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Memória Roda Viva

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Ricardo Alarcón

18/6/2001

O ministro das Relações Exteriores da "ilha de Fidel" explica o funcionamento do regime comunista em seu país e critica a postura político-econômica dos Estados Unidos

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Programa gravado, portanto sem perguntas de telespectadores.

Paulo Markun: Boa noite. Ele é um homem que diz já ter realizado o seu grande sonho: ajudar a fazer uma revolução. Terceiro nome do cenário político cubano, ele foi encarregado por Fidel Castro de cuidar das delicadas relações entre Cuba e Estados Unidos. Agora pode ser escolhido para suceder o próprio Fidel no governo de Cuba. O Roda Viva entrevista esta noite: Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Nacional pelo Poder Popular, o Parlamento Cubano.

[Vídeo comentado]: Ricardo Alarcón é o lado intelectual e diplomático de Cuba. Nada de barba, charuto e roupa de guerrilheiro, Alarcón tem 63 anos, descende de uma família aristocrática de espanhóis e é formado em direito e relações internacionais. Poderia ser um exilado cubano vivendo na Flórida, mas escolheu o caminho inverso. Aos 15 anos, já era líder estudantil e enfrentava a repressão do ditador Fulgêncio Batista. Aos 22, foi testemunha viva da Revolução Cubana em 1959 e acompanhou de perto a reforma agrária e a implantação do modelo socialista na educação e na saúde, mas viu também a penúria que se abateu sobre Cuba em 40 anos de embargo comercial americano e o fim da União Soviética. No meio desse emaranhado político, Fidel escolheu Ricardo Alarcón para tentar desfazer os nós. O profundo conhecimento sobre os Estados Unidos foi o passaporte para Alarcón assumir o Ministério das Relações Exteriores e servir durante 14 anos em Nova Iorque, como representante de Cuba nas Nações Unidas.

Paulo Markun: Para entrevistar Ricardo Alarcón, nós convidamos o sociólogo Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Convidamos também o jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva, diretor adjunto do jornal Valor; o escritor Luis Ricardo Leitão, professor assistente de literatura da Universidade do Rio de Janeiro e atualmente professor convidado de literatura brasileira da Faculdade de Artes e Letras e da Universidade de Havana em Cuba; a jornalista Mônica Teixeira da TV Cultura de São Paulo; o jornalista Vicente Adorno, editor de Internacional aqui da Cultura e o historiador Oswaldo Coggiola, professor de história contemporânea e da América Latina na Universidade de São Paulo. Boa noite, Ricardo. Eu queria começar fazendo uma pergunta que normalmente as pessoas não fazem, porque os jornalistas costumam fazer afirmações como a que eu fiz no início do programa e não conferi, mas já que nós estamos com essa possibilidade eu queria conferir. Essa informação procede? Efetivamente existe a possibilidade de que o senhor venha a suceder Fidel Castro no governo de Cuba? Como é que é? Aliás, como é que se coloca essa sucessão?

Ricardo Alarcón: Já ouvi isso de jornalistas algumas vezes, mas de fato temos um país organizado, com uma Constituição e uma série de estipulações a esse respeito. Quem substitui o presidente, segundo a Constituição, é o primeiro vice-presidente. Na ausência de ambos, cabe à Assembléia Nacional eleger outro presidente e outro vice. Falando do presente, hoje minha função seria dirigir a reunião que designaria a pessoa que assumiria essa responsabilidade. Mas não existe essa enumeração, o segundo, o terceiro, ou o quarto, nem do ponto de vista legal, nem na prática.

Paulo Markun: Mas no jogo político, se é que a política em Cuba é parecida com a política... há quem diga, alguns cientistas inclusive, que a política tem regras que funcionam mundialmente, e se essas regras funcionam em Cuba também. Eu imagino que no jogo político essas personalidades jogam um papel importante, por mais que a legislação, a Constituição, estabeleça as regras do jogo definidamente, tudo, nós sabemos ou pelo menos temos essa impressão, de que Fidel Castro é uma peça muito importante do regime cubano, tanto assim que está no poder desde que assumiu, não é isso?

Ricardo Alarcón: Exato, mas há um outro problema: temos, como em qualquer sociedade, pessoas entre as quais eu me incluo em Cuba, que tem uma maior visibilidade no exterior, são mais conhecidas na mídia. Isso não quer dizer necessariamente que exista uma relação hierárquica. No caso de Cuba, há um dado que se conhece pouco. Há uma série de dirigentes, de pessoas com responsabilidades, de gerações posteriores àquelas que fizeram a revolução. Alguns não são conhecidos lá fora, mas lá dentro são. Dos dirigentes do Partido Comunista nas províncias, o que tem mais idade, o veterano hoje tem 52 anos. Era um menino na época. Os outros são mais jovens. Muitos não têm nem 40 anos. Se eu disser os nomes para vocês, jornalistas e intelectuais bem informados, vocês não os conhecerão. Pouco se fala deles, mas em suas províncias, em Cuba, são dirigentes de grande importância. É claro que deveriam... No futuro, seria de esperar que tivessem responsabilidades maiores. Na Assembléia Nacional, que eu presido, a idade média é de 44 anos. Isso quer dizer que a grande maioria dos deputados não haviam nascido na época da revolução. E são pessoas pouco conhecidas fora, mas muito conhecidas dentro do país.

Paulo Markun: Agora é difícil compreender para quem, como o brasileiro, já vive há alguns anos num regime democrático, ocidental, que nós temos vários partidos e temos lideranças desses partidos, e que ganha a eleição o partido que receber mais votos, é difícil entender como se junta essa formulação que o senhor apresenta, das lideranças regionais e etc., com o fato de que Cuba só tem um partido e que se houver um candidato que não seja do Partido Comunista Cubano, a menos que eu esteja enganado, ele jamais poderá vir a ser presidente de Cuba, estou errado?

Ricardo Alarcón: Está.

Paulo Markun: Por quê?

Ricardo Alarcón: Está errado, porque em Cuba há um sistema institucional, que este ano completa 25 anos. Começou exatamente em 1976 e passou por algumas reformas em 1992, mas, basicamente, é o mesmo sistema de 76. Em primeiro lugar, a base do sistema, seu fundamento, são as assembléias municipais. Existe uma em cada município do país, são 169. São compostas por delegados de circunscrição. A menor instância, a base, é mais ou menos o bairro. Menos até que o bairro. Para ser delegado de circunscrição, você precisa ser candidato. E quem propõe, postula e decide quais serão os candidatos? Os próprios moradores. Desde 76, fazemos em Cuba, a cada dois anos e meio, eleições locais em todo o país, para fazer essa escolha. Já são centenas de milhares. Os delegados municipais hoje são aproximadamente 14.550. Todos eles foram eleitos entre vários candidatos, entre várias pessoas. A diferença para um sistema baseado em partidos políticos eleitorais é que, nesse sistema, são os partidos que selecionam de alguma forma os candidatos. No nosso caso, não havendo nenhum partido eleitoral, a forma de apresentação e aprovação dos candidatos é a mesma da democracia antiga. Os moradores se reúnem em algum lugar, e aí se propõem os candidatos, essa é a base. Nos níveis mais altos é mais complexo, porque não é possível reunir todos os moradores de Havana para proceder dessa forma. Mas o importante, a meu ver, é fazer a distinção entre a idéia de um partido revolucionário, um partido da nação e partidos políticos de caráter eleitoral. De fato, nosso partido, como o de José Martí no século XIX, era um único partido para agrupar os revolucionários, as forças vivas do país e não era concebido para apresentar candidatos. Temos de dizer, então, como se selecionam os candidatos. Na instância municipal, nosso sistema está à altura de qualquer sistema deste mundo e ninguém me convence de que seja mais democrático um sistema em que os partidos impõem ao povo os candidatos do que o outro no qual o povo escolhe seus candidatos. Em nível nacional, a situação é mais complicada, mas o papel principal na escolha dos candidatos na província ou no país, cabe exatamente a essas assembléias municipais, que são a última instância para decidir para apresentar a candidatura. Essas assembléias municipais são formadas por pessoas eleitas diretamente pelo povo, entre candidatos diretamente postulados pelos eleitores. É um sistema diferente, mas não acho que permita menos participação popular do que aquele baseado no peso relativo dos agrupamentos eleitorais.

Carlos Eduardo Lins e Silva: Os Estados Unidos estão sob nova administração desde janeiro, e na história deste século dos Estados Unidos, muitas vezes, os presidentes mais conservadores fizeram as políticas de aproximação maior com os países socialistas, por exemplo, Nixon, no caso da China. Como o senhor encara a possibilidade do fim do embargo a Cuba durante a administração Bush?

Ricardo Alarcón: Eu não me atreveria a fazer um prognóstico e dizer em que momento essa política vai acabar, mas não tenho dúvida de que ela está com os dias contados. Não vou fazer um prognóstico pelo seguinte motivo: trata-se de uma administração que chegou ao poder em condições muito peculiares, não só pelo questionamento, pelas peripécias envolvidas na eleição. Isso é sabido no mundo todo. Além disso, o equilíbrio no Congresso também é excepcional. O Senado está dividido exatamente na metade, e na Câmara a maioria republicana se reduziu. Provavelmente, na primeira etapa, nos primeiros anos desse governo, haja um interesse em se concentrar no que hoje é mais importante para os dois partidos: conseguir, na eleição de 2002, mudar a correlação de forças na Câmara e obter a maioria efetiva. Sob esse ponto de vista, supõe-se que para alguns haverá maior oposição à mudança da política com relação a Cuba e para outros será diferente. Na semana passada, o senador [Byron] Dorgan [senador norte-americano do estado de Dacota do Norte] apresentou um projeto de lei para eliminar a proibição de vender a Cuba alimentos e remédios. Isso vem completar e corrigir um erro do ano anterior. Todos acharam que isso tivesse sido aprovado no ano passado, mas ficou provado que não foi assim. Há poucos dias, o vice-líder do Partido Democrata apresentou um projeto de lei cujo título é: “Lei para autorizar a venda de alimentos e remédios a Cuba.”. Essa é uma forma de reconhecer que hoje está proibido exportar alimentos e remédios para Cuba. Com certeza, acredito que o setor dos agricultores norte-americanos e outros grupos de empresariado do país vão continuar pressionando para que chegue ao fim isso que chamamos de bloqueio, essa guerra econômica contra Cuba, por suas próprias razões, porque estão perdendo um mercado tradicional. Alguns desses produtores precisam de mercados. Curiosamente, estamos diante de uma administração fraca, com circunstâncias complicadas pelo panorama do Congresso para o Partido Republicano. Será uma administração na qual terão um peso efetivamente maior alguns setores conservadores e ultraconservadores, entre os quais estão os piores inimigos de Cuba. Ao mesmo tempo, é um partido que representa particularmente alguns setores econômicos que estão interessados, hoje, pelo menos, em permitir o comércio entre os dois países. A combinação dessas forças, como vão operar e que resultados trarão não me atrevo a prever agora. Tenho certeza, no entanto, de que essa política vai mudar e está mudando na mentalidade de muitos políticos norte-americanos. Vejam o senador Dorgan, liberal-democrata, autor desse projeto de lei. No ano passado, quem tinha uma proposta semelhante, e que acabou fracassando, era o senado Ashcroft [senador americano republicano pelo estado de Missouri, de 1995 a 2001] que agora foi nomeado como fiscal, e vocês viram a confusão que causou. É um homem muito conservador. Desde os muitos conservadores até os muitos liberais nos Estados Unidos hoje se questiona muito a política em vigor. E além disso, seus objetivos não foram alcançados. Cuba não sucumbiu, resistiu a esses dez anos e superou em grande medida a crise, pois hoje estamos em processo de franca recuperação e sustentado. Além disso, o resto do mundo não adotou essa política. Essas são razões muito fortes que indicam que a política será modificada, com um presidente conservador ou com um liberal, com um democrata ou com um republicano. Sobre isso não tenho a menor dúvida.

Oswaldo Coggiola: Minha mãe, que é cubana, ficará contente de saber que estive com o presidente da Assembléia Nacional de Cuba. Quero voltar a falar um pouquinho de espanhol, que me faz falta. E quero voltar à questão do sistema político, a questão que eu queria colocar é a seguinte: sobre que base são eleitos esses delegados, que são eleitos a partir do nível municipal, que vão compondo por sucessíveis níveis, as diversas assembléias? Quero dizer, quando há um só partido político, é difícil que esses delegados sejam eleitos sobre a base de propostas políticas gerais, certo? Ou seja, a existência de vários partidos políticos obriga a apresentação de propostas ou políticas gerais para o país. A existência de um só partido político tende a criar uma situação de despolitização. Eu queria saber sobre que base, sobre a base de que plataformas são eleitos esses delegados. Porque uma coisa que chama muito a atenção, visto de fora, do sistema político cubano é que, em geral, todos as decisões, principalmente aquelas que dizem respeito às grandes opções políticas, de política externa e interna, são adotadas com praticamente, com unanimidade, uma coisa que chama atenção porque não se vêem, visto de fora, pelo menos, grandes debates políticos, não se vêem a conformação de diversas frações, ou grupos políticos para enfrentar os grandes problemas políticos e Cuba os tem em número considerável. Essa é a pergunta: qual é a base sobre a qual esses delegados são eleitos e que impressão que você tem desse sistema, essa situação atualmente contribui para uma politização ou por uma despolitização do povo cubano?

Ricardo Alarcón: Na verdade, eu discordo de você em uma conclusão. Acho que, longe de despolitizar, o processo deve conduzir a uma enorme politização. Às vezes, nos acusam até de excesso de politização da vida cubana. Em última instância, trata-se de acentuar o protagonismo do povo. Sobre que base se postula e se elege um delegado? Sinceramente não posso descrever uma regra porque a base é muito simples. Alguém, qualquer um, propõe qualquer outra pessoa, por seus próprios motivos, e os motivos não são idênticos. Vi muitos vezes na Assembléia essas denominações de candidatos. Às vezes, quem propõe um nome argumenta com a experiência, porque considera o indivíduo capaz e experiente, com conhecimentos de administração etc. Em outros casos, valem mais a juventude e a energia de uma pessoa menos especializada. São razões que ocorrem àquele que faz a proposta. Não é um agrupamento eleitoral. Entendo que sob esse ponto de vista, seja difícil entender essa questão, porque existe uma associação entre a idéia de eleições e a idéia de política. E isso recentemente, porque as formas representativas são muito antigas no mundo, mas os partidos são bem novos. Há alguns séculos, não existia o conceito que temos hoje de partido político eleitoral. É difícil entender que haja um sistema, um mecanismo, no qual não há partidos políticos. Nem sempre as pessoas propostas são vinculadas ao Partido Comunista de Cuba ou à sua organização. Também não é raro que sejam. Nosso partido não é igual em sua conformação, em sua história e em seu estilo, a nenhum outro partido comunista conhecido. Não é um partido ao qual você possa se afiliar ou ao qual possa se incorporar por capricho de ninguém. Todos os militantes do Partido Comunista de Cuba precisaram ser propostos e aprovados por uma assembléia, primeiro como candidatos a militantes e, depois, a recomendação com relação ao candidato deve ser aprovada por uma assembléia geral. Digamos que eu fui aprovado no Ministério das Relações Exteriores, quando trabalhava nesse Ministério. Mesmo que eu tenha sido dirigente do 26 de julho, tenha trabalhado no Ministério, tenha sido embaixador nas Nações Unidas, mas se não fosse recomendado por alguém em assembléia e se não fosse aprovado por ela, não poderia ser militante, mesmo sendo proveniente de uma das organizações que historicamente foram a base daquilo. Imagine então, uma fábrica, um bairro, uma comunidade. Por que seria estranho se alguém propusesse uma pessoa do partido, se todos os militantes passaram pelo mesmo processo de proposta e aprovação?

Mônica Teixeira: Isso não diminui a democracia no interior do partido, porque aumenta o controle sobre as pessoas que vão ser militantes, que podem ser militantes no partido?

Ricardo Alarcón: Não entendi por que diminuiria.

Mônica Teixeira: Pelo fato de aumentar o controle sobre as pessoas que poderão participar das decisões tomadas no interior do partido.

Paulo Markun: Fazendo uma piada, é como a história do Groucho Marx  [pseudônimo de Julius Henry Marx (1890-1977), comediante norte-americano reconhecido pela irreverência e humor inteligente] que dizia que não confiava num clube que aceitava o humorista Groucho Marx como sócio. No caso do Partido Comunista, ao contrário, quer dizer, a pessoa tem que ser aceita no Partido Comunista para fazer parte. Então, eu imagino que uma comunidade que só vá aceitar as pessoas que são parecidas com essa comunidade, se houver pessoas diferentes, não serão aceitas e não terão onde se organizar.

Ricardo Alarcón: Já entendi seu ponto de vista. Vamos lembrar qual foi a origem histórica desse padrão. Esse sistema surgiu em Cuba em 1962. Foi um dos principais meios que se desenvolveram, então, no que se denominou “luta contra o sectarismo”. Precisamente, tem muito a ver com a democratização do partido. Naquela etapa, estava se formando o que depois seria o Partido Comunista de Cuba. O nome era Organizações Revolucionárias Integradas. E quem militava nessas organizações? Os que haviam pertencido ao Partido Socialista Popular, ou ao Movimento 26 de Julho, ou ao Diretório 13 de Março ou outros militantes de organizações menores. Em primeiro lugar, eram 3 organizações que, comparadas ao povo cubano e aos trabalhadores cubanos, eram uma gotinha d’água no oceano. E em Cuba havia uma agitação social e um nível de participação popular superiores à soma dos membros desses três grupos. Então surgiu uma certa tendência ao sectarismo. Precisamente, eram grupos de atividade semiclandestina, pessoas que se reuniam, tinham certa autoridade sobre massas, que lideravam batalhas importantes e desenvolviam sua consciência e sua educação de um modo muito superior. Não tenho a menor dúvida, embora todo sistema possa ser modificado, de que essa foi uma das decisões mais importantes de valor mais transcendente do período revolucionário, porque não limita a liberdade, digamos, do militante, mas acentua, sobretudo, o controle popular, o controle do povo. E o povo sabe que, de uma forma, o partido lhe pertence. O povo tem direito a opinar sobre a conduta de um candidato a militante ou um militante. Há também as conseqüências do ponto de vista da corrupção, dos privilégios, das vantagens indevidas, que pode ter quem é de uma organização de vanguarda. Isso desapareceu e era o que havia em Cuba nos anos 60. Foi esse o sentido e acho que foi importante para ter um partido são, um partido ligado à gente que quer dirigir.

[intervalo]

Luis Carlos Leitão: Deputado, o senhor se referiu à debilidade da administração que assume agora nos EUA. Cuba tem se destacado na política internacional por saber explorar momentos de debilidade do seu inimigo número 1. Isso, inclusive, pode-se constatar no Caso Elián. Cuba venceu uma guerra de idéias na condução do Caso Elián, contra a máfia direitista instalada em Miami e agora mesmo durante a Cumbre Iberoamericana, [reuniões anuais do chefes de estado e de governo dos países: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Espanha, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, República Dominicana, Uruguai e Venezuela e Andorra] no Panamá, no momento em que Clinton estava no Vietnã e os dois candidatos disputavam com os advogados a sua definição eleitoral, Cuba aproveitou para denunciar a presença de Posada Carriles, [Luis Clemente Faustino Posada Carriles (1928-), conhecido pelos pseudônimos de  Basílio, Comissário Basílio e Bambi, ex-agente da CIA, é um cubano nacionalizado venezuelano acusado de terrorismo] e exigir a sua prisão. Não sei se aqui no Brasil, eu estava em Havana trabalhando, nesse momento, não sei como repercutiu aqui, mas nós vimos a transmissão da entrevista ao vivo em que Fidel Castro não hesitou em dizer que: “Fui guerrilheiro, sou guerrilheiro, serei guerrilheiro, sempre!” O que explica essa atitude cubana? Não apenas, no meu modo de ver, a situação de perplexidade aumentando a ocupação dos Estados Unidos, é também o fato de ela estar obtendo algum apoio dentro de outros setores da comunidade internacional, é a chance que está tendo de obter um acordo com a Venezuela sobre o petróleo? O que está favorecendo essa reviravolta? É uma conjuntura internacional transformada, antes que anti-Davos em Porto Alegre, talvez agora, iniciando? O que explica essa reviravolta e essa nova iniciativa cubana de contrapor-se ao império?

[Em janeiro de 2001, em Porto Alegre, grupos contra o neoliberalismo econômico se reuniram no Fórum Social Mundial para debater uma agenda de luta contra a globalização, que pretendia ser o contraponto do Fórum Econômico Mundial, realizado anualmente em Davos, na Suíça. Neste país, empresários, economistas, financistas e governos discutem o futuro da economia no mundo. Em Porto Alegre, reuniram-se militantes de organizações não governamentais, ambientalistas, feministas, intelectuais e representantes de quase todos os grupos insatisfeitos com a atual ordem econômica mundial.]

Ricardo Alarcón: Bem, de um lado, tivemos de nos especializar nos Estados Unidos. Para Cuba, foi uma necessidade vital, não apenas para esta geração de cubanos. José Martí provavelmente foi o latino-americano que mais conheceu, estudou e analisou os Estados Unidos do século XIX. Não era por vontade própria, mas era o principal fator com relação à luta pela independência. De um lado, é isso. Por outro lado, há elementos além do nosso controle. Fidel denunciou o plano de Posada Carriles no Panamá. Não foi uma coisa nossa, Posada estava no Panamá. Encontraram-no e encontraram os explosivos, e ele foi detido. É preciso dizer que a política norte-americana contra Cuba sempre teve coerência e consistência. É praticamente a mesma desde o século XIX até hoje. Alguns aspectos são de fato surpreendentes. Não se trata apenas de embargo de 42 anos e da dificuldade para modificá-lo. Os planos subversivos contra Cuba, os de hoje, como na internet, no site da Agência Internacional para o Desenvolvimento... Lá há o “Programa Cuba”. Se houvesse internet em 1959, veríamos que na época até o nome seria idêntico, e o conteúdo, igual. Portanto, por parte dos norte-americanos, sem querer ser grosseiro, não existe muita originalidade, nem criatividade, nessa agressão contra nós. Cuba precisou desenvolver destrezas. Isso se tornou para nós um tema central, não que nós, cubanos, sejamos obcecados, mas o fato é que essa política existe desde 1959. Posada Carriles é terrorista há muito tempo, um antigo inimigo da revolução cubana, mas continua aí, ativo. Também há outra questão muito importante. Acho que é preciso lembrar que para os cubanos, desde o começo, ficou muito claro, sobretudo com Martí, que a liberdade de Cuba, sua emancipação e seu destino estavam ligados ao destino de todos os povos das Antilhas, dos povos da América, “de nuestra América”, como dizia e foi muito mais além, quando definiu pátria como humanidade. O que ele viu naquela época explicou com muita lógica, mas naquela etapa, no final do século XIX, quando o imperialismo estava nascendo, quando comparamos com a realidade hoje, vê-se efetivamente que o futuro de Cuba está indissoluvelmente ligado ao futuro do mundo. Por isso, nós, cubamos, precisamos nos esforçar para contribuir, na medida do possível, com o movimento da humanidade para se salvar. Falamos aqui de Davos e de Porto Alegre. Acho que neste momento estamos vivendo uma conjuntura muito interessante. Parece que se desfaz a idéia de um mundo monocórdio, unipolar, que era muito chato, com pensamento único, dogmatismo por toda parte. Parece que isso não dura mais uma década, está sendo explicitamente questionado. Começam a aparecer as possibilidades de juntar forças, de somar, de articular um movimento totalmente novo. Não os velhos modelos, com bloco de países de um lado e outro bloco em outro caminho, tampouco os esquemas limitados das Internacionais e dos partidos em sua época. É algo que vai muito além, como se viu em Porto Alegre. Não se pode dizer que só a esquerda estava lá. A esquerda estava, mas não só ela. Havia movimentos sociais, havia parlamentares. Eu participei do fórum parlamentar, que era uma das tantas atividades que estavam acontecendo ao mesmo tempo em Porto Alegre. Quanto à Conferência da União Interparlamentar, com todos os parlamentos, à exceção dessa conferência, eu nunca havia visto uma reunião tão numerosa. Eram mais de 600 parlamentares de cerca de 30 países. Estamos num mundo, ao menos para os cubanos, segundo nossa visão de mundo, que nunca foi a de achar que a História houvesse terminado, que tudo havia se acabado e que era hora de pensar em outra coisa. Pelo contrário. Estávamos consolidando nossa independência e nosso direito de ser cubanos, independentemente de haver possibilidade para isso, mas achando que o mundo não seria como estavam dizendo no início da década de 90. Hoje não temos a menor dúvida. Está sendo provado que estamos em meio a um movimento de transformação, mas seu conteúdo e suas características, eu teria que ser adivinho para saber e não sou.

Emir Sader: O mundo está mudando, mas Cuba também mudou, década de 90, uma enorme quantidade de transformações, mudou muito a inserção de Cuba no mercado internacional. Há dez anos acabou a União Soviética, Cuba acelerou os acordos econômicos com empresas capitalistas internacionais, foram liberadas profissões internas na área do dólar, eu queria saber o que isso mudou na sociedade cubana. Tem que ter mudado a estrutura produtiva, a estrutura social tem que ter sido afetada, e até a ideologia. Porque antes havia uma coesão interna segundo a qual o destino de todos era o destino de cada um, a economia melhorava, melhorava para todo mundo conforme a produtividade, agora há destinos diferenciados. Então, o quanto mudou Cuba de 89, quando se declarou o período especial, até agora, 2001, nessa nova conjuntura?

Ricardo Alarcón: Na verdade, a descrição das mudanças levaria tempo. Às vezes se subestima isso, alguns analistas se enganam. Vamos falar rapidamente. A abertura ao capital estrangeiro. Tecnicamente, era possível o investimento estrangeiro, com base num decreto-lei dos anos 80. Sempre se reconheceu que isso era indispensável em algumas áreas. Ao mesmo tempo, havia o esquema do [...], ou seja, havia o esquema de economia coordenada e inserida naquele bloco. Mesmo assim, dentro desse contexto, era necessário outros aportes de capital em alguns aspectos em que o sistema não funcionava. A lei de investimentos estrangeiros incentivaria isso e com as mudanças mundiais agora há uma possibilidade real de se dizer isso. Depois, houve a transformação da propriedade da terra. Mais de 80% das antigas terras que pertenciam a estatais foram transformadas em cooperativas de um novo tipo. São cooperativas básicas de produção e agropecuária. Milhares de pessoas ganharam a posse individual da terra. Foi um esforço para estimular a produção e incentivar quem quisesse trabalhar com isso. Muita gente morava na cidade, trabalhava com tabaco, por exemplo, mas deixou isso e se mudou. Alguns voltaram, com essa possibilidade. As mudanças da moeda, e isso é dizer o óbvio, a livre circulação do dólar ou de moedas estrangeiras era uma conseqüência inevitável do que viria com o investimento estrangeiro e o desenvolvimento do turismo internacional. No início da crise, na nossa análise, era óbvio que estava aí a possibilidade imediata de começar a mover a economia e a obter resultados rapidamente. Tínhamos quase tudo, faltava ampliar as instalações para receber os turistas. Tínhamos a praia, o sol, o clima e uma certa tradição. Logicamente cresceria a presença do dólar, e parecia muito mais razoável permitir sua circulação. Com certeza, fazendo isso, se criavam as condições para reduzir a diferença inevitável que surgiria entre os que tinham dólares e os que não tinham. Se a circulação não fosse legal, a moeda não deixaria de circular, mas circularia a partir de quem tinha esse privilégio. Sendo legalizada, qualquer um poderia comprar dólares. Quem tem mais dinheiro pode comprar mais, claro, é assim no mundo todo, mas não há proibição para ninguém. Por outro lado, há a ampliação do setor informal, do auto-emprego, e alguns tipos de serviço, como pequenos restaurantes, ou “paladares”, cujo nome se inspirou numa novela brasileira. A novela é tão famosa que acabou inspirando a designação dos restaurantes. Qualquer pessoa em Cuba pode ter uma atividade privada. Qualquer um pode ver. Alguém está vendendo livros, e pode ser que você pague em dólar. Esse dólar pertence a essa pessoa e não há nada de ilegítimo nisso. Cada vez mais foi-se reduzindo a diferença entre os que tinham acesso ao dólar desde antes e os que têm agora, que são muito mais. Há mudanças importantes. Na verdade, em poucos lugares houve tantas mudanças em tão pouco tempo.

Paulo Markun: Presidente, eu acho que a pergunta do Emir, tomando carona na pergunta dele, embutia uma questão, que eu presenciei em Cuba e me passou essa sensação, é de que essa decisão, que tem toda essa lógica do ponto de vista econômico, introduziu, ali, o germe que vai matar o regime cubano, porque as pessoas hoje em Cuba, isso foi o que eu vi nas ruas, de todos os tipos, das prostitutas às pessoas que trabalham nos "paladares", jornalistas que têm um táxi clandestino à noite para ganhar um trocado, essas pessoas estão em busca da sua melhoria pessoal. Elas, de certo modo, abandonaram, ou abrem mão, ou chegaram à conclusão de que jamais vai acontecer aquela redenção coletiva que seria a sociedade sem classes, o comunismo, o socialismo, seja como for que a gente vá chamar. Então a pergunta que eu faria, não sei se a do Emir era nesse sentido, é isso: nesta hora em que cada um busca o seu dólar para poder comprar os seus produtos , para melhorar a comida em casa, para melhorar a sua vida, não se destrói a lógica do sistema?

Mônica Teixeira: A solidariedade, né? Que eu acho que é uma palavra cara ao povo cubano.

Ricardo Alarcón: No fundo, quanto ao problema objetivo, acho que estamos de acordo, mas não vamos exagerar. Em Cuba, há milhões de trabalhadores, organizados pela CTC (Confederação de Trabalhadores Cubanos). Alguns estão em setores vinculados ao dólar, outros não. Centenas de milhares de pessoas trabalham em áreas que não tem essa possibilidade. Por exemplo, professores e médicos. Vocês já devem ter lido várias vezes, em algum artigo de jornal, que algum professor ou médico foi trabalhar num hotel, por exemplo. Pode ser, mas não fechamos nenhum hospital ou escola. Abrimos novos hospitais e escolas. Nas escolas, temos professores mesmo, não robôs. E nos hospitais, médicos e enfermeiras que agora são muito mais numerosos do que antes. Não é verdade que todo mundo queira apenas os dólares. É verdade que isso aconteceu, e inevitavelmente significa introduzir em Cuba alguns elementos do capitalismo. É simples. É o oposto à solidariedade e traz esse risco, digamos. Mas não sou tão pessimista. Não acho que isso signifique o fim da revolução ou de seus ideais. Significa, sim, que a luta por esses ideais precisa levar em conta as novas circunstâncias. Não podemos pensar o socialismo num mundo em que metade dos países adotasse esse sistema. Temos de pensar o socialismo, ou mantê-lo, dentro de um mundo em que predomina o capitalismo e de um tipo agressivo, o neoliberalismo. A outra opção é mudar de planeta, mas até agora não temos tecnologia para isso. Vivemos neste planeta assim como os Estados Unidos, e é preciso nadar nessas águas. Estamos fazendo isso à maneira socialista. Há coisas de que se fala pouco. Os investimentos estrangeiros chegaram, e a lei permite quase sem exceção investimento 100% estrangeiro, mas na prática é uma associação com o Estado cubano. Cuba não privatizou nada, exceto as terras estatais englobadas por cooperativas nas mãos de um grupo de trabalhadores e não do Estado. Não vendemos nenhuma fábrica, nenhum serviço público. Vejam o que aconteceu nesses 10 anos. Caiu a União Soviética, os Estados Unidos intensificaram o embargo, porque a lei Torricelli de 1992, três anos após a queda do Muro de Berlim, a lei Helms Burton de 1996, quatro anos depois... Essas leis tencionam castigar aquele que investe em Cuba. O investidor estrangeiro, portanto, corre um risco e Cuba não permite que ele compre o que quiser. Você tem que investir em Cuba segundo nossos termos, negociar conosco, investir no que nós achamos conveniente, da maneira que acharmos conveniente. Assim, modernizamos a telefonia, tivemos a produção recorde no níquel no ano passado, recuperamos a produção de cítricos, aumentamos a produção de tabaco. Nós demonstramos que é possível, com uma política que afirme a soberania nacional, mesmo num mundo globalizado, ter sócios capitalistas que respeitem a soberania nacional, inclusive a da única nação que está em condições muito difíceis, porque quem investe ali é castigado.

Vicente Adorno: O senhor comentou, e acho que com muita justeza, que é muito chato a gente ficar preso a um único discurso, a esse dogmatismo que o neoliberalismo está em todo lugar e etc, etc. Mas aqui, às vezes, a gente tem a impressão que Cuba também comete o mesmo erro, Cuba só fala dos Estados Unidos. Está certo que os Estados Unidos têm essa grande importância que o senhor ressaltou, desde os tempos de José Martí. O senhor comentou também o ano passado, se não me engano, aliás, com muito bom humor, que se de repente o bloqueio acabasse, as grandes lideranças cubanas, como o senhor mesmo, iam ficarsem ter que o que falar, porque toda a carreira de vocês foi feita em cima disso. Então eu lhe pergunto, para o futuro: amanhã, digamos que por algum acordo, acaba o bloqueio, do que Cuba vai falar?

Ricardo Alarcón: Em meu caso, eu me dedicaria a escrever minhas memórias. [risos] Seria o momento para meditar e fazer isso. Eu não poderia continuar criticando os Estados Unidos. Acho que não no dia do fim do bloqueio, mas se hoje anunciassem que na próxima semana o boicote seria suspenso, isso teria efeitos imediatos e fundamentais sobre Cuba. Eu disse que encontramos sócios que investiram em Cuba, encontramos parceiros comerciais, mas em todas as transações internacionais, Cuba tem de pagar mais e cobrar menos. Há uma cláusula chamada “risco Cuba”, claro. Quando Cuba contrata um barco para transportar mercadorias, o dono do barco sabe que se entrar em Cuba, não pode aportar nos Estados Unidos por 180 dias. E quem paga isso? Cuba paga, claro. Se anunciassem que isso acabaria em uma semana, passariam a nos pagar mais e a nos cobrar menos todos os que têm relações com Cuba. O espaço para respirar que Cuba teria seria enorme. Todos nós acostumamos ao bloqueio, achamos natural. A lua aparece à noite, há um país que sofre boicote e todos vivemos com isso. Quando deixar de ser assim, haverá grandes mudanças. Agora, o socialismo teria de desaparecer? Era essa a pergunta. Não privatizamos nada, não vendemos nossa economia no período mais difícil de nossa história, como mostra um estudo da Cepal (Comissão de Estudos Econômicos para a América Latina) sobre Cuba nos anos 90, que analisa essa situação. As conseqüências, para Cuba, da queda da União Soviética foram piores do que a Grande Depressão. Exatamente, pense por aí. Apesar disso, e da lei que castiga os investidores, Cuba não se entregou, o país não ficou à venda. Impusemos condições e investidores compareceram. Quando não houver boicote, por que teríamos de renunciar à idéia da soberania, à idéia do controle no sentido econômico, ao ideal socialista, se conseguimos sobreviver ao pior momento?

Luis Carlos Leitão: Mas continuariam fora da Associação de Livre Comércio (Alca), como os Estados Unidos previram?

Paulo Markun: Os Estados Unidos?

Luis Carlos Leitão: Os Estados Unidos previram que até 2005 se impõe a Alca.

Ricardo Alarcón: Tomara que tenhamos mais sorte.

Luis Carlos Leitão: Mas Cuba está previamente excluída. E isso, aqui na América Latina, está rendendo muito assunto. Argentina e Brasil, por exemplo, não estão exatamente coadunados com isso, o Brasil em especial. Como Cuba observa isso e ela se insere, não se insere, o que ela vai aguardar desses acontecimentos?

Ricardo Alarcón: Eu diria que, espero que a América Latina nunca aceite essa chamada zona de livre comércio (Alca). Tomara que a América Latina não seja devorada pelos Estados Unidos, de modo ainda mais completo. Nós vamos nos cuidar para não cair nessa armadilha. Somos o único país que não pertence ao FMI e isso traz diversas vantagens. Temos liberdade para fazer muitas coisas por não fazer parte do Fundo.

Mônica Teixeira: Então, presidente, onde é que está, afinal, a força de Cuba? Porque na década de 90 teve o problema da queda da União Soviética, 34% de retração do PIB no período especial, ali no começo, as pessoas passavam fome em Cuba. Enfim, teve problema de desnutrição, as pessoas morreram, enfim, o período especial foi uma coisa muito dura, as pessoas não têm muito a noção do que foi. E agora no ano 2000, eu entendo que o PIB cresceu 6% e os senhores esperam crescer 4 a 4,5%, neste ano. Como é que um país que está fora dos mercados financeiros internacionais, que está fora do comércio internacional, etc, quer dizer, onde é que, afinal, reside essa força de Cuba no momento em que também os Estados Unidos têm o seu grande poderio afirmado, de uma maneira..., enfim, a hegemonia norte-americana nunca foi tão grande também. É curioso, né?

Ricardo Alarcón: Quer uma resposta franca? No socialismo. Socialismo e democracia real. Isso tudo aconteceu graças ao povo cubano. O povo cubano foi capaz de obter isso. Os dirigentes tiveram seu papel, claro, e os autores dessa tese econômica, mas nada disso teria o menor resultado se não fosse o povo. Não que sejamos um povo superior aos demais, não é nada disso, não sou nacionalista exagerado, mas é um povo cuja história se foi forjando nesses anos. Eu vivi a crise de Cuba, foi uma situação dramática. Acho que nunca se chegou a passar fome em Cuba. A fome existia em muitos países, naquela mesma época, mas desnutrição que você mencionou foi um fato. Acabei desviando um pouco do assunto democracia. Não esquecerei a assembléia de trabalhadores, que também fazem parte desse estudo e também explicam como conseguimos enfrentar a crise. Estive presente em algumas assembléias como em Guana, a oeste de Havana, ou na da fábrica de pneus em Puentes Grandes. os trabalhadores estavam discutindo a estratégia de fechamento. Eles discutiam não a teoria, mas quem sairia primeiro, a lista dos demitidos. Em outra, discutiam o fechamento e a redução da força de trabalho. Isso num mundo em que há democracias pluripartidárias, mas para saber se você vai continuar empregado, é preciso olhar na internet ou ver na TV. As fusões, cisões e planos de reajustes não são discutidos, às vezes, nem sequer nos parlamentos ou no próprio ministério. Um grupo de burocratas do FMI elabora os planos e os impõe a todas democracias deste mundo. No nosso caso, acontecia exatamente o contrário. Estive nessas duas assembléias. Na última assembléia de Guana, o centro da discussão era uma crítica ao cozinheiro, por causa da má qualidade do frango, que havia sido servido. Na fábrica de Puentes Grandes, hoje se discutem os planos de exportação. Ninguém foi abandonado, ninguém ficou à margem do processo, nós contamos com o povo. Percebemos que o povo é superior ao que se imagina. O ser humano atinge a superação, o heroísmo, assim como disse Martí. Acredito na virtude e no aperfeiçoamento do homem. O homem, em condições que o obriguem a isso, supera-se e melhora. E, afinal, o que é a democracia, se não o protagonismo do povo, o fato de o povo assumir a condução de seu destino no sentido real e não apenas formal? Para mim, francamente, é essa a explicação do que está acontecendo.

[intervalo]

Paulo Markun: Presidente, eu queria colocar em questão um outro tema que sempre... Eu tenho certeza que o senhor já respondeu essa pergunta inúmeras vezes, mas eu queria citar um fato objetivo. Se existisse, ou se o senhor tivesse vindo ao Brasil antes da abertura política, o senhor não estaria sentado nessa cadeira e aliás, alguns dos entrevistadores não estariam sentados aqui fazendo as perguntas para o senhor, por uma razão: porque não se permitia a legalidade do Partido Comunista no Brasil. Eu imagino que hoje em Cuba, se for feito um programa como este, com um dirigente anticastrista, por exemplo, que tenha vindo de Miami e que tenha na bancada alguns defensores das idéias dele, esse programa não vai ao ar. Por que não existe liberdade de imprensa em Cuba?

Carlos Eduardo Lins e Silva: A minha pergunta é mais ou menos por aí, eu posso completar?

Paulo Markun: Claro.

Carlos Eduardo Lins e Silva: Eu nunca estive em Cuba infelizmente, mas como a maioria das pessoas da minha geração, aqui no Brasil, eu tenho acompanhado todo o processo cubano com muito interesse e simpatia. E dos relatos que eu acho que são fidedignos, duas coisas, me parece, que acontecem em Cuba: uma, o regime é muito popular, tem o apoio da maioria da população; e dois: a sociedade não goza de liberdades civis, como por exemplo, a liberdade de imprensa. A minha questão é: por que não se pode fazer uma abertura nessa área das liberdades civis, na área das liberdades de expressão, da liberdade de imprensa? Eu sei que a resposta é: Cuba está em guerra com os EUA e em guerra tem que se fazer censura. Mas o senhor mesmo já reconheceu que essa guerra já teve estágios muito mais fortes e que hoje até o secretário da Justiça de um governo ultraconservador, o senador, ex-senador, agora secretário da Justiça, Ashcroft, querem que o bloqueio termine. Então a guerra já não é tão beligerante como foi antes, por que Cuba não abre mais a sua sociedade, inclusive, para não ser tão vulnerável aos ataques que se faz por essa, a meu ver, deficiência do sistema cubano?

Ricardo Alarcón: Vou responder passo a passo. Não concordo que em Cuba haja menos liberdades civis que em outros lugares. Não creio que em outros lugares os trabalhadores possam fazer o que fazem em Cuba.

Carlos Eduardo Lins e Silva: Jornalistas são presos em Cuba, não são presos no Brasil, isso é menos liberdade civil, pelo menos liberdade de imprensa.

Ricardo Alarcón: Vou chegar aí, isso tem fundamento quanto à imprensa, mas você disse liberdades civis.

Carlos Eduardo Lins e Silva: Entre outras. Eu estou me referindo especificamente à de imprensa, mas eu acho que também liberdade de expressão não é tão grande, liberdade de associação não é tão grande, liberdade de formação de partido não é tão grande, outras liberdades civis. Eu estou me atendo à da imprensa por uma questão coorporativa, porque eu sou jornalista. [Risos]

Ricardo Alarcón: Eu também, e também sou civil, por isso a expressão me incomodou. Não há por que reduzir as liberdades civis. Algumas, seletivamente. Certas liberdades são muito importantes para o povo. Uma sociedade com empregos, boa condição de vida, educação, saúde, sem fome e abandono. A lista é grande. Essas liberdades existem em Cuba. A guerra não terminou. Não use uma referência minha fora do sentido em que a empreguei. Você perguntou do futuro. Eu disse que no futuro o embargo vai fracassar. Você falou de conservadores, eu falei de Ashcroft, que é conservador, mas é contra as restrições ao comércio. Ele é contra as sanções dos Estados Unidos nesse sentido. Isso não quer dizer que as sanções não existam mais.

Carlos Eduardo Lins e Silva: Quando o bloqueio cair, vai haver liberdade de imprensa em Cuba? O senhor disse: “Daqui a uma semana o bloqueio cair, nós vamos sentir efeitos”. Um dos efeitos será: vai haver liberdade de imprensa em Cuba?

Ricardo Alarcón: Acho que Cuba tem o direto de ser respeitada e tem a obrigação de exigir esse respeito. Quando terminar uma guerra que vem desde 1959... Você está num país livre com liberdade de expressão, então pode visitar o site da CIA e verificar que na primavera de 1959, começou o Programa Cuba, que não envolve apenas o boicote nem a invasão de Girón. São também os US$117 mil mensais que pagavam aos dissidentes. Eram os salários que a CIA pagava em 59. Os US$30 mil semanais que a CIA pagava para publicar uma revista que circulava na América Latina, a revista Bohemia Libre. Os milhões gastos desde então, em transmissões de rádio e agora de TV, sobre Cuba. Havia programas como esse no rádio, e com isso bombardearam Cuba desde 1959 e provavelmente nisso gastaram mais dinheiro que na ajuda ao desenvolvimento latino-americano empreendida pelos Estados Unidos em 40 anos. Isso é liberdade de expressão ou é agressão? Por que Cuba deveria apoiar aqueles que são financiados, organizados e utilizam os meios da poderosíssima potência, dona da liberdade de expressão? Por quê? Essa guerra se desenvolveu, sobretudo, nessa área e não se abrandou, como posso provar. No site da AID [Agência Internacional para o Desenvolvimento] pode-se encontrar a informação do que foi destinado aos grupos de oposição. Desde 59, o plano da CIA era criar uma oposição fora de Cuba e uma oposição dentro de Cuba, dirigida pela CIA e sem revelar nomes. Isso não mudou até hoje. A partir de 1996 e até 1999, para esses propósitos, segundo a AID... Não estou falando da CIA, pois não sabemos como ela liberou os recursos, mas a AID havia gasto mais de US$5 milhões, entre outras coisas, para pagar jornalistas em Cuba e fora de Cuba. Para este ano, segundo a AID, e são dados disponíveis em seu site, este ano, para esse propósito, estão destinados US$5 milhões, isso para o ano 2001. O senador Helms, que é uma pessoa influente, acaba de apresentar uma lei. Falei de uma lei que acompanha os rumos da História, mas esta também é realidade. O projeto de lei do senador Helms é muito mais generoso. Propõe que, para este mesmo ano, para essas atividades, sejam destinados US$100 milhões. Não são obsessões cubanas, não são invenções. São coisas que nos acontecem e disso há provas concretas. Algum dia não haverá nenhuma restrição em Cuba, nenhuma atitude de quem está em guerra. Será o dia em que a guerra acabar. Não queremos ser esquizofrênicos, loucos, queremos o contrário.

Paulo Markun: Mas a imprensa que sobrevive a isso, presidente, o que resta de atividade de imprensa em Cuba não é imprensa, é propaganda, o que há do governo cubano, as publicações cubanas que eu conheço, o Jornal Oficial de Cuba não é um jornal de imprensa no sentido que estamos acostumados aqui. Tudo bem, ela, Cuba vai fazer restrições a isso, mas o fato é que todas as publicações de Cuba, elas caminham no sentido que o regime cubano considera que é o definitivo, que é o decisivo. Eu imagino que nem toda a sociedade cubana pense da mesma maneira. Porque o senhor mesmo disse que o pensamento único é muito ruim, quer dizer, eu não consigo entender por que não pode haver atividade de imprensa. Os correspondentes estrangeiros trabalham livremente em Cuba, mas veiculam as notícias nos seus países e em alguns casos essas notícias não chegam a Cuba.

Ricardo Alarcón: Aceito as críticas às publicações do governo, mas teria de defender a Igreja Católica, por exemplo. O que você disse pode ser aplicado à revista Vitral, por exemplo, que ataca sistematicamente a revolução e é da Igreja Católica em Pinar del Río. É uma revista que não segue a linha do Granma [jornal oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba]. Algumas instituições em Cuba têm publicações que são até bastante loquazes, como a publicação que mencionei, mas ninguém as persegue ou impede que sejam feitas.

Emir Sader: Alarcón, para quem é socialista, o fim da União Soviética, bom, para quem era anti-socialista também, foi uma surpresa, parecia o regime mais sólido do mundo, alguns por acharem que era o consenso e outros por acharem que era um regime totalitário. Que análise você faz das razões da desaparição ou autodissolução da União Soviética.

Ricardo Alarcón: Sério mesmo? [Risos]

Luis Carlos Leitão: Com licença do Emir. Seria bom pensar que análise vocês fazem das relações que Cuba travou com a União Soviética ao longo desse período e que talvez tenham um resultado em seqüelas também, para o regime cubano, né? O processo de industrialização, diversificação da agricultura, fim do monocultivo, Che Guevara discutindo com Carlos Rafael Rodriguez [(1913-1997),  economista cubano, lutou contra a ditadura do presidente Gerardo Machado, foi membro ativo e dirigente do Partido Comunista] no início dos anos 60 como seria o futuro da revolução, o modelo tchecoslováquio trazendo problemas para a industrialização entre vocês. Como vocês também analisam isso? Que crítica vocês fazem dessa relação que tiveram com eles ao longo desse todo?

Ricardo Alarcón: Vamos tentar.

Luis Carlos Leitão: É um tema bom que o Emir puxou.

Ricardo Alarcón: Vejamos se consigo responder num único bloco. Com relação ao que houve no Leste Europeu, imagino que haja outra razão mais específica para levantar, mas, para mim, aquele período histórico, entre outras coisas, caracterizou-se pela desvirtualização de princípios básicos. Isso tem a ver com a Guerra Fria e o risco do extermínio nuclear. De longe, falamos disso como um dado histórico, mas é algo bem sério. A possibilidade de que a diferença de ideologias e de sistemas pudesse causar a destruição total do planeta. Hoje estamos mais perto da destruição do planeta mas sem luta ideológica, porém isso é outra coisa. Acho que um fator foi a corrida armamentista. Ela obrigou a União Soviética, um país atrasado em relação ao Ocidente, a usar enormes recursos que deveriam servir para outras coisas. Existe a questão tratada por muitos estudiosos, o fato de que se estabeleceu o socialismo, o Estado operário, não nos países onde [Karl] Marx imaginou. Ele não pensou que seria assim. O socialismo seria resultado do desenvolvimento de países desenvolvidos como Alemanha, Inglaterra e França. E um certo envenenamento da luta ideológica. Além disso, acho que houve grandes erros desses partidos comunistas. O maior, talvez, tenha sido ter levado a contraposição política dos dois sistemas a um terreno que convinha ao adversário. Em outras palavras, o consumismo, o engrandecimento dos valores materiais, o consumo individual, o egoísmo... É o que você disse antes com relação a Cuba e reconheci que a introdução de elementos do capitalismo traz consigo um efeito de dissolução. Se você é socialista, precisa viver com isso e combatê-lo não com exército, e sim com idéias. Pode parecer a imprensa faz propaganda mas, num certo momento, para os países socialistas europeus, o importante era ver quem competia mais com o Ocidente, ver quem fazia os foguetes mais sofisticados e quem tinha mais automóveis per capita ou geladeiras, etc. Tudo bem, não estou criticando o progresso material, mas isso não é fundamental no socialismo. A superioridade deveria ser demonstrada na ética, na solidariedade humana, em outras valores também importantes no Ocidente.

Luis Carlos Leitão: São as críticas de Che Guevara.

Ricardo Alarcón: Eu sei. Ele disse isso muito antes que tudo isso acontecesse. E tinha razão, como se viu. Você perguntou com relação a nós mesmos?

Luis Carlos Leitão: Como vocês viram, vocês vêem hoje essa relação? São mais de 10 anos de fim do colapso, do fim do Muro [de Berlim] e início do colapso.

Ricardo Alarcón: O que eu digo não é em nome do partido, mas é minha opinião. Não fizemos uma análise coletiva da qual tenha resultado um documento. É minha opinião. De alguma forma, tudo que Che criticou, isso a que me referi antes acabou influenciando também a sociedade cubana, assim como qualquer outra sociedade socialista. Nós tivemos, no entanto, vários alavancas, vários pontos de apoio para enfrentar isso. Um deles foi o imperialismo norte-americano, como continuaram a guerra e a pressão externa, era necessário o combate, digamos. Os cubanos não tiveram chance de se aburguesar, de se acomodar nesses 40 anos. Além disso, em aspectos muito importantes, as idéias se mantiveram vivas, sobretudo o internacionalismo. A contribuição da Revolução Cubana na África, a participação de centenas de milhares de cubanos no apoio ao movimento revolucionário. Isso manteve vivo um espírito que em outros países acabou se perdendo. A análise é complicada.

Luis Carlos Leitão: Eu só queria mostrar uma coisa. [Pega um jornal] Sua crítica sobre a imprensa, eu não sou advogado do Alarcón, mas a sua crítica sobre a imprensa no caso...

Paulo Markun: Aliás, ele nem precisa! [Risos]

Luis Carlos Leitão: Não, não precisa porque ele é ótimo! No caso do Granma é bem compreensível. Mas, por exemplo, esse é um jornal de cultura, Caiman Barbudo, onde se critica, inclusive, a telenovela brasileira O rei do gado, é um caso interessante. E eu acho até que seria interessante que a gente não terminasse o programa sem falar de cultura.

Paulo Markun: Eu só queria dar direito a outras pessoas perguntarem, passar a palavra para as outras.

Luis Carlos Leitão: À vontade, mas seria bom depois mencionar o tema.

Oswaldo Coggiola: Eu queria fazer duas perguntas que são bem simples. A primeira: Cuba está submetida a um bloqueio econômico, político e militar. A justificação é que não poderia haver um partido político e nisso estou de acordo, certo, que fosse partidário desse bloqueio econômico, político e militar, esse partido político seria financiado no exterior e seria a mesma coisa que um exército permitir, da sua trincheira, que o exército adversário fizesse a publicidade dele, estou totalmente de acordo. Agora, poderia, no atual sistema político cubano, existir outro partido político de pessoas que fossem declaradamente partidárias da revolução cubana contra o bloqueio etc? Não traria isso, benefício, no sentido de que o regime não aparecesse tão identificado com Castro? Os exilados são chamados de anticastristas. Se houvesse esse pluralismo revolucionário talvez não seriam chamados de anticastristas, seriam chamados de anticubanos e não de anticastrista, certo? E a última pergunta é a seguinte: em Cuba se desenha um cenário econômico que alia os seguintes elementos: crescimento econômico, dolarização, diferenciação salarial e associação com capital estrangeiro e uma dívida externa que, apesar de Cuba não estar no Fundo Monetário Internacional, existe, no caso Cuba, esses elementos são muito conhecidos em outros países latino-americanos. Esses elementos, qual é a sua opinião a respeito da possibilidade de que se Castro desaparecesse, ele que tem uma, digamos assim, uma autoridade, e o regime político está tão centralizado na sua pessoa, esse regime explodiria em interesses sociais e, portanto, políticos contrapostos, caso Castro desaparecesse? Então, duas perguntas: um partido que fosse revolucionário, mas que não fosse o partido comunista cubano. E o cenário econômico e político para o futuro, como você, como presidente da Assembléia Nacional Cubana, o está vendo?

Ricardo Alarcón: Voltamos ao ponto de partida quanto à definição de partido político. Quando vai acabar a guerra entre Estados Unidos e Cuba, isso não posso mesmo saber, mas para salvar a nação, para salvar a pátria, no século XIX, e isso não é invenção castrista nem comunista, José Martí inventou a tese do partido da nação cubana. Era Partido Revolucionário Cubano no tempo dele hoje é Partido Comunista de Cuba. Foi a maior guerra pela independência na América Latina e a mais sangrenta, a derrota mais terrível que sofremos. Essa foi a lição que ele tirou. Não tem nada a ver com a eleição dos delegados, com a eleição das autoridades em Cuba. Não era o partido que indicava os candidatos, era o mesmo sistema que temos hoje. Os moradores se reuniam e elegiam seus representantes. Sinceramente, não acho que seja mais democrático, no sentido de dar mais chances ao povo, o fato de em vez de ela mesma [a Assembléia] propor os candidatos, isso ser feito por um, dois, ou três aparatos. É o que acaba sendo. Volto a dizer que o que ocorreria com o fim da guerra, com Cuba finalmente independente, é um outro capítulo, é outra história. Com relação ao castrismo, é claro que a personalidade de Fidel é importante, sua participação, sua função na história de Cuba também, mas também é verdade que houve uma intenção deliberada de demonizá-lo e reduzir toda a questão a ele. Não é assim. Eu disse que, na ausência de Fidel, perderíamos um homem de muita capacidade intelectual e que tem grande experiência na condução da revolução. Mas hoje o impacto não seria o mesmo que teria sido no início da revolução. Se a CIA tivesse tido sucesso nos seus atentados, como o do chocolate envenenado, ou o do charuto envenenado, se esses planos dos anos 60 tivessem dado certo, não sei o que teria acontecido. Hoje em dia, falamos de um país onde a maioria das pessoas não eram nascidas, no início da revolução. É outro país, é outra Cuba, é outra formação e em grande parte isso se deve a ele. Ele pode se orgulhar disso, mas é preciso haver mudanças. Cada ser humano é diferente do outro e, portanto, devemos prever que se juntarmos a isso as mudanças que ocorreram em Cuba, no mundo e as mudanças que haverá no mundo, eu não acho que daqui a 20 anos estejamos ainda com Cuba, sob o bloqueio ou não, e com o mundo dominado pelo capitalismo como hoje. Sinceramente não acho isso. O mundo vai continuar mudando. Vamos mudar tudo, vamos conjugar o verbo “mudar” em todos os tempos e pessoas.

Mônica Teixeira: O programa está um pouquinho no fim, eu pediria para o senhor ser rápido. Eu queria saber se o Estado cubano está satisfeito com as relações que mantêm com o Estado brasileiro.

Ricardo Alarcón: Certamente, temos uma relação normal, respeitosa, na qual diversas áreas se desenvolvem. Tive, há pouco, a oportunidade de assinar um acordo bilateral com a Câmara dos Deputados e soube que isso não é comum aqui no Brasil. Não é comum que se faça isso com outros parlamentos. Na verdade, o que nós assinamos formaliza o que vinha ocorrendo e dá até um certo impulso. Isso me parece importante. Acho que há um comércio de certa importância e intercâmbio de colaboração em diversas áreas. O que fica claro é que, sendo um país muito grande, o Brasil tem espaço para crescer em muitas outras esferas. Infelizmente existe a separação geográfica, mas brasileiros e cubanos concordam que devemos nos empenhar para continuar avançando e nos aprofundando, partindo de uma consideração elementar. É difícil encontrar dois povos tão afins. Existe a diferença de religião, mas é a única. O cubano se sente mais à vontade com um brasileiro ou no Brasil. As novelas de sucesso são as brasileiras, assim como a música.

Carlos Eduardo Lins e Silva: Mas os cubanos preferem o baseball do que o futebol.

Ricardo Alarcón: É verdade. Vocês jogam baseball?

Luis Carlos Leitão: Não. Só os japoneses jogam baseball aqui.

Ricardo Alarcón: Os japoneses tiveram influência norte-americana.

Luis Carlos Leitão: Mas o futebol está chegando lá, torceram muito pelo Brasil em 94. Romário foi idolatrado nas ruas de Havana.

Ricardo Alarcón: E Maradona?

Luis Carlos Leitão: Maradona também é muito benquisto, a Argentina é o segundo país de torcida deles, o primeiro é o Brasil.

Paulo Markun: Presidente, nosso tempo está acabando e eu queria fazer uma última pergunta que a resposta tem que ser realmente sintética. Uma das principais acusações contra Cuba durante todo esse período foi da exportação, da tentativa de exportar a revolução. O senhor falou do internacionalismo, dos cubanos, da participação de milhares de cubanos em outras nações, nas lutas de outras nações, isso continua existindo? Cuba continua querendo exportar a revolução? Continua querendo ser internacionalista?

Ricardo Alarcón: Continuamos sendo internacionalistas, mas houve muitas mudanças no mundo. Quando falávamos em combate, pensávamos em Angola, em Guiné-Bissau, nas antigas colônias portuguesas da África. E também os movimentos revolucionários da América Latina, quando isso era realidade em alguns países e quando toda a América Latina, exceto o México, estava em guerra com os Estados Unidos. Isso mudou totalmente. Hoje o internacionalismo se expressa com milhares de médicos, professores e colaboradores cubanos que estão em diversas partes do planeta. Há mais batalhas fundamentais. A saúde talvez seja um dos temas mais delicados e sérios e Cuba pode contribuir. Cada um deve fazer o que puder.

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, presidente, pela sua participação, eu sei que o senhor abriu espaço na sua agenda apertada para participar do programa. Espero que tenha sido uma oportunidade de discutir os assuntos. Obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa.

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