Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.
Jorge Escosteguy: Boa noite. Estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. [Programa ao vivo] O convidado do Roda Viva desta noite é o dramaturgo e ator Gianfrancesco Guarnieri [Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri, 1934-2006]. Guarnieri faz amanhã, de fato, 57 anos, mas oficialmente só dia 08, que foi a data em que ele foi registrado. Ele nasceu em Milão, mas veio para o Brasil aos dois anos. É fundador do Teatro Paulista do Estudante com Oduvaldo Vianna Filho [(1936-1974), dramaturgo, roteirista, ator e compositor]. Em 1958, estreou sua peça mais famosa Eles não usam black-tie. Adaptado para o cinema, ganhou o Leão de Ouro em Veneza [Festival de Cinema de Veneza] em 81. É ator de novelas e hoje está fazendo uma minissérie: No mundo da lua, que está para estrear na TV Cultura. Ele faz o papel de Orlando, o avô do personagem vivido por Antônio Fagundes. Para entrevistar Gianfrancesco Guarnieri esta noite no Roda Viva nós convidamos: Moacir Amâncio, escritor e jornalista do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo; Thereza Walcacer, editora do jornal Noite e Dia da TV Manchete; Alex Solnik, repórter da revista Interview; Clovis Garcia, crítico e professor de teatro da cidade de São Paulo; Maria Amélia Rocha Lopes, jornalista e apresentadora do programa Metrópolis da TV Cultura; Carlos Alberto Sofredini, dramaturgo e diretor teatral; Marcos Faerman, repórter especial do Jornal da Tarde e editor-chefe da revista Shalom; também deve estar chegando à TV Cultura, deve ter tido problemas de trânsito, a dramaturga Leilah Assumpção, que vai nos ajudar nessa entrevista. [...] Boa noite, Guarnieri.
Gianfrancesco Guarnieri: Boa noite.
Jorge Escosteguy: Você vive na TV Cultura, fazendo um pequeno comercial - uma TV pública, que quase praticamente não tem comercial -, uma minissérie, ou seja, uma TV pública pela primeira vez, praticamente, entrando na área de ficção, uma área feita hoje, abordada hoje só pela Globo e pela Manchete, praticamente. Tenta-se fazer uma minissérie séria sem ser careta, ou seja, uma TV pública sem ser chata. Como que é sua experiência em uma TV pública, em uma minissérie com um certo espírito diferente da ficção que se faz normalmente na televisão?
Gianfrancesco Guarnieri: Bem, acho que, evidentemente, por essas características, o trabalho pode ser feito, não naquele ritmo exasperado da programação que tem que ser completada semanalmente, os capítulos têm de ir para o ar assim, imediatamente. Seria uma linha de montagem, de fato, não é? Nós temos um certo respiro, podemos gravar menos cenas diariamente e isso, evidentemente, dá um maior cuidado, há possibilidade de uma maior atenção no tempo, uma atenção no que está se fazendo. Esta é uma série que é dedicada à juventude e à infância. Ela trata de problemas de comportamento numa família, numa família brasileira de classe média, e são abordados ali problemas de diferentes espécies, quer dizer, desde o problema da necessidade da higiene até o que pode surgir na mente de um menino... é o fato de uma provável separação dos pais. Então, é muito interessante, nós estamos fazendo esse trabalho com o maior empenho, com a maior paixão... [sendo interrompido]
Jorge Escosteguy: Como é a experiência de fazer isso nesse tipo de televisão, ou seja, porque se argumenta muito na dramaturgia para a televisão de que há necessidade de estar atento a certas exigências de Ibope, ou seja, os personagens, a trama, têm que ter certas características e, de repente, se faz um outro tipo de minissérie. Só para se ter uma idéia, por exemplo, o Guarnieri faz o avô - o pai, perdão - do Antônio Fagundes. Quer dizer, de repente é possível que os telespectadores tenham na Globo o Antônio Fagundes fazendo o tenebroso Felipe [da novela global O dono do mundo, de Gilberto Braga e direção geral de Denis Carvalho], aquele médico que todo mundo odeia, e na TV Cultura ele faz um pai de família que eu não diria exemplar, porque é difícil se encontrar um pai de família exemplar, mas enfim, na vida real como ela é praticamente. É possível fazer essa coisa sem ser chata, sem ser educativa, no mal sentido?
Gianfrancesco Guarnieri: É evidente que é. Eu acho que está se fugindo exatamente disso que, por ser educativo, tem que ser uma coisa chata e enfadonha. Não é nada disso. Inclusive, todas as estórias têm um momento de sonho desse garoto, que é o protagonista da série. Aliás, um menino fantástico, nós ficamos realmente entusiasmados e emocionados.
Jorge Escosteguy: Como personagem ou como ator?
Gianfrancesco Guarnieri: Como ator [refere-se ao ator Luciano Amaral]. Esse garoto é realmente fantástico, ele tem uma espontaneidade, parece que ele nasceu já diante de câmeras [riso]. De fato, todos nós olhamos para esse menino e ficamos encantados de ver como ele é capaz, com a maior simplicidade, como se sempre tivesse feito isso, como se estivesse tomando um copo d’água, ele representa, é muito bom. E esse personagem, que é o Lucas, ele sempre tem um gravador e ele grava reportagens da própria vida no gravador que ele imagina. É o imaginário dele sempre baseado em coisas que aconteceram na casa naquele dia, coisas que mais o impressionaram. Então, a cada capítulo, tem essa dinâmica, essa coisa entre o real e o imaginário desse menino. É muito agradável e eu tenho certeza de que o público não vai se preocupar absolutamente se o [Antônio] Fagundes seja o terrível lá [rindo]. Aliás, eu confio muito no público e acho que o público tem toda a possibilidade de discernir. Eu acho que já passou o tempo em que o ator era visto fazendo determinado papel e era confundido com o papel que estava fazendo, isso se nota cada vez menos e cada vez mais o público aprende a reconhecer, de fato, o que esse ator está dando em qualquer papel que ele esteja fazendo. Então, essa confusão entre o que um ator pode estar fazendo em um canal de televisão... [sendo interrompido]
Jorge Escosteguy: Você já foi vítima dessas confusões?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, felizmente. Felizmente, não.
Jorge Escosteguy: Você nunca fez um personagem que odiava e que de repente quando falam com você na rua...
Gianfrancesco Guarnieri: É bem verdade que a televisão costuma muito rotular os atores e dar para eles papéis semelhantes. É um perigo isso, não é? Parece que tem um carimbo.
Jorge Escosteguy: Se eu não me engano, você sempre fez papel bonzinho?
Gianfrancesco Guarnieri: Olha, de fato, você pode ver, quando tem um personagem lá que o Guarnieri vai fazer, hoje em dia, é um senhor romântico, bondoso...
Jorge Escosteguy: Bonachão... Simpático... [rindo]
Gianfrancesco Guarnieri: Bonachão, é sempre por esse caminho [rindo].
Jorge Escosteguy: A Maria Amélia tem uma pergunta para você, por favor.
Maria Amélia Rocha Lopes: Guarnieri, você estava falando em fazer papel de bonzinho.
Jorge Escosteguy: Desculpe, deixa eu só interromper você um pouquinho, para registrar já a chegada da dramaturga Leilah Assumpção, que vai nos ajudar a fazer a entrevista com o Guarnieri hoje. Boa noite.
Leilah Assumpção: Boa noite.
Jorge Escosteguy: Por favor, Maria Amélia.
Maria Amélia Rocha Lopes: Retomando a questão do personagem bonzinho, você fez o primeiro comunista bonzinho da televisão, é certo? O Túlio.
Gianfrancesco Guarnieri: O Túlio, na Mandala [telenovela exibida pela Rede Globo, em 1987, inspirada na tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, e que foi alvo da censura federal por tratar de um amor incestuoso, uso de drogas e bissexualismo], que é um personagem que o Dias [Dias Gomes, autor de telenovelas, que escreveu até o capítulo 35 da novela, deixando os 16 capítulos restantes por conta de Marcílio Moraes] escreveu baseado no Mario Lago [1911-2002, advogado formado, projetou-se como radialista, ator e poeta, destacando-se como compositor letrista de música popular como Ai que saudades da Amélia, entre outras].
Maria Amélia Rocha Lopes: Até então, como eram os comunistas na televisão, em novela [sorrindo]?
Gianfrancesco Guarnieri: Como?
Maria Amélia Rocha Lopes: Até então, como eram os comunistas de novela?
Jorge Escosteguy: Comiam criancinhas? [Risos]
Maria Amélia Rocha Lopes: Comiam criancinhas?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu não me lembro de ter visto comunistas em novelas... [rindo]
Maria Amélia Rocha Lopes: Você fez o primeiro?
Gianfrancesco Guarnieri: Os comunistas sempre surgiram assim, realmente, como comedores de crianças. Mas agora não me lembro, de fato, em uma novela que tivesse um comunista pra valer e tal. O Mandala teve esse momento e essa homenagem mesmo que eu acho que o Dias fez ao Mario Lago, que é uma pessoa da maior conseqüência, um artista da maior qualidade...
Maria Amélia Rocha Lopes: Que andava sempre com a malinha pronta, não é? [Mario Lago, por sua atuação política, foi perseguido e preso pelo regime militar instalado em 1964]
Gianfrancesco Guarnieri: E com a malinha sempre preparada, não é?
Maria Amélia Rocha Lopes: Para qualquer golpe.
Gianfrancesco Guarnieri: Estava na lista, era um dos primeiros da lista [de presos políticos da ditadura militar]. Qualquer coisinha pegavam e recolhiam, não é?
Maria Amélia Rocha Lopes: Você não passou por nenhuma situação dessas?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, eu não fazia parte dessa lista de recolhimento não. Eu, mais tarde, passei para uma lista mais grave que era uma lista mesmo [riso] de querer acabar. Mas foi, felizmente, por um breve período.
Maria Amélia Rocha Lopes: Só para lembrar.
Alex Solnik: Esses papéis de bonzinho em novela é uma coisa que acontece ou você já se predispõe a buscar o papel de bonzinho? Você não quer outros papéis, você evita papéis de vilão?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, pelo contrário, eu acho que eu gostaria de fazer papéis mais diferenciados. Para um ator, o que eu acho que o que dá a gana mesmo de fazer é enfrentar uma... vamos chamar de uma caracterização, é criar um personagem que não tenha muito a ver com aquilo que se espera desse ator naquele momento. Agora, existe a questão do público, quer dizer, então o público gosta de ver determinado ator fazendo um determinado tipo de papel, e aí a televisão, que explora marketing o tempo inteiro, usa o ator para isso.
Marcos Faermam: Guarnieri, parece que tu tens, assim, uma história que te levou para o mundo das artes: tem a tua família, tem uma cena muito literária, assim, que quem for escrever algum dia um livro com a tua vida, pode começar por ali, um bom lide [termo proveniente da palavra inglesa lead, referente ao parágrafo inicial da matéria jornalística, contendo um resumo das principais informações para o leitor], como se diz no jornalismo, que é Gianfrancesco dentro de um poço ao lado de uma orquestra, uma ópera, o pai, como é que era o ângulo pelo qual tu vias as coisas assim, o teu pai um grande músico e tu ouvindo ópera, aquela versão barbeira fantástica, não é?
Gianfrancesco Guarnieri: Fantástica [rindo]?
[...]: Vê lá!
Marcos Faermam: Imagine dentro de uma orquestra então, como é que tu contarias se fosses escrever tuas memórias, esse momento em tua vida?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu começaria escrevendo em casa mesmo, em que assim, dois anos depois da nossa chegada, eu deveria ter uns quatro anos, uns quatro anos e pouco e meus pais tinham alugado uma casa grande e moravam com um casal de violinistas, que era o Oscar e Alda Borguetti. Então eu, o que eu me lembro, é de ouvir um violino de um lado e um violino do outro. E de repente eu começava a ouvir aquelas escalas de uma cantora com o piano acompanhando, que era meu pai ensaiando uma cantora do municipal. E um pouco depois uma harpa [rindo] ele começava a tocar. Então, eu desde a chamada mais tenra idade [rindo] estou habituado com esse som. E essa coisa que eu adorava que era entrar no teatro, que era o Teatro Municipal.
Marcos Faermam: Entrar no teatro, dentro do teatro?
Gianfrancesco Guarnieri: Entrar no teatro, quer dizer, o cheiro do Teatro Municipal para mim é uma coisa inesquecível, aquela maquinaria toda que fica em frente aos fundos do teatro e tem aquela ruazinha e em frente tem aquela maquinaria toda que faz aquele vapor. O fog [fumaça que imita neblina] era o mais complicado naquela época, não é?
Marcos Faermam: E como era o fog?
Gianfrancesco Guarnieri: Era um maquinário incrível, com vapores incríveis. Eram máquinas enormes. Aliás, estão até hoje lá, todas restauradas, aquelas máquinas incríveis. E, no fundo, eu adorava aquilo. Eu entrava no bastidor do teatro, aqueles cantores ih, ih, ih, eh, eh, eh, ah, ah, ah, aqueles sons... [imitando cantores de ópera aquecendo a voz]
Marcos Faermam: Ensaiando.
Gianfrancesco Guarnieri: E eu adorava, adorava. Eu não podia ficar na platéia, era proibido, porque eu era ainda muito pequeno. Então, de fato, eu ficava no fosso da orquestra, de pé, em cima da caixa onde era guardado o instrumento, eu acho que era até um trombone de vara, era uma caixa de madeira, então tem um gloter e eu ficava de pé ali, olhando a obra. E eu me dou os parabéns, porque eu cheguei a assistir Wagner [Richard Wagner (1813-1883), alemão considerado gênio da música, autor de óperas famosas] inteiro em cima daquela caixa. E olha que Wagner eram muitas horas!
Leilah Assumpção: Agora, Guarnieri, me fale uma coisa, e essa sua, esse seu talento, não só para palavra, como para música? Você é um músico, escreve e tudo... Você acha que é essa influência desse ambiente, ou está no gene mesmo? Porque, pelo que me consta, ou seja, você tem uma neta pequenininha que já canta o repertório da Sula Miranda [cantora brasileira de música sertaneja] inteiro [rindo], não é verdade? E ela não foi criada nesse meio de todo esse Teatro Municipal [rindo].
Gianfrancesco Guarnieri: Vai ver que deve ter essa questão de genética aí, eu não sei.
Leilah Assumpção: Meio a meio.
Gianfrancesco Guarnieri: É possível que tenha. Eu acho muito importante, eu considero muito importante na minha formação esse ambiente em que eu vivi, em que se discutia e o que se falava e o que eu ouvia contar. Quer dizer, ouvia contar coisas sempre do mundo artístico e minha mãe, que era apaixonada por artes em geral, e vivia me falando de coisas, então desde arquitetura em castelos medievais que ela adorava, literatura, pintura, aquela coisa que eu sinto até uma carência em mim porque parece que eu sou meio assim, eu gostaria de estar muito mais enfronhado, mas ela que me deu, o pouco daquilo que era possível aprender foi através dela. Então, essa formação, acho que é muito legal. Eu também acho que é o seguinte: se a gente não tiver uma predisposição própria e tal, a gente pode ouvir isso tudo e participar desse jeito todo e não resultar em coisa nenhuma.
Leilah Assumpção: Muita gente devia ouvir como você e ninguém virou Guarnieri, não é [risos]?
Alex Solnik: Guarnieri, como é que começou o teatro nesse movimento seu? Como é que você começou com o teatro, como é que ele aconteceu na sua vida?
Gianfrancesco Guarnieri: O teatro eu comecei, eu acho que muita, muita, muita gente fazendo teatro na escola desde o primário participando de festas e tal, agora a coisa que eu fiz mais, que eu senti, que o teatro para mim seria uma coisa maravilhosa e logo depois eu esqueci, mas naquele momento foi no ginásio, no Colégio Santo Antônio Maria Zacarias que tinha um grupo teatral com uma produção freqüente e eu acabei participando desse grupo, custei para entrar, eu entrei, aliás, como ponto, era ponto [uma função dentro do palco], e um dia faltou um rapaz que não pode ir e tal, e eu fiz um pai, chamava Honrarás pai e mãe [risos], e eu fazia o pai que foi desprezado pelo filho, o tal de um calabouço no castelo e em um temporal incrível ele consegue se livrar da masmorra e acorrentado ele sobe no palco, tem um pequeno monologozinho e tal.
Alex Solnik: E o escritor, como é que surgiu o escritor de teatro?
Gianfrancesco Guarnieri: Lá mesmo, naquela ocasião mesmo que eu me entusiasmei e escrevi uma peça. Cometi uma peça chamada A sombra do passado, onde essa minha velha mania, eu queria criticar o vice-reitor da escola que, para mim, era um fascista. Então, eu aproveitei a peça para criticar e eu critiquei, todo mundo entendeu, apesar das metáforas, mas o público entendeu e eu fui gentilmente convidado a sair da escola [risos].
Jorge Escosteguy: Se retirar da escola. Clovis Garcia, por favor.
Clovis Garcia: Pegando essa deixa aí, você estreou como ator no teatro, para o público não escolar, em 54, numa peça chamada Rua da igreja [de Lennox Robbins]. Eu fiz a crítica. Teatro Paulista dos Estudantes no Teatro de Arena, foi em 54 e em 55, você fez o impetuoso Capitão Dick, que você foi elogiado como ator, na Rua da igreja; não foi, não?
Gianfrancesco Guarnieri: Pelo contrário.
Clovis Garcia: Na Rua da igreja, pelo contrário, quase escrevi uma bobagem naquela época e eu, graças a Deus, tive o bom senso de não escrever. E depois, você já, em 56, você no Segundo Festival Paulista do Teatro Amador, eu fui do júri, e você ganhou o prêmio de melhor ator em uma peça do Priestley [J.B. Priestley (1894-1984), escritor inglês], O inspetor está lá fora ou O inspetor nos procura [Está lá fora um inspetor, 1946], que se chamava assim. E só em 58 é que você estoura com Eles não usam black-tie, quer dizer, como dramaturgo. Antes, você traz a dramaturgia, sempre precisa dizer isso, porque o pessoal às vezes pensa que você é resultado da dramaturgia, e não é não! Você salvou o Arena que estava numa crise tremenda, o Zé Rinaldi resolveu montar sua peça e foi um estouro e salvou o Arena; depois é que veio o cenário da dramaturgia. Então, são duas linhas de atividade teatral como ator e dramaturgo. Qual das duas você tem preferência pessoal - a pergunta é dupla - e qual das duas deu uma maior contribuição ao teatro brasileiro?
Gianfrancesco Guarnieri: Quanto à contribuição, eu acho que a dramaturgia sempre trará uma contribuição maior. Dramaturgia, afinal de contas, é o texto, é a palavra, ele permanece, pelo menos permanece durante algum tempo. Tempo do fôlego que tem essa dramaturgia, é claro.
Clovis Garcia: Pode permanecer dois mil e quinhentos anos.
Gianfrancesco Guarnieri: Deve ficar.
Clovis Garcia: Não todo, mas está aí essa fase.
Gianfrancesco Guarnieri: E o trabalho do ator é esse: efêmero, teatral, e eu sinto muito que, por exemplo, a juventude hoje não possa assistir determinados espetáculos que nós chegamos a assistir e suspenderam porque não existia taipe pelo menos para documentar e não existiam essas coisas, era um espetáculo fantástico, então essa coisa efêmera do ator, e digo também como ator, eu sim, senti essa coisa de aí... mas, não, não, eu como ator eu sentia muita facilidade, quer dizer, representar para mim não dá trabalho nenhum, pelo contrario, é um prazer.
Clovis Garcia: É mais fácil do que escrever?
Gianfrancesco Guarnieri: Escrever já tem uma responsabilidade! Realmente é uma responsabilidade gravíssima, que eu não tive quando eu escrevi Black-tie, quer dizer, essa responsabilidade eu não tinha e eu acho que aquela fluição que eu tive escrevendo Black-tie eu a persigo durante esses anos todos, são trinta e cinco anos.
Jorge Escosteguy: Como é que você se sente? Porque, a rigor, a peça mais conhecida sua é o Black-tie, e foi a primeira a ser encenada. Você sente alguma “puxa, eu escrevi essa peça em cinqüenta e oito”, tem ciúmes?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu escrevi em cinqüenta e seis, ela foi montada em cinqüenta e oito.
Jorge Escosteguy: Você tem essa música permanente do Black-tie, você acha que ela não só é a mais conhecida como de repente é a melhor?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu não diria que seria a melhor, o Black-tie também foi muito uma questão de circunstância, quer dizer, o país estava vivendo um determinado momento, e nós chegamos a formar um grupo que não propriamente contestava, mas procurava prosseguir uma determinada revolução que houve no nosso teatro, que era muito bem representada pelo TBC. Então eu acho que eu tinha esse caldinho de cultura aí para fazer, a gente era levado muito a fazer, havia um estímulo muito grande em tentar realizar, embora quando estive no Black-tie jamais eu pensei, eu nunca pensei na montagem dessa peça, a não ser às segundas-feiras. Ela foi lida pelo grupo do Teatro Paulista dos Estudantes ainda em 66 [1966], houve uma leitura na casa do Mauricio Segall [escritor] e da Beatriz Segall [atriz] com os críticos presentes e todos e tal, a peça foi extremamente elogiada, eu fiquei satisfeitíssimo “puxa vida”! Eu dava pulos porque por esse pessoal aí tinha toda a minha admiração e gostaram da peça e para mim foi uma coisa importantíssima, mas eu achava que não ia ser montada, porque existia realmente o negócio de colonização sim, que o autor brasileiro era um autor brasileiro, os grandes autores não são brasileiros, não é, e um pouco está surgindo de novo agora aqui essa coisa de nós temos de pegar o que é da gente, o que é nosso, com os nossos problemas, com as nossas dificuldades, com a nossa falta de cultura, como tudo que queira, mas existe uma produção e ela é um pouco menosprezada.
Marcos Faermam: Guarnieri, você poderia, assim - perdão, sabe, aqui é o repórter que está falando - o que é que é Eles não usam black-tie, assim, para as pessoas que não conhecem? Eu lembro que eu vi, quando eu era, em Porto Alegre, quando eu era estudante e fiquei apaixonado pela peça. Eu vi, no mínimo, todas as vezes que esse espetáculo esteve em Porto Alegre, com meus amigos. Era uma história de operários e havia operários em cena no teatro brasileiro antes de Eles não usam? Ou é um marco também social no sentido de se incorporar um outro segmento social ao teatro com objeto, ou seja, o operário também tem sentimentos, ama, sofre, sonha, não é? Esse é um pouco o mundo deles, Eles não usam black-tie?
Gianfrancesco Guarnieri: É, o Black-tie trouxe, de fato, quer dizer, o operário é protagonista de uma peça teatral brasileira. Eu acho que apareceram sim operários em peças nossas, mas eram personagens secundários e tal. O ponto de vista era sempre o ponto de vista da classe dominante, da burguesia. Eu acho fundamental no Black-tie, isso que me agrada no Black-tie. Foi extremamente espontâneo, quer dizer, apenas expressou o que um autor estava sentindo, o que um jovenzíssimo autor estava sentindo, é tentar encarar as coisas do ponto de vista do oprimido. Eu acho que o Black-tie tem isso e encara esta problemática, que até hoje está aí na hora do dia. Por isso que o Black-tie permanece, eu acho que é só por isso, não é tanto pela sua dramaturgia não, não pela sua feitura, é pela problemática que ela levanta, é a questão do individual e do coletivo, quer dizer... [sendo interrompido]
Jorge Escosteguy: Do operário contra o burguês?
Gianfrancesco Guarnieri: Essa discussão de: "como é que nós vamos resolver o nosso problema?". Nós vamos resolver nosso problema em conjunto e tal, ou é a saída individual. Então, eu acho que o Tião, que é um personagem e o que podemos chamar de um personagem central da peça, ele vive esse dilema terrível, porque ele ama, ama de fato, absolutamente sincero, ele tem a sua namorada, mas ele vive a dificuldade de ser um operário brasileiro naquela histeria, ele quer sair disso, ele quer sair da própria condição. Ele acha que vai superar isso, não com o proletariado, ele acha que pode superar isso, ele saindo do proletariado indo engrossar as fileiras da classe dominante, isso ele pretende enquanto o pai, que é um homem que tem uma ideologia firme, que até é sectário, é bastante fechadão, coisa que nós no filme atenuamos bastante, mas na peça, ele era firmão, ele era stalinistão mesmo... [stalinista]
Clovis Garcia: Você fez dois papéis, não é? Na estréia você fez Tião; depois, no filme, você fez Otávio, que é o pai? [Eles não usam black-tie foi adaptada para o cinema em 1981, sob a direção de Leon Hirszman]
Gianfrancesco Guarnieri: Do Flavinho [Flávio Guarnieri, filho do entrevistado], que fazia o Chiquinho. Eu vi ele fazendo o filme. Mas o pai que não admite absolutamente que o filho tenha essa atitude individualista, que ele chama, não é? Uma atitude que é contra a classe, que rompe com a própria classe à procura de um caminho que esse pai não vê, que possa ser conquistado individualmente apenas coletivamente... [sendo interrompido]
Jorge Escosteguy: Essa peça hoje - você falou o pai stalinista e tal - essa peça hoje, diante do movimento do Leste Europeu, perestroika e tal, a telespectadora Rosana Aparecida Silva, daqui de São Paulo, pergunta que mudanças do Leste Europeu influenciaram no momento intelectual no Brasil e na América Latina, quer dizer, ela hoje correria o risco de ser panfletária e fora da realidade, ou não?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, porque...
Jorge Escosteguy: Pelas colocações políticas, eu digo, não pela situação.
Gianfrancesco Guarnieri: Não, não tem colocações políticas, as colocações elas não são em termos políticos, é muito mais de uma visão ampla de vida, que ultrapassa até a política. Este pai, ele não tem, ele tem uma visão política, evidentemente, tem o seu caminho, ele sabe seu caminho político, aquele que ele acha que é o certo, é o justo. Agora, ele tem uma visão do mundo, uma visão da própria vida, vou dizer que tem uma filosofia que o leva a agir de uma determinada maneira. Então os termos eu acho que são mais amplos quando se fala assim, em termos políticos e tal, parece que é colocar em torno de alguns dogmas, em torno de algumas falsas certezas, não é o caso, ele é o homem que sente de fato dessa maneira e ele se relaciona com a família exatamente dentro dessa sua visão e tem a mãe, que é a dona Romana, que eu acho que tem uma visão mais ampla ainda do que ele, embora ainda não tenha o conhecimento político que ele tem, mas ela tem esse conhecimento da verdade, esse conhecimento da pessoa que luta com essa vida duramente, mesmo porque leva essa família praticamente nas costas. Então tem uma objetividade que às vezes é cruel, mas uma compreensão vastíssima.
Thereza Walcacer: Eu queria perguntar para você como foi para você há trinta e três anos, em uma hora de tanta militância, escrever esse texto do individualista, vamos dizer assim, do filho?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu vou dizer o seguinte: que eu não tinha absolutamente consciência nem noção do que eu estava fazendo, não tinha mesmo.
Marcos Faerman: Você tinha vinte e dois anos.
Gianfrancesco Guarnieri: Se me perguntarem, o Black-tie não teve escaleta, não. Eu não sabia o que eu ia fazer. A minha alegria era que já estava fazendo teatro e tal, era chegar em casa à noite, depois do espetáculo, pegar a minha maquininha Remington [marca da máquina de escrever] e era um prazer mesmo, chegava até tremer um pouquinho.
Marcos Faerman: Você morava sozinho, como é que era a sua vida?
Gianfrancesco Guarnieri: Morava com meus pais.
Marcos Faerman: Ah! Morava com os pais! E você escrevia no teu quarto? Como era isso?
Alex Solnik: Isso aconteceu aos vinte e dois anos, você já tinha acumulado uma experiência para você escrever esses personagens, como é que eles... de onde você tirou, tirou a...?
Gianfrancesco Guarnieri: Teve alguns fatores importantes, não é? Um fator importante foi essa criatura maravilhosa que ajudou a me criar, que chamava Margarida, que era a nossa "faz tudo", a cozinheira e tal, que faz tudo. Meus pais, sempre com muito trabalho e tal, então eu ficava muito... vivia...
Jorge Escosteguy: Ela era um pouco a dona Romana [personagem de Eles não usam black-tie], não?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, a dona Romana é a mãe dela, eu me baseei muito na mãe da Margarida para... e chamava Romana, a mãe da Margarida chamava Romana.
Leilah Assumpção: A mãe da Margarida que te levava para passear nos morros.
Gianfrancesco Guarnieri: E ela me levava porque ela ia visitar a família e então eu ia junto, era uma família numerosa. Então dali eu conheci o morro, conheci favela e em uma idade importante, essa infância mesmo, o olho da gente, o olho arregalado e começa a pescar, perceber tudo e o subúrbio, quer dizer, bom, essa foi uma experiência para mim muito importante. E a experiência do movimento estudantil que eu, logo aos quatorze anos, eu já estava no movimento estudantil. E o movimento estudantil que tinha um bom relacionamento com o movimento operário, os sindicatos e tal, o partido... o partido comunista e tal, que teve um desempenho fantástico.
Marcos Faerman: Você entrou no partido assim, com quantos anos, Gianfrancesco?
Gianfrancesco Guarnieri: Na juventude, com quinze.
Marcos Faerman: Quatorze... Quinze anos?
Gianfrancesco Guarnieri: De quatorze para quinze.
Marcos Faerman: O PC [Partido Comunista] juvenil?
Gianfrancesco Guarnieri: Era a União da Juventude Comunista.
Leilah Assumpção: Tinha líderes femininas, nesse...?
Gianfrancesco Guarnieri: Tinha.
Leilah Assumpção: Quem, por exemplo?
Gianfrancesco Guarnieri: Olha, no movimento estudantil tinha uma, por exemplo, que era a Silvinha Grabois [sobrinha de Maurício Grabois (1912-1973), importante militante comunista brasileiro, fundador do Partido Comunista do Brasil - PCdoB - e morto em Góias na Guerrilha do Araguaia, como ficaram conhecidas as operações contra o regime militar que se deram à beira do Rio Araguaia, nos anos 1970. Silvia Grabois tinha cerca de 18 anos quando lutava contra o governo, nos anos 1950, e chegou a ser presa diversas vezes], por exemplo, para citar um nome. Eu não me lembro assim... Agora tinha uma atuação das mocinhas na juventude e das mulheres no partido.
Leilah Assumpção: Mas a atuação como líderes ou apenas como secretárias?
Gianfrancesco Guarnieri: O Partido Comunista foi o primeiro a levantar a questão realmente da mulher especificamente, tendo suas organizações de mulheres, não é?
Leilah Assumpção: E no Arena, tinha dramaturgas, teve a... como é que chama?
Gianfrancesco Guarnieri: Teve a Edy Lima, a fantástica Edy Lima [1924, jornalista, teatróloga, roteirista de cinema e premiada ficcionista, com destaque para a obra A vaca voadora].
Leilah Assumpção: Então, a Edy Lima, agora, quer dizer, Edy Lima que todo mundo conhece, por que Edy Lima não continua a escrever assim? Vocês deram apoio a ela?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu não sei, eu sei que o meu filho está fazendo uma peça da Edy Lima, viajando pelo Brasil.
Leilah Assumpção: Ela voltou? Ai que bom!
Gianfrancesco Guarnieri: Não, essa é a antiga, é A farsa...
[Falam simultaneamente]
Gianfrancesco Guarnieri: A farsa da esposa perfeita [comédia escrita por Edy Lima em 1959].
Leilah Assumpção: Porque ela tem muito talento, eu acho que ela devia ter continuado naquela época.
Gianfrancesco Guarnieri: Não, a Edy Lima, a Edy se dedicou mais à literatura mesmo de... tem livros para infância e tudo para as crianças e...
Jorge Escosteguy: Guarnieri, você diz que aos vinte e dois escreveu uma peça sem saber o que estava escrevendo, sem ter consciência do que estava escrevendo. Você entrou para o Partido Comunista aos quatorze. Você tinha consciência do que estava fazendo?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu tinha consciência de que eu queria atuar, a atuação, eu achava essa questão de responsabilidade diante das coisas e isso me veio muito cedo, sabe? Porque tinha que fazer alguma coisa e ali houve um momento, ou seria pelo que fosse dedicar no campo do misticismo da religião e tal ou entrar em uma prática política e tal, acabou vencendo a questão dessa prática política. Agora, eu tinha consciência, embora eu acho que o fato da atividade, da atuação às vezes com... às vezes a forma esmaga qualquer conteúdo [rindo], também o fato da própria atividade em si às vezes esmagava aquele conteúdo. Eu digo isso porque eu cheguei a ser presidente de um Doris Day Fan Clube e eu não sabia quem era Doris Day [Doris Mary Ann von Kappelhoff, conhecida como Doris Day, cantora e atriz norte-americana das décadas de 1950 e 1960; como cantora é conhecida pela música Que será, será e, como atriz, recebeu uma indicação de melhor atriz ao Oscar, pela atuação em Confidências à meia-noite, em 1959]. Eu queria era agitação de ter um... [risos]
Leilah Assumpção: Doris Day... [risos]
Gianfrancesco Guarnieri: Onde, algo agitar.
Jorge Escosteguy: Agora, todos esses anos de militância... porque hoje, de certa forma, ser do Partido Comunista foi uma coisa meio fora de moda, meio ultrapassado, o Fabiano de Lima, de José Bonifácio [cidade do interior paulista], pergunta, inclusive, por que você foi filiado ao PCB [Partido Comunista Brasileiro] e por que depois mudou-se, segundo ele, para o PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira]. E você falou um pouquinho em misticismo e, em uma entrevista que você deu a O Globo, você disse que teve uma época, aos quarenta e dois anos, em que ficou totalmente paranóico com a idéia de que algum dia ia morrer, e agora gostaria que houvesse uma outra vida, que seria compatível com a sua militância, com a sua ideologia comunista, vamos dizer assim?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, a questão aí é qual é a pergunta mesmo em relação ao partido?
Jorge Escosteguy: Por que você foi filiado ao PCB e como você vê isso hoje, essa militância do Partido Comunista, durante todos os anos. E o Fabiano diz: "Por que você trocou pelo PSDB que você foi, trabalhou agora?".
Gianfrancesco Guarnieri: Não, o problema aí é o seguinte: porque de fato, na época, o PC [Partido Comunista] era o único partido representativo, de fato, da maioria explorada e tal. Quer dizer, era aquele que, através do seu discurso e de sua prática política, de fato, defendia e procurava expressar as necessidades e conquistar espaços que essa maioria não possuía, não havia muita alternativa. E eu acho que ali também era muito polarizado: ou você ficava sendo um sujeito da direita ou, indo para esquerda, você ia ficar com o Partido Comunista, não tinha alternativa, não é? Eu devo dizer que eu sou - reconhecendo como se reconhece agora, tendo que se reconhecer isso com muita calma, os erros cometidos é às vezes uma falta de posicionamento das horas mais necessárias - eu tenho a maior admiração pelas pessoas que participaram, que fizeram esse partido e pela sua luta. E tenho a maior admiração, porque eu acho um exemplo de dignidade, de generosidade que em toda a história do Brasil, a não ser os nossos capitães de 68, que também tiveram essa generosidade. Então, o fato de pertencer ao partido vinha ao encontro da necessidade, que é muito próprio da juventude, sempre há necessidade de mudança, há necessidade de reformular as coisas, há necessidade de lutar pela justiça, pela liberdade, essas coisas todas. Agora, com esse processo todo, com esse processo todo, eu tive um afastamento do partido, a partir de 64. Não foi nem formalizado nem nada, foi uma coisa mais ou menos natural, e pelas circunstâncias, também. E o processo brasileiro tomou outros rumos, então o movimento, o PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], representou em um determinado momento a possibilidade que nós tínhamos de fazer a oposição a um determinado sistema, embora a gente soubesse qual era essa formação e qual era essa frente. Hoje em dia, eu devo dizer, eu não pertenço ao partido do PSDB, não sou filiado a nenhum partido. Eu tenho sim uma admiração muito grande por uma liderança do PSDB, que é a do senador Mário Covas, que eu considero um dos maiores políticos desse país, e fiz e farei campanha para que esse cidadão, que honra esse país, possa ocupar posições que lhe permitam expressar aquilo que ele realmente sente.
Jorge Escosteguy: Eu vou, antes de passar para o Sofredini, eu só queria voltar àquela questão do misticismo. Há pouco você falou dessa coisa de que você disse, naquela época aos três anos, que agora gostaria que houvesse uma outra vida, como é que ficou resolvida essa coisa que você... O misticismo, o medo da morte?
Gianfrancesco Guarnieri: É, esse negócio do medo da morte é uma questão que os médicos explicam que determinados períodos aí em que dá umas certas confusões na cabeça, então aquela iminência da morte e sempre sentir que a morte está pra chegar, mas isso é um desequilíbrio não é, então a gente cura, eu acho que aí, não é uma questão assim de fundo mesmo, é uma questão de determinado momento que, de fato, deu pra curar.
Jorge Escosteguy: Sofredini, por favor.
Carlos Alberto Sofredini: Guarnieri, você falou agora, um pouquinho, faz um tempinho sobre a questão da colonização cultural e era um Guarnieri mais dramaturgo, que eu queria fazer a pergunta: atualmente a gente tem, algum tempo atrás, na imprensa, se colocou uma questão, discutindo um pouco essa história da tirania do diretor atualmente no teatro, e assim com todas as letras, na década de 80 o dramaturgo brasileiro desapareceu. Eu gostaria de saber assim, juntando essa coisa, parece que os diretores atualmente estão voltando e querendo pegar a reportagem, a matéria era sobre isso, pegar os clássicos...?
Leilah Assumpção: A atriz principalmente, o diretor e a atriz.
Carlos Alberto Sofredini: É, querendo pegar os clássicos, porque não há dramaturgia, porque a dramaturgia brasileira morreu. Eu queria que você, um dramaturgo já, enfim, de tantos anos, como é que você se sente e se posiciona perante isso, relacionado com essa história também de que o dramaturgo brasileiro tem mais dificuldade do que os estrangeiros, que é: quem vêm de avião é quem tem vez?
Gianfrancesco Guarnieri: Bom, eu ia me sentir mal dizendo que a dramaturgia morreu, porque eu parei de escrever durante algum tempo, que é: ele deixou de escrever, então ela já morreu [risos]. Tinha muita pretensão. Morreu coisa nenhuma, morreu coisa nenhuma, basta ver, ela escreve [referindo-se à Leilah Assumpção], não é?
Leilah Assumpção: Eu escrevo.
Gianfrancesco Guarnieri: Tem o Abreu... [1952, Luis Alberto de Abreu, dramaturgo e roteirista cinematográfico]
Leilah Assumpção: E ele escreve, premiadíssimo.
Gianfrancesco Guarnieri: Você está com peça, que vai começar agora, tem o Flávio, né, que está aí, e assim "enes", né, vamos citar os nossos dramaturgos, os que existem, o que eu acho que existe, e aí, vão me desculpar os senhores, mas para mim é uma grande armação e essa armação vem de fora mesmo, essa armação e nós estamos dentro dela, como sabe, sem saber que estamos e é terrível mesmo querer acabar com isso, porque nós tivemos a dramaturgia perigosa.
Marcos Faermam: O que é essa armação?
Gianfrancesco Guarnieri: Armação é armação, mas armação de todo um projeto ocidental para esse mundo, eles têm de preparar esses países que ainda não se desenvolveram e tal para essa "massinha de consumo".
Marcos Faermam: É a teoria do coronelismo cultural?
Gianfrancesco Guarnieri: É claro. Mas isso é evidente e nós temos dentro de nós o que eu chamaria até de quinta coluna [expressão utilizada originalmente durante a guerra civil espanhola e que é usada atualmente como sinônimo de traição, designa aqueles que simulam ser aliados, mas que, através de suas idéias, ou suas ações, servem aos adversários], que torna isso possível e tal e convence as pessoas disso...
Marcos Faermam: Mas quem são, o que é essa quinta coluna?
Gianfrancesco Guarnieri: Ela nos ocupa a mídia, ela nos ocupa...
Marcos Faermam: Mas o que é, na imprensa, na televisão?
Gianfrancesco Guarnieri: Inclusive nós temos na imprensa nas televisões, exceto... Existe, isso é clandestino, né, é clandestino, ele não se apresenta, ele não tem feição, ele não vem disputar democraticamente, né, dizendo, né, o que acha, não, ele perpassa, ele é sub-reptício, agora, que isso existe, existe.
Alex Solnik: Um exemplo disso é uma coisa que se declara...
Leilah Assumpção: Acabar com a dramaturgia nacional mesmo.
Gianfrancesco Guarnieri: O exemplo disso tudo é o que se lê, né, nos jornais, o que é sempre mostrado como o melhor, essa campanha de descrédito de tudo o que nós fazemos é até bom quando a seleção não vai bem, porque é bom também quando o futebol não vai bem, é bom que nós sejamos porcaria, é bom, é bom que a gente perca a alto confiança, é bom que a gente seja inseguro, é bom, é bom que... que domina mais essa...
Leilah Assumpção: Você acha que aqui nós somos tão desprestigiados e lá fora, nós somos tão valorizados, cada peça tua ou minha que é montada lá fora, você é muito bem recebido, você é muito bem tratado, quer dizer, esse grupo não está lá fora, não é?
Gianfrancesco Guarnieri: Eles gostam muito de nós, as pessoas inteligentes, lá fora, acham que o nosso país não é sério, porque nós deixamos, né, que haja um governo do tipo que nós temos, mas a culpa é de quem? Do governo? Não, a culpa é nossa, nós temos a responsabilidade disso, todos nós.
Marcos Faermam: Tem havido espetáculos teatrais, inclusive, cito Antunes [José Alves Antunes Filho, (1929-), destacou-se, principalmente, com a obra Macunaíma, 1978, de Mário de Andrade, pertence à primeira geração de encenadores do Teatro Brasileiro de Comédia – TBC, participou do movimento de renovação cênica na década de 1960 e criou o Centro de Pesquisa Teatral - CPT, que mantém um disputado curso para atores], por exemplo, que tem sido, tem ganho prêmios e tem feito muito sucesso aqui no Brasil, que tem feito muito sucesso no estrangeiro, eu gosto muito de ti, mas eu acho muito perigosa esta história do, digamos assim, da grande conspiração nos termos em que ela é apresentada, eu acho que talvez eu não tenha entendido bem a coisa, mas eu tenho visto o Antunes agora, o Cacá Rosset [Carlos Eduardo Zilberlicht Rosset, (1954-), diretor e intérprete, destaca-se como encenador irreverente e comediante], que tem feito espetáculos muito prestigiado aqui no Brasil e que agora nem começou a carreira da peça dele e tem feito uns escândalos nos Estados Unidos, mas, enfim, eu digo, tem havido trabalhos teatrais que eu vejo, a TV Globo, por exemplo, quando aparece os espetáculos brasileiros, que faz boas matérias e não estou falando exatamente, não tenho nada contra a TV Globo, com a Manchete, agora tem espaços culturais, nos jornais, em tudo mais que as coisas aparecem, eu vejo entrevista de diretores, de atores e assim por diante, então eu acho que essa grande conspiração foi colocada, inclusive coloca em termos estranhos os jornalistas presentes, que faz parte de uma máquina de deformar a cabeça das pessoas, é bem assim?... Eu queria só entendê-los.
Gianfrancesco Guarnieri: Não, eu não quero absolutamente chegar aí, porque acho que nós temos dentro da nossa imprensa, seja ela televisiva, seja ela escrita e tal, pessoas que lutam, que defendem, agora não depende deles né, não depende deles, mas temos, eu acho, temos sim recursos humanos desse tipo fantásticos, eu sou o primeiro a dizer. Agora, há de concordar comigo, porque quando o Cacá Rosset faz o maior sucesso no festival nos Estados Unidos, essa notícia me sai dentro de um caderno [de jornal] embaixo, modestamente e sempre, na primeira página ou com o maior destaque, sempre, coisas que culturalmente para nós não tem assim um grande interesse.
Jorge Escosteguy: Guarnieri, agora vamos para uma coisa um pouquinho mais objetiva nessa questão. O Décio, daqui de São Paulo, ele telefonou e perguntou o que você acha do trabalho teatral do Antunes Filho e o estilo do Gerald Thomas? [1954, diretor de teatro famoso por seu estilo polêmico e provocativo]
Gianfrancesco Guarnieri: Acho que são admiráveis, ambos, embora em linhas extremamente diferentes, o que o Gerald Thomas consegue dentro de sua concepção, dentro de como ele encara a arte, dentro daquilo que ele quer expressar, a coisa que eu acho que é extremamente respeitável, pra mim isso será respeitável porque eu não consigo ter empatia diante de um trabalho, o problema é meu é pessoal, já o trabalho do Antunes, eu acho que é um trabalho que poderíamos dizer de um idêntico, vigor, e da maior, da maior competência que para mim fala mais, talvez por que, ele não esconde os seus conteúdos, ele joga os seus conteúdos e é aí que eu fico.
Jorge Escosteguy: Guarnieri tem um, mistério aqui, acho eu, não sei, têm dois telespectadores, de lugares bastante diferentes, Valcir dos Santos, de São Paulo, e o Luís Amaro, de Resende do Rio de Janeiro, telefonaram perguntando para você, sobre a última cena do [filme] Black-tie, da Fernanda Montenegro, escolhendo feijão, foi uma cena preparada, escolhida, o que aconteceu com essa cena, enfim, agora eu fiquei curioso, termina o filme com ela escolhendo feijão, foi planejada?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, não termina o filme, é a penúltima cena do filme, é a última cena da peça. A peça terminava com a Romana, depois que o Chico vai embora, então entra ela escolhendo feijão, já no filme a coisa piora, por que há uma morte, inclusive a morte do Bráulio, então essa cena, ela provocou de fato, um grande entusiasmo, sempre, onde o filme foi apresentado, não é?
Jorge Escosteguy: Por que?
Gianfrancesco Guarnieri: Porque ela... bom, em primeiro lugar, porque tinha a Fernanda Montenegro ali, foi quem representou, então já foi meio caminho andado. E era uma cena muito, foi muito feliz, o João foi muito feliz na montagem na edição dessa cena, na relação entre os dois, e com tudo aquilo que aconteceu. Fica claro que é um grande momento.
Jorge Escosteguy: Quer dizer, não houve nada de excepcional na cena.
Gianfrancesco Guarnieri: De fato, um grande momento do cinema, foi... no cinema, foi como também, essa cena, tinha um impacto muito grande, também no teatro, quando outra extraordinária atriz fazia aquela [personagem], a Lélia, também era uma questão muito...
Maria Amélia Rocha Lopes: Guarnieri, você falou, certa vez em uma entrevista, é o seguinte: não sou porta-voz de novidades, geralmente os porta-vozes que aparecem por aí, nesses tempos difíceis são oportunistas, fatura-se em cima da perplexidade alheia, são os gurus ricos, você falou isso bastante tempo, eu gostaria que você atualizasse essa figura do porta-voz, e desse um exemplo de o que você considera um porta voz dentro desse perfil?
Gianfrancesco Guarnieri: O negócio é o seguinte: quando você considera isso novo, é uma coisa que me deixa um pouco, assim: Bom, o novo, não vamos perseguir o novo, vamos perseguir aquilo que é o que a gente quer fazer, nós vamos perseguir o que nós achamos certo, que nos dá prazer, o que a gente acha que pode comunicar para os outros de bom, de legal, não que seja novo, às vezes nós podemos pegar uma coisa que já foi feita e a gente faz de uma forma diferente, né, e ela surge, já com outra vida, né, é modelada, agora essa coisa do novo, pelo novo e querer empurrar goela abaixo, um negócio novo é que acho eu aí um guru um pouco ocupacionista.
Alex Solnik: Você inclui nisso um Brasil novo também,
Gianfrancesco Guarnieri: Hein?
Alex Solniz: Você inclui esse Brasil novo, e como se chama essa nova fase?
Gianfrancesco Guarnieri: De uma certa maneira, mas que novo tem aí, vamos reconhecer, o que tem de velho e que realmente não precisa jogar fora, tem tanta coisa que precisamos jogar fora e que é já lixo para nós, eu não vejo assim, agora, tendo o novo para mim, essa coisa do novo não é, precisa ser novo, o novo pelo novo, por que não?
Jorge Escosteguy: Guarnieri, antes de falar de um Brasil Novo, antes de passar para Leilah, aproveitando a deixa, Valter da Silva, de São Bernardo, e o Marcelo Madureira, aqui de São Paulo, bairro do Limão, pergunta: "O que você acha do governo Collor, do governo do Brasil Novo [em referência ao Plano Brasil Novo, apelidado de Plano Collor]?
Gianfrancesco Guarnieri: Olha, eu acho muito, muito... Eu acho que o brasileiro está achando agora, quer dizer, o Collor teve uma votação expressiva, exerceu-se sim o direito democrático, houve uma escolha dos eleitores, da população, acreditando em uma possibilidade grande de mudança, acreditando na juventude, acreditando no que eu chamo do “sebastianismo” [rindo], que é surgir das águas com uma espada, com um coração fogoso e para resolver todos os problemas. Acho que todos nós aprendemos que não é assim, sem uma estrutura política, sem realmente um apoio consistente de forças organizadas. Então, é muito difícil se conseguir alguma coisa. Por outro lado, imediatamente foi um governo que traiu a sua palavra e começou com um brutal de um confisco. Esse confisco que cai não sobre os verdadeiros especuladores, não sobre os criminosos e contra economia, mas que cai sobre uma população que tinha, maleável, um pouquinho, porque os outros saíram fora daquilo com grande rapidez, quem ficou com o dinheiro preso até hoje, foi o coitado do aposentado, quem ficou com o dinheiro preso até hoje é aquele que podia fazer um pequeno negócio, então isso foi muito mau e eu acho que a população sentiu isso, esses planos, que vêm se colocando, a gente vê que, não são tão bons assim, não são salvadores, coisíssima nenhuma, a questão contra... da moralidade, da coisa pública, contra os marajás, eu diria que foi uma falácia, não é, por que os escândalos se sucedem, estão aí na maior impunidade e etc... Então, nós estamos na mesma, não conseguimos ainda sair fora desse negócio, do ponto de vista da área na qual nós atuamos, aquilo então foi uma coisa terrível, porque hoje, este período de Terra arrasada, acabar com tudo, independentemente, se as coisas fossem ótimas, não eram ótimas, mas existia alguma coisa, e tal, eu não posso concordar.
Clovis Garcia: E o Ipojuca Pontes [jornalista, escritor , produtor teatral e cineasta brasileiro, foi secretário nacional da Cultura no governo de Fernando Collor de Melo]?
Gianfrancesco Guarnieri: Pois é, o que foi o grande capataz dessa.
Clovis Garcia: A nota para ele?
Gianfrancesco Guarnieri: Dessa descrição.
Clovis Garcia: Qual é a nota que você dá para ele?
Gianfrancesco Guarnieri: Não, não tem nota, nota a gente dá para quem a gente acha que está ali exercendo realmente uma função responsável, eu não dou nota porque, eu não o considero responsável.
Leilah Assumpção: Bom eu mudei, em função dessa pergunta, eu queria fazer uma pergunta agora para o dramaturgo, que eu conheço, o Guarnieri, e não para o homem político e social e sem usar aqueles.... por nada. Bom, se você tivesse que escrever hoje uma peça sobre o Brasil atual, e começar pelo gênero, o quê que você escolheria? Comédia, tragédia, drama, sátira, só o que você escreveria?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu estou com esse problema [risos]. Eu acho que é uma mistura disso tudo, não é, porque a gente vai pensando nas coisas, vai fazendo, não é, de repente, nós caímos em uma coisa assim muito séria e de repente, a gente sai daquilo...
Leilah Assumpção: Eu sei que a gente não domina, mas se você tivesse que dominar, você tem que escolher um gênero e vai até o fim, você escolheria o quê?
Gianfrancesco Guarnieri: Acho que, ainda, a sátira. [gênero literário, que também se aplica ao teatro e que se vale da ironia para censurar ou ridicularizar alguma forma do comportamento humano, as instituições, os costumes e as idéias de uma época.]
Leilah Assumpção: Sátira.
Gianfrancesco Guarnieri: Ainda.
Leilah Assumpção: Como você trabalha com a palavra e é um gênio da palavra, eu queria você me dissesse em uma palavra também, a pergunta é para o dramaturgo, qual a palavra que resumiria a sua experiência, como funcionário público, você foi secretário da Cultura [1984-1986, gestão de Mário Covas - PSDB - na prefeitura da cidade de São Paulo]. Então, como funcionário público, qual foi sua experiência, uma palavra que resumisse isso, tipo enriquecedora?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu tenho duas.
Jorge Escosteguy: Desculpe, uma pergunta também feita pelo Dudu Eugênio, daqui de São Paulo. Como foi sua experiência, inclusive com os artistas da periferia, em quanto secretário da Cultura?
Leilah Assumpção: Mas, uma palavra.
Gianfrancesco Guarnieri: Eu tenho duas palavras: Virgem Nossa, Virgem Nossa!
Leilah Assumpção: Virgem nossa [risos]!
Gianfrancesco Guarnieri: Porque, de fato, a gente, no meu caso, por exemplo, eu não pretendia absolutamente seguir por esse caminho. Quer dizer, foi uma coisa puramente circunstancial o fato de ser convidado a exercer aquele cargo, em virtude de um projeto, de um plano, então todo o entusiasmo para a colocação em prática desse plano começa a esbarrar com uma realidade, que a gente pode ter um conhecimento talvez um tanto teórico dela, mas que não tem nada a ver com a prática diária, do cotidiano desse exercício. Agora eu posso dizer que, embora eu não pretenda de maneira nenhuma exercer cargos desse tipo futuramente, foi uma experiência interessantíssima, e quanto a todo esse movimento de periferia, eu só tenho mesmo que me sentir grato, porque, de fato ele existe. Nós conseguimos o levantamento de mais de mil grupos mais atuantes na cidade de São Paulo, a grande São Paulo, nós tínhamos em cada fim de semana, apresentação desses grupos em praças, tem uma coisa que me deixou com a maior felicidade, isso eu vou dizer, com reserva, porque não há ainda uma estatística, não há um estudo sério, mas isso me foi dito por delegados, que quando eram feitos esses shows, que ocupavam grande parte do sábado e grande parte do domingo, que havia uma diminuição na criminalidade familiar, que dizer essa coisa de briga de família, porque as bebedeiras diminuíam também, tem uma série de componentes, aí...
Jorge Escosteguy: Guarnieri, antes de passar para Thereza, essa pergunta foi feita pelo Jaime Souza Marco, aqui de São Paulo. Thereza, Por favor.
Thereza Walcacer: Bom, depois dessa experiência na administração cultural, assim, como é que você vê esse novo plano de incentivo à cultura que está aí para esse novo projeto?
[...]: Lei Rouanet
[...]: É... esse novo projeto.
Gianfrancesco Guarnieri: Eu estava vendo, e eu não o conheço, eu só sei pelo que eu li na imprensa, agora eu devo dizer que é com um certo alívio, que eu vejo que está existindo um recuo da posição oficial em torno dos problemas culturais, não só para as pessoas que foram colocadas à frente, que merecem o nosso respeito todo, mas como também, já na prática a gente vê que estão procurando trabalhar e etc. É necessário ver se vai existir uma vontade política, realmente, do governo federal para que essas coisas possam marchar. Agora se nota que há um interesse maior em discussão com as pessoas da área, representantes que estão presentes às realizações como o encontro que houve em Ribeirão Preto dos grupos permanentes do teatro, que existem por aí e ninguém sabe, porque, aí, a imprensa não divulga, porque, aí, é necessário que se divulgasse mais, mas estavam presentes, estavam discutindo, respondendo todas as perguntas, sofrendo as maiores críticas e tal, é muito democrática, vamos dizer assim, e foi uma coisa que me deu também mais, sabe, me deu um pouco mais de.ânimo. Eu não sou de terra enraizada nem nada, acho que a gente não pode chegar, somos contra, e evidentemente eu não votei no senhor Fernando Collor, eu votei no senhor Mário Covas [candidato à presidência da República em 1989 foi derrotado no primeiro turno], evidentemente, que eu acho que se o senhor Mário Covas estivesse na presidência da República tudo seria diferente, talvez não, mas para mim seria diferente [riso]. Mas não é por isso, não é por isso que eu não, não, eu quero que marche, que vá pra frente, eu não tenho interesse que o circo pegue fogo, quero que a coisa marche, que a coisa caminhe... [sendo interrompido]
Jorge Escosteguy: Clovis Garcia, por favor.
Gianfrancesco Guarnieri: E é só um indício de que ela pode caminhar.
Clovis Garcia: Guarnieri, eu vou retomar o tema do operário, do teatro brasileiro anteriormente ao Black-tie, só se tem notícias de três peças que tratam do operário centralmente, uma que é uma peça inacabada do Oswald de Andrade, sobre a greve de 1917 [greve geral de inspiração anarquista, em São Paulo, e que seria o tema da peça inacabada de Oswald de Andrade (1890-1954), autor modernista de destaque na literatura brasileira]; a outra, Andaime, de Paulo Torres [considerada a primeira peça inspirada no modernismo alemão, russo e francês e que foi exibida na inauguração do Teatro Social de Jaime Costa], que foi montada em 1963 por Jaime Costa [1987-1967], e Deus lhe pague, do Joraci Camargo [(1898-1973), jornalista, professor, cronista e teatrólogo, abordou questões do proletariado, a princípio de modo ingênuo e, depois, de forma mais explícita em Deus lhe pague, em 1933, peça que alcançou prestígio internacional e foi representada mais de 14.000 vezes no Brasil], muito discutida, e etc.. Você pega esse tema e coloca centralmente, você só vai retomar o tema depois, com o Gimba [Gimba, presidente dos valentes, peça teatral de Guarnieri, 1959, cujo tema central é o morro carioca e a difícil sobrevivência das populações marginalizadas] que trata mais do morro, e eu vou dizer um pouco idealizado, um pouco romantizado, depois você pega a Semente [peça de Guarnieri que enfoca a organização do Partido Comunista e a atuação de uma de suas células num momento de greve operária] aí você trata no termo diretamente, já no outro enfoque, outro enfoque importante, depois esse tema do operário se dilui um pouco, no sentido, que você abandona, precisamente, uma classe e pega o problema do Brasil a estrutura toda não é, seja no aspecto histórico do Arena, que conta Zumbi [estréia em 1965, encena a saga dos quilombolas, escravos fugitivos que se refugiavam nos quilombos e fala de uma revolução, vislumbrando a possibilidade da construção de uma realidade mais justa e mais humana], Tiradentes e etc. [Arena conta Tiradentes, 1967, enfoca a Inconfidência Mineira e a luta contra a opressão]. Mas, principalmente, ao meu ver, Castro Alves pede passagem [1968], que é uma das peças que eu mais gosto, que eu colocaria assim, o Black-tie, talvez, até melhor; e quando você pega em um período em que você diz: Vivemos em uma época em que é mais fácil falar da Patagônia do que do próprio país, em uma entrevista sua de 1976 para o Jornal do Brasil, aí você vai pegar o Botequim [1972]; Um grito parado no ar [1973], que pega mais o teatro e principalmente o Ponto de partida [1976], quer dizer você está pegando a estrutura maior, como é que você fez essa evolução: do operário que é uma classe determinada e pega toda estrutura do país?
Gianfrancesco Guarnieri: É peguei por uma... essa preocupação e essa preocupação já deixou de ser uma preocupação, vamos dizer militante, não é, de que eu deva pegar uma determinada classe que seria da vanguarda e eu acho que é. De qualquer mudança efetiva, para me preocupar com a coisa maior, porque eu acho que eu comecei a ver melhor um pouco as coisas, então eu vi que as dificuldades eram maiores e eu estava sendo, de certa forma, um pouco esquemático para mim mesmo não é, então essa foi a maior preocupação. Agora, teve outros problemas seríssimos que era o problema da censura. Que dizer, depois de 1964 a gente não tinha como, e eu gostaria de ter, por exemplo, tentado continuar no tema. Por exemplo: pegar A semente, A semente é que me interessava, eu digo: não eu preciso continuar trabalhando naquele tema, não era possível, quer dizer eu devia falar de uma forma que não iria ser entendido nada, porque naquele estilo, e tudo, eu devia dar nome aos bois, e tal, e uma época determinada, não podia abstrair, e nós fomos levados a abstrair pela censura, não podia falar nada, não é, então tudo tinha que ser tudo meio abstratão, é por isso que eu chamo de teatro de ocasião, é nesse sentido, porque então a gente se sentia muito pressionado a fazer não exatamente aquilo que a gente queria, mas aquilo que era permitido fazer, era uma luta de esgrima o tempo inteiro e todos nós sentimos isso, não é? Uma luta de esgrima para tentar falar e eu sinto sim que para nós houve essa seqüela, a seqüela de não poder ter tido continuidade junto a um público, que dizer, ouvindo esse público, a coisa acontecendo realmente como um fato teatral de ter um processo normal de, vamos dizer, de evolução de um trabalho e eu acho que é nisso que a ditadura nos fritou bastante embora eu acho que todos nós, de uma forma ou de outra, deu a sua resposta.
Clovis Garcia: Só para completar. Mas isso não lhe deu a oportunidade de utilizar uma simbologia para esse seu teatro que deixou de ser o torneio, o Botequim também simbólico do ponto de partida - a censura não entendeu nada, graças a Deus! A censura com toda expressão paranóica de qualquer entidade neurótica, ela é realmente burra e bloqueada, ela não entendeu nada o que era um Ponto de partida... e passava-se na Espanha no século XVI.
Gianfrancesco Guarnieri: Tem lenda não é, era baseado em uma lenda e tal.
Clovis Garcia: Era uma lenda, não sabia nada o que era o caso real, concreto que tinha acontecido aqui, isso não lhe deu uma dimensão maior na dramaturgia, você podendo trabalhar na linha do simbolismo, do elemento simbólico e etc.?
Gianfrancesco Guarnieri: Ah! Sim, isso sem dúvida, nós fomos forçados a isso.
Clovis Garcia: Não que eu esteja defendendo o ambiente de trabalho. Deus me livre! [riso] É que isso aconteceu fundamentalmente.
Gianfrancesco Guarnieri: E me arrependi e eu cheguei a dizer isso, mas afinal de contas eles obrigaram a gente a trabalhar com outros meios de expressivos aí, que a gente não estava habituado e isso foi bom e eu acho que a gente dá a volta por cima mesmo e acaba, mesmo nas piores condições, não é, extraindo algo positivo, eu acho que é o caso, é o caso da gente ser obrigado ao uso da metáfora, ao uso da alegoria, da abstração, procurar dominar isso e ser entendido e aí que é o grande problema de usar isso tudo, e que as pessoas saquem o que a gente quer comunicar.
Carlos Alberto Soffredini: Bom, eu queria saber assim quer dizer, tendo, você tendo feito trabalhos tão importantes, obras tão importantes na dramaturgia brasileira, por que é que atualmente de um tempo para cá, você não escreve mais, não é que você não tem escrito, mas por que é que você não escreve mais, não tem mais produção? É alguma coisa relativa a uma, a um, emfim, você também é ator, você trabalha em outras áreas, tem o tempo ocupado ou é mesmo o desestímulo, você acha que há um desestímulo real de se escrever para teatro neste país?
Jorge Escosteguy: Guarnieri, essa pergunta é feita também pela Silene Prado, que ainda pergunta a que você atribui o fracasso de sua última peça, Pegando fogo lá fora?
Leilah Assumpção: Primeiro precisa perguntar se ele não escreve mesmo, de repente ele está escrevendo uma peça, ele tem um monte de peça lá.
Carlos Alberto Soffredini: Ele não escreve mais, eu digo, não escreve mais coisa que a gente tenha conhecimento.
Gianfrancesco Guarnieri: Mas não tem não.
Leilah Assumpção: Não tem não.
Gianfrancesco Guarnieri: Eu tenho uns esboços, coisa assim, escrever sobre a peça que eu pretendo escrever, isso eu faço para meu gasto que eu chamo de exercício. Exercitar a gente tem que se exercitar, não pode parar. Agora essa questão do desestímulo, eu de fato depois de 1976, foi aquela coisa terrível que aconteceu com Vladimir Herzog, e que não é só o Vladimir Herzog, é um símbolo agora o que estava acontecendo debaixo do nosso nariz, não é só com pessoas que não pertenciam à classe do Vladimir Herzog, eram pessoas da classe dos trabalhadores, e aconteceu a mesma coisa diversas vezes, então, momentos terríveis e eu de fato depois daquilo eu quis ver quando começou a existir a abertura que foi uma pressão mesmo da sociedade que se sentia muito assustada, com tudo aquilo que estava acontecendo, e eu procurei realmente observar e ver o que ia acontecer e embora não se manifestasse fisicamente, mas eu me senti estressado sim, depois daquele período, estresse interior, aí eu me disse: como é que é isso? Não, espera aí. Agora vamos ver, vamos ver, sabe. Aquela coisa de tentar produzir, tentar escrever, tentar fazer e foram muitos anos, não é, muitos anos, então eu fiz isso, vamos ver, vamos ver o que é que aparece aí.
Carlos Alberto Soffredini: Você já está vendo?
Gianfrancesco Guarnieri: Ver se aparece um pouco de coisa nova não é.
Jorge Escosteguy: Guarnieri, antes de passar, desculpa, antes de passar a uma nova pergunta, lembrando aos telespectadores que Vladimir Herzog foi um jornalista morto sob tortura no DOI [Departamento de Operações Internas, órgão de repressão do regime militar] em São Paulo, há dezesseis anos.
Clovis Garcia: E que trabalhava na TV Cultura nessa época.
Jorge Escosteguy: Quatro telespectadores perguntam como é o seu relacionamento com os seus filhos e o que você acha da carreira deles. O Felipe Santana, o Vagner Portoleto de São Caetano, Erida Mariano de São Paulo e Sandra Santos de São Bernardo. O Felipe inclusive pergunta se você ainda costuma dar lição de moral para os seus filhos [risos].
Gianfrancesco Guarnieri: Não, eu não dou lição de moral. A relação, e é uma das coisas que eu agradeço na vida, é ter esse tipo de relacionamento com meus filhos, é um relacionamento de amizade, de respeito mútuo e de admiração mútua e de muito amor, que é fundamental nessa coisa, com todos, com todos eles, eu acho que cada qual escolheu o seu caminho.
Maria Amélia Rocha Lopes: Quantos são, Guarnieri?
Gianfrancesco Guarnieri: A Mariana, que vai escolher o caminho dela, então, são cinco, dois de um casamento e três do outro, mas todos estão indo pelo seu caminho. Tem o Flavinho e o Paulinho que estão trabalhando juntos, é uma coisa que me agrada muito, vê-los colaborando. Estão viajando com a peça, estão trabalhando juntos pra valer. O Cacau que é o terceiro, que está trabalhando comigo fazendo essa peça do Antônio Oscar Menta, Água ardente e paciência, que nós estamos fazendo agora pelo interior do estado, estaremos [risos], estaremos em Ribeirão Preto de sexta a domingo no Teatro Municipal às vinte e uma horas, se não me engano, de antemão.
Leilah Assumpção: Mas vamos aproveitar o espaço, posso fazer uma pergunta aqui?
Jorge Escosteguy: Se você me der só um tempinho, que tem os dois aqui há algum tempo.
Leilah Assumpção: Depois eu quero fazer uma perguntinha só.
Alex Solnik: Eu queria perguntar a você, você agora há pouco estava falando de colonização cultural e etc, é na mídia então e etc. Eu acho que não dá para falar de mídia no Brasil sem falar da Globo, quer dizer, a mídia da Globo é uma coisa descomunal, não é? Então eu queria saber o seguinte: eu queria saber se a Globo participa desse processo de colonização cultural, os setores da Globo, e onde se transparece, porque a gente vê seriados brasileiros, atores brasileiros e etc, se você vê, a Globo participa desse processo de colonização e como é que é para você trabalhar na Globo, não é, a Globo que foi vista como o instrumento da ditadura como ato do povo e etc. Você acha que a Globo se democratizou também, quando acabou a ditadura?
Jorge Escosteguy: Guarnieri, só complementando a Débora Ramos Assumpção, de São Paulo, e o Evaldo Rocha, também de São Paulo, perguntam qual foi a melhor novela que você participou.
Gianfrancesco Guarnieri: A questão é o seguinte: indiscutivelmente, a Globo é uma empresa que sabe fazer, de fato, televisão. Eles fazem da televisão... falando de mercado de trabalho, é um dos melhores locais para se trabalhar, se não o melhor local de trabalho. É uma empresa digna do nome de uma empresa, quer dizer sabem fazer as coisas. Agora, é uma empresa dentro de um sistema que quer ser realmente uma das primeiras empresas de telecomunicações entre as maiores do mundo, e é considerada umas das maiores do mundo, então eu vou dizer, a Globo poderia deixar de fazer parte de todo esse esquema, que eu acho montado pelo Ocidente? Não poderia, se não ela não seria essa grande empresa que é, não é, e eu não vejo contradição de a gente trabalhar onde haja mercado, porque, ou a gente se afasta totalmente, e se forma, o que eu acho que é um perigo, o guetozinhos teatrais [grupos isolados], as pessoas que desistem de ter uma participação mais pública, não é, de realmente exercer a sua profissão até a ultima conseqüência, eu acho perigoso, porque aí forma um guetozinho, eles são desconhecidos, podem viver ali naquele cantinho trabalhando para umas cem pessoas, aquele negócio eu acho que não... a gente tem que conquistar o espaço ali dentro, agora nesse sistema todo, a gente tem de lidar com as contradições. Há uma contradição dentro da Globo, há uma contradição na sua atuação em contradição com o plantel de gente que ela tem contratada, eu não sei de emissoras, que tenham contratado mais comunistas, durante o período da ditadura, do que a Globo, esta é uma verdade.
Jorge Escosteguy: E a melhor novela, que você trabalhou lá?
Gianfrancesco Guarnieri: A direção da Globo me salvou do SNI [Serviço Nacional de Informações, criado em 1964, era um órgão de repressão do regime militar], uma vez, que eles cismaram que eu tinha, eu estava dando recado a revolucionários a respeito da morte de um sujeito, por um especial que eu escrevi para o Natal, eu escrevi um especial em vinte e quatro horas, que eles pediram... tinha gorado o que eles iam fazer, e eles pediram para eu ter autonomia, e eu escrevi um negócio chamado Gino, e que morria no México, aí veio a SNI em cima, querendo saber como é que eu sabia que o Gino tinha morrido no México, e que existia um tal de Gino, e como é que eu sabia esse negócio e queriam me levar, aí veio o Daniel Filho e o Boni [João Carlos Daniel (ator, diretor, produtor e supervisor de direção) e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o "Boni", um dos pioneiros da televisão, foram, durante muitos anos, figuras poderosas dentro da Rede Globo] e que depois de muita lábia e muita conversa e tal, eles conseguiram que eu não fosse, porque se eu fosse talvez não voltasse. É, então as coisas são mais complexas, não é?
Alex Solnik: O próprio Roberto Marinho [(1904-2003) jornalista que herdou do pai o jornal O Globo e a partir dele construiu um império das telecomunicações no Brasil - a Rede Globo - que teve enorme influência nos costumes e também na vida política brasileira. Foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 1993] tem uma, tem uma famosa frase...
Leilah Assumpção: É.
Alex Solnik: De porque ele contratava tantos jornalistas comunistas no jornal O Globo, né, por que são mais competentes, produzem mais.
Jorge Escosteguy: "Escrevem o que eu quero", é o que ele queria dizer [risos].
Gianfrancesco Guarnieri: E, depois, tem a questão do prestígio também, já uma emissora como a Globo tem que ter uma programação onde também se note que ela se preocupa com o aspecto, não só do mercado e tal, mas de umas produções, digamos, de um nível um pouco maior... [sendo interrompido]
Alex Solnik: Quer dizer, quando a Globo veicula o Rock in Rio [Festival de rock’n roll que acontece no Rio de Janeiro desde 1985], por exemplo, você acha que ela está nessa armação, quando ela faz o Rock in Rio, aquela massa de...
Gianfrancesco Guarnieri: Ela está, ela está.
Alex Solnik: Nessa ocasião, por exemplo, é uma, faz parte dessa armação?
Gianfrancesco Guarnieri: Ela está faturando, e faturando de todos os sentidos, não é faturando só, é faturando no domínio, no poder, né, tudo isso é um jogo de poder, não é mesmo, é uma questão cultural, é a questão de poder também, quando a nossa sociedade perceber isso, quando a nossa sociedade perceber que para ser primeiro mundista [pertencente ao bloco de países desenvolvidos do chamado Primeiro Mundo] como a gente quer ser, é através de um equacionamento verdadeiro da questão cultural, nós começamos a melhorar e a questão cultural é uma questão de poder. Quando o nosso povo, ele quiser realmente conquistar o poder ele vai perceber que ele vai ter que atuar muito na cultura.
Jorge Escosteguy: Só um pouquinho, só, desculpa, faltou a resposta da Débora e do Evaldo: qual foi a melhor novela que você participou na Globo, novela assim?
Gianfrancesco Guarnieri: Na Globo?
Jorge Escosteguy: Novela, qual foi a melhor novela que você fez, que você acha que foi melhor?
Gianfrancesco Guarnieri: Ah! na Globo... é... teve O Jogo da vida [1981-82], foi a novela que eu fiz, não sei se eu gostava de fazer aquele papel, fazia um padeiro português, o Vieirinha. Outra novela que fez sucesso, e eu também gostava de fazer, era a Vereda tropical [1984], Cambalacho [1986] que está sendo feito agora, um trabalho que me agradou muito fazer.
Jorge Escosteguy: Você gostou de todas?
Alex Solnik: Qual foi a novela mais esculhambada que você já fez, a mais bagunçada?
Gianfrancesco Guarnieri: Que eu fiz? Olha, eu já fiz algumas viu. Agora, a mais recente que eu me lembre chama-se Cortina de vidro. É sério [risos]! Cortina de vidro... ainda bem que era de vidro [risos]!
Moacir Amâncio: Uma coisa eu fiquei um pouco impressionado, você disse quando resolveu praticamente parar de escrever ou dar um tempo, a paixão sempre foi muito importante para você, eu acho que ela deve ter levado aqueles momentos lá do Fã Clube da Doris Day aquela coisa toda, foi, e ela foi muito importante, e também deve ter levado você a escrever todas aquelas peças, né, aquela emoção toda. E, de repente, é possível um artista assim dizer: "Vou dar um tempo e segurar esse tempo"? Agora, outra coisa também, eu queria saber sobre a sua atividade jornalística em 1963 no [jornal] Última Hora, que você escrevia, que ficou... o que aconteceu com esse material?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu nem tenho mais. Mas o fato, por exemplo, do... é a questão do teatro, eu me dei um tempo no teatro, e eu tenho um respeito enorme pelo teatro, o teatro para mim é uma coisa, sabe, eu não admito fazer, mas eu não admito de bobo, porque é admissível, agora eu, eu não admito para mim, fazer o teatro a não ser de uma forma de entrega toda, eu tenho certeza daquilo que, do que eu estou falando, eu tenho que gostar muito daquilo que eu estou fazendo, se eu tiver uma dúvida, eu já não acho que é legal.
Marcos Faermam: Você acha que a falta de um grupo, por exemplo, de uma via pessoal do Arena, depois o pessoal do Oficina, que era uma cultura, um grupo de pessoas que comiam, dormiam, namoravam, se amavam brigavam, trocavam porrada, que isso é uma coisa que faz falta?
Gianfrancesco Guarnieri: Faz falta.
Marcos Faermam: Dá para você contar por quê?
Leilah Assumpção: E por que não tem mais? É isso que... [ao fundo, sem interromper Faerman]
Marcos Faermam: Existe essa coisa.. comunitária, não é?
Leilah Assumpção: É isso que eu queria discutir um pouco.
Gianfrancesco Guarnieri: Acho cada um de nós, eu tento fazer isso, você está tentando também?
Marcos Faermam: Claro.
Gianfrancesco Guarnieri: Não é, todo, a gente tenta.
Marcos Faermam: É uma coisa de paixão.
Gianfrancesco Guarnieri: É difícil, inclusive com os jovens.
Maria Amélia Rocha Lopes: Agora Guarnieri, essa coisa de Fundação Brasil Arte, que você fez em poucos anos, tinha essa intenção?
Gianfrancesco Guarnieri: Tinha essa intenção.
Maria Amélia Rocha Lopes: O que aconteceu com ela?
Gianfrancesco Guarnieri: É que ela é totalmente baseada na Lei Sarney, então tinha esse banco, tinha feito toda uma planificação em torno da participação de diversas empresas pela Lei Sarney, quando dançou, quer dizer, antes mesmo dela ter dançado efetivamente, já estava dançando, não é, e diversos empresários também já estavam envolvidos em outros projetos, o projeto também da América Latina, como é que é ...
[...]: O Memorial.
Gianfrancesco Guarnieri: Memorial, Memorial da América Latina [inaugurado em 1989, em São Paulo, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, espaço de integração, informação e divulgação das raízes e culturas dos países latino-americanos, abrigando também a sede do Parlamento Latino-Americano, o Parlatino], então ficou inviável, era baseado então no lugar de ser uma coisa maior, nós vamos diminuir um pouco, e novamente para um grupo reduzido e tal, que é isso que nós chamamos de grupo retomada e pelo qual nós estamos com essa peça que é sobre o Pablo Neruda [Neftalí Ricardo Reyes Basualto (1904-1973) o mais conhecido e importante poeta chileno, membro do Partido Comunista, prêmio Nobel de Literatura em 1971], além de paciência, estamos viajando com ele, estamos esperando um teatro livre porque não conseguimos aquele. Felizmente conseguiu, eu acho extremamente justo, está com este autor nacional, está com um elenco maior e tal, e está contente, mas vamos conseguir um espaço aí para fazer, enquanto isso a gente viaja que é muito legal, muito gostoso, então a gente debate, a gente conversa, essas coisas que nós estamos conversando aqui, a gente conversa com o público dessas cidades que a gente vai, com os estudantes, com todo mundo, e eu estou notando uma efervescência, o Arena acabou, e o Oficina.... Os dois também, eles acabaram por um estrangulamento total econômico, quer dizer, não tinha saída, e um certo estraçalhamento entre as pessoas também, quer dizer, as pessoas já não tinham mais forças, estavam com um palmo de língua para fora, para esse procedimento, era muito duro, e a cabeça também começa a não funcionar direito a não produzir legal, então, aquele tipo de estrutura tinha sido condenado, tinha sido assassinado.
Alex Solnik: Você se afastou do Boal? Você está afastado do Boal?
Gianfrancesco Guarnieri: Eu gosto muito dele... mas teve que ir embora...ele foi pra Argentina, ele foi preso, e teve dia, nós tivemos uma tentativazinha, dos últimos inspetores, mas já não dava mais.
Maria Amélia Rocha Lopes: Guarnieri, será que foi por isso, por exemplo, se você der uma observada nos grupos de agora que existem, tem sempre uma cabeça comandando, e uma porção de liderados, digamos, tem o Antunes, ou o grupo do Antunes, a Companhia Ópera Seca, de Gerald Thomas, o Ornitorrinco... Cacá Rosset [Ornitorrinco, nome inspirado em um animal em extinção, encabeçado por Cacá Rosset, estreou em 1977]. Será que essa estrutura é que foi possível nesses tempos?
Gianfrancesco Guarnieri: Acho que aí, surge um tipo de liderança de projeto. Por exemplo, no caso do Antunes é praticamente uma escola, o Antunes tem... faz aquele espetáculo, onde ele transmite experiência, mas é uma verdadeira escola; Gerald Thomas tem sua visão de espetáculo, tem um certo cabotinismo [narcisismo, vaidade], esta coisa do junto, isso está faltando, isso do junto, de ouvir um ao outro, de ter aquilo... [sendo interrompido]
Marcos Faermam: O Thomas e o Antunes, junta todo mundo o quê daria?
Gianfrancesco Guarnieri: Juntar os dois...
Marcos Faermam: Eu digo: se juntar os dois ia ser um...
Gianfrancesco Guarnieri: Juntar os dois... é escolher as armas [risos]!
Thereza Walcacer: Guarnieri, eu queria te fazer uma pergunta, a propósito de fama, sucesso, você falou uma vez, o seguinte, deixar-se mitificar é esquecer a função de estar consciente, mitificar uma pessoa é também uma forma de se livrar dela, um ator também é como qualquer outro trabalhador, para ele a grana é curta igualmente. Eu queria que você falasse um pouco dessa função do artista como trabalhador?
Gianfrancesco Guarnieri: Bom, o...
Thereza Walcacer: Em relação à fama, ao sucesso..
Gianfrancesco Guarnieri: Da mitificação. É onde o carro pega aí porque existe sempre uma visão errônea do que seja... então o pessoal vê isso, prejudica muito aqueles que querem fazer, que já pega por outro lado, o lado do brilho, do néon, e não é isso não, o negócio é muito duro, embora, eu também concordo com o Fauzi Arap [(1938-) ator, diretor e autor, iniciou sua carreira profissional como ator, no Teatro Oficina, no final dos anos 1950; sua obra é sempre polêmica e fora do tradicional, com forte influência da contracultura dos anos 1970], quando ele disse que, o ator ele precisa ter algo de sacerdote dentro dele, eu concordo, eu concordo, que ele tem uma responsabilidade enorme, mais por outro lado, ele é um trabalhador como outro qualquer, ele junta as duas coisas, vamos dizer assim, ele é um pouco padre, ele é um padre de uma paroqueazinha mixuruca, ele tem que ter uma luta danada para sobreviver na sua própria paróquia, então isso é que tem e é legal, que vejam o personagem ali, agora que se pense no ator, como um igual, sabe, é meu semelhante, é meu caro irmão, nós somos irmãos, somos trabalhadores.
Alex Solnik: Quando você está em uma novela, assim, você tem todo esse passado de teatro e tudo e os outros atores também têm, mas quando você encontra um ator que é de televisão, e tal, como é que você, você contracena com ele, você sente que falta uma retaguarda para o cara, falta um preparo, falta um... esses atores de televisão, que nunca fizeram teatro, os galãs, as, as... [gesticula com as mãos num movimento de vai e vem, insinuando alguma coisa emperrada]
Gianfrancesco Guarnieri: Um ator improvisado que vem, pelo, pelo tipo físico etc. Aí a gente tira de letra, não é... [risos]
Alex Solnik: Você sente que o cara é fraco?
Gianfrancesco Guarnieri: Ajuda ele, olha para ele, tenta olhar um pouco, mas ele sai fora sempre, em geral, não gostam de olhar no olho.
Alex Solnik: Por que, o cara olha para a câmera?
Gianfrancesco Guarnieri: Ele olha para o infinito do desespero, e diz: o que eu estou fazendo aqui, em geral é.
Moacir Amâncio: Como é que essa, o teatro e o público e mercado, hoje se fala muito na arte eficiência, aquela que sabe conquistar seu mercado, como é que você vê esta questão e como é que ela foi tratada durante toda sua carreira?
Gianfrancesco Guarnieri: Do público?
Moacir Amâncio: O público é o mercado.
Clovis Garcia: Teatro de resultado [risos].
Gianfrancesco Guarnieri: A experiência nossa no Arena, por exemplo, nós sentimos, completamente, que nós conseguimos com o Arena, e logo em seguida o Oficina estava conseguindo uma mudança qualitativa do público. Quer dizer, então começaram aparecer os jovens mesmo, o teatro começou a cair no agrado de uma juventude que não ia etc. E houve, naquele período, períodono finzinho de 1950, até 1960 e pouco, houve um momento em que realmente o público e tal e eu me lembro que em uma pesquisa, naquele tempo, que um espetáculo de sucesso médio, na cidade de São Paulo, tinha duzentos mil espectadores, se a gente for calcular hoje, acho até que nós recuamos.
Clovis Garcia: Duzentos mil, é um sucesso estrondoso de espectadores .Hoje em média é de cem mil espectadores...
[Falam simultaneamente]
Clovis Garcia: O problema é que a população é maior...
Gianfrancesco Guarnieri: Em relação à população, a coisa teria correspondido.
Marcos Faermam: Tu tens alguma análise, tu tens...
Gianfrancesco Guarnieri: Vai no "achismo", agora acho que sim, a própria vida hoje, o fato de sair de casa, não é?
Alex Solnik: O fato é o seguinte: tinham atores incríveis, era um grupo de atores que todos eram ótimos, os diretores eram fantásticos, né, você tinha o Zé Celso [José Celso Martinez Corrêa, diretor, autor e ator, um dos criadores do Teatro Oficina, destacando-se, entre suas peças: Pequenos burgueses e O rei da vela], em plena atividade, você tinha o Boal, que fez no Arena... quer dizer, a qualidade do espetáculo era ótima.
Gianfrancesco Guarnieri: Era muito boa tinha uma proposta, mas eu acho que a sociedade tinha um objetivo, a sociedade tinha uma meta, hoje ela perdeu, hoje a sociedade está sem meta nenhuma, ela está olhando para si mesmo, tenho que me virar, como é que eu faço, se não tiver a metazinha e achar que reunidos a gente pode, está muito difícil, mas pode alcançar essa meta? Pode... acho que uma das nossas funções, é dizer isso para o Brasil. Tem solução, tem saída.
[Falam simultaneamente]
Leilah Assumpção: Guarnieri, eu queria te perguntar quanto tempo, que ele começou dar a resposta, então deixa eu fazer a pergunta, como a gente tem tão pouco espaço, a gente tem um presidente, que declaradamente não é apaixonado pela cultura, e também eu acho que não só o presidente, mas todos os economistas.
Alex Solnik: A cultura física.
Leilah Assumpção: É, não, eu falei pela cultura, depois vamos definir, aí os economistas também devem achar a cultura assim, sabe, imagina, eu tenho que primeiro organizar o país todo e tal. E a função do dramaturgo deve ser a função da poetisa, sabe aquela poetisa, que é casada, e escreve no fim de semana, poetisa mesmo, não poeta [risos], então já que você está com esse espaço, eu queria que você dissesse ao nosso presidente, que sem dúvida nenhuma deve estar assistindo, por que não deve perder o Canal Livre [confundindo com o nome de outro programa da TV] então, e a sua senhora que também só lê aquele americano, como é que chama? Harold Robert, só lê aquele americano lá, que faz seriado, essas pessoas que estão lá, tentando consertar este país, o que a cultura do sentido de identidade de um povo, e qual a função do dramaturgo no sentido de discutir essa identidade? Dá para você falar um pouquinho, disso?
Gianfrancesco Guarnieri: É, abriu. Isso mesmo, é a questão da cultura que se confunde muito, a história da cultura é expressão artística, que vem lá da cabeça...
Leilah Assumpção: Ou então falar cinco línguas.
Gianfrancesco Guarnieri: E não é só cada uma das expressões. A cultura está desde a ciência, até passa também para a questão do esporte, que é fundamental. Na questão, então, o que eu pediria mesmo é que houvesse uma maior atenção, porque eu acho que o país tem assessores nesse campo, dos mais ilustres, e que poderiam assessorar muito bem isso, e ter essa compreensão, daquilo que seja, do que seja a questão cultural, como é que um povo pode adquirir sua própria fisionomia, porque tem consciência, é conhecedor dos seus problemas mais graves, mas sabe a dor também, que há um caminho a ser trilhado e que tem uma meta, tem um objetivo a ser alcançado.
Leila Assumpção: E isso é cultura.
Gianfrancesco Guarnieri: E isso é cultura, agora, isso seria genial se houvesse por parte do governo federal um esforço no sentido de ajudar a sociedade, e não impedir a sociedade de alcançar, deslumbrar essa meta, esse objetivo...
Leilah Assumpção: E a função dos dramaturgos?
Gianfrancesco Guarnieri: Os dramaturgos são os porta-vozes disso tudo, eu acho...
Leilah Assumpção: Eles discutem a identidade.
Gianfrancesco Guarnieri: Como todos os poetas, eu acho que, quanto mais eles sonharem, melhor, quer dizer, quanto mais eles se colocarem programas, programas que não tenham solução, então vamos colocar o que a gente acha que poderia ser uma conquista de felicidade, por que não, né, é aqui mesmo e eu acho que o fundamental é o seguinte: que não adianta querer escolher o caminho do bem-estar e da felicidade própria porque enquanto tiver essas diferenças sociais e tal, nós não conseguiremos absolutamente nada, eu acho que quando a gente puder definir realmente o caminho para levar o país a diminuir, ou exterminar com essas diferenças sociais, mesmo, eliminar a miséria, dar escola, uma boa escola, quando eu digo boa, é uma escola objetiva, uma escola que também tenha esse caminho, que também vislumbre essa luta.
Marcos Faermam: Guarnieri, antes de terminar, Leon Hirszman e Roberto Santos.
Gianfrancesco Guarnieri: Queridos, queridíssimos.
Marcos Faermam: Dois cineastas, que vocês fizeram coisas geniais...
Gianfrancesco Guarnieri: O Roberto Santos [(1928-1987), cineasta, assistente de direção, produtor, roteirista, professor e diretor, destacando-se entre suas obras: Quincas Borba, adaptação modernizada do romance de Machado de Assis], eu aprendi, não é? Eu soube que foi ele quem me ensinou, me mostrou o cinema, em questão de dramaturgia, de roteiro e tal, e responsável por momentos deliciosos do cinema, no grande momento deles, dos cariocas, do... enfim. E o Leon [Leon Hirszman (1937-1987) fundou, com Marcos Farias, a Saga Filmes produzindo, entre outras obras, o grande filme São Bernardo [1972] baseado na obra de Graciliano Ramos], essa criatura fantástica, que sofreu muito, como sempre, teve seu filme proibido, para pagar as dívidas de São Bernardo, que é um grande filme e tal, ele fica dez anos sem conseguir produzir, porque ele produziu menos do que poderia, em virtude dessas circunstâncias nefandas, mas que tem uma obra considerável, e a imagem muito consciente dele, eu acho,que é uma coisa fantástica.
Jorge Escosteguy: Guarnieri, nosso tempo já está se esgotando, eu vou dar uma última deixa para os telespectadores: o Dante Marisco, daqui de São Paulo, diz que você está fumando muito e que isso faz muito mal à sua saúde; A Kátia Mazorini diz a mesma coisa, que você não tirou o cigarro da mão desde que começou o programa [risos]; Iraci Rosa, de São Paulo, diz a mesma coisa, que inclusive é por isso que você fala baixo [risos]; o Pedro Rodrigues Santos, de São Paulo, faz a última pergunta "qual foi o pior momento da sua vida?"
Gianfrancesco Guarnieri: Opa! [Riso] Olha, os piores momentos foram num cubículo da Rua Tutóia [Sede do DOI, órgão de tortura da ditadura militar], ali foi terrível... onde eu não sofri nada fisicamente, mas onde eu pude notar até onde pode ir a perversidade do ser humano, foi ali.
Jorge Escosteguy: Nós agradecemos, então, a presença esta noite no Roda Viva, do ator Gianfrancesco Guarnieri e agradecemos também aos companheiros dramaturgos e aos jornalistas que nos acompanharam na entrevista, telespectadores. [...] O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda-feira às nove horas da noite. Até lá e uma boa noite a todos.