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Memória Roda Viva

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Paulo José

28/5/2007

Ele foi o “faz tudo” do teatro e do cinema e, hoje, é reconhecido por pautar a carreira no amor à representação e à poesia

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Paulo Markun: Boa noite. Ele entra na casa dos brasileiros desde as primeiras telenovelas. Os papéis que interpretou permeiam o imaginário nacional. Ícone da dramaturgia, ícone de verdade, na acepção da palavra, o convidado de hoje do programa Roda Viva tem atuações memoráveis nos palcos de teatro e telas de cinema e televisão. Desde 1992 enfrenta o mal de Parkinson, mas mantém pela profissão o mesmo entusiasmo do começo da carreira. O Roda Viva recebe o premiado ator e diretor Paulo José. A entrevista você vê em instantes. 

[intervalo]

Paulo Markun: Paulo José teve uma vida dividida entre a televisão, o cinema e o teatro. Como autor já interpretou todos os tipos de papéis e, como diretor, comandou vários programas e filmes nos mais de 50 anos de carreira. 

[Vídeo narrado pelo próprio entrevistado]: Em 1937, na pequena cidade de Lavras do Sul, perto de Bagé, no Rio Grande do Sul, nasce Paulo José Gomes de Souza. Aos 10 anos foi estudar no colégio dos Padres Salesianos, em Bagé. Eu estou lendo muito rápido? Está me vindo uma certa ansiedade, tanto texto aqui e a primeira pessoa falando de mim mesmo. Meio estranho, não é? 

[Narração continua com Markun]: Paulo José era aluno de arquitetura no Rio Grande do Sul quando entrou para o Teatro Universitário de Porto Alegre. Convidado a trabalhar no Teatro de Arena, embarcou para São Paulo. No teatro, Paulo José gostava mais dos bastidores do que de atuar, tanto que o primeiro prêmio veio como figurinista na peça Mandrágora, de Maquiavel. Paulo José pegou o gosto mesmo pela encenação quando foi convidado a fazer cinema. Diz que virou galã por acaso e se considerava mais um ator anti-galã, até mesmo pelo seu porte físico. A trajetória do ator Paulo José foi vida dividida entre TV, cinema e teatro. Multifacetado, já interpretou todos os tipos de papéis nos mais de 50 anos de carreira. Em Macunaíma trabalhou com o ídolo Grande Otelo [1915-1993], onde fez a mãe do “herói sem caráter”, e depois o próprio “Macunaíma branco”. O contraponto de personagens aconteceu quando interpretou o sonhador e nacionalista Policarpo Quaresma, herói do Brasil [filme de 1998, baseado na obra de Lima Barreto]. Paulo José foi um dos atores mais populares do cinema nos anos 60 e, a partir da década seguinte, voltou-se mais para a TV. No começo dos anos 70, fez Shazan, na novela O primeiro amor [Rede Globo, em 1972], e o sucesso do personagem deu início à série Shazan, Xerife & CIA. Na TV Globo ganhou popularidade junto com a ascensão das telenovelas e dirigiu programas como Você decide e mini-séries da emissora. Paulo José também emprestou a voz para documentários de curtas metragens. Desde os 56 anos, Paulo José enfrenta o mal de Parkinson, uma doença degenerativa, irreversível e incurável. A doença não mata, mas cria limitações e desagradáveis movimentos involuntários. Mas o Parkinson não atrapalha os projetos de Paulo José. Atualmente, ele prepara um quadro para o programa Fantástico, da TV Globo. Paulo José foi casado com a atriz Dina Sfat [(1938-1989),o casamento durou 17 anos], com quem trabalhou em vários filmes e peças de teatro, e teve 3 filhas [Isabel, Ana e Clara]. Hoje é casado com a figurinista e diretora Quica Lopes. Ele ganhou 3 vezes o troféu Candango de melhor ator no Festival de Brasília e, em 2000, recebeu o Oscarito, no Festival de Gramado, pelo conjunto de sua obra.

Paulo Markun: Para entrevistar o ator e diretor Paulo José, nós convidamos: Cunha Junior, apresentador do programa Metrópolis, da TV Cultura; Nelson de Sá, colunista da Folha de S. Paulo; Mauro Ventura, repórter de cultura do jornal O Globo; Beth Néspoli, repórter e crítica de teatro do jornal O Estado de S. Paulo; Chico de Assis, ator e dramaturgo; e Rubens Filho, crítico de cinema. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os principais momentos e flagrantes do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional de TV, da TV pública para todo o Brasil. Como o programa desta noite está sendo gravado, ele não permite a sua participação direta por telefone. Boa noite, Paulo José. 

Paulo José: Boa noite.

Paulo Markun: Queria começar com uma pergunta que eu já fiz aqui, quando o programa estava sendo gravado, mas ela não foi feita até o final. Vou repetir. Você sempre foi uma pessoa apaixonada pelo que faz.  O que lhe apaixona neste momento? 

Paulo José: Nesse exato momento é uma programação de poesia, que eu estou fazendo para a TV Globo, um projeto para o Fantástico, que é um projeto que eu acalento desde sempre. Minha primeira direção eu fiz em 1958, a primeira direção de poemas encenados, em Porto Alegre, junto com meu amigo Mario de Almeida. De lá para cá sempre andei muito com poesia. Minha mãe é a pessoa que eu conheço que mais sabe poesia de cor. É impressionante! Ela está com 95 anos. São poesias, grandes poemas. “A lágrima", por exemplo, são páginas e páginas de poesias e  aquela velhinha vai e diz aquilo tudo. Então, desde pequeno, desde que me conheço assim, que me lembro de mim, vejo minha mãe dizendo poesia. E eu e meus irmãos também usávamos muito a Biblioteca Internacional de Abracelis, que tem uma coleção de livros muito interessante. Adorávamos ver aquilo e as poesias. Os livros de romanceiro, romanceiro da dona Juliana, que nós encenávamos, começava assim: “Vinha dona Juliana por um corredor acima, tocando uma guitarra que grande estrondo fazia. Acordou seu pai da cama do sono que ele dormia. Que tens tu, filha minha? Três filhas que nós éramos, são casadas, tem família. Eu puxei a mais formosa para o canto ficaria. Só se for com D. Alberto que é casado e tem família”. Então, o rei decide matar a mulher do Alberto para ele poder casar com a Juliana. Então, é uma história extensíssima e tinha uma parte muito comovente. Nas vésperas de ser enforcada, estava dando de mamar para o filho na torre do castelo. Essa parte diz assim: “Bebe, bebe, meu filhinho, esse leite do pai que chama, a mãe por essas horas, está no caixão. Bebe, bebe, meu filhinho, esse leite, a mãe por essas horas está a se enterrar. Bebe, bebe, meu filhinho, esse leite de ternura, de amargura, a mãe por essas horas está na sepultura”. Triste esse pedaço. Depois: “Toca, toca o sino do palácio, quem morreria? Morreu a filha do rei pela traição que fazia. Apartar os bens casados, coisa que Deus não queria, nesse jardim de alegria”. Então, essas coisas, desde pequeno, sempre dizendo...

Paulo Markun: Você acha que a televisão é um veículo para poesia? 

Paulo José: Estou apostando, apostando que sim. Eu fiz 4 pilotos agora, que já foram aprovados e devem entrar no ar daqui a umas 2 semanas.

Paulo Markun: No Fantástico

Paulo José: No Fantástico.

Beth Néspoli: E tem participação de atores falando essas poesias? Como é o formato? 

Paulo José: Não tem ator, só tem eu e minha filha Isabel fazendo contraponto comigo. O projeto eu dirijo, interpreto, faço de tudo um pouco.

Cunha Jr.: Uma das suas paixões, sem dúvida nenhuma, é a televisão. Você já faz televisão muito tempo como ator, dirigiu muita coisa, muitas mini-séries, mas há cerca de 10 anos, mais ou menos, você disse que 15 minutos são suficientes para uma pessoa ficar na frente da televisão, mais do que isso é meio passo para o tédio. Você ainda acha isso? O que você assiste na TV? 

Paulo José: Futebol dá para ver os 90 minutos com prorrogação e pênalti [risos]. E vejo com muito entusiasmo. Vejo campeonato europeu, campeonato espanhol, eampeonato inglês, campeonato italiano, a UEFA [União das Associações Européias de Futebol]. Campeonato brasileiro é mais penoso de assistir.

Cunha Jr.: Então, você tem assistido só futebol?

Paulo José: Futebol, noticiário e alguns programas especiais, mesmo porque chega uma hora que a gente conhece muito a cozinha. Então, já sabe como é feita aquela comida [risos]. A gente olha para a novela e não consegue ver mais do que 15 minutos mesmo. São previsibilidades absolutas que vão acontecer na novela. Principalmente porque as novelas se tornaram muito redundantes. Nos anos 70, foi a  invenção da televisão. Quer dizer, a partir do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando acabaram os grupos teatrais, o cinema novo etc. Foi um fechamento geral e coincide com uma mudança na televisão muito forte. O Beto Rockfeller [novela produzida pela extinda TV Tupi, em 1960], de São Paulo, era um fenômeno novo, absolutamente novo, inesperado, que trazia uma nova forma de representação, com novos personagens, mais contemporâneos, mais realistas e muito ligados com trabalho de teatro de arena. O Lima Duarte [ator] fazia peça de Chico de Assis e principalmente cangaceiro, fazia o Searin [nome de um personagem]. Então, havia uma ligação muito grande dessa nova televisão com o movimento teatral. Nesse momento, entra na Globo o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho] e percebe essa mudança de rumos. Ele sai da Tupi e entra na Globo. E entra na Globo Janete Clair [nome artístico da escritora e famosa autora de telenovelas Janete Stocco Emmer Dias Gomes, (1925-1983)], Dias Gomes [Alfredo de Freitas Dias Gomes, escritor, autor de telenovelas e marido de Janete Clair, (1922-1999)] e trazem com eles toda a temática do Cinema Novo, dos elencos, dos atores ligados ao Cinema Novo e ao teatro brasileiro. Então, há uma mudança muito grande. Anos 70 foi o ano da invenção da televisão.

Cunha Jr.: E por que essa invenção não se reinventa periodicamente? Por que caiu na mesmice?

Paulo José: Porque são crises periódicas. Em 70, a televisão saiu para a rua, saiu do estúdio e foi para a rua. Embora as câmeras ainda fossem as TK60, câmeras pesadíssimas, você botava aquelas câmeras na rua e fazia como se fossem câmeras de mão até. Eu fiz um programa chamado Pérola, de Dias Gomes, em que eu fiz umas padiolas com dois padioleiros, um chapéu alto, com a câmera e o câmera ali do lado [levanta-se e imita o movimento andando em círculos e filmando]. Então, às vezes, andavam com aquelas padiolas e o câmera. Aquilo era com a câmera na mão, o programa todo feito em externa e câmera na mão. Era uma linguagem diferente que aparecia. O Daniel Filho [diretor e ator], na novela Irmãos Coragem [1970], que o Cláudio Marzo [ator] fazia... Estou com boa memória, está vendo? O Cláudio Marzo fazia, o Duda [Carlos Eduardo Dolabella, (1937-2003)], aquele jogador do Flamengo. Estavam no Maracanã, as câmeras TK60, e nós começamos a botar tudo na rua. Lembro-me do Jardel [Jardel Filho, ator, (1927-1983)] numa novela que ele fazia. Tinha uma oficina de automóveis no subúrbio e, ao invés de ser no estúdio, era em Cascadura [bairro de subúrbio carioca], um subúrbio mesmo, numa oficina de verdade, sem nenhuma maquiagem. E ele pediu para trocar as roupas com o mecânico: “Me dá seu macacão, que eu te dou o meu. Me dá seu chapéu que eu te dou o meu.” “Seu Jardel, o do senhor está novo e o meu está velho”, “mas é isso que eu quero”. Então, trocou de roupa, botou o macacão do mecânico. Nesse momento apareceu um personagem novo. Quer dizer, quando a gente começava a trocar roupas nossas por roupas verdadeiras, algo que vinha dos anos 60, o cinema dos anos 60 era o cinema feito em casa. Todas as mulheres do mundo [filme de Domingos de Oliveira, de 1966] foi o filme que eu fiz, eu arrumei as roupas dele, ele usava as roupas dela, a casa era a casa de Domingos de Oliveira, era tudo nessas casas, era feito em casa.

Beth Néspoli: Até hoje Domingos faz cinema assim. Quer dizer, você pode continuar fazendo a mesma coisa mesmo passando o tempo, ou não?

Paulo José: Sim. Pode, claro, não tenho dúvida nenhuma. Mas logo depois apareceu a idéia de um melhoramento do cinema. Apareceram produtores que diziam que: “Vocês de cinema não sabem fazer cinema, não sabem vender filme, é tudo meio pobre e quem gosta de pobre é intelectual.” Os executivos diziam isso. Então, nós tivemos que melhorar o nível dos personagens. O personagem do filme Eu te amo [1981], por exemplo, o filme era do Arnaldo Jabor [jornalista e comentarista que atuou como diretor de filmes nos anos 80], mas Walter Clark [1936-1997] que era o produtor. Ele entrou como produtor para alterar o processo de produção, personalizar o processo de produção. O personagem do Pereio
[Paulo Cesar Pereio, ator que interpretou o personagem principal do filme, contracenando com Sônia Braga, que foi filmado no apartamento de Walter Clark, baseado no romance real vivido por Clark e Sônia Braga] era um engenheiro falido, mas ao invés de ter um carro Corcel II, meio furreco, meio velho, tinha um Mercedes vermelho conversível. Então, começava a subir o nível dos personagens. Antes, os personagens iam se esvaziando em seus conteúdos, viravam singularidades. O apartamento do Pereio era o apartamento do Walter Clark. Naquela época ninguém ganhava mais de 1 milhão por mês. Naquela época não eram milhões de dólares. Então, era aquele engenheiro falido com a Soninha Braga. O papel da Soninha era exatamente o de uma putinha. Então, essa mudança muito grande começa na televisão. O cinema realista vai para a televisão e o cinema reage à televisão fazendo o cinema não realista. Teve um filme pornográfico de Neville de Almeida que ganhou dinheiro, A dama do lotação [filme de 1978, baseado em um romance de Nelson Rodrigues]. Ganharam muito dinheiro. Nelson Rodrigues, feito de uma forma mais obscena, porque Nelson Rodrigues é curioso. Ele é moralista, extremamente moralista, e o universo da cena é o universo real. O lado de fora é mítico. Quando a irmã diz para o irmão: “Você pensa que eu não sei que quando eu ficava tomando banho você ficava espiando pelo buraco da fechadura? Então, você se masturbava.” [citando frase da personagem principal, também representada por Sônia Braga]. Você não sabe se ela está dizendo a verdade. Se ele se masturbava observando pelo buraco da fechadura ou se era uma fantasia dela que ele estaria fazendo isso. Você não sabe, isso é uma coisa ambígua. Nelson Rodrigues é sempre ambíguo. Agora, o cinema representava o mítico. Então, botava o filho olhando o buraco da fechadura, olhando pelo buraco da fechadura a mulher pelada lá dentro.

Rubens Ewald Filho:
Paulo, deixa eu lhe perguntar uma coisa. Eu já declarei publicamente que você era meu ator de cinema favorito e também vou declarar publicamente que esse é meu livro favorito, toda Coleção Aplauso [série de 20 livros sobre a história do cinema brasileiro, citando a biografia de vários autores e dramaturgos, entre eles Paulo José]. Acho que você é a pessoa com mais sensibilidade. Mas para mim, acho que ainda falta colocar você como um ator que trouxe uma revolução na arte de interpretar do cinema brasileiro. Para mim, você veio com espontaneidade, com uma verdade, como uma humanidade, que não se tinha, que o rádio-teatro não tinha e que, para mim, é uma coisa a estudar. Mas, uma coisa que eu acho muito interessante que falam de você, é que você é um perfeccionista. O nosso amigo Ney Latorraca [ator] sempre diz que perto de você as pessoas ficam mais inteligentes. Porque você, como quem não quer nada, chega assim e fala: “Oi guri, você vai ler 400 livros para fazer bem o personagem.” Você concorda, você é um perfeccionista?

Paulo José: Sou muito exigente. Em relação à interpretação, eu acho que é muito simples: ou é muito fácil de se fazer ou é impossível de você fazer bem. Não tem meio termo. Poesia não se aprende na escola, samba não se aprende no colégio. O cara sem ouvido musicado pode fazer 50 anos de escola de música que não vai ser o maior músico. O ator é aquele que tem uma enorme facilidade para ser outra pessoa. O ator não tem caráter "...é um fingidor, que finge tão completamente que chega a sentir que é dor, a dor que deveras sente.” [citando o poeta Fernando Pessoa] Por isso é muito mais fácil para o ator viver no mundo da fantasia do que no mundo real. A dificuldade do ator é com a realidade, essa que é incômoda. Você não sabe quem você é diante do real. Agora, na fantasia, você é o que você quiser naquele mesmo momento em que você diz: se eu fosse... Você passa a ser. Então é muito fácil. Eu acho que cinema é diferente de teatro. No cinema eu considero o trabalho do ator mais a vivência e não uma representação. Então, eu costumo dizer que no cinema eu não faço nada, não represento nada, não faço absolutamente nada, porque faço só uma interiorização e nenhuma exteriorização. É porque eu vejo o personagem quando acorda, sou capaz de acabar o dia de filmagem, tirar a barba, descolar a barba e ir para casa fazer outra coisa. A barba está colada, eu não deixei crescer a barba para fazer aquele filme. E não pode ser diferente. Eu viro o personagem e eu tenho um prazer enorme em fazer isso, fugindo, talvez, da minha realidade física e pessoal, que é mais desinteressante do que qualquer personagem. É mais interessante do que uma pessoa. Nisso, há uma discussão com o diretor de teatro, em que os personagens querem ser representados, querem ganhar vida no palco. Então, invadem um ensaio e são apenas personagens, ganham vida através dos atores e começa uma discussão entre diretor e ator sobre verdade e realidade. O diretor começa a perder terreno nessa discussão e chega uma hora que ele tem tem gosto por transparência, tem outros que não têm. Tem uns que você olha e diz: "Mora alguém aí dentro?" Olha no olho. Outros falam: “Não tem ninguém aí, não tem ninguém aí dentro, gente. É só uma casca.” Então, eles têm que trabalhar por dentro, você tem que ter interiorização. É uma coisa engraçada como o olho brilha de maneira diferente, solta luz dentro do olho. Mas isso é uma transparência. Exemplos de transparência,
diz assim: “Paulo, você nem real é.” Menos real talvez, porém, mais verdadeiro. Porque qualquer personagem tem muito mais verdade do que uma pessoa. Uma pobre persona que assumiu uma persona atribuída por outros. O ator é fraco enquanto persona  é rico enquanto personagem, pois tem muitas vivências, vive muitas vidas em uma vida só. Então, isso é uma coisa muito saborosa, muito especial, essa atitude assim de vivência. E tem outra coisa no cinema que tem a característica que eu também gosto muito de usar: é a transparência. Eu fazia o filme Faca de dois gumes [filme de Murilo Salles, de 1989] e tem uma cena em que o filho é seqüestrado, o pai recebe num estojo de jóias um dedo do filho e o seqüestrador diz que não está de brincadeira. “Hoje vai o dedo e amanhã pode ser a cabeça, se não nos der o que nos deve, o dinheiro que estamos pedindo...” [relembrando o diálogo do filme]. Como que o ator vai representar isso? Recebe o estojo, abre o estojo: “Ah, meu filho.” Ou: “Ai, meu filho”. Abre o estojo e faz aquele estouro: “Meu filho!” [diz com diferentes expressões]. Não tem jeito, qualquer coisa que você fizer vai ser chamada de ridícula e redutora. Então, não faça nada [risos].

Nelson de Sá: Isso no cinema e no teatro o que diferencia? Você já declarou até que tem uma paixão intermitente pelo teatro. Você sai e vai para o cinema, vai para a televisão, mas você está sempre presente.

Paulo José: O teatro que é minha linha de ação. Você constrói o personagem com uma absoluta linha interna de ação. Mesmo quando você está fora de cena, ele continua existindo, é diferente. No cinema você trabalha com fragmentos. Você pode, inclusive, no cinema, trabalhar por substituição. Eu me lembro desse negócio do dedo, porque o que você tem que fazer? Nada. Você abre e fica sem ação nenhuma diante daquilo. É um tempo de inação.

Rubens Ewald Filho: Você transfere a emoção para você, não é?

Paulo José: Você não tem o que fazer. O público é que atribui o sentimento daquela imagem. Isso aí é um efeito Kuleshov [Lev Kuleshov, cineasta russo, (1899-1970)], o velho Koleshovi, que fez um exemplo desse efeito de atributo da imagem por justaposição, fazendo o rosto de um ator que não era expressivo, um rosto apenas olhando alguma coisa. Ele justapôs esse rosto em um bebê sorrindo, um prato de sopa quente e uma pessoa morta. Levou para várias audiências para ver que sentimento de expressão havia naquele rosto do ator. Uns viam a fome diante do prato de sopa, outros viam o horror diante da morte e a imagem era absolutamente a mesma. Por isso, tinha que saber trabalhar com os atributos da imagem também: transparência e imagem. Esse era outro aspecto que iria levantar aqui, da transparência, da transposição, da substituição. No teatro, você tem que ter a linha contínua do personagem. No cinema, você vai por substituição. O que se quer do personagem é uma atitude de abstração diante do presente. Está imerso em alguma coisa profunda que o incomoda, que o molesta, um sentimento qualquer. Em O padre e a moça [filme de Joaquim Pedro de Andrade, 1965, cujo roteiro é baseado em um poema de Carlos Drummond de Andrade], de Joaquim, um diretor muito rigoroso, discípulo de Robert Bresson [(1901-1999) um dos maiores e mais influentes cineastas franceses do século XX], ele estudou em Paris e o Bresson foi o professor dele. Ele odiava o altruísmo do ator, odiava atores, porque ator se exibe muito. Eu também odeio ator, os acho exibidos [risos]. Eu, inclusive.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos num instante com Roda Viva que hoje tem na platéia Gláucia Terra, estudante de jornalismo; Fernanda Padilha, atriz e Mário Moura, diretor de teatro. A gente volta já.

[intervalo]

Paulo Markun: O Roda Viva entrevista esta noite o ator e diretor Paulo José. Ele começou a fazer teatro em Porto Alegre, nos anos 1940. Depois, ao lado de Gianfrancesco Guarnieri,  Bayer, Juca de Oliveira e outros, participou do Teatro de Arena, em São Paulo. A TVA, do Rio de Janeiro, ouviu o cineasta Joel Pizzini, que dirigiu o documentário “Paulo José, um auto-retrato brasileiro”. Vamos acompanhar a pergunta dele para o Paulo.

Joel Pizzini: Paulo, você é uns dos artistas mais completos do país, um dos construtores da imagem da nossa nação, do mito da brasilidade "macunaíma". Eu queria saber como que você convive com os seus personagens, seus filhos filmes, seus filhos peças? Como que é essa convivência, desde os filhos mais tímidos até os mais exuberantes, é tudo um filme só para você? Você tem carinho por tudo que você faz? Você concorda com o que o Glauber Rocha [cineasta, ícone do Cinema Novo (1939-1981)] dizia, que não existem pequenos papéis e sim pequenos atores?

Paulo José: Eu gosto de tudo que eu faço. Porque tudo que eu faço é uma oportunidade de fazer uma coisa que me dá prazer. Eu falo isso para os atores que têm papéis pequenos e se comportam como figurantes. Mesmo em uma pontinha, como para entregar um telegrama. Eu costumo dizer que eu sou protagonista. Eu tenho um personagem que é muito importante, que é uma função antagônica, agora, em outra peça. Nessa aqui, ele só entra para entregar o telegrama, mas ele é um personagem também. Então, você entra com convicção de personagem, não entra vendido. É só entregar um telegrama. Então, é a maneira de eu conseguir, às vezes, conquistar atores. Quando eu dirigia na televisão e tinha que fazer escalações, às vezes, eu tinha o papel de porteiro do prédio, por exemplo. Então, o ator dizia: “Mas o papel é pequeno.”

Chico de Assis: Paulo, passando de personagem para pessoa. Tem muita gente que acredita que as várias gerações de uma nação têm vocações. Eu pergunto: você acha que a nossa geração teve uma vocação? Qual foi, se você acha que teve?

Paulo José: Claro que teve, uma vocação muito forte, muito evidente, muito obstinadora, muito homogeneizada, que era transformar o mundo. Nós crescemos com essa certeza de que era possível transformar o mundo. Isso nos aglutinava não só aqui, como em outros países ou no mundo todo. Você foi um cara que sempre acreditou nisso. Hoje, depois, com a idade, você assiste com um certo ceticismo, com uma certa tristeza, às vezes, uma ingenuidade. Mas nós não podemos ser culpados da nossa ingenuidade. Nossa vocação, nosso chamado foi exatamente esse: foi o chamado para transformar o mundo. E, depois, isso é uma característica não só brasileira, é uma característica mundial, que começa nos anos 50 e 60. Acaba nos anos 70, os anos de refluxo, quando morre o Kennedy [John Kennedy, jovem, carismático e inovador presidente americano, assassinado em 1963, causando grande comoção mundial], morre o Martin Luther King [ativista político norte-americano, (1929-1968), principal nome da luta pela igualdade racial das décadas de 1950/60]. Há uma série de transformações nos anos 70 que são de refluxos. A geração se encolheu toda e boa parte dela, os mais ativos, foram mortos. Eu fazia teatro no estado de São Paulo, junto com o Teatro de Arena, em 67 e 68. Em 69, fomos convidados para o festival de Nancy, na França
. Então, nós fomos com um grupo, já com os projetos de autodissolução do festival de Nancy. Não se voltaria mais, alguns voltaram para a luta armada [contra a ditadura militar] e foram mortos.

Chico de Assis: Paulo, e a nossa vocação de factótum [pessoa indispensável, com habilidade para tudo]. Por que você acha que na nossa geração não se deixa por menos do que ser ator, diretor, autor, músico, bonequeiro, por que isso?

Paulo José: Faz parte do mesmo processo de trabalho. Existe uma especialização que coincide com uma burrice, especialização na ciência, na medicina. No caso, especialização do ouvido esquerdo, porque do direito não entendem nada [risos].

Mauro Ventura: Eu estava lendo umas reportagens antigas sobre você, mas sobre você com 40 anos de idade. Aí, virei umas páginas e estava você, já com 40 anos de cinema. Deu para rever a sua vida inteira naquelas páginas. Para você também bateu essa sensação de que a vida passou num instante? Você estava com 40 anos e agora você está com 70. Ou você, com essa vida múltipla, tão intensa, não bate essa coisa de "já estou com 70 anos"?

Paulo José: Tem uma peça que eu fiz agora, acabou no fim do ano, que tem uma frase que diz: “A vida passou como um rato correndo pela sala.” Mas não é verdade. Nós vivemos muitas vidas, muitas vidas mesmo. É até incrível a gente pensar, volta e meia eu procuro fazer um relatório, porque as pessoas perguntam, não é? “Está fazendo alguma coisa?” Eu dizia: "estou". Você começa a dizer o que está fazendo e chega uma hora que as pessoas falam: “Como você consegue fazer tudo isso?” Porque a gente faz de tudo um pouco. No teatro, o teatro é arte do ator, não tem especialista. Quando eu fazia teatro, quando eu comecei a fazer teatro, nós fazíamos "de um tudo", como se diz. Contra-capa de livro, figurinista, maquiador, cenógrafo, tradutor, produtor, administrador e pessoa com conhecimentos enciclopédicos. Mas é um exagero. “Você fazia tudo isso?” Agora, fazia meio mal, fazia como podia. Eu fazia cenografia no Arena, o figurino, quando o Flávio me enchia o saco: “Não vou fazer essa peça.” Aí, eu ia no lugar dele fazer, mas ele aparecia para me ajudar. Eu ganhei um Prêmio Molière de melhor figurinista, em 1962, e outro em 63. Foi no primeiro Prêmio Molière que houve, com A mandrágora, de Maquiavel. Mas o Flávio Peres, meio escondido, me ajudava, dava os palpites e ganhei o prêmio de melhor cenário e melhor figurinista.

Beth Néspoli: Só uma mudança um pouco de rumo. Eu entrevistei você em 1996. Você iria fazer o Policarpo [Quaresma]. Você estava muito feliz porque tinha Macunaíma, que é o heróico sem caráter, e Policarpo, um herói com todo caráter. Eu tinha lido o roteiro que era de Alcione Araújo e era muito bonito. Realmente, dava um otimismo em relação a esse contraponto Policarpo e Macunaíma. Mas no Policarpo, pelo menos vendo o filme, eu não senti a beleza do roteiro. Para mim, foi alguma coisa que não atingiu o que prometia na sua entrevista e lendo o roteiro. Eu queria saber a sua avaliação disso e por que é mais difícil fazer o caráter do que o não-caráter? O que deu errado? Se é que você avalia assim também?

Paulo José: É difícil de falar do um filme de um amigo, que fizemos juntos, com toda paixão, todo amor, todo carinho, com desejo de acertar, mas não há dúvida que o Policarpo tem uma certa lentidão. Parece que é um pouco... Não vibra muito, embora eu ache que o personagem, eu não tenho nenhum reparo a fazer no personagem Policarpo. Ele é muito íntegro, tem uma visão do futuro. “Estou indo para frente.” Ele acredita que o futuro do Brasil é a agricultura mesmo. Depois eu gostava muito do personagem porque, em certas coisas, de primeira leitura, parece que o Policarpo é um bobo, meio débil mental, meio bobão, quando quer que o tupi-guarani seja a língua oficial do Brasil. Aí, você vai ver que não é. Então, quando eu comecei estudar tupi-guarani para dizer algumas palavras, algumas expressões de nível geral, ingatu, que é a língua que se falava, descobri que ele era um cara realmente com sabedoria. Até 1750, mais ou menos por aí, quando o Marquês de Pombal [Sebastião José de Carvalho e Mello, primeiro-ministro de Portugal, (1699-1782)] proibiu o ingatu, a língua geral no Brasil, que acabou expulsando os jesuítas daqui, falava-se tupi-guarani. O tupi-guarani é o ingatu misturado com tupi-guarani.Misturava-se palavras portuguesas com palavras novas, que não existiam na língua tupi-guarani. Então, a aspiração de Policarpo, a reivindicação do tupi-guarani como a língua do Brasil era legítima, porque era a língua do Brasil sim. Foi por 250 anos a língua do Brasil.

Beth Néspoli: Já empobreceu por perder esses outros, não é?

Paulo José: Eu fazia o discurso na câmara com grande exaltação patriótica e verdadeira. Nunca critiquei o personagem. Eu era apaixonado pelo personagem.

Beth Néspoli: No roteiro tinha uma cena em que ele, literalmente, transava com a terra. Ele fazia amor com a terra e era uma cena muito bonita que, no filme, fica meio patética. Não sei, não teve aquela força, não sei exatamente o porquê. É uma pergunta para você mesmo, que tem uma avaliação por dentro.

Paulo José: Porque existe uma sobriedade no ato. O plano é feito, o plano geral, o personagem se joga na terra molhada, a chuva caindo e aos poucos começa a sentir calor do sexo e começa a cravar o pau na terra. Mas isso me parece absolutamente visível, não precisava mais do que isso. A minha impressão é que não precisava mais do que isso, porque aquela bolha subia e descia com uma energia na terra.

Rubens Ewald Filho: Aproveitando um pouquinho, eu queria que você falasse um pouquinho de Joaquim Pedro de Andrade, que foi ele que lançou você. Tem uma história no livro muito divertida que é a do nariz. Conta essa história também?

Paulo José: No livro está escrito à maneira de Mário de Andrade [escritor e poeta modernista, (1893-1945)], ou não?

Rubens Ewald Filho: Tem a história que ele achou que seu nariz de um lado fotografava de um jeito, não é isso?

Paulo José: Porque acontecia o seguinte: eu tinha feito O padre e a moça e, depois, em Macunaíma, eu freqüentava a casa dele e fui acompanhando o trabalho de pré-produção do filme Macunaíma. Então, eu ficava no geral da casa dele vendo Anísio Medeiros [cenógrafo e figurinista, (1922-2003)] e ele trabalhando no roteiro, escalando elenco, fazendo decupagem. E começaram a fechar o elenco. O Macunaíma preto era o Grande Otelo, que nasce no mato. A Ci [personagem de uma guerrilehira], era Dina [Sfat]; o comedor de gente, o Milton Gonçalves; faria o Maanape [irmão de Macunaíma], o Rodolfo Arena. Depois tinha Joana Fomm, a Maria do Rosário, tinha belas mulheres também. "E Macunaíma branco quem será?" E eu lá pensando: "Estou aqui." E ele nem olhava para mim. Passava assim, ia escolhendo as pessoas e me perguntava: "O que você acha de fulano? O que você acha do Vianinha?" E eu dizia: "Melhor impossível." Era o Vianinha ou ninguém mais. Ele: “Eu não sei. Vou pensar.” Daí, no outro dia ele vinha: “E o Guarnieri, o que você acha do Guarnieri? É isso, Guarnieri é o Macunaíma.” E eu: "Não sei." Então, ele ia passando por todos os atores brasileiros entre 35 e 50 anos. Ele pegou o Agildo Ribeiro e começou a trabalhar com Agildo. A gente tinha feito o Auto da compadecida [peça de teatro, de 1957]. Ele começou a ensaiar uns dias e depois: “Não é assim, é diferente, é outra coisa. Não vou fazer com Agildo.” Aí, ficou sem Macunaíma [branco]. O filme já tinha começado, até um dia em que ele olha para mim e diz assim: “Você topa operar o nariz? Opera o nariz, porque você tem um nariz difícil de fotografar. Ele é fino de perfil e largo de frente, são duas pessoas diferentes, são dois rostos diferentes.” E eu falei: "Não vou operar o nariz coisa nenhuma. Um homem de idade operar nariz, já vivi toda a minha vida com esse nariz e não vou trocar agora." E ele: "Se você operar o nariz você faz Macunaíma”, "Ah. Então, não vou fazer, porque não vou operar o nariz", "Sabe o que mais? Você tem o nariz do personagem: branco de perfil, negro de frente. Aí, tem cafuzo, mulato, vamos fazer o Macunaíma". Aí, foi a minha grande alegria, foi um momento de extrema felicidade, fazer "o herói sem nenhum caráter".

Paulo Markun: Paulo, vamos fazer mais um rápido intervalo e a gente volta daqui a instantes com o Roda Viva, que é também acompanhado na platéia essa noite por Elizeu Lopes Filho, professor de cinema da Faap [Fundação Armando Alvares Penteado]; Gabriela Nicioli, estudante de jornalismo; Eliana Rodrigues, fotógrafa; e Roberta Bale, atriz. A gente volta já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva que esta noite recebe o ator e diretor Paulo José. Desde 1992, ele enfrenta o mal de Parkinson, uma doença degenerativa, irreversível e até hoje incurável. Paulo, também tem uma pergunta obrigatória: como que você lida com esse tipo de coisa?

Paulo José: Lidando, não tem jeito. Você não pode fugir disso, não é? Você gostaria de não ter, mas você tem, não é? E uma doença degenerativa, quando o médico me falou, que eu fiz os exames, um diagnóstico com as tomografias, e ele falou: “Não tem nada, não tem tumor, não tem coágulo, está perfeito.” Porque é Parkinson, não é? E ele me disse: “Você sofre de uma doença degenerativa, progressiva e irreversível.” [diz com ênfase] Ele tinha um prazer em dizer isso. E eu lembrei que ele também era portador de uma doença da vida, o envelhecimento, progressiva, degenerativa e irreversível. A partir dos 30 anos já começamos entrar no processo de degenerescência progressiva.

Paulo Markun: Estamos já no epílogo.

Paulo José: E tem gente que, por exemplo, com 30 anos, já entregou, não joga mais. Tem gente que com 50 já se sente velho. O velho Niemeyer [Oscar Niemeyer, arquiteto, que fez 100 anos em 2007], o jovem Niemeyer, está em plena atividade. Tenho um dos antídotos do que você tem que fazer contra isso, que é você ter muita coisa para fazer, muita vontade de fazer as coisas. Há o grau de dificuldade, mas, por outro lado, aprofunda a sua maneira de fazer, você acaba fazendo melhor as coisas, porque o brasileiro tem muito jeitinho, brasileiro é esperto, não é? Vai ali e pá, pim, pum, já fez. E quem tem uma deficiência, uma asa quebrada, qualquer coisa assim, tem que ter uma ajuda para voar, tem que fazer mais esforço, treinar mais o vôo. Agora, quando voa, acaba fazendo melhor. Então, eu sempre tive facilidade para muitas coisas, para música, para desenhar, mas acredito que um anjo veio e me deu um tapão para eu deixar de ser besta, para me botar um pouco no lugar, para eu perder a arrogância, a prepotência, a vaidade. Eu fui obrigado a ficar mais humilde e acreditar mais no trabalho, num esforço para fazer as coisas, desde que você tenha uma aptidão mínima, básica, para fazer as coisas. Eu voltei a tocar piano, me tornei mais interiorizado, passei a escrever, eu não escrevia, tinha a tortura da forma - que comparação estúpida -, mas é a dificuldade de fechar a frase. Sempre ficava trocando as palavras de lugar. Agora, depois do Parkinson, comecei a escrever. Você não sabe dizer de onde vem as coisas, de lugares inesperados, as frases vêm saindo, saindo, saindo, e comecei a escrever. Verdade que eu tinha um repertório, uma vida toda de muita leitura, mas não conseguia aplicar isso e, depois, você fica mais para dentro, fica menos sociável, fica um pouco mais bicho do mato. A acuidade musical aumentou muito também. Então, hoje, quando eu ouço musica, eu não ouço a melodia, eu ouço a harmonia. Quer dizer, eu ouço a estrutura musical sempre. Ontem, fizemos um sarau de música lá em casa até 1h30 da manhã, com amigos tocando vários instrumentos. E eu meto a mão em todos eles, toco mal, mas toco. Tenho a dificuldade de digitação por causa do Parkinson, mas, tocando devagarinho, eu toco direitinho.

Chico de Assis: Vou falar uma coisa para você. Nós estamos vivendo um momento, principalmente no teatro, em que há uma mudança radical dos projetos, dos grandes projetos anteriores. Aqui, em São Paulo, por exemplo, o teatro se manifesta na Praça Roosevelt, com pequenos teatros e é ali que a coisa se dá com maior intensidade. Não há possibilidade de você montar um Hamlet [de Shakespeare], a não ser aquelas peças pequenininhas, essa coisa toda? Não há possibilidade de você montar um Shakespeare, a não ser o meu amigo que montou um Shakespeare com coragem. O que você acha desse atual momento? Primeiro, do limite da fronteira da irracionalidade de forma geral? E, segundo, do destino que as coisas tomam no teatro? 

Paulo José: Está difícil, porque fazíamos mais teatro nos anos 60 e ele era importante na sociedade. A imprensa participava disso, era um evento da cidade, da sociedade e foi se tornando cada vez mais da comunidade. Ficou menor, perdeu a relação com a sociedade, se tornou pequenininho, encolhido, e por causa disso você começa a ter idéias pequenas também. É difícil imaginar agora, hoje, montagens como o O canto da cotovia [de Jean Anouilh, uma versão terna e lírica da história de Joana d'Arc], que termina com a Catedral de Chartres [cidade da França] toda iluminada, triunfal. As idéias eram maiores, os teatros maiores e idéias grandes também. Agora, teatros pequenos geram idéias pequenas.

Chico de Assis: Última coisa: queria que você explicasse qual é o sentido verdadeiro de o "Brasil faz o melhor cinema brasileiro do mundo"?

Paulo José: Porque o Brasil tenta fazer cinema americano e faz mal, mal pra burro, muito mal. Italiano, não tem como fazer uma comédia italiana, pois o italiano faz melhor. Agora, cinema brasileiro, o Brasil faz o melhor cinema brasileiro do mundo, sem dúvida nenhuma. O brasileiro é o melhor do mundo. Walter Salles [cineasta] conheceu isso quando fez A grande arte [filme de 1991]. Era um filme americano, então, como filme americano era muito fraco.

Cunha Jr.: Paulo, uma coisa engraçada que aconteceu no Festival do Rio [Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro] e também no Festival de Berlim [Festival Internacional do Filme de Berlim], quando passou o filme O ano que meus pais saíram de férias [de Cao Hamburguer, 2006], diziam assim: “O filme é tão bom que parece filme argentino.” Você acompanha os filmes argentinos e acha que realmente os argentinos fazem filmes melhores do que os brasileiros?

Paulo José: Estão fazendo.

Cunha Jr.: Estão fazendo?

Paulo José: Estão fazendo, porque na Argentina, como na Espanha, a televisão não é tão importante. Na Espanha, um público normal de um filme espanhol é de 10 milhões de espectadores. A televisão não tem importância lá. Lá, o cinema que se faz é o programa da televisão que a gente faz aqui. Você discorda, não é? [Dirigindo-se para Beth]

Beth Néspoli: Eu acho que neste momento, em São Paulo, tem um movimento muito forte de grupo. Eu acho que, por exemplo, o Galpão do Folias [grupo teatral], que está montando e vai estrear a trilogia do Ésquilo [poeta trágico grego, (525 a.C - 456 a.C)], uma trilogia grega que nunca foi montada no Brasil. Eles fizeram de Shakespeare o Otelo. Você tem os (...) fazendo Os sertões, de Euclides da Cunha. Tem aqueles chats maravihosos, o próprio Grupo Galpão, que você dirigiu duas peças: Inspetor geral e O homem é homem, que teve uma inserção muito forte em Belo Horizonte. Fui no Grupo Galpão 2 vezes, em Belo Horizonte, para um encontro de grupos brasileiros, chamado Redemoinho, com 50 grupos, de Sergipe ao Rio Grande do Sul. Eu acho o contrário, que tem um movimento de grupo muito forte de novo, como aconteceu na época do [Teatro de] Arena e do [Teatro] Oficina, lá atrás. Está evidente, fazendo teatro, hip-hop, andando pelos céus, com uma inserção muito forte na sociedade. Me parece, que muitos da geração do Chico e da sua geração, que é uma geração que foi para um outro caminho, se desligaram, talvez não estejam acompanhando. Será que vocês não deixam de fazer o seu papel? Pela potência que têm, poderiam ir lá, ver o que está acontecendo, fazer uma ponte com esses grupos e dar força até com a imagem de vocês?

Paulo José: Eu me penitencio pelo que eu disse antes. Foi uma coisa muito parcial. Na realidade, a existência desses grupos pequenos são idéias pequenas. Mas o que acontece também é a multiplicação. Por exemplo: o Grupo Piolim, os grupos regionais, a quantidade de festivais de teatro que existem, cada vez mais e em todo Brasil, a multiplicação de grupos de teatro, que é uma coisa que não é desprezível. Além disso, também me penitenciando um pouco do que disse antes, o teatro não está tendo muita gente não. Ao teatro vai pouca gente. Na televisão, tem 50 milhões no primeiro tempo e você não pode fazer um teatro de 5 mil lugares. Já é outra coisa, é diferente. O [...] que faz teatro há uns 20 anos, ele trabalhou 20 anos e dizia que o alcance máximo da comunicação viva do ator no palco é de 18 fileiras, mais ou menos até a letra R ou S. A partir disso já não tem mais comunicação, começa a se perder a comunicação. Então, é o limite do teatro. Agora, o Arena foi um teatro fundamental na história do teatro brasileiro nos anos 60. Tinha 200 lugares, às vezes 170. Mas é que o teatro não age na massa, age nos formadores de opinião, tem um efeito multiplicador nas pessoas que vão àqueles teatros, àqueles espaços pequenos. Esse é outro lado da questão.

Mauro Ventura: Você dirigiu 2 espetáculos muito elogiados: A controvérsia [2001] e o Inspetor geral [2004]. Isso recentemente, de 7 anos para cá. Foi muito elogiado lá no Rio. Em seguida, dirigiu Antônio e Cleópatra [2006], que foi, pelo menos no Rio, massacrado pela crítica. Você se importa com a crítica, seja a favor ou contra?

Paulo José: Eu me importo. Quando a crítica é a favor, eu acho ótimo [risos], e quando é contra, eu acho péssimo.

Mauro Ventura: Essa dizia que foi um Shakespeare constrangedor. Isso te abateu de alguma forma?

Paulo José: Isso foi opinião da Bárbara Heliodora [crítica teatral], constrangedor. Aliás, ela colocou no título “Shakespeare constrangedor”. É terrível, mas eu me dou bem com a tia Bárbara. Eu gosto dela.

Nelson de Sá: Você estava falando agora há pouco das idéias pequenas do teatro e do teatro pequeno, digamos assim. Mas, ao mesmo tempo, você não desiste, você persiste, monta e encena peças com grupos teatrais inclusive. Mas dá para sentir um certo desalento com a cena teatral contemporânea? O que você sente em comparação com o teatro que vocês fizeram? Há uma desesperança, uma falta de... Enfim, vocês queriam mudar o mundo e hoje qual a sensação? 

Nelson de Sá: Isso nem está mais em pauta. Como você vê isso no teatro?

Paulo José: Hoje é menos importante o teatro para a gente se mudar. Parte muito mais da visão da mudança objetiva, da transformação do mundo. Agora, é uma visão mais da nossa transformação. A gente assiste, a gente monta os espetáculos que vão alterar a gente. Primeiro enquanto grupo e depois enquanto pessoas. Conseqüentemente, irradiando para outras pessoas essas alterações. O teatro tem que ser sempre provocativo, tem que ser sempre subversivo, tem que ser sempre, como diria [...] instigante. Não se pode perder de vista isso. E ele tem sido bastante instigante e provocativo. O Grupo Galpão, por exemplo, é um grupo que tem responsabilidade nesse sentido. Não pode montar qualquer peça. Está comprometido com uma coisa mais intensa, mais profunda, não é? O Armazém, de Paulo de Moraes, o grupo do Enrique Diaz, no Rio de Janeiro, a Companhia dos Atores, eles têm um compromisso que é transformador.

Nelson de Sá: Vou aproveitar, porque eu queria complementar a pergunta. Algum tempo atrás, há uns 2 anos, você comparou o Lula [Luiz Inácio Lula da Silva], o presidente da República, como uma mistura de Macunaíma e Policarpo Quaresma. Enfim, o que existe de perspectiva política hoje? Eu queria a sua opinião sobre o Lula, sobre o governo federal e sobre o caminho da própria esquerda, você que é um artista. 

Paulo José: Hoje ele está mais em "Macunaresma", não é? "Policaima", não é? Houve uma certa mistura. Agora, tem coisas que são interessantes e novas. Nas elites de países periféricos como o nosso, a política era exercida pelas pessoas da elite, que não tinham muita identificação popular. Então, o governo era uma coisa mais chique. O Fernando Henrique [Cardoso, presidente da República entre 1995 e 2002] é um diplomata, um gentleman. Ele fala várias línguas. Agora, o que aconteceu na América Latina é interessante. É meio feio de ver [fala de forma cínica], mas, agora, o povo está diretamente representado no poder. Quando a gente olha a Venezuela, a gente olha o Cháves [Hugo Cháves, presidente da Venezuela desde 1999], a gente olha o Morales [Evo Morales, presidente da Bolívia], a gente olha o Lula, isso é uma coisa nova que está acontecendo. Isso é novo, não sei aonde vai dar exatamente, até que ponto os países que se decidem fazedores de preços, países de centro, vão deixar essa brincadeira continuar. Mas tem uma coisa nova acontecendo, diferente. O povo está mais representado no poder e, talvez, isso seja perigoso. O fracasso dessa experiência leva os resultados para os nossos aristocratas. Quando não voltar para os nossos militares, porque já estão voltando. Estão pedindo para botar o exército na rua. No Rio de Janeiro, já estão botando na rua. Isso é interessante. "Meus queridos, pelo amor de Deus, botem o exército na rua." Mas, e se eles gostarem de ficar na rua? [Risos] Como é que faz?

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos com a entrevista desta noite também acompanhada em nossa platéia por Adriana Valejo, cantora e compositora; Renata Fleury, estudante de artes cênicas; José Gossi, coordenador do curso de cinema da Faap; e Paula Beatriz Bragal, que é estudante de jornalismo. A gente volta já. 

[intervalo]

Paulo Markun: Voltamos para o último bloco do Roda Viva. Esta noite entrevistando o ator e diretor Paulo José. Ele já ganhou 3 vezes o troféu Candango de melhor ator, no Festival de Brasília. Em 2000, recebeu o troféu Oscarito, no Festival de Gramado, pelo conjunto de sua obra. Sobre a época do Teatro de Arena, Paulo, a gente tem uma pergunta do dramaturgo e crítico de teatro Alberto Guzik, vamos acompanhar.

[Vídeo com a pergunta de Alberto Guzik]: Boa noite, Paulo. Eu gostaria de dizer que é um grande prazer estar aqui fazendo essa pergunta para você, porque eu sou seu fã há muito tempo, desde que eu vi trabalhos seus no Teatro de Arena, na década de 60. O tempo passa muito depressa, não é? Então, é sobre o Teatro de Arena e sobre aquela época que eu gostaria de falar com você. Você veio para São Paulo, trabalhou no Arena em alguns espetáculos, filmou As amorosas, com Walter Hugo Khoury [1967], e algum tempo depois, já no Rio de Janeiro, você participou de um filme que é um marco na nossa geração, que foi Todas a mulheres do mundo, com a Leila Diniz [1945-1972], maravilhosa, e direção de Domingos de Oliveira. Eu queria que você falasse  sobre você como ator naquele período. Que ator você queria ser? Quais eram as suas influências? Que atores você admirava? Qual era o seu filme predileto ou os seus filmes prediletos? Enfim, conta para a gente essas coisas?

Paulo José: No teatro eu não me considerava ator. Eu me considerava um cara de teatro, desde Porto Alegre, desde Bagé, no teatro do colégio dos padres, com 10 anos de idade, quando comecei a fazer teatro. Eu me considerava uma pessoa que trabalhava em tudo para que a peça saísse, mas não conseguia me concentrar num personagem. Até achava, mesmo no Teatro de Arena, os atores egoístas, porque o ator pensava “o meu personagem” e eu não conseguia pensar no meu personagem. Eu pensava no espetáculo em conjunto. Como eu fazia produção, fazia às vezes cenografia, figurino, fazia bilheteria, era uma maneira de fugir da responsabilidade de ser ator. Cinema, eu não estava fazendo muito bem, porque não tinha tempo de ensaiar, tem um pouco esse lado. “Enquanto os outros estão ensaiando, ensaiando, ele está na rua comprando pano para fazer uma calça.” Então, isso me isentava um pouco da minha responsabilidade enquanto ator. Eu só fui ser ator mesmo, entender isso, quando fui fazer O padre e a moça, filme de Joaquim Pedro de Andrade. Quando eu cheguei no Rio das Pedras, interior de Minas, para fazer o personagem, cheguei lá e estava tudo pronto, não tinha nada para fazer. Eu só tinha que vestir uma batina e virar personagem. Então, eu me esforcei para tentar ajudar Mário Carneiro na luz, para tentar ajudar o Joaquim, mas ninguém queria nada de mim, todos já tinham passado por esses setores. Eu só tinha que ser ator. Aí, descobri o prazer de ser ator. Além disso, o luxo que é ser ator. Enquanto a equipe de filmagem no sol, no tempo, com as condições precárias de filmagem no cinema brasileiro, de longe ficava o ator, que precisa estar bonitinho. Tinha um guarda-sol para ele, todo mundo no sol, torrando, e o ator embaixo do guarda-sol. Aí, vem um cara trazendo melancia fresquinha, geladinha. Então, o ator é um ser de luxo. Eu achei maravilhoso esse negócio, fiquei encantado com as prerrogativas do ator no cinema.

Paulo Markun: Mas tem um preço, como não tem almoço grátis, esse luxo todo tem um preço. É o seu rosto, é a sua interpretação que vai estar lá na telona e não exatamente a direção e nem nada disso.

Paulo José: Na verdade, quer dizer, o cuidado que têm com você, não é por ser ator, é pelo fato de você estar botando a cara lá na frente. Muitas vezes os diretores odeiam os atores, mas têm que trabalhar juntos e são obrigados a agüentá-los, porque precisam deles e quando termina o filme: “Agora vai para puta que o pariu, porra. Terminou, acabou o filme.” Tem a história do Lulu de Barros [Luiz de Barros, cineasta,(1893-1982)], engraçada, que era blackout de um filme chamado Eles não voltaram [1960], sobre os pracinhas na Segunda Guerra Mundial. Eu fazia um soldado e chegou um dia que o Luiz de Barros começou a fazer exigências maiores. E ele dizia: “Amanhã, filmagem às 7 horas da manhã almoçados.” [Risos]

Cunha Jr.: Paulo, você trouxe essa coisa de cinema e eu acho importante no cinema brasileiro falar da coisa do mercado. Nós temos, acho, cerca de 2000 mil salas no Brasil. O homem aranha, esse primeiro grande "blockbuster" que estreou agora, entrou em 600 salas, tem shopping que tem 3 salas para O homem aranha. Eu fui assistir um documentário muito interessante, aqui em São Paulo, chamado Em trânsito [de Henri Arraes Gervaiseau], que está em uma sala, em um único horário por dia. Tem saída para isso aí?

Paulo José: Difícil, não é? Precisaria de uma política muito rigorosa no sentido de assegurar a reserva de mercado. Porque, na Europa, o problema do cinema é problema de segurança nacional, problema de autonomia, independência, soberania. Quando o Gat
[Acordo Geral entre Comércio de Serviços, em inglês, General Agreement on Trade in Sevices, que inclui serviços audiovisuais], aquele acordo de livre comércio, foi feito no mundo todo, os ministérios de cultura da Europa se reuniram no seminário e fecharam que a produção cultural era uma questão de soberania, de autonomia e de identidade que estavam nesses países. Como o acordo do Gat, que era um acordo pleno, principalmente para a indústria fonográfica, para os mega stars entrarem de forma avassaladora no cinema, o grande cinema americano não poderia entrar no acordo do Gat. Eles ficaram de fora. Quer dizer, fica reservado para cada país a produção cultural, a indústria cultural é o privilégio de cada país, que tem direitos sobre sua reserva de mercado. A grande invasão de colonização não é com os marines [tropa de elite das Forças Armadas dos Estados Unidos]. Mais uma vez, eles estão se ferrando lá no Iraque. A grande invasão que se dá é a cultural, onde você entra por baixo e ela vai assumindo, modificando os hábitos, os usos, isso que tem ser cuidado. E o cinema é a forma mais eloqüente, mais extraordinária, de você fixar a cultura na nação. Felizmente, hoje, apesar das restrições de mercado à exibição, o número de documentários está aumentando enormemente. Hoje, existe um cinema documental brasileiro muito significativo. Começou a partir do Joãozinho [João Moreira Salles], do Eduardo Coutinho, mas existe uma quantidade enorme de documentaristas que são voltados para documentário. O João fica irritado quando eu pergunto para ele: "Quando é que você vai fazer seu longa?" Ele diz: “Eu sou um documentarista, não sou diretor de ficção.” Mas isso está acontecendo. Eu fui agora no Festival de João Pessoa e foi muito interessante, porque eu vi a quantidade enorme de documentários de Angola, de Moçambique, de Portugal, de brasileiros que dão uma realidade nova, que te ajudam a entender melhor o país que a gente vive. A língua portuguesa deixa de ser a língua que ninguém fala. Você percebe que é a quinta língua que se fala no mundo e que os países têm uma história para contar, têm o que dizer, e isso está fixado no cinema documental. Então, por um lado, seria reserva de mercado e, por outro, estimular ao máximo a produção de documentário. Porque tem uma produtora, a Infinito, que faz eventos e que vai fazer nos Estados Unidos uma série de eventos no mercado universitário americano de filmes brasileiros, só filmes brasileiros. Entrou no mercado universitário americano com patrocínio da Petrobras.

Mauro Ventura: Paulo, você é uma espécie de ator fetiche do Domingos Oliveira, foi o alter ego dele em alguns filmes. Mas, nos últimos anos, o próprio Domingos tem feito o papel dele mesmo nos filmes dele. Vocês estão retomando essa parceria, você vai voltar a ser o Domingos de Oliveira?

Paulo José: Ele percebeu que ele podia ser ele próprio.

Mauro Ventura: Não precisava mais de você...

Paulo José: Não precisava mais de mim, me jogou fora.

Mauro Ventura: Mas vocês estão fazendo um filme?

Paulo José: Agora voltamos com o triângulo amoroso: Domingos, Aderbal e eu. Três amigos que fazem o filme que é chamado Centro cardeais e que agora passou a se chamar Juventude. Está pronto, acabou agora. Gravamos ontem as últimas cenas do filme. Agora voltamos juntos, eu e Domingos, eu sou o amigo do Domingos.

Chico de Assis: Paulo, comédia ou drama, o que você gosta?

Paulo José: Comédia.

Chico de Assis: Por quê?

Paulo José: Porque comédia vai mais fundo. A comédia é a intuição do trágico. O drama tem uma dissolução, tem a solução final, porque a função catártica do drama é mais aliviante que a tragédia e a comédia. A comédia expõe ao ridículo, às mazelas, ao grotesco de todos nós. É essa a idéia mouresca da comédia. Era muito mais interessante mulher do que homem, não é?

Paulo Markun: Paulo, o nosso tempo está acabando e eu vou fazer uma última pergunta que é a seguinte: lá longe, no sotaque, você ainda guarda referências do Rio Grande do Sul? Você começou a fazer teatro na cidade onde você nasceu, em Lavras. Depois, esteve em Bagé. Porto Alegre, na crise da legalidade, o seu grupo de teatro, em 1961, teve um papel importante.

Paulo José: Eu estava vindo para São Paulo nessa época.

Paulo Markun: Exatamente. E o Rio Grande do Sul, em um certo sentido, é o estado mais, digamos, consciente da sua peculiaridade. O que sobra do gaúcho no Paulo José de hoje?

Paulo José: Eu sou cada vez mais internamente gaúcho, mas não gaúcho da cultura do Rio Grande do Sul, gaúcho do lugar que eu nasci, gaúcho da fazenda da minha família, do campo. “Antes todos os caminhos iam. Agora todos os caminhos vêm” [citando o poeta Mário Quintana]. Estou um pouco nesse recolhimento. Você sai pelo mundo, o mundo é seu, você procura abrir o máximo o seu espaço no mundo. Depois, você vem fechando, fechando, fechando, fechando, os amigos são poucos, os livros convidativos e eu mesmo preparo chimarrão para os meus fantasmas. É mentira, não sou tão solitário assim. Isso é dramático. Mas cada vez eu sinto mais prazer em chegar na minha terra, encontrar aquele chão da minha infância, isso para mim é muito importante. 
Ascenso Ferreira [poeta pernambucano (1895-1965)] que diz: “Riscando os cavalos. Tinindo as esporas. Através das cochilhas. Sai de meus pagos em louca arrancada. Para quê? Para nada!" [risos]. [citando o poema "Gaúchos"]

Paulo Markun: Paulo José, muito obrigado pela sua entrevista.

Paulo José: Imagina, acabei mal pra burro, uma grosseria dessas [risos].

Paulo Markun: Prazer ter você aqui. Obrigado aos nossos entrevistadores e você que está em casa. Nós estaremos de volta na próxima segunda-feira, às 10h40, com mais um Roda Viva
. Até lá.

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