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Paulo Markun: Boa noite. Quem ganha e quem perde com atual crise política? Um dos mais ativos analistas da história brasileira acha que o país tem agora uma grande oportunidade de mudar para melhor. Mas como os partidos políticos estão enfraquecidos, considera fundamental a participação da sociedade na busca de uma nova agenda de desenvolvimento econômico e social. O Roda Viva entrevista esta noite o cientista político Bolívar Lamounier, que acaba de colocar em novo livro uma revisão da história política brasileira do século XIX aos dias de hoje.
[Comentarista]: Doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia e fundador do Ibesp [Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política], um dos mais importantes institutos brasileiros de pesquisa sócio-política, Bolívar Lamounier já reuniu em vários livros e artigos seus estudos sobre a sociedade e a formação política brasileira. O mais recente é: Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira. O autor conta no prefácio que reuniu ali análises e reflexões feitas ao longo dos últimos trinta anos e com isso espera contribuir para um reexame da história política brasileira. Bolívar Lamounier reanalisa nossa evolução política a partir dos episódios, mas também da teorização sobre os regimes políticos, os sistemas partidários, as relações entre civis e militares e as lições tiradas de cada período desde o Império. Mais da metade do livro é dedicado aos últimos vinte anos de democracia e a questão da tão falada e pouco praticada, reforma política. Lamounier acha que nas últimas décadas de redemocratização os resultados foram desiguais e até contraditórios e diz que o Brasil organizou bem a esfera eleitoral e criou uma ética para o voto, mas não organizou e nem criou uma ética para a esfera dos partidos e do parlamento.
Paulo Markun: Para entrevistar o cientista político Bolívar Lamounier, nós convidamos Rui Nogueira, diretor da revista e do site Primeira Leitura em Brasília; José Nêumanne, editoralista do Jornal da Tarde; Eliane Cantanhêde, colunista do jornal Folha de S. Paulo; Alzira Alves de Abreu, pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro; Fernando Luiz Abrucio, cientista político, professor da PUC e da Fundação Getúlio Vargas, ambas
Bolívar Lamounier: Boa noite, Paulo Markun, boa noite entrevistadores, boa noite ao público da TV Cultura.
Paulo Markun: No seu livro, você menciona que a gente está vivendo numa época em que se misturam dois sentimentos: de um lado, um pessimismo que já é meio histórico em relação à situação política brasileira, e um otimismo meio também fora de sentido. Essa avaliação que você faz no livro, você acha que poderia ser repetida hoje, quer dizer, como diria alguém, “data hoje”, é isso que vivemos, essa mistura de sentimentos? Ainda há esse otimismo?
Bolívar Lamounier: Eu acho que sim. Na verdade eu acho que, justo neste momento, há novas análises sendo publicadas, propondo um diagnóstico do Brasil como um sucesso econômico e político ao alcance da mão. Então, eu acho que nós continuamos a ter, o que eu abordo no livro, que são extremos de pessimismo e de otimismo, ambos de forma freqüentemente muito ingênuas, porque ambos resultam de uma reflexão, eu diria insuficiente sobre o que foi o trajeto de nossa construção institucional, da construção da democracia ao longo destes dois séculos. Justamente, o meu objetivo no livro foi tentar adensar essa discussão, essa reflexão para que, na medida do possível, nós tenhamos uma visão mais adequada do país. Porque eu acho que para nós termos opções consistentes sobre o futuro, nós temos que ter uma melhor compreensão do presente, e este por sua vez, requer uma identidade, requer uma aceitação, uma compreensão, uma fundamentação de como é que nós nos formamos politicamente.
Paulo Markun: Mas, antes de a gente mergulhar nessa avaliação, que eu que acho que é a parte importante desta entrevista, justamente o desencanto com o governo do PT, com o governo do presidente Lula, não é justamente se tirar o último véu que faltava, quer dizer, não há nenhum partido, na avaliação de hoje, que seja diferente dos demais, não há nenhuma prática política acima de qualquer suspeita? Pelo menos é essa a conclusão que muita gente desenvolve a partir da realidade atual?
Bolívar Lamounier: Sim, sim, sem dúvida, eu acho que esse sentimento está muito generalizado e é proporcional, vamos convir né, ao tamanho da crise, à gravidade de tudo que foi revelado e ao impacto profundo que tudo isso teve na vida da sociedade neste momento. É perfeitamente compreensível que haja um sentimento de indignação em relação a autoridades eleitas pelo voto popular, e essa indignação se expressa como um desencanto, isso é compreensível. Agora, por outro lado, se nós tomarmos um pouco mais friamente o objeto da nossa discussão, eu penso também que a crise tem subprodutos muito positivos dos quais nós podemos falar e de certa maneira demonstra uma razoável robustez das instituições.
[...]: Bolívar, quais seriam os subprodutos positivos da crise, Bolívar?
Bolívar Lamounier: Eu acho em primeiro lugar, toda vez que se quebra uma hegemonia ideológica exagerada, o país ganha. Toda vez que se quebra um mito exagerado, a idéia simplista de que um único partido detinha o conhecimento dos anseios sociais e detinha a pureza ética, isso é uma mitologia juvenil que, mais cedo ou mais tarde, teria que ser quebrada, tanto melhor para o país que foi quebrada depressa. Em segundo lugar, eu acho que se restaurou uma saudável competição eleitoral, porque antes da crise, a eleição se prefigurava como um passeio para o Lula se reeleger e para o PT fazer uma grande bancada. Mas essa facilidade na reeleição estava mal fundamentada, porque estava fundamentada num sucesso econômico que não é inteiramente de nossa feitura, que em grande parte resulta de circunstâncias internacionais, e por outro lado, dá idéia de um líder carismático, dá idéia de um líder...
José Nêumanne: E nem acompanha as médias, o Brasil não está bem em nenhuma média, essa história de sucesso econômico é... Agora, o Delfin Neto com aquele seu cinismo inteligente, sempre dizia que nós tínhamos que passar por essa experiência, antes, ainda no começo, ele falava muito isso, que nós tínhamos que passar pela experiência do PT no poder. A experiência do PT no poder foi uma grande surpresa para milhões de brasileiros, não foi para mim. Para você foi?
Bolívar Lamounier: No aspecto da corrupção foi, embora eu já tivesse, já estivesse atento a algumas discussões sobre Santo André, sobre Ribeirão Preto [cidades do estado de São Paulo, que o PT administrou], mas o tamanho da questão que se revelou, essa exposição muito pedagógica que a crise propiciou ao país, de mecanismo da corrupção, isso para mim é novo. Acredito que é novo para a maioria das pessoas. Agora, eu com toda sinceridade, com todo respeito pelo PT e pelos seus líderes, muitos deles meus amigos, eu devo confessar que no aspecto do desempenho do governo eu não tinha grandes esperanças, eu, ao contrário de muitas pessoas, eu não avalio...
José Nêumanne: Mas havia uma mitologia da alta qualidade dos quadros do PT na gestão...
Bolívar Lamounier: Havia uma mitologia, mas eu nunca fiz avaliação, eu nunca fiz avaliação de que o PT tinha grandes quadros técnicos em quantidade e eu nunca fiz avaliação de que ele tivesse uma ideologia, um programa consistente, uma visão consistente dos problemas brasileiros ou mundiais.
[vários falam ao mesmo tempo]
Alzira Alves de Abreu: Por que você nesse livro e em todas as suas análises você centra muito na questão institucional como fundamental para o bom funcionamento da democracia. Estamos falando da crise de hoje. E você sempre fala da necessidade de reformas políticas. A partidária, a política, eleitoral, federativa. Então, fala um pouco se essas reformas evitariam uma crise, porque isso é uma análise que você vem fazendo ao longo dos anos.
Merval Pereira: Deixa eu complementar aqui, o seguinte, você acha que há na história brasileira alguma coisa semelhante, um paralelo a fazer em algum momento da vida brasileira em que, fora a ditadura, claro, as instituições tenham sido tão ameaçadas por um processo de corrupção como este que a gente está vendo?
Bolívar Lamounier: Não, as instituições estão ameaçadas, eu acho que não há paralelo. Porque nós tivemos casos virulentos, dramáticos, situações difíceis em vários momentos. Tivemos o episódio do Fernando Collor, mas vamos convir, eu nunca achei, escrevi isso várias vezes, que o episódio do Collor, o impeachment, fosse uma demonstração satisfatória de robustez das instituições. Era fácil demais, entende? Era óbvio demais, e aliás, o PT estava a favor do impeachment, então era muito simples. Agora não, nós temos aí o PT, partido amplissimamente respeitado pela sociedade, o presidente chama-se Luiz Inácio Lula da Silva, respeitado por todo o país, um partido com uma aura, até recentemente, crível de maior consistência no plano ético e de maior afinidade com os populares. Então o que temos agora, digamos, é uma pessoa jurídica, o Collor era uma pessoa física, era fácil o impeachment. Aquele impeachment não prova a robustez das instituições. Hoje eu proporia a seguinte reflexão: se esses fatos tivessem acontecido com outro partido qualquer no poder, o governo teria caído. Então isso significa que as nossas instituições são mais robustas do que antes, mas não estão resolvidas. Nós temos ainda um problema constitucional latente porque a chamada alternância no poder não é tão fluente como parecia em 2002, porque na verdade há uma rigidez de um lado. Se fosse outro presidente, cairia, o governo mudaria. Eu não estou propondo isso, apenas propondo uma reflexão. Mas com o PT não pode. Todo dia os políticos dizem assim: “Ah, não podemos falar em impeachment porque não tem movimento popular”...
[vários falam ao mesmo tempo]
Paulo Markun: Isso não é uma demonstração de que os outros partidos não têm nenhuma capacidade de mobilização da sociedade? Porque o PT tem, se não está usando é porque é o governo dele.
[vários falam ao mesmo tempo]
Bolívar Lamounier: O que eu quero refletir é o seguinte, Markun, o impeachment, a mudança de um governo, a formação de outra maioria em congressos, por causa de corrupção, envolve a figura jurídica do crime de responsabilidade. Esta figura é em parte jurídica, em parte política. Então, o que eu estou dizendo é: por um certo temor reverencial ao PT e ao Lula, os políticos simplesmente estão ignorando a parte jurídica...
Paulo Markun: Então, mas é que tem... certamente os políticos que querem cassar não tem força para isso, não tem voto suficiente.
Bolívar Lamounier: O que demonstra minha tese: nós não estamos fiéis inteiramente ao debate constitucional, nós estamos avaliando qual a correlação de forças. Então isso significa que há uma hegemonia ainda ideológica e organizacional do PT que dificulta a fluência nos termos da Constituição do mecanismo político, ou seja, em 2002 nós resolvemos em parte a questão da alternância, mas não resolvemos completamente. É isso que eu estava querendo argumentar.
Eliane Cantanhêde: Professor, eu queria ser uma voz discordante, porque uma das conclusões importantes do seu livro é que o Brasil avançou muito na expressão da soberania popular. Porque a gente tem urna eletrônica, a gente tem os tribunais eleitorais funcionando a pleno vapor no país todo, porque o voto foi permitido paras mulheres na década de 30... Enfim, há uma universalização do voto e que o grande problema é que essa evolução do voto, da manifestação popular não foi acompanhada de evoluções em quatro áreas fundamentais que são: partidos políticos, financiamento de campanhas, funcionamento interno do legislativo e a relação executivo parlamento. Isto não é um problema que o PT trouxe. O PT é réu e ele é também vítima desse processo...
Bolívar Lamounier: Exato, exatíssimo.
Eliane Cantanhêde: E ele também, quando o senhor fala de subprodutos positivos, a gente não está vendo os subprodutos positivos para mudar esse sistema que o senhor acusa. Então eu queria discutir, o foco não é só o PT e não é só o governo Lula...
Bolívar Lamounier: Claro, inteiramente de acordo. Eu vou retomar uma parte da pergunta da Alzira e combinar com a sua. É, eu proponho, desde séculos atrás, essas reformas, as que estão na pauta e continuo propondo, agora eu acho que elas não necessariamente teriam evitado isso, a menos que nós tivéssemos resolvido, por exemplo, a questão de financiamento de campanha, que é dificílima, quer dizer...
[...]: Difícil em todo mundo, né, Bolívar?
Bolívar Lamounier: No mundo inteiro, no mundo inteiro é muito difícil. A idéia de financiamento público na teoria é interessante, na prática é capaz de piorar. Então é muito complicado isso, eu nunca afirmei que o que está acontecendo se deve apenas à ausência da reforma, isso não. E nem estou dizendo que o PT seja o único responsável, de jeito nenhum. Você disse muito bem: ele é réu e vítima, isto é certíssimo. Agora o que eu afirmo é que o PT resistiu talvez mais do que os outros partidos grandes a toda e qualquer proposta de reforma política desde a Constituinte, número um. Número dois, que ele trouxe para o parlamento uma atitude, ainda contaminada pelo basismo, por sua ideologia um pouco messiânica, por sua, quer dizer, certa arrogância ética, que evidentemente o levaria a uma crise. Porque você tem que formar uma coalizão muito ampla para governar, o Brasil é muito fragmentado politicamente, você tem que formar uma coalizão ampla. Se você vai com essas atitudes, com essa ideologia nebulosa e unilateral, se relacionar com partidos que têm valores bem diferentes dos seus, valores até ambíguos, neste caso, é claro que vai dar alguma complicação e deu. Agora o que eu afirmei, e aqui eu não vou me afastar da afirmação anterior, é que o tamanho do problema me surpreendeu. Como surpreendeu a todo Brasil.
Rui Nogueira: O tamanho e o problema mais agravado. Eu discordo da Eliane por um detalhe. Se eu não tratar, se eu não tratar o PT neste caso especificamente como réu, no sentido político, eu digo por quê? Porque o PT tinha uma noção exata do problema do financiamento, ele falava sobre isso. O PT tinha uma relação exata, e criticava isso no governo Fernando Henrique, a relação executivo/legislativo. Eu cansei de ver o deputado Genuíno, líder do partido, dizendo nos corredores, que no nosso governo não haveria mais o balcão de negócios do governo Fernando Henrique Cardoso. Então eu não posso deixar de tratar o PT como réu, porque senão lhe dou o erro consentido, porque ele disse que faria tudo diferente, e ele agravou tudo que já existia então. Por que o senhor acha que o PT tomou esta atitude e agravou esses males, esse financiamento, relação executivo/legislativo, por que o partido foi para esse campo? Por que ele caiu nessa bandalha, então?
Bolívar Lamounier: No meu entendimento Rui, é que o PT, como nunca na história do Brasil aconteceu com nenhum partido, trouxe para o poder uma discrepância, digamos uma ambivalência entre dois discursos. Uma ética abstrata, radicalizante, dicotômica, “Nós temos a verdade, você não tem, nós sabemos como resolver, você não sabe, você não resolve porque você não quer, então você é uma elite corrupta”. Trouxe esse discurso messiânico, como eu disse, para o poder. Agora, a realidade dos fatos é que o sistema não opera assim, o Brasil não é assim, a política não é assim, então o outro discurso, qual é? Era um discurso pragmático, um discurso prático, era o que não se revelava, e é o que você está dizendo.
José Nêumanne: Bolívar, eu acho que é preciso também considerar a grande cumplicidade com que o PT contou, com a sociedade. Essa surpresa me é surpreendente porque nos anos 80 o César Benjamin saiu do PT denunciando que a tendência Articulação [o mais forte dos grupos políticos que formam o PT e onde militavam Lula, José Dirceu, entre outros] estava comprando o partido através do Delúbio Soares, o fato. Nos anos 90, Paulo de Tarso Venceslau denunciou o esquema de "mensalão" [supostos pagamentos feitos a parlamentares para votar com o governo, no caso municipal] feito nas prefeituras do PT, quer dizer, o país inteiro sabia que se roubava no PT, e o país inteiro acreditava no discurso messiânico "eco-perfeito" do PT. Então o PT contou com uma enorme cumplicidade inclusive nossa. Então a questão hoje, se discute muito se o Lula sabia, ou não sabia, esse não é um grande problema, o grande problema é que o país inteiro sabia e fingia não saber e fechava os olhos. Então você tem que considerar na sua reflexão também essa grande cumplicidade social com que o PT fazia, acreditando na mentira do patrimônio ético do PT, da mesma forma como hoje se fala na imprensa, na mentira da contribuição que o José Dirceu deu para a história da democracia e outras tolices do gênero.
Bolívar Lamounier: A sua pergunta é muito rica, Nêumanne. Eu vou tentar retomar aqui a conversa que nós vínhamos tendo. Eu acho que você tem toda razão. Veja bem, o que eu estava dizendo antes, nas primeiras discussões que tivemos aqui, sobre a extensão e a densidade, o peso dessa hegemonia ideológica que o PT ganhou na sociedade brasileira. O que eu quero dizer com isso? Que fatos gritantes apareciam a todo momento, mas não eram absorvidos por nós como analistas, pela própria imprensa, pelos pesquisadores, com a importância que eles tinham, porque sempre se dava um desconto ou sempre se atribuía a ocorrência deles a alguma razão que iria em seguida desaparecer. Nos outros a corrupção era grave, permanente e sempre se dizia que ela vinha desde Pedro Álvares Cabral. No caso do PT não, era um fato superficial, fortuito, acidental, que não competia...
José Nêumanne: A polícia de São Paulo sob gestão tucana [do PSDB] avalizou a tese do crime comum no caso do Celso Daniel do PT... [prefeito do PT assassinado, em 2002, em episódio ainda questionado, principalmente pela família da vítima, mesmo com a conclusão da polícia que a morte foi provocada por tiros de um assalto comum seguido de sequestro e, portanto, sem ligação com a administração na prefeitura municipal da cidade paulista de Santo André, apesar da existência de denúncias de que o prefeito estaria se opondo à cobrança de propinas de empresários do setor de transportes que supostamente alimentariam caixas de campanha]
Bolívar Lamounier: Mas viu, Eliane, é nesse sentido que eu quis dizer que a crise é sofrida, é dolorosa, é perigosa para o país, mas têm subprodutos muito bons. Quando você quebra essa situação psicológica, esse delírio, essa hipnose que estava acontecendo há 25 anos, é duro para todo mundo, não só para o PT, é duro para o Brasil, mas é ótimo para o Brasil. A política de um país vive na realidade, não num mundo de fantasia criado por...
José Marcio Mendonça: Mas Bolívar, esta discussão não está muito pouco profunda no caso, ou seja, está se achando que com uma reforma política ia resolver o problema do financiamento de campanha, você resolve o problema, e não se desce no fundo que é aquilo que permite existir o que existe, ou seja, o problema federativo, o problema legal, que você tem 200 mil leis e o problema da burocracia, isso está sendo discutido, você tem uma burocracia que controla tudo e ela será sempre controladora e permitirá a corrupção com esta legislação que você tem aí. Quer dizer, você fará uma reforma política, fará uma série de coisas, e o que permite a existência desse sistema vai continuar a existir.
Bolívar Lamounier: Eu acho que nós temos três problemas. O primeiro é a investigação em si, o problema da corrupção, em curto prazo. Aí o perigo é: a sociedade está se cansando, o assunto está saindo da pauta, de repente isso pode ser ruim por esse ângulo. Mas enfim, esse é o problema do curto prazo. Segundo, uma série de reformas estruturais, institucionais, que são importantíssimas até para a economia, mas que eu prefiro que sejam realizadas no seu devido tempo. Não vamos confundir, em reação a uma crise de corrupção, vamos, na correria, fazer uma má reforma. Vamos com calma. As coisas complexas devem ser tratadas num tempo mais complexo. Agora, por último, e aí eu volto ao que o Nêumanne estava dizendo, o país, quer dizer, as pessoas do Brasil que têm tempo e condições para refletir mais precisam refletir mais. Eu, um dia desses, um dia desse, não, hoje mesmo, estava conversando com um amigo, e na conversa me ocorreu, estava conversando sobre o meu livro, me perguntou o que me levou a fazer o livro, e me ocorreu o seguinte: eu na verdade quando estava escrevendo me ocorreu aquele, o momento em que o Bento XVI foi alçado ao papado. Eu não dei grandes opiniões sobre religião ou sobre o papado, mas eu fiquei muito impressionado com um aspecto, foi quando ele disse: “Olha, a Igreja Católica é isso aqui, quem não estiver de acordo com isso, com esta instituição, vá para outra”. Eu acho que no Brasil nós temos que aprofundar as coisas. Isso aqui é uma democracia representativa que tem certas regras e a respeito delas é preciso ter a mais profunda convicção. Eu, o risco que eu vejo, é essa falta de reflexão na sociedade, que você mencionou, a respeito de várias coisas. É um intervalo, entressafra política em que os grandes líderes da transição, Ulysses Guimarães, Teotônio Neto, já se foram, mas na nova representação consensual, eu pessoalmente não sinto a mesma autoridade, a mesma convicção de que estão exercendo uma autoridade que é delegada por nós, uma democracia... Eu acho que estamos num momento de uma certa rarefação, de uma certa gelatina. Isso é mal para a democracia...
José Marcio Mendonça: Isso não é um problema mundial? Ou seja, os partidos políticos e os políticos não estão vendo o que a sociedade quer? Está tendo problema na França, em todo lugar...
Bolívar Lamounier: Sem dúvida que é um problema mundial, mas o fato de ser mundial, não nos exime de enfrentá-lo. Eu acho que ele está ocorrendo aqui, temos de enfrentá-lo. O Brasil, eu acho que já teve vários momentos em que as lideranças, com toda a desconfiança, toda a eventual rejeição que numa democracia, às vezes, os eleitores têm em relação aos partidos, já teve lideranças mais afirmativas, com melhor compreensão dos mecanismos da representação. Por esse lado também, eu acho que a crise é positiva. Todo dia eu leio críticas, na maioria corretas, sobre a confusão das CPI’s, há certa incompetência na investigação, eu concordo com tudo isso. Mas há um lado muito positivo, que é: sete ou oito meses atrás, a opinião pública brasileira não sabia quem era nenhuma daquelas pessoas. A imagem que se tinha do Congresso é que era tudo igual, lá estão 500 sujeitos. Não, hoje aquelas pessoas têm nome, têm psicologia, têm comportamento e é ótimo que isso aconteça, o Brasil está se apropriando, de certa forma, de quem são os seus representantes. Isso é essencial.
VT de André Marenko (cientista político – Porto Alegre): Eu acho que a oposição assim como o PT, acho que ambos, de alguma forma, saíram perdendo nesse episódio. O PT certamente perdeu muito porque ele é o centro da crise, mas a oposição, me parece, e as pesquisas de opinião, de intenção de voto parece que têm mostrado isso, não conseguiu apresentar-se também de modo convincente perante os olhos do eleitor. Seja em relação ao passado, mas também em relação à própria condução que deu para as CPI’s...
VT de Fernando Conceição (professor – Salvador): Eu gostaria de saber do professor Bolívar se não há possibilidades de se criar no Brasil uma terceira força política para se contrapor a essas duas forças que estão lá disputando há mais de 20 anos, ou seja, PSDB e PT. Então qual é essa terceira força política que poderia ser criada no Brasil para disputar o poder com forças e com chances de ganhar?
Paulo Markum: Boa pergunta.
Bolívar Lamounier: Boa pergunta.
Paulo Markun: Qual é, na sua opinião, há?
Bolívar Lamounier: A criação de uma força política não ocorre da noite para o dia. O próprio PT foi criado em função de lutas difíceis, no período da ditadura, das primeiras greves que aconteceram. Então eu acho que eu não posso ser, dar um estímulo leviano e utópico a essa aspiração. É preciso formar um partido...
Paulo Markun: Mas você, no livro, descarta aquela idéia de que estávamos caminhando para uma coisa tipo “democratas e republicanos”, e deixa claro as diferenças que existem entre a estrutura partidária norte-americana e a brasileira, que é muito mais fragmentada e muito mais gelatinosa, foi esta expressão que você usou.
Bolívar Markun: Sem dúvida nenhuma, a estrutura americana resulta de 150 anos de evolução e controla todas as cadeiras no Congresso, é outra realidade. A nossa é de acesso relativamente fácil, comparado com outros países. Formar um partido no Brasil e levá-lo a ter representação parlamentar comparando com outros países é bastante fácil.
Paulo Markun: O Collor chegou a ter 8% com o [partido] PRN...
Bolívar Lamounier: Sim, facílimo né, principalmente numa situação como aquela que era de desencanto, de confusão total. Agora, o telespectador de Salvador, o que ele perguntou foi: “uma força política capaz de se contrapor aos dois principais partidos juntamente com o perfil do país”. Aí você está pedindo uma coisa bastante ampla.
Merval Pereira: Professor, o senhor não lembra do PMDB...
Bolívar Lamounier: A senadora Heloisa Helena acabou de criar um novo partido [PSOL]. Ele vai chegar a 20, 30 % das cadeiras? Eu acho difícil.
Merval Pereira: Mas você acha que tem que criar um novo partido? Não existe na arena política brasileira um partido... O PMDB não pode ser esta terceira via numa eleição, eventualmente? Se for é uma coisa individual, é por causa de um candidato e não por causa do partido em si?
[..]: De um Garotinho?
Bolívar Lamounier: O PMDB é o Hamlet [personagem de Shakespeare], é o eterno indeciso da política brasileira e por razões estruturais profundas. Ele depois, com o desaparecimento da geração da transição, ele tem vários caciques de um mesmo, certo, nível, mediano de presença, de expressividade pública, mas nenhum deles empolga como candidato presidencial. Então é um partido que se voltou para dentro de si mesmo e se transformou numa máquina, em grande parte é uma espécie de marca de sabonete, o reconhecimento do nome, da sigla, mas não é um partido que inspire no nível em que o telespectador perguntou, está certo? Ele não é essa força de renovação.
José Nêumanne: Professor Lamounier, não se esqueça do outro. Que o outro telespectador perguntou uma coisa muito importante, que eu tinha anotado aqui para te... Está todo mundo falando do PT e está todo mundo esquecendo do papel da oposição nesta crise, a oposição tem demonstrado uma incompetência que é uma coisa monumental. Primeiro que toda crise se forma a partir de denúncias que saem de dentro do governo. Essa mania que o Lula tem de botar o povo para brigar embaixo dele, para ele ficar sempre do lado do vencedor, e que termina gerando essas denúncias. Mas a oposição não soube até agora transformar a crise do PT num capital eleitoral. Nós estamos hoje ainda diante de pensar uma coisa absurda que é a possibilidade de uma vitória. Do lado mais concreto hoje, o candidato mais concreto, hoje, o candidato favorito a essa eleição ainda é o Lula, a essa altura do campeonato.
Bolívar Lamounier: Eu concordo em parte,
José Nêumanne: Não, a fonte não é a imprensa, a fonte são os conflitos. Pela própria cultura pessoal dele, o Lula implanta nas suas... desde o sindicato de São Bernardo que o Lula age assim. Isso gera esses conflitos internos... Roberto Jefferson... [ex-deputado (PTB-RJ), responsável pela denúncia do escândalo do "mensalão"]
Bolívar Lemounier: Mas é isso que eu quero dizer, se o Lula, se o PT, na maneira de organizar o poder, na maneira de compor a coalizão de governo, criaram um certo monstrengo heterogêneo, eles ganhavam alguma coisa com isso e corriam o risco, não é verdade? O risco está agora aparecendo. Quer dizer, o que foi semeado está sendo colhido.
José Nêumanne: Mas ele hoje, hoje num discurso, ele formalizou isso aí e como uma coisa pensada, ele disse claramente que era uma coisa boa, que ele estimula isso realmente.
Bolívar Lemounier: É aí que eu quero dizer, eu acho que não se deve qualificar como incompetência da oposição aquilo que são os erros, ou que é a complexidade, ou que são as brechas do governo, do partido do governo ou a própria complexidade da sociedade. O Brasil hoje tem meia dúzia de instâncias de investigação, tem uma imprensa poderosa pluralista investigando, isso é muito bom para a democracia, qual é o problema?
Eliane Cantanhêde: Não, mas no seu livro, professor, no seu livro o senhor especifica uma coisa, que eu acho muito importante, que com o desgaste dos partidos políticos, com o desgaste do congresso, da própria atividade política, esses atores políticos vêm sendo substituídos pela mídia, pelas ONG’s, enfim há uma inversão de papéis e há uma perda de importância da política. O que o senhor projeta diante dessa constatação?
Bolívar Lamounier: Não, veja bem, primeiro um ponto de redação. Se me lembro bem, eu não falei substituído, eu disse complementado, então eu não acho que a democracia representativa...
Eliane Cantanhêde: Ah, página 275: “O processo eleitoral, os partidos e o legislativo estariam perdendo terreno para outros atores como a mídia, as ONG’s e os movimentos sociais diversos”. Eu até concordo com o senhor...
Bolívar Lamounier: Veja bem, quando se diz perdendo terreno é bom que se entenda, perdendo terreno relativamente a outras forças que estão emergindo, e não poderia ser diferente, entende? No século XVIII, a imprensa era proibida de narrar debates parlamentares na Inglaterra. Surgiu a imprensa, ela passou a narrar, isso é ruim para a democracia? Não, significa que o partido do parlamento perdeu proporcionalmente alguma coisa em relação a esse novo ator. Quando surgem as ONG’s, por exemplo, aparecem muitas pessoas dizendo: “Agora as ONGs estão substituindo os partidos”. Não, não estão substituindo, elas estão se valendo do espaço criado pela democracia representativa para se multiplicar. Há um dado muito eloqüente sobre isso, na Rússia até a transição, quinze anos atrás, havia zero ONGs, zero organizações associativas, hoje tem 63 mil. Não poderia ser diferente, antes não tinham liberdade, agora tem. Elas são frutos da realidade da liberdade criada pela democracia e pelos partidos.
Eliane Cantanhêde: Agora, eu estava lhe perguntando isso dentro do contexto da pergunta dos telespectadores, quando você tem esta polarização, PT/PSDB, e ao mesmo tempo, um desgaste da representação política, da importância do parlamento diante da sociedade, o senhor não acha que é possível, como projeção, que o eleitorado deixe de acreditar na força da política e passe a acreditar na força sobrenatural, e aí ainda entram as igrejas evangélicas, que há um espaço muito grande no Brasil para o crescimento das igrejas evangélicas no processo político?
Rui Nogueira: Deixa eu complementar aqui em relação à Eliane. Pode acontecer isso que ela está falando, essa descrença com a representatividade política ou o eleitor, o cidadão brasileiro sai dessa crise vacinado contra qualquer tipo de jogo messiânico, porque do Collor, especificamente, comparando Collor e o governo Lula, os dois tinham, apontavam para essa idéia de que havia uma classe, no caso do Collor, era uma mistura de empresário jovem, novo, bonito, garboso que resolveria os problemas, e tudo. No caso do Lula era classe operária mistificando essa idéia de que o operário... ele propõe sempre fins divinos que justificam todos os meios. A gente sai vacinado disso, mas também leva a um desgaste da democracia representativa, ou caímos nessa vala que a Eliane está pondo?
Bolívar Lamounier: Vou tentar refletir sobre as duas perguntas. Mas me permita dar uma pequena volta um pouco ampla para situar o problema. Se vocês me perguntarem o que eu penso da democracia de partido, da democracia representativa, se eu acho que ela é o sistema mais aperfeiçoado, político mais aperfeiçoado, eu direi imediatamente que sim. Tanto do ponto de vista dos valores, do ponto de vista civilizatório, como também sob o ponto de vista operacional. É mais flexível, é mais pluralista, é mais compatível com o estado de direito. Respondo sem pestanejar.
Rui Nogueira: Ainda tem muito para dar, então?
Bolívar Lamounier: Se vocês me fizerem uma segunda pergunta: “você acha que por isso, então, por ser superior, ela se impõe inexoravelmente? Eu digo, não acho isso. Eu não sou [Francis] Fukuyama [cientista político norte-americano de origem japonesa e autor do polêmico livro O fim da história e o último homem, lançado em 1992. Para ele, o liberalismo político e econômico superou o socialismo e o comunismo]. Eu acho que a democracia sempre pode quebrar, sempre pode dar para trás. Essas possibilidades de retrocesso que vocês estão mencionando, seja pelo peso exorbitante de certas denominações religiosas, líderes populistas, como na França. Agora, no Brasil uma pancadaria daquele tamanho poderia ter conseqüências muito mais graves. No governo Lula se em vez de estar com a economia razoavelmente em ordem, nós tivéssemos caindo com a inflação, sem crescimento, inflação alta, o diabo que fosse, nós podíamos ter uma crise muito mais grave. Se em vez do PT no poder fosse o PFL, nós podíamos ter uma crise muito mais grave, não é verdade? Então eu nunca vou dizer que algo mau não possa acontecer, algo mau não acontece na política, quando o cidadão não quer que aconteça.
Rui Nogueira: Professor, acho que o telespectador está dando um nó, porque o senhor é um homem que, foi uma das pessoas que viu, no sentido correto, o que eram as eleições de
Bolívar Lamounier: Claro, eu acho, veja bem. Eu acho que a vacina, o antídoto contra grandes crises e reversões é buscada por um caminho que é a reforma política. Você, os cientistas políticos, os deputados, senadores, estão sempre discutindo qual é o melhor modelo, eu pessoalmente sou parlamentarista, tem outros que não são, enfim há uma discussão válida, legítima com vários pontos de vista como aperfeiçoar o sistema. Segundo, você acabou de tocar, a economia de mercado e a redução da presença estatal em funções que não lhe caibam. Por quê? Porque onde o Estado, o poder público é dominante em todos os setores, não há espaço para a democracia pluralista.
Rui Nogueira: Esta é uma batalha que está por se ganhar.
Bolívar Lamounier: Exatamente, no Brasil, há como eu já disse algumas vezes aí, uma espécie de divã eterno, as pessoas não querem sair do divã. Sabe, elas querem o capitalismo para si, o socialismo para os outros, elas querem uma coisa muito estranha. O máximo de regulamentação com o máximo de liberdade para si. Não, eu acho que os valores econômicos, em parte os políticos, ainda não estão assentados no Brasil. Agora, o ponto mais profundo da discussão, que eu não quero deixar de mencionar, é uma ilusão, uma ilusão perigosa, alguém achar que algum país alguum dia estará vacinado contra crise. Isso não existe. A democracia, a Argentina no início do século XX, era um país riquíssimo, muito mais equilibrado que o Brasil e teve um século horroroso, há o exemplo óbvio e clássico da Alemanha nazista. Nós estamos vendo a Venezuela que é um risco, não é? Na França...
Fernando Luiz Abrucio: Com certeza, os países fundadores dos Estados Unidos devem estar horrorizados com o que está acontecendo lá fora...
Bolívar Lamounier: Se o Mandela [Nelson Mandela (1918-), foi um líder rebelde e principal representante do movimento anti-apartheid, na África do Sul, considerado pelo povo um guerreiro em luta pela liberdade, e presidente desse país de
Fernando Luiz Abrucio: Eu só queria pegar aqui a pergunta que foi feita pelo André Marenko, cientista político. Eu acho que tem acontecido uma coisa nesse debate em relação às CPIs, que é um outro perigo, que é reduzir a política à questão moral. Está sempre acontecendo isso, eu tenho visto, tenho trabalhado em pesquisas qualificativas e há uma sensação de cansaço muito grande na população quanto a isso. E você apresentou aqui para a Eliane, para o Rui, um debate muito mais rico de idéias que, a meu ver, está fora hoje do debate com tema político. Você não teme que o prolongamento desse debate: “Você roubou mais do que eu? Não, você roubou mais”, o que está acontecendo é isso. Que esse debate não empobreça a campanha eleitoral em 2006, e pior, em 2007 os ânimos cheguem apenas movidos, não pelo debate sobre reforma política, qualquer que seja a visão, sobre Estado e mercado, mas seja movido apenas quem é mais ladrão ou não...
Bolívar Lamounier: É claro que há esse risco, sem dúvida alguma. Eu acho que o país, as pessoas que têm condições de contribuir, as instituições relevantes, devem se valer dos subprodutos positivos da crise. Há um desejo novo por discussão. Um ano e meio atrás, dois anos atrás, a discussão era única e exclusivamente política monetária e taxa de câmbio, não se discutia outra coisa. O mundo parecia organizado para sempre, o mais feliz dos mundos, o que se discutia era política monetária e política de câmbio. Hoje eu acho que há uma demanda muito grande, e isso é muito saudável, eu fico muito contente em constatar isso, como conseqüência da crise do mensalão, por uma nova reflexão política, uma nova visão, uma nova interpretação do Brasil, onde é que nós estamos afinal de conta? Eu acho que é um momento maravilhoso para que na campanha eleitoral nós tenhamos uma renovação da agenda, uma renovação das propostas. No âmbito aqui semi-público, semi-privado, que é a universidade, que é empresa e tudo, que nós retomemos o saudável debate de idéias no Brasil, porque o Brasil vem de um longo período de idéias muito pobres, mas muito pobres mesmo. Tão pobres, que nós estamos - acho que não vou ofender o PT por isso - as idéias que o PT trouxe para a cena nacional, são muito pobres. São messiânicas, são ingênuas, são moralistas ao extremo, nenhum programa econômico, então....
Fernando Luiz Abrucio: Será que com a crise não pode ressaltar ainda mais esse debate moralista, Bolívar? É um temor.
Bolívar Lamounier: É como eu disse, eu penso em termos de risco. Existe esse risco. Como é que você evita o risco? Agindo, ocupando o espaço...
Alzira Alves de Abreu: Deixa eu fazer uma.... interferir. Como é que você percebe, então, nesse debate, o papel dos intelectuais, dos cientistas sociais? Eles estão conseguindo ser isentos, apesar das suas posições políticas? Como é que você está vendo isso?
Paulo Markun: Aliás, eu aproveito, eu aproveito para fazer a pergunta de um telespectador, acho que uma telespectadora, vou localizar aqui, que é Maria José Bechara, do Butantã, professora universitária, que pergunta: quando é que o senhor vai refletir como intelectual e não como militante político?
Bolívar Lamounier: Bom, eu acato a observação dela humildemente, acho que é injusta, mas eu não vou contrariar o ponto de vista dela.
Alzira Alves de Abreu: O meu é, se eles, os intelectuais hoje estão falando, estão analisando, eles estão conseguindo se distanciar das suas posições políticas e fazer análise da conjuntura, isentas? Como é que você está vendo isso?
Bolívar Lamounier: Eu acho que não há um distanciamento desejável. Eu vou dar uma de tucano [partidário do PSDB] aqui, mas também não quero jogar pedra
[?]: Desde José Bonifácio de Andrada e Silva... [(1763-1838), estadista brasileiro que desempenhou um importante papel político na Independência do Brasil e ficou conhecido como "Patriarca da Independência].
Bolívar Lamounier: José Bonifácio, sobretudo. Rui Barbosa, mais recentemente Celso Furtado [(1920-2004), importante economista brasileiro e um dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX, cujos trabalhos dizem respeito, principalmente, aos temas: história econômica, teoria do desenvolvimento, política econômica e planejamento], o próprio Fernando Henrique [Cardoso (1931-), foi presidente do Brasil por dois mandatos consecutivos, de 1995 a 2002], obviamente, intelectual internacionalmente respeitado, presidente da república, sociólogo. Então no Brasil, esses dois papéis se mesclam e eu não vejo isso como necessariamente mal e acho difícil mudar. No Brasil as pessoas não vão de repente separar os papéis que nunca foram separados. Agora, o que eu acho é que o debate público tem que ser um açoite, entende? Quando se tem uma hegemonia partidária, hegemonia ideológica, o debate não é o contraditório, o embate de idéias que precisa ser. Eu, embora..
Paulo Markun: Falta debate, na sua opinião? Falta debate?
Bolívar Lamounier: Heim? Falta debate e falta a ética do debate. O debate não é alguém pegar o microfone, esbravejar, dizer coisas assim sem fundamentar as idéias, não é? Acho que precisa fundamentar as idéias.
[...]: O ambiente está muito radicalizado, você acha?
Bolívar Lamounier: Está muito radicalizado e está sofrendo o esvaziamento de vários anos, e que em grande parte é ainda uma sombra do próprio regime militar. O regime militar, todo mundo estava de um lado só, depois, quando nós tivemos que nos dividir, essa divisão foi dolorosa. Então tudo isso ainda está por aí. Eu acho que esta é uma oportunidade maravilhosa que a crise nos proporciona, vamos tirar grande parte dessa poeira e vamos agora debater o que é o Brasil, o que nós queremos do país. Eu, por exemplo, no meu livro, eu gasto muitas páginas dizendo que grande parte que se discute no debate público, nas universidades, é um mundo de inenarrável tolice, entende? Quando as pessoas dizem: “Isto aqui é a mesma ditadura da elite que era 500 anos atrás”. Pelo amor de Deus, vamos começar a discussão! Isso aí me parece o fim, não é nem o começo. E eu estou falando de uma idéia que não ocorre? Ela ocorre todo dia. Vamos discutir coisas que valham a pena, o mínimo de atualização. Acho que a universidade pode se atualizar um pouquinho sobre o mundo em vez de ficar enfurnada em si mesmo. Agora, não vamos especular. O que eu quero dizer respondendo sua pergunta é: este é um momento excelente para nós voltarmos ao bom debate que nós tivemos no Brasil em várias ocasiões, notavelmente no período da transição e que você viveu tão bem, produziu tanto a respeito disso.
Paulo Markun: O ex-ministro Ronaldo Costa Couto disse o seguinte: “Ouvi lá em Minas que JK foi o melhor presidente que o Brasil já teve e Tancredo Neves o melhor presidente que o Brasil não teve”. O senhor assina embaixo?
Bolívar Lamounier: Assino sem pestanejar e aproveito para mandar um abraço para o ministro, grande amigo meu.
Entrevistador: Conversa de mineiro!
Paulo Markun: Pergunta de Patrícia Puntel Dinamarco de São Carlos aqui de São Paulo: O povo chorou a morte de Tancredo e a esperança foi levada para o além. O povo chorou de alegria quando o Lula foi eleito, mas a esperança se esvaiu novamente com decepções sistemáticas. A política é sempre assim, choros e esperanças? Qual o combustível da política?.
Bolívar Lamounier: Esta é uma bela pergunta, realmente, preciso de reflexão. Eu acho que, às vezes, um país tem uma seqüência de fatos trágicos, negativos, que não são necessariamente frutos do processo político. As coisas acontecem, as pessoas morrem, um líder morre, tudo. Agora, eu acho que o importante para nossa reflexão do Brasil hoje, é que o Brasil tem um pêndulo que vai de um ponto a outro com extrema facilidade, com uma facilidade excessiva. E isso reflete a insuficiente compreensão, a insuficiente reflexão sobre o próprio país. Eu acho que como conseqüência do anseio, mais do que compreensível e mais do que legítimo, de nós melhorarmos o país, reduzirmos pobreza, reduzirmos criminalidade, nós de repente passamos a imaginar que as coisas têm solução em 24 horas. Quem sabe amanhã? Bom, esse pensamento leva ou ao culto da ditadura, algum messias, salvador, ou então...
José Nêumanne: Nós temos um neo-sebastianismo, nós vivemos nessa história, na esperança de vencer o medo.
Bolívar Lamounier: Exatamente. Isso leva ou ao culto da ditadura, na suposição tragicamente equivocada de que algum ditador resolva as coisas, ou ao desespero, à fossa, ao privatismo, é triste. A apagada e vil tristeza que eu acho que meu amigo Nêumanne, como grande romancista que é, assinaria também embaixo.
José Nêumanne: Eu acho que você poderia refletir um pouco sobre essa questão da esperança e do medo, que se tem como uma grande coisa no Brasil, que a esperança vença o medo. Eu acho que a esperança é sempre um mau conselheiro, uma coisa sebastianista, e o medo é um conselheiro melhor na política. O senhor não acha, não?
Bolívar Lamounier: Bom, deixa eu começar pela questão da esperança. Eu li, eu acho que foi no Kafka [Franz Kafka (1883-1924), escritor tcheco de origem judaica e língua alemã, cuja obra mais conhecida é A metamorfose, entre outras, em que trata da fragilidade da condição humana frente às instituições e aos costumes], aquela história de que se os pedreiros, aqueles operários todos que construíram a Muralha da China, se eles soubessem que estavam começando a construção que ia levar 500 anos, mesmo eles sendo escravos, morreriam de desespero. Porque é muito difícil você compreender o sentido de uma construção que vai muito além de você, muito além da sua geração, muito além dos seus filhos. Mas isso nós temos que aprender um pouco. O desenvolvimento de um país, a história de um país é uma coisa que nos transcende. Nós ajudamos, contribuímos, mas nós somos uma parte pequena no peso geral e uma parte pequena no fluir do tempo. Então, se nós projetamos nesse imenso universo, que é a história, que é a política, que é a construção do progresso social, um anseio urgente de que tudo isso corresponda ao que nós queremos individualmente no nosso horizonte de vida, nós vamos nos desesperar e nós vamos desacreditar da própria obra que nós estamos construindo. É preciso aí um certo equilíbrio entre a individualidade que contribui e que encontra nisso um equilíbrio adequado de satisfações, com o entendimento da obra
Paulo Markun: Você não acha que, de alguma forma, e eu vou emendar esta pergunta com a da Raquel Meneguelli, da Unicamp, de alguma forma há uma redução de importância do significado simbólico da eleição do Lula como operário, quer dizer, não tem... É porque, se ele fez, o partido dele fez esse estrago todo, ele fez e participou disso, então pouco pesou? E eu emendo a pergunta da Raquel, que é mais ou menos nessa linha, que diz o seguinte: Foi dito aqui que todo fenômeno que o PT significa para o processo de desenvolvimento partidário brasileiro, segundo a Raquel, não passou de hipnose. Esse exagero - segundo ela - em não reconhecer o processo de construção institucional partidária, da qual o PT foi protagonista, bem como o seu papel no âmbito do fortalecimento democrático acompanha a onda atual de desconstrução do partido e de seu significado ou existe um argumento mais elaborado para isso?.
Bolívar Lamounier: É claro, eu acho que é um argumento mais elaborado, a pergunta é excelente, a professora Raquel, ela escreveu um livro...
Paulo Markun: Sobre as origens do PT.
Bolívar Lamounier: As origens do PT. Eu não estou de maneira nenhuma desqualificando a história do PT e a construção que o PT realizou. O PT, chegando ao poder, pressionou a política brasileira a fazer alternância de poder mais sincera, mais difícil do que havia ocorrido no passado. Isso é um progresso institucional muito grande. Agora, a figura do Lula, sem dúvida, eu acho que perdeu muito. Porque o Lula, além do carisma junto aos pobres, aos destituídos economicamente, simbolizava um anseio de verdade na política, de veracidade, de sinceridade. O PT, como partido, não conseguiu sustentar esse ideal porque acabou se revelando partícipe de uma trama de corrupção imensa, que ele sempre disse que não havia, e seguida pela voz de vários dos seus líderes. Ele agravou terrivelmente isso, alegando o desconhecimento, que a ninguém convenceu. E o próprio presidente da República ao fazer algumas declarações e entrevistas, ao meu ver, terríveis para a democracia, porque dificilmente a maioria das pessoas que ouviram, acreditaram, parecia não estar dizendo a verdade. Em Paris, na reunião de ministros em Brasília, ele alegava um desconhecimento total de vários fatos que é difícil crer que desconhecesse, inclusive se contradizia: “Eu fui traído”. Se foi traído foi por alguma razão. Qual foi a razão? Então ao recorrer a esses expedientes verbais muito rasos, eu acho que o presidente Lula contribuiu para essa sensação generalizada de que ninguém está dizendo a verdade. E isso é muito perturbador para o cidadão e muito ruim para a democracia.
Eliane Cantanhêde: Agora, professor, nessa perda do lado mítico do Lula, esse personagem, Lula o personagem, o retirante, o pobre, o líder sindical que virou presidente... Agora, se a oposição ultrapassa o limite da denúncia, não corre o risco, como diz o governador Aécio Neves, de dar o discurso ao Lula? De fazer o Lula reviver esse personagem que foi vítima da elite? Transformar o Lula numa vítima das elites, numa vítima dos arrogantes, numa vítima da imprensa? Isso não mantém o Lula, primeiro como um candidato ainda muito forte? E segundo, no livro o senhor lembra que o Fernando Henrique Cardoso, que venceu o Lula duas vezes, ele se tornou um candidato natural, porque ele tinha a alavanca do real, porque ele era o Fernando Henrique, e hoje o PSDB não tem um candidato natural como foi o Fernando Henrique. Ou seja, o Lula apesar de tudo isso e apesar da perda que ele tem, pela imagem e pela história dele, ele ainda não é um candidato muito forte?
Bolívar Lamounier: Eu acho que sim, mas vou começar pelo começo.
Eliane Cantanhêde: Faz bem! [risos]
Bolívar Lamounier: O começo das coisas é o início, não é mesmo? Veja bem a questão que o governador Aécio Neves aponta, eu acho que é muito perspicaz. Quer dizer, há um risco de você usar táticas políticas que levam a conseqüências mais graves ainda, sem dúvida que eu concordo com isso. A questão, porém, desse aspecto do Lula, popular, de Garanhuns que veio para São Paulo, da indústria automobilística, isso ser um pouco abaixado, menos enfatizado, menos reverenciado, isso eu acho muito bom. Eu vou te dizer por quê. O Brasil é um país de imigrantes pobres, todo ele, é preciso dizer isso claramente. O Lula simboliza isto, mas ele não é o único. As pessoas precisam fazer essa distinção. Isto aqui é um país de imigrantes italianos pobres, espanhóis pobres...
Entrevistadora: Mas ele foi o único que chegou à presidência né?
Bolívar Lamounier: Tem gente do interior do Brasil todo pobre, que veio para São Paulo como ele...
Entrevistador: Não é o único que tem mãe que nasceu analfabeta...
Bolívar Lamounier: Não é o único que tem mãe analfabeta. Eu acho que relativizar, ou digamos assim, dessalinizar um pouco esse símbolo, eu acho que, desmistificar, demitificar e desmistificar, já estava em tempo, inclusive para não se tornar em ferramenta eleitoral novamente. Eu acho que isso aí não é nada mal. Agora, a questão que você está apontando é para o futuro. Se o Lula ainda é viável? É claro que é viável...
Eliane Cantanhêde: Eu não perguntei se é viável, mais do que viável?
Bolívar Lamounier: Não, favorito.
[...]: Ele é favorito.
Bolívar Lamounier: E eu te digo: aí há um risco para todos, para o Brasil, para o próprio PT, para o próprio Lula que é o seguinte. O Lula pode ser reeleito, é eleitoralmente muito forte, mas ele é politicamente mais fraco hoje, ele perdeu apoio. Os setores mais importantes da sociedade, empresários, classe média, imprensa, eu acho que está muito menos apoiado hoje do que foi no passado. Ele não tem mais o encanto da novidade carismática, não tem. O PT não tem mais esse encanto. Então, o PT vai chegar ao poder novamente, se chegar, em janeiro de 2007, e vai fazer uma coalizão de governo no congresso. Como vai ser essa coalizão? Vai ser o PT, o PSDB, o PP, o PTB e o PL? E o PMDB? [vários comentam ao mesmo tempo] Pior, o que é que unifica, o que em tese pode unificar e dar qualidade a uma coalizão tão díspare e pobre como essa? Eu diria, se o núcleo da candidatura, o seu núcleo, seu entorno próximo tiver idéias, tiver uma agenda para o país. O mesmo vale para o PSDB que você observou muito bem. O PSDB tem aí vários caciques, mas precisa de idéias, precisa de coisas que empolguem, precisa de uma nova agenda. Então, eu volto ao meu samba de uma nota só: vamos antes de tudo perceber a oportunidade. A oportunidade é: a coisa zerou, zerou, ficou competitiva, o debate nunca terá sido tão aberto, tão fluído no Brasil, até porque mais acirrado, e isso é bom, isso é bom, eu sou um meio adepto do Rui Barbosa, e Rui Barbosa dizia com todas as letras: “o debate público precisa ser um açoite, precisa ser acirrado verbalmente, civilizadamente, mas duro, para que as idéias emerjam”. Eu sou a favor disso e a oportunidade é para isso. Aí sim nós vamos ter novas agendas, ninguém vai se eleger com “efeitos Spielberg” do Duda Mendonça [referindo-se a campanhas agressivas de marketing político, no caso a do publicitário que fez a campanha de Lula à presidência em comparação com o cineasta norte-americano criador de filmes com efeitos espetaculares], e sim com propostas mais consistentes, isto é ótimo.
Paulo Markun: Quem vota ou pode votar no Lula ou quem o torna um favorito, não é quem está sendo beneficiado pelo governo dele? Ou por que as pessoas estão sendo iludidas?
Bolívar Lamounier: Não, eu acho que, veja bem, um dos programas, que é discutível sob certos aspectos, mas é uma realidade importante, é o Bolsa Família que atinge aí, sei lá, 12 milhões de pessoas...
Paulo Markun: Hoje é oito milhões.
Bolívar Lamounier: E vai chegar a 12, enfim, isso é uma realidade, é um serviço, enfim, vai se valer disso eleitoralmente? Vai, tudo bom, se está chegando...
Paulo Markun: Como qualquer governo se valeria. Ninguém vai deixar para a oposição.
Bolívar Lamounier: Como qualquer governo se valeria, não é mesmo? Vai se valer do crescimento econômico? Vai, vai. Este crescimento econômico não é de feitura inteiramente nosso. Enfim, vai se valer...
Merval Pereira: A questão da Bolsa Família não é, o problema não é ele se beneficiar dele eleitoralmente, é não fazer o Bolsa Família como devia ser feito, um instrumento para tirar gente da exclusão social e virar só um elemento eleitoral, esse é o problema.
[...]: Assistencialista.
[...]: Neo-coronelista.
Bolívar Lamounier: Eleitoreiro. Exato. Eu acho, não é o programa social que eu faria, mas eu acho que o presidente certamente vai se valer disso.
[...]: O peso eleitoral dele é grande...
Bolívar Lamounier: E, aliás, a briga entre a ministra Dilma e o ministro Palloci está obviamente vinculada a isso, gastar mais num ano eleitoral...
Fernando Luiz Abrucio: Mas não tem um problema nessa argumentação quando você diz que o Lula ainda é o candidato favorito, logo ele tem votos, tem apoio etc. Se por um lado, ele perdeu apoio de grupos sociais representativos, vamos pensar assim, e talvez o PSDB pudesse ter esses apoios, falta ao PSDB voto, falta ao PSDB apoio social, em boa medida não mudou o processo...
Bolívar Lamounier: Eu não sei se faltam votos, ganhou a prefeitura de São Paulo.
Fernando Luiz Abrucio: Não, estou pensando por esse cálculo que o PT é favorito, que as pesquisas estão mostrando, seguindo esse argumento...
[vários falam ao mesmo tempo]
Bolívar Lamounier: Uma coisa é ser favorito 80 contra 20, outra coisa é 55 contra 45.
Merval Pereira: As pesquisas mostram o Serra [candidato do PSBD à presidência da República em 2002, governador do estado de São Paulo desde 2007 e novamente possível candidato à presidência] na frente do Lula...
Fernando Luiz Abrucio: No segundo turno, mas há quatro meses com crise constante, continua na mesma posição o Serra e na mesma posição o Lula...
Bolívar Lamounier: Mas esse argumento pode voltar-se contra você da mesma maneira, não interessa como...
Fernando Luiz Abrucio: É aí que eu queria chegar. Então não está faltando aí para a oposição, dado que se o Lula é o favorito, vamos partir desse suposto, não estou nem dizendo se é correto ou não, e basta perceber o que aconteceu no processo político e não ocorreu uma grande mobilização popular contra o governo, não ocorreu, não está faltando, como disse certa vez o Mario Covas [político do PSDB, foi governador do estado de São Paulo] aí, que eu queria chegar, “pisar o pé no barro para a oposição”?
Bolívar Lamounier: Veja, a crise surpreendeu a todos pelo seu caráter abrupto, instantâneo e abrangente. O PT ficou batendo cabeça que nem barata tonta, foi surpreendido a ponto de toda a sua direção cair, que nem mamão maduro, surpreendeu a oposição também. É inútil nós ignorarmos esse fato. Assim como o PT não teve capacidade de se defender, basta lembrar que esposou a tese estapafúrdia, que beira a paranóia da conspiração, a oposição também foi pega de surpresa. No início até caminhou para uma oposição mais radical, de propor impeachment, depois recuou. Então, a política não segue planos pré-determinados. Agora, a campanha eleitoral eu acho que começa agora, as coisas estão assentando, as dimensões da crise são conhecidas, estão mais no âmbito da investigação, nós vamos ter ainda fim de ano, carnaval e entramos na campanha eleitoral. Aí então, só um minutinho, aí então nós vamos ter o quê? Do ponto de vista da oposição, PSDB, o governador [Geraldo] Alckmin [foi governador de São Paulo pelo PSDB e concorreu com Lula à presidência da República] se expondo ao país para avaliar, a figura dele por enquanto é muito paulista, o Serra verificando se realmente ele retém e é capaz de aumentar os números que as pesquisas lhe dão, que são muito favoráveis, e há outros nomes no PSDB. O PSDB não tem só dois. E então nós vamos aí verificar o início efetivo da campanha eleitoral. Eu acho que é meio cedo para fazer uma avaliação terminante como a que inicialmente está fazendo.
José Marcio Mendonça: Bolívar, o retrato que você traça olhando o futuro, um governo que vai, se for eleito o Lula, um governo que será politicamente muito mais fraco do que foi no início.
Bolívar Lamounier: Isso.
José Marcio Mendonça: Uma oposição também atarantada que não tem muito que fazer até agora e que vai ter que buscar um espaço para ganhar uma eleição também com não muita força até por causa de toda a divisão partidária que nós temos. Não estamos condenados, isso que é o susto que dá, a ter um futuro governo com a crise armada, ou seja, um governo fraco? Um governo fraco, congressualmente fraco?
Paulo Markun: Quatro anos de crise.
Bolívar Lamounier: O Abrucio vai me dar o testemunho. Sociólogos, cientistas políticos gostam sempre de dizer que profecias negativas são feitas para serem desmentidas pela ação das pessoas. Vendo as coisas a partir de hoje, eu acho catastrófico o cenário. Quer dizer, o Lula enfraquecido, sem idéias, eleito para governar com os mesmos partidos desgastados até a medula, quando o país tem diante de si uma agenda de problemas terrivelmente importante, até para organizar, para reorganizar a sua espinha dorsal econômica, é horrível. A oposição com uma certa rivalidade entre caciques e "o diabo a quatro", também ainda sem uma agenda reciclada, recauchutada, chega lá com pouca base eleitoral, como o Abrucio salientou, eu não concordei completamente, mas eu concordo em parte, é muito ruim também. Agora, essa profecia nós fazemos para que ela não se realize, e nós temos tempo para que ela não se realize. Nós temos a campanha eleitoral pela frente, nós temos o debate aberto, vamos preparar...
Paulo Markun: Bolívar, Nelson Bibino, da Freguesia do Ó, pergunta qual é, na sua opinião, o partido bom que o Brasil tem? E Jonas dos Santos Marcondes, da Praia Grande, aqui do litoral de São Paulo, pergunta qual a diferença entre PT e PSDB para o desenvolvimento da nação?
Bolívar Lamounier: Qual é o partido bom, eu preferia não responder, o telespectador vai compreender isso, eu não quero dar opinião partidária. Eu acho que tem alguns partidos que ainda são capazes de desenvolvimento, alguns mais enraizados, alguns com quadros importantes, aí é um julgamento mais pessoal. Agora...
Paulo Markun: A diferença.
Bolívar Lamounier: A diferença entre o PT e o PSDB eu acho que é profunda. Eu acho que o PSDB, às vezes, ele é até é acusado de elitista por essa razão, mas é um partido que tem no seu cerne um número muito grande de quadros técnico-políticos muito qualificados. Então pelo lado gerencial, a capacidade de fazer projetos, todo esse sentido, o PSDB é um partido, acredito que superior aos demais, talvez apenas comparado ao PFL, muito mais do que o PT. Em termos de visão programática, o PSDB falou... O PT falou muito aos corações, mas falou pouco às mentes das pessoas. Ele mobilizou os anseios, mas não deu soluções programáticas. Nós estamos vendo um governo que não tem idéias, que está perdido aí, refém da política monetária e só isso. Quase só isso. O PSDB ao contrário, não é um partido que mobiliza emocionalmente a sociedade, mas que tem uma confiança bastante grande de que uma vez chegando ao governo ele é capaz de propor soluções.
Paulo Markun: Posso supor que a sua formação ideal era um mix dos dois? O coração de um e a cabeça do outro?
Bolívar Lamounier: Sem dúvida, foi a sua também, tenho certeza que foi da maioria de nós aqui. Mas acontece, acontece que infelizmente os caminhos se separaram. Hoje inclusive eu acho excessivamente agressivo, quer dizer, desmedidamente agressivo, e imprudentemente agressivo o comportamento de um lado e de outro.
José Nêumanne: É bom separar um pouco aí o PT do Lula. Eu queria perguntar uma opinião sua assim muito rápida sobre a opinião de dois grandes comunistas brasileiros. O poeta Ferreira Gullar escreveu na sua coluna na Folha de S. Paulo, “que Lula nunca foi socialista, Lula é um oportunista”. Mas um grande militante do mesmo partido, do partido comunista, o Apolônio de Carvalho deu entrevista para a revista Caros Amigos dizendo que “o Lula jamais abandonará o socialismo”. Qual dos dois tem razão?
Bolívar Lamounier: Eu acho que os dois vão a extremos que eu não compartilho. Reduzir o Lula a um oportunista é um desrespeito, ele tem uma carreira, começou no sindicato em momento difícil, e eu respeito esse passado. Por outro lado, dizer que o Lula tem um pensamento socialista consistente, eu acho que o PT não tem um pensamento socialista consistente.
José Nêumanne: O PT tem?
Bolívar Lamounier: Não, não tem. Eu acho que o PT tem uma ideologia à esquerda, um pouco populista, extremamente confusa que eu relutaria em chamar de socialista. Então eu não iria nem ao mar, nem a terra.
José Nêumanne: Seria populista, estilo [Getúlio] Vargas, Perón [presidente da Argentina que deu origem ao peronismo]...
Bolívar Lamounier: É difícil nós voltarmos no tempo, porque o populismo daquele tipo já é de uma outra fase histórica...
José Nêumanne: Se aproxima do Hugo Chaves?
Bolívar Lamounier: É, hoje eu acho que o PT tem uma visão, como eu disse, uma leitura messiânica do ideal socialista, sem muito conhecimento do que esse ideal requer na prática. Messiânico. Então, isso é turbinado pela arrogância ética que torna o coquetel realmente explosivo. Quer dizer, é uma coisa muito nebulosa no plano da teoria, turbinado por uma ética muito emocional, e muito abstrata, muito dicotômica e a solução dessas duas coisas no terreno da política, então é o Lula, é o líder carismático. Vamos ser claros, o Lula não existiria sem essa base confusa do PT e vice-versa. Essa base não estaria unida sem a figura carismática do Lula. Esse coquetel foi suficiente, foi bom para produzir mudanças no Brasil até um certo ponto, mas agora ele está em questão por tudo que nós discutimos aqui.
Paulo Markun: Eu começo com a pergunta de José Luiz Teixeira, jornalista, editor do blog Escuta Zé, que quer saber se você vê diferença entre o Lula e, ou semelhança, ou melhor, se você vê semelhança entre Lula e Jânio Quadros e entre o PSDB e a UDN?
Bolívar Lamounier: Essa é difícil, né? O leitor realmente me jogou, o telespectador me jogou uma casca de banana! Entre Lula e Jânio Quadros eu acho que não. O Lula tem, a meu ver, certas dificuldades para exercer a presidência, mas ele não é o individualista, bonapartista, achando que governa acima da sociedade e acima dos partidos como o Jânio pensava. Não vejo o Lula tramando um golpe por meio de uma renúncia. Isso não me parece ter cabimento. Por outro lado, eu acho que o Jânio Quadros tinha mais convicção nas suas propostas econômicas do que o Lula. O Jânio Quadros começou um programa de ajuste fiscal que o Lula, moto próprio, não começaria. Ele foi forçado a isso pelas circunstâncias.
José Nêumanne: Mas tem apoiado com muito vigor a política do [?].
Bolívar Lamounier: Porque obviamente era condição de sobrevivência, não dele apenas, mas de todo governo eleito em 2002. Se ele tivesse feito o que o PT pensava ou dizia nós teríamos tido uma crise colossal do ponto de vista econômico. [“Mas ele não fez, até agora, não fez”, acrescenta Nêumanne] Agora entre PSDB e UDN, não, eu acho que seria realmente um, só a fórceps é que nós poderíamos fazer tal aproximação. O que trouxe o PSDB ao plano nacional, ao governo Fernando Henrique, foi a visão do desenvolvimento econômico, e como preliminar disso, o controle da inflação.
[vários falam ao mesmo tempo]
Bolívar Lamounier: Veja bem, a UDN era um partido primordialmente de advogados que fazia do combate jurídico e moralista a sua estratégia e esse era o conteúdo da UDN na sua maior parte. O PSDB não, o PSDB tem poucos advogados e muitos economistas, engenheiros, tem muitos quadros técnicos, muito mais voltados para a administração, para a economia. Prova disso é o Plano Real que o Fernando Henrique fez para controlar a inflação, que está até hoje baixa. Então, eu acho que não há semelhança.
Rui Nogueira: Professor Bolívar, o senhor já disse em várias entrevistas, está no livro e também neste debate, no final dos anos 80, início dos anos
Bolívar Lamounier: Sim.
Rui Nogueira: Não havia relação econômica clara, não havia nada. Nós percorremos o período Fernando Henrique Cardoso, o segundo mandato, principalmente, o governo Lula, e corremos o risco de voltar em 2007 sem um projeto de desenvolvimento. O Brasil tem uma "caveira de burro enterrada" em algum canto que trata ajuste fiscal como projeto de desenvolvimento da nação, que evidente não há projeto de desenvolvimento sem o ajuste fiscal, e ajuste fiscal não é projeto da nação. E nós como já disse José Nêumanne logo no início, e como já disse o ministro, estamos bem comparados com nós mesmos, mas quando você compara o Brasil com o Chile, com a Irlanda, com Coréia do Sul, com qualquer outro país e com Índia, nós, na verdade, não estamos nada bem.
Bolívar Lamounier: Absolutamente.
Rui Nogueira: Estamos todos festejando as manchetes dos cento e não sei quantos bilhões de exportação, é um pouco mais que a metade das mexicanas, é um terço das coreanas, já é um quinto das chinesas. Então por que a elite brasileira, política, econômica, por que a gente não consegue desenterrar essa idéia de que precisamos efetivamente de um projeto de desenvolvimento, uma política de crescimento econômico para o país? Toda vez que se coloca isso alguém vem in loco levantando: “Cuidado que tem um estatista querendo aí distribuir verba para a indústria”. Algum medo, algum temor se coloca, ou que você não deve mexer na meta de inflação, senão desmorona tudo e você volta com a inflação. Enfim, por que a gente não arranca? Por que a gente não retoma isso e por que essa não é a oportunidade em 2006, na campanha eleitoral de se fazer esse tipo de debate?
Alzira Alves de Abreu: Bolívar, deixa eu completar isso?
Bolívar Lamounier: Eu vou tentar responder isso bem telegraficamente...
Alzira Alves de Abreu: [interrompendo Lamounier] É que eu vou juntar isso que você está falando, Rui, com um problema que eu acho que nós discutimos sempre, o problema do projeto de desenvolvimento econômico, mas nós nunca incluímos nesse projeto um desenvolvimento do sistema educacional, da aplicação na ciência e tecnologia que são fundamentais para esse desenvolvimento. A gente fala sempre em aumento do PIB, em juros, em câmbio, em superávit primário, e cadê o desenvolvimento da ciência e tecnologia, o envolvimento... Isso, a elite brasileira não acordou para isso até hoje. Então eu acho que juntando esse projeto, tem que estar incluído isso...
Bolívar Lamounier: Vou tentar ser bem rápido e conciso porque o tema é imenso. Eu acho que de um lado ocorreu o seguinte: nós tínhamos a inflação em 93, 94 acima de mil por cento no ano, a sociedade estava se desorganizando, então nós fizemos um ajuste muito bem feito, isso foi lá embaixo. Agora para sustentar a situação monetária estável e dar o passo seguinte que seria uma política de crescimento, nós tínhamos que ter feito num período bastante curto, uma série de reformas que foram feitas parcialmente. Todas as pessoas que celebraram entusiasticamente um ótimo relacionamento do executivo com o legislativo se esqueceram de que o que foi aprovado aos montes, foi muito pouco. Então, o país ficou aquém do necessário para realmente decolar em termos de crescimento. Essa é uma razão. O país, portanto, está manietado, está com a camisa de força monetária, porque não tem como crescer e se tentar crescer além do que pode, volta à inflação absolutamente fora de controle. Segundo, aí eu acho que você está tocando num ponto que mereceria realmente muito mais discussão que é: a elite brasileira parece que não compreende o que para mim é cristalino. É que os problemas do Brasil comparados com os da África do Sul, da Índia, etc, são simples. Simples comparativamente falando, é o que você está dizendo Alzira, nós temos que educar as crianças, temos que ter qualidade nas escolas, temos que melhorar a infraestrutura. Está bom, mas isso não é como você ter conflito de tribos, de guerra civil e "o diabo a quatro", que você tem em muitos outros países. Então, aqui, o termo é meio duro, eu lamento ter que usar, mas eu acho que há uma certa mediocridade das elites em todos os setores neste momento. Eu, sinceramente, eu rezo para que esta crise traga de volta uma discussão aprofundada sobre essas coisas, para que nós tenhamos respostas para esta questão de que país nós queremos ser, com que meios que nós vamos tentar ser como nós queremos ser, e por aí vai...
Paulo Markun: Eu diria para encerrar o programa...
Eliane Cantanhêde: Considerar o PT como parte da elite.
Bolívar Lamounier: Evidente que o PT é parte da elite.
Paulo Markun: Eu diria para encerrar, amém.
Bolívar Lamounier: Amém.
Paulo Markun: Eu queria agradecer a entrevista do professor Bolívar Lamounier, aos nossos entrevistadores e convidá-lo, você que está em casa, para estar aqui na próxima segunda-feira, às dez e meia da noite, com a entrevista do professor Eduardo Giannetti sobre o seu novo livro O valor do amanhã. A gente volta segunda-feira às dez e meia da noite. Uma ótima semana e até lá.