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Memória Roda Viva

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Antonio Nóbrega

12/4/2004

A partir das danças, cantos e mitos da arte popular brasileira, o multiartista constrói uma música própria

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Paulo Markun: Boa noite. Ele buscou nos cantadores, atores e poetas populares a fonte para criar uma arte requintada, singular e quase sem limites. Misturando música, teatro e dança, trabalhando na divisa do erudito com o popular, ele tornou-se um multiartista, o nome não é lá essas coisas, mas explica mais ou menos o que ele faz, uma referência do Brasil cultural, criador e ator de uma alegoria muito brasileira. O Roda Viva entrevista, esta noite, Antonio Nóbrega, ator, compositor, cantor, bailarino, rabequeiro e brincante.

[Comentarista]: Antonio Nóbrega, nascido no Recife em 1952, filho de família de classe média, estudou música clássica na infância, aprendeu violino. Aos 18 anos, quando fazia parte da Orquestra Sinfônica do Recife, foi convidado pelo escritor Ariano Suassuna a integrar o Quinteto Armorial, o braço musical do movimento que buscava criar uma arte erudita brasileira com raízes populares. O quinteto misturava os sons de um conjunto de câmara clássico aos toques da música nordestina com batuque e rabeca. Nóbrega, violinista, virou também rabequeiro, mergulhando no sertão, convivendo com as danças os cantos e as artes do povo brasileiro. Ele começou a criar uma arte própria, expressão requintada de uma arte da periferia do Brasil. Uma espécie de arte dos excluídos, exercida por milhões de brasileiros. Ele conta que nos últimos 30 anos vem recriando tudo o que aprendeu com os cantadores, instrumentistas, cirandeiros, emboladores e brincantes. Transformou esse repertório rico e diversificado em espetáculos que levaram ao Brasil e a Europa os cantos, a poesia, o drama e a comédia humana de um país que o ator coloca em cena nas várias formas de um trabalho de muitas faces. O recifense que fez Pernambuco falar ao mundo, chegou a São Paulo em 1983, se instalou na Vila Madalena [bairro da cidade de São Paulo, conhecido por abrigar muitos artistas e comércio alternativo], onde foi criando aos poucos, com a mulher Rosane Almeida, o Teatro Brincante, um espaço rústico, cheio de improvisos e imaginação. Cenário de uma arte de gestos e máscaras, um pouco do teatro de oriente, um pouco da Commedia dell'arte [ver abaixo]. Rosane, que estudou circo, dividiu o palco com Nóbrega nos malabarismos e nas paródias. “Nós vamos chamar aqui e agora, para um bate-papo, assim cara a cara, Tonieta, vamos aplaudir”. Tonieta é um personagem pitoresco, um palhaço doce e ingênuo que pode lembrar Arlequim [criado astuto, insolente e enigmático, um dos personagens mais populares da Commedia dell'arte] ou lembrar Carlitos [um vagabundo de bengala e chapéu-coco, personagem que celebrizou o ator britânico Charles Spencer Chaplin (1889-1977)], mas é simplesmente Tonieta, que vem de Tonho, que vem de Antonio, que vem do Brasil. Carroceiro andante, faz da carroça, morada e palco. Tonieta é uma mistura de tipos populares, de personagens que vagueiam por ruas e praças do país, um filho de Deus, diria seu criador, dono de tantos outros personagens. O Brincante, que se tornou teatro-escola destinado à formação de educadores brincantes, é o eixo do mundo de Antonio Nóbrega, origem dos espetáculos e do trabalho musical que, além do amigos, envolve mais gente da família Nóbrega. A irmã Eugênia é flautista, o filho Gabriel, que já criança pegava na zabumba, cresceu e virou baterista e percussionista do grupo. O lunário perpétuo, título do último CD e do último espetáculo, resume esse universo simbólico do ator que se mistura ao cantor ao compositor e arranjador, ao instrumentista virtuoso, ao personagem de circo, ao dançador e bailarino. Irrequieto da boca aos pés, esse saltimbanco voa no palco encarnando as figuras de um zodíaco popular cheio de códigos e significados e, por isso mesmo, cheio de vida.

Paulo Markun: Para entrevistar Antonio Nóbrega, nós convidamos: o sociólogo Danilo Miranda, diretor regional do Sesc no estado de São Paulo; José Nêumane, editorialista do Jornal da Tarde; Helena Katz, crítica de dança do jornal O Estado de S. Paulo; Jefferson Del Rios, crítico de teatro da revista Bravo; Lázaro de Oliveira, jornalista do programa Metrópolis, da TV Cultura, e Valmir Santos, repórter colaborador do jornal Folha de S. Paulo. Boa noite, Nóbrega.

Antonio Nóbrega: Boa noite.

Paulo Markun: Queria começar pelo seguinte: provocação. Você já deu... em várias entrevistas, já declarou que não gosta da palavra, da expressão folclore e prefere a idéia da cultura popular. Essa posição de separar folclore e cultura popular não é uma posição folclórica? Não tem um pouco disso de... quer dizer, no fundo é a mesma coisa, o que distingue para você?

Antonio Nóbrega: Não. Se tem alguma coisa de folclore na atitude é justamente por conta... Por conta disso que eu não... essa folclorização que eu não gosto. Eu acho que a cultura popular, quando ela é folclorizada, ela se torna débil, ela se torna fraca, ela se fragiliza. E normalmente hoje a palavra folclore, quando a gente vê qualquer atividade, manifestação da cultura popular, quando a gente a reconhece como coisa folclórica, a gente, de certa forma, está a diminuindo. Não tem relação a cultura folclórica... um pensamento do que realmente ela representa.

Paulo Markun: É mais ou menos um “Parque do Xingu”, deixa os índios lá e tudo bem.

Antonio Nóbrega: É que faz parte como se fosse alguma coisa exótica, alguma coisa menor, não é?

Valmir Santos: Uma coisa folclórica.

Antonio Nóbrega: Ela traz até um certo sentimento de manifestação conformista, não é? E talvez seja por isso até que os jovens e as pessoas em geral não vêem na cultura popular a força que ela guarda, a vitalidade, a riqueza, por até a identificarem com alguma coisa do universo do passado, do universo do conformismo.

Paulo Markun: Você acha que a cultura popular tem saída, tem futuro?

Antonio Nóbrega: Eu não acho que ela tem futuro, não, eu acho que ela representa para o mundo, eu acho que ela é a nossa grande biodiversidade cultural. Acho que nosso o pulmão cultural, pelo menos para um país como o nosso, assim como nós temos o Amazonas, que representa nosso pulmão de biodiversidade, eu acho que nossa cultura popular representa, no plano cultural, a mesma coisa.

José Nêumanne: Toninho, Recife é uma cidade que se destaca pela imensa variedade de manifestações culturais muito pouco conhecidas fora de Pernambuco, não é? Você, que nasceu no Recife e foi criado lá, você acha que o Recife foi uma espécie de plataforma, essa coisa de variedade da cultura pernambucana, principalmente na parte da dança e da música? Você acha que o Recife foi, essa cultura recifense foi a tua plataforma de lançamento? E se ainda existe a possibilidade de saírem do Recife muitos artistas como você, que saiam para o Brasil e para o mundo, como diz a história da Rádio Jornal do Comércio.

Antonio Nóbrega: Pernambuco falando para o mundo. Sem dúvida, né? Recife é a capital daquilo que foi a nossa capitania, Pernambuco. Normalmente a gente aprende que a capitania de Pernambuco que é de São Vicente, foram aquelas que prosperaram mais no início do nosso país. E o Recife, não só Pernambuco, mas principalmente o Recife tem uma cultura muito rica. E nós temos uma festa que faz com que essa cultura seja mostrada de uma maneira muito escancarada para o Brasil ou pelo menos para o seu povo, para o povo recifense, que é o carnaval. Então, em nenhum lugar do Brasil eu reconheço um carnaval tão popular, tão rico, de tanta riqueza cultural como o do Recife. Nós temos as manifestações como os maracatus, temos os grupos de caboclinho, temos a poesia dos blocos, a música do frevo e o passo do frevo. Então tudo isso marca, registra uma cultura muito rica num período em que normalmente não se vê em outras partes do Brasil tal concentração de manifestações culturais.

Lázaro de Oliveira: Nóbrega, só aproveitando essa deixa sua, queria saber o seguinte: quando você era garoto, você pensava em ser médico, advogado, como é que você acabou entrando nessa história?

Antonio Nóbrega: Pois é, eu sou filho de um sertanejo com uma filha de português. Minha mãe é paulista e meu pai é cearense, se encontraram no Recife e eu sou um recifense de primeiríssima geração, não é? E meu pai é médico, mas foi sempre um amante da música. Quando ele era seminarista, ele fez um período de seminário no Crato, me diz ele que gostava muito de cantar. E ele viu no filho também vocação musical, me conta ele que quando na hora das refeições, eu tinha o hábito de ficar batucando na mesa e ele associou o batuque à vocação da música. Me colocou para estudar violino, eu nunca entendi a relação do batuque com o violino, não, mas ele escolheu um instrumento que foi um instrumento bem escolhido, isso com 11 anos. Mas, naturalmente, por ser filho de classe média, ele aspirava a que eu fosse um médico, um advogado ou qualquer coisa nessa linha. Mas eu cedo me desvencilhei dessa orientação, mas ele já pela adesão, pelo entusiasmo que tinha pela música, ele acolheu o filho músico e acolhe com muito amor.

Lázaro de Oliveira: E o Quinteto [Armorial] foi a chance que você teve para apresentar seu trabalho, é isso?

Antonio Nóbrega: Foi. Em 1970, então, eu fui convidado pelo escritor Ariano Suassuna, tocando uma vez em uma das igrejas do Recife com orquestra de câmera – eu tocava precisamente um concerto de [Johann Sebastian] Bach [(1685-1750), organista e prolífico compositor alemão do período barroco considerado um dos maiores da história da humanidade], um concerto em mi maior de Bach – quando Ariano me viu e me convidou para integrar o Quinteto na condição de violinista e rabequeiro, não é?

Paulo Markun: E você já conhecia uma rebeca?

Antonio Nóbrega: Não, não conhecia. Eu, até os meus 18 anos, eu tinha 18 anos na época, eu não conhecia os rabequeiros, sequer conhecia os artistas populares da minha cidade. Não conhecia os passistas de frevo, não conhecia o tocador de maracatu, não conhecia... Inclusive, diferentemente dos meus filhos, meus filhos nasceram em São Paulo, mas com 10, 11 anos de idade eles conheciam a cultura popular muito mais do que o pai.

Paulo Markun: Por culpa do pai, né? [risos]

Antonio Nóbrega: Aí foi o pai que induziu realmente.

Helena Katz: Toninho, então vamos voltar para quem estava tocando na orquestra e foi convidado pelo Ariano, ou seja  erudito, cultura popular, você acaba de  voltar de uma viagem da Bulgária onde foi estudar violino, técnica russa.

Antonio Nóbrega: Esquisito, não é?

Helena Katz:  Para falar de cultura popular precisa?

Antonio Nóbrega: Então, eu sempre, eu sempre digo o seguinte, que a cultura popular é o alicerce, é o chão, é a base maior de tudo... maior de tudo que eu faço e de muitos outros artistas. Mas eu não prescindo, no meu trabalho, de uma boa técnica, de um conhecimento de outras culturas para que elas até fortaleçam e ampliem o trabalho que realizo com a cultura popular. O artista, eu acho que ele tem a obrigação e o dever de conhecer a cultura em geral, não é? Está aí, se o escritor for se privar de ler Dostoiévski [Fiódor MikhailovichDostoiévski (1821-1881), um dos maiores nomes da literatura russa] ou Dom Quixote [El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de 1605, do escritor espanhol Miguel de Cervantes, um dos livros mais famosos da história, cujos personagens principais, um cavaleiro andante que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro – Sancho Pança – caminhando à procura de aventuras, "fazem parte da memória da humanidade", como colocou Jorge Luis Borges] ou se ele se privar de se escutar Bach e etc... E aí eu tive a oportunidade, porque eu estudei violino bem  até os 18 anos. Depois eu, até por conta do meu trabalho de dançarino, de ator, eu dei até uma certa paralisada no violino e me mantive com a técnica que eu tinha. E de uns cinco anos para cá, eu tenho tido, assim, uma vontade muito grande de retomar um pouco o trabalho com o violino ou a rabeca, como a gente quiser chamar, de uma maneira mais intensa, não é? E aí eu tive a oportunidade de fazer um pequeno estudo de aprimoramento técnico com a grande pedagoga e musicista da Bulgária, a Maria Eugênia Popova, uma búlgara que fala português, só poderia ter ido para a Bulgária com alguém.

Danilo Miranda: Nóbrega, voltando à questão da cultura popular e da discussão sobre a sua importância, existe uma presença da cultura popular em todo o imaginário brasileiro, nos seus meios de comunicação, na sua educação, no seu processo normal de comunicação. Como é que você vê, em primeiro lugar, a presença da cultura popular nos nossos meios de comunicação?  Ou seja, existe uma tendência em alguns momentos de pegar elementos da cultura popular e trabalhar de uma maneira, às vezes, um pouco vulgarizada, banalizada e retornar isso como cultura de massa e isso ganhar uma dimensão, às vezes, um pouco deturpadora de determinados movimentos e determinadas propostas, enfim, que são autênticas verdadeiras e que têm a ver com a raiz popular, enfim, com a identidade popular, então, no processo de comunicação de modo geral. E em segundo lugar, com relação à questão educativa, ou seja, qual a contribuição efetiva aqui... A cultura popular nas suas manifestações mais efetivas, sejam elas escondidas por esses rincões brasileiros, seja na presença no próprio meio de comunicação, pode se oferecer a um processo de educação, de formação, de valorização da população e com isso poder exercer esse papel de inclusão, de melhoria, de avanços. Há uma presença muito grande hoje de projetos ligados à cultura, ao social, como ferramentas de inclusão. Como você vê essa coisa da inclusão dentro da cultura popular, também como um fato significativo para ser considerado,  inclusive, para políticas públicas, para gestores, tanto nos meios de comunicação como na questão educacional?

Antonio Nóbrega:  Bem, a primeira parte da sua questão realmente é isso, quer dizer, os meios de comunicação no geral se apropriam da cultura popular pelo seu lado exótico, pelo exotismo.

Lázaro de Oliveira: Pelo folclore.

Antonio Nóbrega: É, pelo folclore, exatamente. Oficializam o folclore ou folclorizam a cultura popular. Então, realmente, eu acho que é acidental, é passageiro, enfim, não deita raízes.  Agora, o papel que a cultura popular tem na educação e na inclusão é importantíssimo. Eu poderia tomar vários exemplos, aliás, até fazendo elogios, não do meu trabalho, mas de um trabalho que exercemos aqui, junto ao Brincante, nós criamos há uns 5,6,7 anos um curso chamado "A arte do brincante para educadores". Ou seja, pessoas ligadas  à atividade artística que dominam, por exemplo, no caso de uma delas... por exemplo, o universo da cultura musical infantil. Uma outra que domina movimentos, passos da cultura corporal popular, então essas pessoas são instrumentalizadas com essa cultura e estão passando adiante, através de educadores que passam, então, para os jovens aos quais elas dão aulas. Bem, esse é um trabalho que estamos fazendo já, dessa natureza. Mas o que ocorre, eu acho, com a cultura popular, é que ela precisa ser verdadeiramente, converso a palavra, oficializada pelo Brasil. Vamos tomar o exemplo assim muito claro, muito simples: a  capoeira, por exemplo. Talvez eu já tenha até falado, na vez passada, aqui, mas a visibilidade da capoeira é mais fácil. É uma manifestação da cultura popular brasileira em evolução, ou seja, não folclórica, embora possa ser em algumas situações folclorizada, e que fica à deriva de ser colocada dentro do que a gente poderia chamar de “Brasil oficial”. O que eu é que eu falo “Brasil oficial”? O Brasil das nossas escolas, o Brasil das nossas universidades, o Brasil das nossas empresas, não é? Ou seja, a capoeira é um conjunto de práticas tão ricas, não só no campo do corpo, do trabalho da cultura corporal, mas no campo da formação musical, que ainda não foi dada a ela o devido valor de inclusão, de inclusão dentro do nosso universo institucional.  Então, por exemplo, essa é uma das formas que a gente teria... Agora como é que se colocaria... como é que se vê a capoeira? Precisa-se estudá-la, precisa-se compreendê-la, precisa ver não só o que ela representa, porque não é só uma cultura de jogo de luta, não, ela é muito mais do que isso. Por exemplo, eu estive agora lá em Recife, nós estamos realizando agora um projeto há muito tempo aguardado, chamado "Um registro das danças brasileiras". Estamos fazendo isso com o cineasta Belizário França. Então estamos fazendo uma espécie de registro documentário de várias danças brasileiras, e esse trabalho será colocado, entre outras coisas, a serviço de escolas públicas, por exemplo. E eu tive a oportunidade de conhecer dançarinos extraordinários que já poderiam prestar um serviço a sua comunidade de começarem a passar aquelas danças de uma maneira mais integrada dentro da sociedade. Por exemplo, você vai a Goiânia, então, numa quarta-feira à noite, no mês de outubro, já próximo do carnaval, o grupo caboclinho Sete F

lechas começa a ensaiar. Então vem toda aquela população de lá; vêm crianças de 3 anos, jovens de 15 anos, adultos de 40, 50 anos e vão brincar o caboclinho, não é? Na  outra quarta-feira faz a mesma coisa e ensaiam para o carnaval. Bem, essa é uma forma desse conhecimento ir passando de um para o outro, mas haveria uma outra forma de esse conhecimento ser colocado de uma maneira muito mais viva, muito mais intensa para a população, não é? Então, nas escolas se oferecer condições para que esse conhecimento seja realmente democratizado.

Paulo Markun: Espera só um pouquinho.

Lázaro de Oliveira: Contra a TV... você faz um trabalho para 15, 50 pessoas, mas vem a TV e joga aquele bando de coisas para a  garotada. Não é uma luta meio inglória, ou seja, não é meio quixotesco isso?

Antonio Nóbrega: Não, não é quixotesco, não. Porque eu quero que um dia a televisão faça isso com essas danças, não é? Eu quero que um dia o Brasil mude, não é? Eu “esperanço” e creio que a televisão veio foi para ajudar.

Paulo Markun: Nóbrega, nós vamos continuar falando disso aqui na televisão, daqui a um instantezinho. A gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Nóbrega, boa parte da sua obra musical tem rei, tem rainha, tem cavaleiro, tem lavrador, tem um Brasil ou –  não sei nem se é um Brasil– tem um mundo que está desaparecendo. Isso é a busca da resistência, a busca da raiz ou tem um Brasil moderno, um Brasil bacana, um Brasil asfaltado também da cultura popular?

Danilo Miranda:Posso juntar uma questãozinha? Fala um pouquinho da Dona Militana, que é uma figura que você foi buscar lá no Rio Grande do Norte e que trabalha com todo esse universo, todo o tempo dos reis, dos barões de França e de não sei mais o quê, muito interessante naquela publicação feita recentemente num espetáculo que você trouxe, inclusive.

Antonio Nóbrega: É uma grande cantadeira.   

Danilo Miranda: Cantadeira de romances, que é um pouco essa história aí.

Antonio Nóbrega: O romance são histórias cantadas, são poemas narrativos de longa data; alguns deles são lá do século XIII, XIV. E são histórias que trazem lembranças de reis e rainhas. Algumas dessas histórias como, por exemplo, essa até que acabamos de escutar, ela faz referências diretas. Mas eu trato...  quando nos meus trabalhos que falo de reis ou rainhas, sempre eles são vistos através do plano do simbólico. Então há sempre uma metáfora que é contada através desses símbolos. Há um romance muito bonito que eu canto no próprio Lunário [perpétuo], que é O romance da nau Catarineta e que de certa forma traz uma certa lembrança do Fausto [uma das mais famosas obras literárias de Goethe, baseada na lenda popular alemã sobre o alquimista e médico Johanes Georg Faust, que teria feito um pacto com o demônio], do Goethe [Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do romantismo europeu]. Mas eu acho que o meu trabalho, como o daqueles que se vinculam à cultura popular, não é de trazer reis nem rainhas, um passado supostamente morto. Acho que nós queremos atualizar o Brasil, sim, atualizar o Brasil, mas através daquilo que lhe é peculiar. E muitas vezes a gente tem uma certa visão moderna do Brasil, às vezes até por uma coisa que lhe é acessória. Certa feita, por exemplo, eu, conversando com uma pessoa, um jovem músico... e ele dizia que aquele frevo que eu estava tocando com meu naipe de instrumentos, que era um bandolim, um saxofone, instrumentos acústicos, ele dizia que a música não era universal porque não tinha guitarra, não tinha um sintetizador. E eu disse: “– Olhe, não é colocar uma guitarra ou um sintetizador que dá universalidade a uma música”. O que dá universalidade a uma música ou qualquer obra de arte é a verdade, é a poesia que ela encerra. Jacob do Bandolim [(1918-1969), bandolinista carioca, o músico alçou o bandolim a um lugar de honra na música brasileira] tocando simplesmente "Ingênuo" do grande Pixinguinha [Alfredo da Rocha Vianna Junior (1897-1973), flautista, compositor, maestro e arranjador, um dos grandes nomes da música brasileira] universaliza a música. Certa feita escutei um violinista japonês tocando seu eru, que é o nome do violino – se assim podemos chamar o violino chinês–, ele tocava a música que imitava, lembrava o canto do rouxinol, que é um pássaro muito presente entre os chineses. Aquela música de tal maneira me encantava, me seduzia, que eu chorei escutando aquela música, e eu dizia “um homem tocando instrumento com uma corda cuja ressonância é uma membrana de couro, um violino tradicional de mais de mil anos e, no entanto toca uma música que me toca aqui, eu outro do outro lado do mundo”. Então ele estava tocando uma música realmente universal, ou seja, ele estava compartilhando comigo um sentimento que era de todo mundo. É por aí que reside o que eu chamo de arte universal e que eu procuro fazer. O artista, quando faz uma obra de arte, ele não pode dizer que vai fazer uma obra de arte universal porque ele não sabe, não, quem vai dizer é o tempo, não é? Bach não sabia que ia fazer uma obra universal, ele fazia música para o povo escutar, para se tocar nas igrejas.

José Nêumanne: Toninho, só pegando esse tema da Dona Militana, que o Danilo trouxe bem em cena, o show da Dona Militana. E ela tinha um majestade, era uma “senhora da situação”, que me lembrou muito a figura do Luiz Gonzaga [do Nascimento (1912-1989), compositor popular brasileiro, além de “rei do baião”, era conhecido também como “embaixador sonoro do sertão”, “velho Lua” e “Gonzagão”]. Luiz Gonzaga, ele encarnava a majestade do “rei do baião”. E a Dona Militana, como uma cantadeira de romances, ela traduzia para o público a sua condição superior de rainha, de dona daquela situação. Uma mulher do povo, muito simples e que traduzia, que trazia para todos nós aquela figura majestosa de uma rainha. Quer dizer, essa é a característica que você considera mais importante da arte popular, do artista popular, o engrandecimento humano da pessoa, do pobre comum, ao se transportar para essa condição majestosa do palco, seria isso?

Antonio Nóbrega: Olha, quer dizer, é uma pessoa como a Dona Militana, quando ia, quando nós tínhamos oportunidade, quer dizer ainda temos – ela é viva ainda– de colocá-la no palco, assim como vários outros representantes da cultura popular, sempre é engrandecedor para todos nós. Eu tive a oportunidade de conhecer vários artistas populares, que ainda hoje estão se apresentando, mas o que eu acho mais importante não é nem tanto isso. O que eu acho mais importante é o que esses artistas trazem, as lembranças, as suas memórias, o que é que eles guardam que, enfim, que seja importante revelar.

Jefferson Del Rios: Nóbrega, você tem o privilégio de ter como... a sua dramaturgia, ela é interminável  porque ela é anônima. Você vai buscá-la sempre nos cantadores, na literatura de cordel, que nem sempre tem autores definidos. Você prescinde, de  uma certa maneira, de uma dramaturgia que não seja aquela que você cria com esses parceiros anônimos. Agora como você também é um rapaz urbano de classe média urbana do Recife, com vínculos com cidades maiores, eu queria saber que tipo de influência ou de simpatia ou não que você teria por uma certa literatura de costumes de Pernambuco que foi esquecida, e que é muito boa. Por exemplo, há um romancista adorável de Pernambuco, chamado Mário Sette [(1886-1950)], que tem um romance chamado Os Azevedos do poço, que foi absolutamente esquecido, os costumes do Recife antigo e tal. Com José Condé [Ferreira (1918-1971), cuja principal obra é Terra de Caruaru] falando de Caruaru. E do ponto de vista das artes plásticas, esses artistas plásticos com profunda vinculação popular eu citaria o Bajado [Euclides Francisco Amâncio (1912-1996)], lá de Olinda, e o José Cláudio, também de Olinda. Esses quatros nomes tiveram alguma coisa a ver com você, eles têm alguma coisa a ver com você, você pretende absorvê-los na sua arte?

Antonio Nóbrega: Não, não, eu os conheço, alguns deles pouco, mas eles não têm diretamente, é... não por uma questão minha de, sei lá, com preconceito, mais por um desconhecimento mesmo, uma falta de conhecimento, porque o meu trabalho já se espraia dentro de um mar tão amplo, dentro de uma vegetação de um húmus tão rico, que provavelmente eu não tenha...

Jefferson Del Rios: Você se basta com eles...

Antonio Nóbrega: É... não tenha tempo até de me socorrer de tantos artistas. E, depois querendo ou não, tem aqueles que, por certa injunção, também se tornaram mais próximos, por exemplo, você falou de artistas plásticos, e eu tenho Giovan Samico [Gilvan José de Meira Lins Samico, gravurista brasileiro conhecido por suas meticulosas xilogravuras, inspiradas na temática e estilo da gravura popular do nordeste], por exemplo, foi uma pessoa que me referencia muito; tem o [Manuel] Dantas Suassuna [artista plástico, é filho do escritor paraibano Ariano Suassuna], que inclusive é até um parceiro meu. Pessoas que fazem parte mais de uma certa história que começou, no meu caso, a partir dos anos...        

Helena Katz: Afinidade de geração.

Jefferson Del Rios: Eu citei pessoas já mortas.

Antonio Nóbrega: Exatamente.

José Nêumanne: Existe em Recife.... hoje se produz, talvez, a melhor literatura do Brasil, o grande poeta, o Alberto da Cunha Mello; você tem uma romancista como a Maria Cristina Cavalcante de Albuquerque, que, na minha opinião, é a maior escritora do Brasil hoje, que está lá, é dita apenas na bagaça, agora vai ser editado aqui no Sudeste, pela [A] Girafa [editora], mas o livro dela, Luz do abismo, é um clássico maravilhoso em cima da história da tradição das famílias pernambucanas e tal. Essa tradição da literatura pernambucana, que vem de João Cabral [de Melo Neto (1920-1999), escritor e poeta pernambucano] e de outros grandes autores, e que hoje continua sendo produzida, apesar de não ser conhecida aqui no Sudeste, ela exerce alguma influência sobre o seu trabalho, sobre a sua obra, sobre a coisa que  você traz para o público aqui ou não?

Antonio Nóbrega: Não, diretamente não, né?

José Nêumanne: Mas você conhece essa...

Antonio Nóbrega: Conheço, conheço alguma coisa, por exemplo, Raimundo Carrero [jornalista e escritor pernambucano], conheço o Angelo Monteiro [poeta, ensaísta, jornalista e professor alagoano], o Marcus Accioly [poeta pernambucano] ... [alguém cita um nome] Conheço muito dela... Agora,  é quase....

José Nêumanne: César Leal [(1924-), poeta cearense e crítico de poesia] .

Antonio Nóbrega: César Leal, não é?  E vários outros... Faltou o Alberto da Cunha Melo [(1942-2007), sociólogo, jornalista e poeta pernambucano], mas é um universo muito rico, né? Quer dizer, são os poetas, são os músicos, são os artistas plásticos e, naturalmente, eu, mais do que um...[sendo interrompido]

José Nêumanne:  A sua ligação é com o encanto?

Antonio Nóbrega: Não, não é isso, é que eu sou, sobretudo, um artista, um criador no palco. Quer dizer, eu sou como, às vezes, as pessoas falam, um multiartista, um brincante, mas uma pessoa cuja criação se realiza sobretudo no palco.

José Nêumanne: Isso era uma coisa que eu queria te perguntar. Como é essa transição de um espala [spalla (em italiano, ombro) ou concertino (Portugal) é o primeiro-violino de uma orquestra, que fica à esquerda do maestro, responsável pela execução de solos e atua como regente substituto] da orquestra para o palhaço?

Paulo Markun: Nêumanne. [tenta evitar que Nêumanne continue fazendo perguntas]      

Antonio Nóbrega: Como é?

José Nêumanne: Como você passou de espala para palhaço?

Paulo Markun: Nêumanne, só queria lembrar que nós temos seis entrevistadores, vamos dividir, termina, por favor, Nêumanne. [Nêumane faz sinal de que dá por encerrado; risos] Não é castigo, não. Não é isso, não, amigo.

Antonio Nóbrega: Bem, quando Ariano me chamou para tocar no Quinteto Armorial, ele me chamou na condição de tocador de violino ou rabeca, não é? Mas eu desconhecia o que era rabeca. Uma das primeiras coisas que eu fiz foi procurar o rabequeiro e não só encontrei o rabequeiro, como encontrei o tocador de viola, encontrei o cantador e encontrei o Mateus [referência ao personagem que protagoniza a encenação do cavalo-marinho] do bumba-meu-boi. E por injunções que eu não sei, que eu não consigo responder integralmente, eu tive tal sedução por aquela figura, me encantei de tal maneira, que meu passo inicial foi aprender aquilo que ela fazia, a sua maneira de dançar, as suas artimanhas, a sua maneira de cantar. Eu procurei aprender aquilo, porque eu fiquei seduzido por aquela figura. Bem, por que isso eu não consigo responder, não. Mas eu sei que a passagem do espala para o Mateus foi também através do rabequeiro, se assim se pode dizer.

Valmir Santos: Nóbrega, eu queria retomar, voltar para o capítulo “meios de comunicação”. Você teve aí algumas incursões  em novelas da Rede Globo,  no capítulo final de [da novela] Renascer, um outro especial... A gente está percebendo, nos últimos meses, uma campanha muito forte da emissora voltada para a cultura popular. A Rede Globo fez, em fevereiro passado, um seminário chamado Conteúdo Brasil. Seminário de valorização da produção cultural brasileira [realizado em 12/02/2004, no Teatro da Universidade Católica de São Paulo], cuja palestra de abertura foi feita por Ariano Suassuna. Qual a sua percepção dessa campanha, assim, a Globo voltando-se, nos últimos meses, para  a cultura popular. Folclore ou não?

Antonio Nóbrega: Olhe, veja, quando nós começamos com o Quinteto Armorial, isso há exatos 34 anos, a visão que se tinha da cultura popular era uma visão... se hoje ela é distorcida, se hoje é apequenada, apequenadora, era muito maior. Na época, quando nós estreamos o Quinteto Armorial, tinha o Quinteto Violado também, tinha um grupo chamado A Banda Pau e Corda, em Recife.

Paulo Markun: A Banda de Pau e Corda, é isso?

Antonio Nóbrega: Quer dizer, éramos uma exceção entre as exceções, não é? Com o tempo, isso foi mudando. Hoje nós já temos páginas de jornais dedicadas a artistas populares, a grupos que trabalham com a cultura popular. Então há um crescendo, há uma compreensão melhor do papel  da cultura popular em um país como o nosso e uma atitude dessa da TV Globo, eu acho que  ela se insere, por um lado, dentro dessa perspectiva. Pode ser que haja outros objetivos nesse interesse da TV Globo, mas eu acho que, por si só, a demonstração de valorizar a cultura popular através da organização de um simpósio, de um encontro dessa natureza, eu acho que já é uma maneira de tentar colocar essa cultura popular num ângulo de visão que facilita, sem dúvida, sua compreensão no Brasil.  

Helena Katz: Toninho, você acaba de falar que você vê transformações na recepção à cultura popular, via meios de comunicação, nesses trinta e tantos anos. O papel que o [Instituto] Brincante faz com cursos, com aulas, com formação de professores, o seu trabalho no palco,  como você vê isso? Isso, ao longo desses 34 anos, tem alguma coisa a ver com essa mudança?

Antonio Nóbrega: Eu acho que deve ter, não é? Sempre fazer, sem querer fazer elogios do próprio trabalho, mas eu acho assim, como o meu trabalho, sobretudo, e principalmente,  do mestre Ariano Suassuna, o grande guerreiro, Ariano; o trabalho de grupos como o Mestre Ambrósio e tantos outros. Os encontros que têm se dado aqui em São Paulo, a valorização que se faz aqui – eu estou aqui diante de uma pessoa [aponta para Danilo Miranda] que tem colocado o Sesc [Serviço Social do Comércio]  muito ao encontro da valorização da cultura popular–, eu posso dizer aqui que muitos dos meus trabalhos só puderam se realizar aqui em São Paulo, principalmente em São Paulo, através do concurso do Sesc. Então isso é uma demonstração também de uma entidade brasileira que não só compreende, mas que vê a função da cultura popular no Brasil, ou seja... e daqueles que redimensionam a cultura popular através do seu trabalho. Uma das coisas  que eu acho que, embora você não tenham me perguntado, que a gente tem que compreender, é o seguinte: é que não só por uma exigência de uma identidade nacional é que tem que se valorizar a cultura popular. Eu acho que a cultura popular tem que ser vista de uma maneira até mais profunda. Vejamos nós. Hoje, o teatro, por exemplo, e a dança européia, para se revitalizarem, eles tiveram de recorrer a outras fontes de inspiração que não as da própria Europa. Os grandes encenadores, por exemplo, Bob Wilson [artista plástico e arquiteto norte-americano], Eugênio Barba [diretor italiano de teatro].

Helena Katz: Peter Brook [diretor britânico de cinema e teatro].

Antonio Nóbrega: Ariane Mushkin [dramaturga francesa]... Todos eles recorreram a fontes teatrais ou do Oriente ou da África ou dos países periféricos, ou seja, a Europa Central, a arte do teatro, a arte da dança caminharam numa direção que, no meu ponto de vista, secou talvez em vitalidade, em força da natureza ou qualquer outra palavra que a gente venha associar a esse sentimento. O que ocorre com o nosso país é que nós temos aqui, nós não precisamos recorrer nem à Ásia nem ao Oriente nem à África, porque nós temos tudo, todos esses elementos aqui para darem surgimento a uma arte verdadeiramente e que tenha a sua função.

Jefferson Del Rios: Elementos ainda para ser descobertos.

Antonio Nóbrega: Sim, elementos que venham para revitalizar a arte, mas para dar à arte a sua dimensão maior, a sua grande função.

Paulo Markun: Nóbrega, queria justamente por isso e porque nós temos um personagem, aqui, na entrevista, que é raro, que é um instrumento que é a rabeca, eu queria que você explicasse o que é que distingue a rabeca do violino, porque para muita gente é exatamente a mesma coisa.

Antonio Nóbrega: É. Olhe, a nossa herança etimológica deu ao violino a palavra rabeca. Rabeca é a latinização da palavra “rebabe”, que é o nome do instrumento de cordas tocado pelo arco que chegou à península Ibérica pelos árabes. Quando esse instrumento se juntou à família das violas na Europa Central, ganhou o nome de violino, ao passo que na península Ibérica o nome para o mesmo instrumento ficou sendo rabeca por conta da nossa ligação, da ligação da península Ibérica mais com o universo árabe. Quando o instrumento chegou no Brasil, o violino, ele chegou com o nome de rabeca, o violino chegou ao Brasil com o nome de rabeca. Mas chegou com o nome de rabeca para o povo, ou seja, quando o povo toca no instrumento, ele chama de rabeca, porque na música erudita, ele é chamado de violino. Quer dizer, o violino é um instrumento que... ele vive, ele viceja no meio do povo, servindo sobretudo como instrumento para os brincantes dançarem, seja no cavalo-marinho, seja aqui no litoral  paulista, quando ele toca polcas e maxixes etc, nas festas religiosas. E, por outro lado, o instrumento da música sinfônica, da música de câmera. Bem, mas o que diferencia um e outro? É que o rabequeiro popular, quando ele toca, ele toca de uma maneira, e o músico erudito, ele toca de outra maneira, não é?

Jefferson Del Rios: É aquilo que o Siba [Sérgio Veloso, poeta, compositor e exímio rabequeiro recifense e um dos criadores do grupo musical Mestre Ambrósio] faz deitado no braço, assim?

Antonio Nóbrega: O rabequeiro ou violinista do povo, ele toca de diversas maneiras. Ele toca aqui quando ele quer cantar, ele toca aqui, ele toca aqui [mostra como é, trocando a posição do instrumento], não há uma maneira consensual de se tocar rabeca, como não há uma rabeca consensualmente igual no meio do povo, por que ela é feita por, na maioria das vezes, na grandíssima maioria, por não luthier [construtor de instrumento musical de corda como violão, violino e violoncelo], ou seja, não são pessoas especializadas que fazem a rabeca de profissão, digamos.  São músicos que, no geral, gostam de tocar o instrumento e os fazem.

Jefferson Del Rios: Fácil de se fabricar.

Antonio Nóbrega: E fazem das madeiras mais diversas, de maneiras mais...

Paulo Markun: Você, desculpe a ignorância, você pegando o arco, você mostra o que é o violino e o que é rebeca?

Antonio Nóbrega: Esse aqui, o que é que nós fizemos? Eu, não, o grande luthier brasileiro Saulo Dantas Barreto, um grande brasileiro, ele fez estudos, ele estudou na Escola Internacional de Cremona [na Itália], luteria de violino, e ele colocou os princípios de confecção de violinos... para fazer um bom violino só com madeira brasileira. Essa é a diferença que eu acho, a não ser a do tocar, eu não sei se fui claro nessa minha...

Jefferson Del Rios: E esse aí, que madeira que é? Esse violino, que madeira que é?   

Antonio Nóbrega: Então, esse aqui é uma madeira brasileira, marupá [Nóbrega mostra as partes do violino]; aqui são outras madeiras que ele fez. É um violino com características bem diferentes no sentido da sua forma, mas todas as leis de construção do violino estão aqui.

Jefferson Del Rios: Estão presentes.

Antonio Nóbrega: Agora, por conta de ter uma madeira diferente da sua construção, ele tem um som um pouco diferente, mas é um violino. [começa a tocar o violino]

Antonio Nóbrega: "Quando as festas do sol vão começando e o trovão vai bramindo nos estralos" [cantando]. Então isso é um poema traduzido para tocar com a rabeca.  Apresentada?

Paulo Markun: Perfeitamente. Nós voltamos daqui a pouco.

Antonio Nóbrega: Está certo.

[intervalo]

Paulo Markun: Três perguntas de telespectadores, Nóbrega, todos na mesma linha de direção. Jorge Figueiredo, de Simão Dias, do Sergipe, diz: "O que você acha da descaracterização do forró brasileiro com o surgimento das bandas eletrônicas?" O Eduardo Ícaro, aqui de São Paulo, pergunta: “Eu gostaria de saber qual a relação que você tem com a nova geração vinda do Recife: manguebeat, do Chico Science, Nação Zumbi [banda brasileira, nascida no início da década de 1990, em Recife, a partir da união do Loustal, banda de rock pós-punk, com o bloco de samba-reggae Lamento Negro, e originalmente chamava-se Chico Science & Nação Zumbi], Mundo Livre S.A [banda brasileira que surgiu em 1984, oriunda de restos das bandas punks Trapaça, Serviço Sujo e 101], Mombojó [banda brasileira originada em 2001, na cidade de Recife] e outras bandas que enfatizam a cultura popular como o Mestre Ambrósio, Siba e etc? E finalmente, o Roberto Pastori, que diz o seguinte: "Até que ponto a utilização das tecnologias eletrônicas por parte de algumas bandas  que trabalham com ritmos da cultura popular brasileira não contribui com uma descaracterização dessas manifestações?"

Antonio Nóbrega: Com o pessoal de Recife, eu me dou muito bem com o pessoal do Mestre Ambrósio, com o Siba, com o Élder. Não conheço muito bem o pessoal do manguebeat, com o Mundo Livre não tenho umas relações muito cotidianas. A questão da técnica, a inclusão, a tecnologia... Desde que você coloca já um microfone para você cantar, você já está se valendo da tecnologia. Quanto melhor a tecnologia para veicular aquilo que você faz, tanto melhor é o resultado. Eu, por exemplo, agora mesmo acabei de adquirir um  microfone para captar o som, na minha rabeca, o violino, assim um dos melhores. Eu acho que a tecnologia tem que ser a favor da boa música, então não sou contra ela. Agora quando a tecnologia artificializa aquilo que a gente faz, quando por falta de ser músico mesmo, por conta do domínio mesmo do que é para fazer, e a gente, então... através da tecnologia, a gente busca mecanismos mais fáceis, aí eu acho que então ela está sendo danosa. Mas eu acho que não há que ser contra a tecnologia de maneira nenhuma, acho que temos que ser a favor quando ela é bem utilizada.

Valmir Santos: Nóbrega, como um artista popular genuíno, assim, como você transita pela chamada grande indústria cultural? Você acaba de produzir um DVD, distribuído pela [gravadora] Trama, é difícil, e com o seu pacote artístico assim, dentro das grandes empresas, grandes corporações, enfim, existe um preconceito ou não, como é que está?

Antonio Nóbrega: Eu, antes, me desculpe, eu vou fazer um reparo. Eu não me considero um artista popular. Às vezes, as pessoas até me honram muito me nomeando um grande artista popular e etc e tal no Brasil. Eu acho que sou um artista tão popular na medida de quantos são os criadores do Brasil que se referenciam na sua cultura popular. Guimarães Rosa, eu acho que não era um escritor popular, embora eu não me ombreie a Guimarães Rosa, nem, por exemplo, a [Heitor] Villa-Lobos [(1887-1959), maestro e compositor brasileiro reconhecido internacionalmente], que eu também colocaria, mas são artistas que procuraram também dimensionar o seu trabalho, alicerçarem o seu trabalho na cultura popular. Eu tenho a cultura popular como a base, como o chão do meu trabalho, de maneira que, por conta disso até, eu acho que as gravadores e as televisões me vêem, de certa forma, como um artista que, embora tenha seu trabalho alicerçado nessa cultura popular, tem o trânsito também que os artistas normalmente têm. Então, por exemplo, me faço entender? Por exemplo, quem distribui o meu trabalho atualmente é a Trama; o meu trabalho, tanto o DVD quanto o CD. Eu tenho uma gravadora mesmo, que é a Brincante, um selo que eu criei. Primeiro eu criei esse selo porque nenhuma gravadora  se interessava pelo meu trabalho. Aí eu vi que tinha que editar os meus CDs, eu mesmo criei meu selo. Com o tempo algumas delas se interessaram, mas eu preferi criar um vínculo com elas através da distribuição. O que ocorre... eu acho o seguinte, vejam vocês. Aqueles artistas que trabalham com a cultura popular, eles não têm a seu favor um conjunto de palavras que dêem uma dimensão ao seu trabalho, vamos chamar, assim, de “moderna” [faz sinal de aspas com as mãos]. Uma pessoa que trabalha com cultura popular, às vezes, tem que se valer de quê? De conceitos como o de cultura popular, cultura regional, cultura tradicional, autor coletivo, cultura anônima. Então, esses termos parece que dão uma dimensão, parece que, de alguma maneira, não são termos que dão modernidade, não parecem dar modernidade àquilo que a gente faz. Eu uso muito a palavra clown. Se você vai fazer um curso de clown é diferente do que você fazer um curso de palhaço. Não é verdade? Hoje, em qualquer lugar, qualquer academia se usa a palavra clown, não se usa o curso de palhaço. Então, quer dizer, há uma falta, às vezes, até mesmo por falta de palavras que dêem uma dimensão renovada do que seja trabalhar com a cultura popular. Outra coisa,  por exemplo, e aí já faz parte de nossa cultura burguesa e urbana. Qualquer academia hoje de dança, de desportos, de natação, por exemplo, 50%, 80%, 90% dos nomes delas são nomes americanos ou ingleses, não é? Acqua Sport, Fitness, não sei o quê... Agora você vê uma academia de capoeira, Cordão de Ouro, Besouro Mangangá. São duas coisas diferentes. Nós, no geral, na nossa história de classe média, a gente desvaloriza aquela e valoriza essa, porque essa tem um status de coisa moderna, de coisa melhor, não é? Mas a gente deixa de olhar o Brasil com os olhos com os quais ele precisa ser olhado. Por exemplo, eu acho muito [...], você vê que palavra bonita: “cordão de ouro”. Eu vou para a academia Cordão de Ouro, Besouro Mangangá.  É muito bonito, rapaz. Eu acho mais bonito do que muitos, não é? E depois o seguinte, veja... [fica meio reticente] Eu posso falar, não é?

Helena Katz: Pode.

Antonio Nóbrega: Depois, o seguinte: a gente está perdendo, também, nessa história, até a oportunidade de conhecer um Brasil que precisa ser conhecido não para a gente, mas para o mundo. Na cultura da dança, por exemplo, a gente tem um manancial tão rico de danças. Eu falei da capoeira, mas podia falar, por exemplo, do frevo, uma dança codificada que reúne mais de 80 passos; uma dança que, para a gente provar a própria vitalidade da cultura popular, nasceu da capoeira, o frevo, o passo do frevo. E que ainda não está no seu momento final, ela está em progressão, sabe lá para onde vai. Agora pode ser folclorizada se o Brasil não respeitar o que tem, o passo do frevo, de repente, pode se tornar uma dança folclórica. Ou seja, ela pode perder o seu papel, a sua função social, que até o momento ela tem tido. Mas ela pode virar uma... cair na situação de folclore.

Helena Katz: Então chegamos na dança, Toninho, chegamos na dança. Vamos lá. A gente, quando fica um pouco mais velho, todos nós temos uma tendência a revisitar. Veja só. Você está superinteressado pelo violino, que foi por onde você começou toda essa trajetória. Bem lá no começo mesmo dessa trajetória, tinha a dança merecendo esse tipo de atenção que você está falando agora. Será que a dança tem chance de merecer isso de novo na sua carreira?

Antonio Nóbrega: Tem. O meu vínculo com os departamentos, com os segmentos da arte são sazonais, se bem que a do violino não é sazonal, mas...

José Nêumanne: Está durando.

Antonio Nóbrega: Mas eu, por exemplo, eu estou fazendo agora, juntamente com Rosane, minha mulher, e juntamente com Belizário, o trabalho do registro da dança.

Helena Katz: Essa documentação.

Antonio Nóbrega: Mas esse trabalho não é só de um registro das danças. Ou seja, nós estamos participando, tanto eu quanto Rosane, como dançarinos que se envolvem com aqueles dançarinos populares que vão aprendendo, cujos corpos vão assimilando aqueles passos, aqueles movimentos e que, no decorrer dessa grande jornada – serão 10 programas–, fruto da assimilação desses passos, desses movimentos, eles vão propor um alfabeto, uma linguagem, entre as possíveis, de dança brasileira. Não quer dizer que seja a única, aquela é nossa síntese. Eu faço uma síntese por conta de minha história pessoal; na minha história pessoal estão presentes passos de caboclinhos, estão gingados de capoeira, estão firulas do passista, movimentos de braço do dançarino de maracatu, então minha síntese eu fiz por ali. Outros dançarinos brasileiros farão as suas. Mas o que eu acho importante é que a gente tem de olhar com esse chão, porque esse chão é muito rico e é imprescindível. No momento em que, por exemplo, a civilização da gente vive marcada, vive “hipertrofiada” pelo princípio do varão, ou seja, pelo princípio do masculino. Esse é o tema que eu acho maior do que eu faço, quer dizer, a leitura que eu faço do movimento armorial, enfim, de tudo que eu tenho, quer dizer, os  pressupostos mais profundos que eu encontro dos meus trabalhos estão fincados nessa compreensão de que a hipertrofia do princípio masculino que domina de longuíssima data nossa civilização, ele tem que mudar. Ou seja, nós temos que ter uma cultura e uma civilização mais equilibrada entre esses dois princípios. E a cultura popular, para mim, é o grande farol desse equilíbrio, por quê? Porque essas danças, esses cantos estão ligados com as forças da natureza que nós precisamos encontrar. Porque a cultura e a civilização da gente procura tanto a homeopatia, a acupuntura, os florais, ou seja, procura encontrar formas de “saudabilizar” [tornar saudável], chamadas de alternativas, mas são formas mais ligadas a quê? À natureza. Nós estamos precisando escutar mais a natureza, porque o mundo só do conceito, o mundo só cerebral, esse tem dado sinais que ele não responde por tudo aquilo que ele procura. Então a mesma coisa, a cultura popular também representa,  pelo campo da cultura e da arte, a  nossa homeopatia, nossa acupuntura, a nossa arte, quer dizer, a nossa saúde alternativa.  Você veja, a gente vive num mundo hoje em que se busca muito a transcendência através dos meios artificiais, e a droga é um deles. O uso que se faz, a droga é um meio artificial de trazer transcendência, mas por quê? Em alguma coisa a cultura e a civilização estão falhando; a arte está falhando, a cultura. Quem sabe se a arte, a cultura não são maneiras de trazer a transcendência, mas de uma maneira mais equilibrada, de uma maneira...                 

Jefferson Del Rios: Mas essa sua busca de revalorização da cultura regional, como é que você colocaria o Elomar Figueira de Mello [(1937-), cantor, violeiro e trovador baiano] por aí? Nisso aí ele é uma coisa, guardando as devidas proporções, alguma coisa como você faz? Pegar a cultura regional reelaborar?

Antonio Nóbrega: É, ele é um grande compositor, um grande cançonetista. Se vale dos mitos, das lendas e, sobretudo, busca uma linguagem até autônoma, não sei se é autônoma, mas busca um português mais antigo e ainda hoje falado principalmente por aquelas  pessoas da região que ele habita. Elomar é um grande guerreiro.

Jefferson Del Rios: Você acha que ele está nesse papel que você coloca de guardar a cultura regional, cultura popular? 

Antonio Nóbrega: Está [no papel] de revalorizá-la e recriá-la através do seu trabalho tanto de cançonetista quanto de músico, mesmo, compositor.

Paulo Markun: Nóbrega, mais um intervalinho e voltamos já já.

Antonio Nóbrega: Está certo.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva que entrevista, esta noite, Antonio Nóbrega. Perguntas de telespectadores. Callie Junqueira, de Guaratinguetá, São Paulo, pergunta: “Por que o teatro brincante começou no fundo de  quintal e qual sua relação com o Ministério da Cultura e com patrocinadores?" Antonio José Maria, de Araguaí, Minas Gerais, pergunta como você vê o Ministério da Cultura, se eles desenvolvem algum projeto em prol da cultura popular. E Pedro Alexandre Marques, da Freguesia do Ó, aqui de São Paulo, pergunta o que é que você está achando do governo do presidente Lula.

Antonio Nóbrega: É para responder as três agora? [risos] Está certo. Primeiro, o Brincante é um velho galpão, são dois galpões lá na Vila Madalena. Eu criei o espaço lá há doze anos, que não é um fundo de quintal, na verdade... Mas eu não me recordo o que é que ele...

Paulo Markun: E o Ministério da Cultura, você tinha relação com o Ministério da Cultura e patrocinadores.

Antonio Nóbrega: Teve pequenos patrocínios eventuais, teve parcerias. Aliás, fizemos uma coisa muito bonita com o Sesc, Encontro com a dança e a música brasileira,  isso há 3 ou 4 anos atrás. E alguns patrocínios esparsos.

Paulo Markun: Mas várias vezes andou perigando fechar?

Antonio Nóbrega: É, teve um período que eu fiquei muito pensativo em continuar lá, mas graças a Deus o bom senso prevaleceu, a coragem e a obstinação. Que Ministério da Cultura! Quando o [Gilberto] Gil assumiu, eu fiquei – confesso – meio temeroso. Primeiro, porque é um artista, de compromissos como artista, assumindo um ministério, e receoso também, por conta principalmente disso. Mas eu acho que o Gil tem dado demonstração de que quer mudar o rosto do Ministério da Cultura. Agora ele enfrenta, como de resto, quem vai tomar conta do nosso país, dificuldades imensas, desde o orçamento, que é um orçamento muito pequeno, mas que segundo dados que eu tenho me parece que estão sendo elevados, já conseguimos aumento de percentual. E depois nós temos um grande problema que é o fato de que tudo aquilo que ficava sob responsabilidade ou do município ou do estado ou da federação caiu para serem administrados por empresas. Quer dizer, as leis de incentivo fizeram as vezes daquilo que faziam os municípios, o estado ou a federação. Então, eu acho que tem que haver um grande conselho, tem quer haver uma grande discussão da maneira de se aplicar esse dinheiro. Porque, na verdade, o que nós estamos fazendo é o seguinte: nós estamos apenas mudando o dinheiro, que é um dinheiro do país, o dinheiro que provavelmente seria para construir casas, para dar saúde... e que, se esse dinheiro é para a cultura, essa cultura tem que também dar bem espiritual, tem que dar bens culturais, no rigor da palavra. E eu acho que o Gil está muito atento a isso e está realizando, me parece, uma discussão muito grande sobre...

Danilo Miranda: Exatamente. Nesse momento, inclusive, está já formulada e está sendo proposta a modificação, as alterações necessárias na Lei Rouanet. Está sendo proposta nesse momento, o presidente acho que recebeu o Gil esses dias para discutir essa questão.

Antonio Nóbrega: Isso é urgente porque de onde tem saído a cultura brasileira é através, principalmente, do mecanismo das leis de incentivo.

Paulo Markun: Falta a do presidente Lula.

Antonio Nóbrega: Olhe, eu sou um brasileiro que "esperanço" e creio muito ainda. Digo ainda porque hoje em dia, quer dizer, nesse momento, já se fala até com certo teor de desesperança, às vezes, eu noto em algumas pessoas em relação ao governo Lula. Eu, não. Eu, muito pelo contrário, creio e vejo, tenho razões, acho que tenho razões para achar que  não é o momento ainda de se desesperançar, de maneira nenhuma. Primeiro, porque é um período muito pequeno de governo ainda, não dá para avaliar. Depois nós temos um país com problemas crônicos desde a sua fundamentação. Não se vai resolver os problemas crônicos do Brasil, nossa terrível má distribuição de renda, num período muito pequeno. A violência que nós estamos tendo, não temos dúvidas, é fruto da nossa desorganização na distribuição da nossa renda. O modelo liberal e não libertário, o capitalismo selvagem que se exerce nesse país é o grande impulsionador de todos esses mecanismos que vêm destruindo nosso país. E imagino que as dificuldades que o nosso presidente tem que enfrentar são muito grandes, porque nós temos uma elite muito poderosa e com muito pouca entrega àquilo que o Brasil precisa para que ele se reabilite. Nós temos um PIB [Produto Interno Bruto] nacional cuja metade está entre na mão de 10% do nosso povo, como é que se muda isso? E depois o seguinte: se essa balança está dessa maneira, não tem como essa balança vir para cá, se o que está aqui em cima não ceder, não tem como.  E ceder isso aqui, meu amigo, é onde é que está o difícil.

Jefferson Del Rios: Nóbrega, nós todos aqui estamos sendo testemunhas, e o espectador também, da extrema sofisticação dos conceitos, da sua idéia, do próprio trabalho do país, de como você se insere dentro dessa nacionalidade. Isso é uma coisa de extremo rigor intelectual. Eu queria explorar uma curiosa contradição, porque você é dono do personagem, que é o personagem Tonieta, é um personagem vivedor, é uma pessoa irresponsável, não trabalha, não tem rigor da vida pessoal. Só que esse  personagem é dono do Antonio Nóbrega, que exige dele um preparo físico, um preparo pessoal de um extremo rigor. Essa energia que ele tem, que ele arrasta multidões de teatros, isso em duas horas de trabalho. Então a minha curiosidade prosaica é saber como você se prepara, desde a sua alimentação até seu cotidiano de ensaios.

Antonio Nóbrega: Eu tenho, por sorte, assim, uma natureza muito disciplinada, o que facilita. O que para outras pessoas... ser disciplinado seria um grande desafio, para mim é um fator de facilidade. Eu, por exemplo, não gosto da noite. Eu acho que a noite é a melhor hora que a gente tem para dormir. [risos] Eu acho que, se eu pudesse me acordar todo dia às 6 horas da manhã com os passarinhos, seria uma felicidade. Eu não posso, infelizmente, porque realmente me apresento na maioria das vezes à noite. Então eu tenho essa disposição para a disciplina, essa disciplina faz com o que eu, então, me dedique ao instrumento, me dedique ao corpo  e queira sempre – vou usar uma palavra como – me superar, essa é a palavra realmente. Eu nunca me basto, principalmente porque sou um ator, sou um dançarino, sou uma pessoa da prática do palco e gostaria... Por exemplo, eu procuro ser um violinista e um dançarino e um tocador de violino, procuro ser cada uma coisa dessas, ao mesmo tempo sendo todas como se fosse um único. Eu, por exemplo, eu toco um violino que eu gostaria de tocar melhor; eu danço, mas gostaria de dançar melhor. Então tudo isso me ativa para que eu procure fazer mais e mais. Eu não acho que tenho um preparo intelectual, eu acho que meu preparo intelectual muito aquém daquele eu gostaria de ter. A minha prática diária não me permite, por exemplo, reler Grande sertão: veredas [obra-prima do escritor João Guimarães Rosa, publicada em 1956, cujo enredo se compõe, basicamente, do entrecruzamento de três grandes eixos: o questionamento sobre a existência do diabo, as lutas dos jagunços pelo sertão de Minas, Bahia e Goiás e o amor proibido de dois jagunços, Riobaldo e Diadorim]... quantas vezes eu gostaria de ler! Eu tenho uma admiração muito grande, uma paixão muito grande pela literatura, mas infelizmente não tenho podido acompanhar essa minha paixão na dimensão que eu gostaria de ter. Uma figura como Tonieta, por exemplo, ela tanto tem... É por isso que eu não me acho um artista popular e não digo isso com preconceito com artista popular de maneira nenhuma. Mas assim como eu tive nos Mateus, nos velhos e pastoris, nos emboladores de rua [cantadores que, em dupla, ao som de pandeiro, produzem um canto improvisado, com refrão fixo, em que “desafiam” um ao outro] aquelas referências para o Tonieta, eu busquei também aquelas referências de outras culturas para que o Tonieta tivesse mais vida, mais verdade. Então, por exemplo, eu me afeiçoei muito ao cinema mudo, através da figura do Chaplin, eu me afeiçoei aos personagens da Commedia dell’arte, embora não tenha visto, naturalmente, porque não existe mais, mas li muito sobre eles. E foram sempre instâncias sazonais da minha vida. Teve um momento que eu só estudava a Commedia dell’arte. Lia sobre tudo, sobre o Arlequim [personagem mais popular da Commedia dell’arte]. Teve momento que estudava muito o palhaço. Por exemplo, eu conheço um palhaço, talvez eu seja o brasileiro, me desculpe, que mais conhece um palhaço chamado Grok, um palhaço suíço que me fez até fazer um curso na Suíça para conhecer um herdeiro seu chamado Dimitri. Então foi minha fase palhacenta, [risos] digamos assim. E eu fui lá, assim como eu fui para a Bulgária para melhor me instrumentalizar no violino, eu fui para o Suíça pra conhecer o Dimitri.

Jefferson Del Rios: E você se banca?

Antonio Nóbrega: Hein?

Jefferson Del Rios: E você se banca para essas....

Antonio Nóbrega: Eu me banco, meu trabalho tem dado, tem me bancado.

Danilo Miranda: Nóbrega, você, como foi dito aqui, aparece com toda clareza, é um artista realmente múltiplo, com várias formas de mostrar seu trabalho, sua arte. E você tem um papel além do espetáculo, você tem uma função de propor, de discutir questões, uma função didática, eu diria até no bom sentido, no sentido que você traz elementos que mostram caminhos, que ensinam, que orientam. E você trabalho muito, durante muito tempo, pesquisando, juntando material, conhecendo gente, fazendo esse levantamento fantástico, que alguns, como Mário de Andrade, fez no passado e outros ainda fazem. E você faz esse trabalho, fez esse trabalho muito bem. Estávamos falando, agora há pouco, de Dona Militana, enfim, que  é uma pessoa recentemente conhecida no nosso universo, pelo menos no nosso universo aqui, na região sul, sudeste. Você continua pesquisando, você tem ainda esse trabalho? Como você realiza isso, você tem informações, você vai atrás disso? Porque eu percebo você ainda hoje continua indo buscar essa coisa que vai renovando seu cadebal de informações.

Antonio Nóbrega: Eu sou incansável nessa minha busca. Eu não gosto muito da palavra pesquisa, não, porque realmente eu não sou um pesquisador.

Danilo Miranda: Essa busca, essa procura.

Antonio Nóbrega: Essa minha paixão pela cultura de nosso povo faz com que eu continuamente visite os seus criadores, os seus mestres. Agora, por exemplo, é o caso do projeto com a dança brasileira e o curioso é o seguinte, é que eu já vi tantas vezes, por exemplo, um cavalo-marinho, um maracatu rural, e eu não me canso de, ao vê-los ou ao revê-los, encontrar neles novos significados. Eles me apontam novas... eles me fazem relê-los de uma maneira a cada vez superior. Eu vou encontrando como se fossem camadas superiores de compreensão, camadas superiores e ao mesmo tempo mais profundas. Então eu preciso até de me reencontrar sempre com esses cantadores porque eles reanimam não só o meu universo de criador,  mas eles também fazem eu compreender melhor e talvez seja por conta disso que eu também exerço um pouco esse papel, às vezes, de, à falta de um nome melhor, de uma espécie de um pequeno tribuno.

Danilo Miranda: Nesses 30 anos você conseguiu estabelecer relações com pessoas que vão te avisando das coisas que vão acontecendo, “olha, tem tal coisa aqui , tal coisa ali”.

Antonio Nóbrega: Tem. A gente começou, de certa, forma comecei... O nosso calendário de manifestações populares, elas têm os dias, os seus períodos naturais: o período do Natal, o período do Carnaval e as festas em dias determinados. De maneira que eu, sabendo disso, quer dizer, o problema até é outro, o problema é eu ser um só. Por sorte eu tenho até na minha família, na minha mulher, nos meus filhos também, pessoas que parecem ter se encontrado com essa cultura da mesma maneira que eu, o que me alegra muito, porque eu tenho um ambiente na minha casa onde nós conversamos sobre cultura popular, sobre arte naturalmente, faz parte do nosso cardápio de vida. Então isso já... para mim, facilita muito, estar sempre em sintonia com esse universo.

Helena Katz: Toninho, você falava, eu lembro, há um tempo, dos mistérios do povo brasileiro. Então disso... pelo que você está falando agora, você tem contado desses mistérios para nós. Então ainda tem mistérios para você descobrir?

Danilo Miranda: Para contar.

Antonio Nóbrega: Tem. O mistério maior vai ser quando o Brasil se der conta do que essa cultura representa para a gente. Eu sou um artista, eu apresento a dimensão do nosso povo através da arte e da cultura. Mas da mesma forma esse povo tem uma maneira de se comunicar, ou seja, há os patamares, a gente pode também aprender com esse povo através da maneira como ele vive entre eles, como é a sua troca de mercadorias. Eu acho que nós, se aprendêssemos mais com eles... a gente teria um Brasil melhor. Por exemplo, uma tribo indígena, para ir bem mais longe. Eles não têm cultura popular, índio não tem cultura popular, índio já é a cultura popular, mas é a cultura popular em relação a nós. Cultura popular, ou melhor, cultura do povo só existe quando existe a cultura do dominador, exatamente. Porque os índios não têm, eles têm a cultura deles; ele tem a cultura para orar, para brincar, ou seja, a cultura deles é compartilhada por todos, não é verdade?  Como também uma cultura de um país africano não moderno, digo a tribo, aquela africana, é a cultura de todos, são os momentos da vida dele. É o momento da caça, é o momento do homem que vai contar a história, é o momento de bater, lá, para colher, tem a música, aquela é cultura deles. No dia em que nós conseguirmos ter um país dessa natureza, em que nós tenhamos uma cultura una, uma cultura de respeito a todos nós, para todos os nossos momentos, para o nosso momento de introspecção, para o nosso momento de festa, então nesse momento eu  acho que a gente terá resolvido o nosso mistério.

Paulo Markun: Pergunta de Petrúnio Solto, de João Pessoa, na Paraíba... pergunta o seguinte: "Por que todo esse ódio de Ariano Suassuna, do movimento armorial, em relação ao idioma inglês e às culturas britânica e norte-americana?" Inglês, segundo o Petrúnio, é um idioma belíssimo, e as culturas britânica e norte-americana são igualmente belíssimas,  então por que essa guerra? Eu acrescento: você participa dessa guerra?

Antonio Nóbrega: Olha, eu não sei se a palavra correta é essa, não sei se Ariano tem ódio à cultura, à língua inglesa. Uma declaração dele que conheço é que ele não acha a língua inglesa tão bonita como outras que ele se identifica mais como francês, como espanhol.

Paulo Markun: Só para atrapalhar um pouco, ele fez uma declaração recente dizendo que, hoje em dia, eles não mandam mais os exércitos, mandam Madonna e Michael Jackson. 

Antonio Nóbrega: Exatamente, agora veja. Eu acho que neste momento, eu acho que nós deveríamos ter uma relação contra o imperialismo americano, realmente uma relação, não digo de ódio, eu acho que não é a palavra, mas de se contrapor mais veementemente. Porque nos concertos das nações, o "grande império"... Aí é aquela coisa que falei lá no início, eu acho que a própria encarnação do princípio masculino na nossa cultura e civilização está através do imperialismo americano. Eu acho que Hitler, eu acho que o nazismo foi um estágio dentro dessa escalada, ou seja, do princípio... O que é o princípio do másculo, do varão? É o princípio da força, é o princípio de resolver a questão pela força, pela materialidade da força, enquanto o princípio feminino não, é pela compaixão, é pela renúncia. E é da compaixão, da solidariedade, da renúncia que nós estamos precisando, é isso que eu  chamo de princípio feminino. Não é a mulher nem o homem não, são dois princípios cujo casamento, cuja complementaridade seguramente nos daria um mundo  muito mais saudável e muito mais feliz. E eu acho que o americano representa no mundo, quer dizer, o Estado americano, representado pela figura do seu George [Walker] Bush [(1946-), presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009], ele traz justamente a hipertrofia no seu maior grau... desse princípio, ou seja, da força, da ausência de qualquer espírito de solidariedade no mundo.    

Paulo Markun: Nóbrega, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa.

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