Weber: Denise eu queria só perguntar uma coisa para complementar, você falou em um banco de dados e na primeira pergunta do Guzik, quando ele perguntou da sua formação de atriz, você falou dos filmes da Atlântida, e o [Frederico] Fellini sempre dizia que a memória é muito mais vasta que a imaginação. Então eu queria saber, quais são as referências diretas nessa construção dessa persona cênica que você desenvolveu?

Denise Stoklos: Sem dúvidas são os palhaços do circo, Oscarito [pseudônimo de Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Diaz (1906-1970) ator considerado um dos mais populares cômicos do Brasil. Ficou famosa a dupla que fez com Grande Otelo], Grande Otelo [pseudônimo de Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915-1993) ator, cantor e compositor], Dercy Gonçalves [nome artístico de Dolores Gonçalves Costa (1907-) atriz, oriunda do teatro de revista e notória por suas participações na produção cinematográfica brasileira das décadas de 1950 e 60], Zezé Macedo [(1914-1999) atriz e comediante de rádio, teatro, cinema e televisão, considerada primeira dama das chanchadas brasileiras], todas essas figuras maravilhosas que eu assistia, mas sem dúvida está ali, esse humor está ali que é uma falta de auto-respeito, é uma falta de vaidade total, que é, portanto já anti-elite, isso tem uma coisa de contestação, tem uma coisa de artista que eles exercitavam muito, mostravam pra gente, né, que é de uma classe desprivilegiada e que, portanto não está defendendo nenhuma, está querendo, como no México se fala, o deboche.

Paulo Markun: Bagunçar o coreto.

Denise Stoklos: É... O anarquismo é o que nós queremos, falando curto e grosso, é uma coisa socializada e anarquista, é a única sociedade possível, onde todos têm oportunidades iguais e não precisam de governo, cada um se auto gere e isso é possível, porque eu vejo que na minha família, no meu núcleo familiar isso existe, ninguém dá ordem para ninguém, a gente se auto gere muito bem.

Paulo Markun: Nosso tempo está acabando, eu queria colocar uma última pergunta. Este programa está indo ao ar na semana aí que se convencionou comemorar o dia da mulher, pergunta: você é feminista e você acha que tem que ter feminismo?

Denise Stoklos: Eu não me acho feminista porque eu não pertenço a nenhum movimento feminista, mas evidentemente meu trabalho é de uma mulher brasileira, mãe. Isto está implícito. São as minhas condições principais e que me orgulham e me inspiram muito, eu adoro essas três condições. E acho que a mulher merece mais sim, muito mais espaço, ela encontra dificuldades imensa, uma autora brasileira, por exemplo, tem muito menos condições de aparecer do que um autor brasileiro. Um homem é muito mais privilegiado nessa área, a mulher não existe como raciocínio inteligente, no país há um tremendo preconceito com isso e eu tenho uma filha e um filho e eu quero um mundo melhor para os dois.

Paulo Markun: Denise, muito obrigado pela tua entrevista, obrigado aos entrevistadores e a você que está em casa e nós voltamos na próxima segunda-feira sempre as dez e meia da noite. Uma ótima semana e até lá. 

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