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Memória Roda Viva

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Debate: situação política

29/12/2003

Analistas e acadêmicos discutem o panorama político do início do segundo ano do governo Lula

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Paulo Markun: Boa noite. O Roda Viva, neste primeiro ano de governo Lula [presidente do Brasil de 2003 a 2010], dedicou um bom espaço à política e à economia. Nós discutimos aqui, com representantes do governo e com lideranças políticas, o que poderia mudar na vida do país e na vida das pessoas a partir das idéias do novo governo. Agora, estamos diante das expectativas ou das esperanças para 2004. E é uma expectativa maior do que as outras, já que se projeta, para o novo ano, o crescimento econômico que não aconteceu em 2003 [o Produto Interno Bruto brasileiro cresceu 1,1% em 2003 e 5,7% em 2004]. E os rumos desse tão esperado crescimento econômico vão depender muito do ambiente político que é marcado pela disputa de um ano eleitoral. Para discutir esse quadro, o Roda Viva preparou dois programas especiais: política, hoje, e economia na próxima segunda feira, colocando no centro do debate a perspectiva para 2004. O programa de hoje reúne uma bancada de convidados especiais, que são estudiosos e pesquisadores, com quem vamos discutir o horizonte político de 2004, os dilemas do governo e dos partidos, o jogo das negociações, a reforma política, as novas posições do Brasil no panorama internacional, as relações e os compromissos entre governantes, parlamentares e sociedades. Para nos ajudar a conhecer e a compreender os desafios que teremos pela frente, nós convidamos Sérgio Cardoso, professor de ética e filosofia política do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo; Gilberto Dupas, economista, coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais; Maria Dalva Kinzo, professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo; Fabiano Santos, diretor-executivo do Iuperj, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; Cláudio Weber Abramo, secretário geral da organização não governamental Transparência Brasil, e Sebastião Carlos Velasco e Cruz, professor titular de ciência política da Unicamp. Queria colocar o debate imediatamente em campo, como diria o presidente Lula, levantando a questão seguinte: ano que vem, eleições municipais, este fato vai ser o fato decisivo do cenário político para 2004? E, como a gente está numa mesa redonda, eu já conversei aqui antigamente com os participantes, a idéia é que a gente troque idéias o mais livremente possível, eu só vou usar da velha e boa gentileza que deveria prevalecer sempre e pedir para a Maria Dalva começar, por favor.

Maria Dalva Kinzo: Bem, eu acho que as eleições vão, de fato, ter um impacto muito grande em todo o processo político do ano que vem, [que] já começou. Já começou a ter impacto e vai ser um complicador a mais para esse processo de discussão, de aprovação de reforma, das outras reformas que ainda não foram colocadas em discussão no Congresso, na medida em que você tem uma  correlação de forças, né?, que apóiam o governo Lula. É muito extensa, muito heterogênea, formada por muitos partidos que vão tratar de ganhar espaço político através do jogo municipal.

Paulo Markun: Mas justamente por isso, desculpe te interromper, não vai ser difícil avaliar que bicho deu na eleição municipal? Porque, sei lá, se ganha o PTB [Partido Trabalhista Brasileiro] num município, ou se ganha o PL [Partido Liberal] no outro, vai ter gente que vai dizer: “Isso é base aliada”, quando a gente sabe que não necessariamente isso significa uma aliança automática.

Maria Dalva Kinzo: É. Mas eu acho que tem duas coisas com relação as eleições: uma que está ligada diretamente ao PT [Partido dos Trabalhadores, do qual Lula é filiado] e aí vai haver, principalmente em algumas capitais, nas capitais mais importantes, vai haver um processo de avaliação do governo Lula. É impossível que não haja uma relação entre o quadro nacional e o quadro municipal. Isso vai ocorrer. E é justamente nesta área... Aí é o PT, é o PT e o governo Lula, do presidente Lula. Com relação aos outros argumentos da base, em qualquer coalizão, da forma como ela se dá no presidencialismo, não existe este apoio automático, a formação de uma aliança que se sustenha ao nível da competição eleitoral. Ela se desmancha nesta hora porque ela é muito heterogênea, ela se dá de forma diferente em cada parte do país. Então, é um jogo muito complicado. Eu vejo esse aspecto, aspecto da articulação político-partidária, com vistas às eleições, um problema bastante complicado, vai depender de muita capacidade de articulação aí do PT, Lula, dos seus articuladores principais, eu acho. Esta é minha forma de ver.

Paulo Markun: Quem se habilita? Cláudio.

Cláudio Weber Abramo: É, eu acho que o ano de 2004, sob esse ponto de vista, vai ser dominado pelas eleições municipais, como você disse, mas no sentido ainda mais amplo. O PT tem um projeto de poder cujo horizonte mínimo é de oito anos, bom, sete anos agora, e o sucesso das eleições municipais me parece ser crucial para esse projeto. Então, eu creio que as jogadas políticas que se darão ao longo de 2004, no plano federal, obedecerão a este projeto com correspondente prejuízo de políticas nacionais, certo? Serão políticas localizadas, tendo em vista a obtenção de determinadas vantagens, nesse quadro que você mencionou, de grande diversidade entre os diferentes municípios, de grande diversidade entre as forças que jogam em cada município, com muito forte ênfase sobre os municípios importantes como São Paulo, por exemplo. É absolutamente crucial, para o projeto de poder do PT, vencer as eleições municipais em São Paulo [em 2004, José Serra, do PSDB, concorreu com Marta Suplicy, do PT, e foi o vencedor do segundo turno]. Muito vai ser jogado aí.

Sebastião Velasco e Cruz: Bom, eu concordo, eu estava aqui me lembrando, recuando no tempo, embora este programa nos convide a olhar para o futuro, me lembrando de 1988, momento-mundo diferente no quadro nacional, mas um momento de eleições municipais e, exatamente nessa ocasião, o PT deu o grande salto que o credenciou como candidato importante na eleição presidencial de 1989 [Lula disputou as eleições presidenciais com Fernando Collor de Mello e perdeu no segundo turno por pequena margem]. Agora nós estamos numa situação simétrica, o PT sai vitorioso da eleição presidencial no ano passado, elege uma bancada federal enorme, muito superior ao que os analistas mais cuidadosos antecipavam e, agora, depois de dois anos de governo, se coloca à prova. Então, esse momento vai ser decisivo, enfim, para a afirmação do PT na coligação que dá sustentação ao governo. A aposta é clara, a aposta é de que em 2004 a conquista no plano nacional seja confirmada e se traduza em ganho adicional nas eleições municipais. É isso que nós vamos ver daqui a um ano.

Fabiano Santos: Eu tendo a concordar, acho que alguns elementos aí da conjuntura para o ano que vem estão bem postos, evidentemente que eleições para prefeitura serão um fator mais importante na vida política nacional, mas eu acho que isso tende a se intensificar no segundo semestre, que é um momento em que a campanha é deslanchada. Até lá, eu acho que o governo vai apostar firme no sentido de aprovar a sua agenda no Congresso, não é? A partir do segundo semestre vai existir aquilo que em toda eleição municipal ocorre, quer dizer, o Congresso praticamente pára, até porque grande parte dos congressistas, ou boa parte dos congressistas são candidatos, e têm aliados políticos concorrendo. É natural que o Congresso deixe de funcionar, vai funcionar a meio vapor. Agora, têm pontos fundamentais da pauta governamental que serão enfrentadas e devem ser enfrentadas no segundo semestre.

Paulo Markun: Por exemplo?

Fabiano Santos: Eu acho que seja a reforma sindical trabalhista, a lei de falências. Eu acho que tem uma série de pontos da agenda do governo que continuarão a serem trabalhados pela liderança da coalizão. Agora, a respeito da questão, acho que mais candente é até que ponto... primeiro, dois pontos: se o fato de ser governo implica que a eleição municipal servirá de avaliação da administração, eu acho que é o primeiro ponto importante. Segundo lugar, até que ponto o PT vai ou não vai crescer, e isso vai ser decisivo na eleição de 2007, desculpe, 2006. Quer dizer, são dois pontos interessantes aí para gente fazer uma prospectiva aqui do cenário. Eu acho que, em primeiro lugar, neste primeiro ponto com relação à avaliação do governo, uma coisa na eleição, é inevitável a gente está falando do futuro, mas é inevitável pensar no passado recente. Uma coisa que ficou claro é que a eleição local e a eleição nacional são distintas, são distinguidas pelo eleitorado brasileiro. A eleição nacional foi vencida pelo PT, pelo Lula, realmente uma vitória  [no segundo turno, contra José Serra] bastante consagradora, agora, o PT perdeu na esmagadora maioria dos estados onde concorreu no segundo turno. O que eu quero dizer com isso? Acho que o eleitorado sabe distinguir os níveis de disputa, se um prefeito é avaliado no seu município, independentemente de ser ou não ser na base de sustentação da coalizão, ele será reeleito. Por exemplo, César Maia [foi reeleito no Rio de Janeiro em 2004]. César Maia está com avaliação excelente, está certo, no Rio de Janeiro, é bem provável que se reeleja. Nem por isso, se perguntados, os cidadãos do Rio de Janeiro vão dizer que não gostam do presidente Lula. Então, existe uma desassociação clara na cabeça do eleitor, coisa não que existe por parte dos partidos. Portanto, eu acredito que o impacto do governo PT na eleição municipal se dará pelo lado da oferta e não pelo lado da demanda. Então, eu defendo primeiro, o eleitor distingue os níveis de disputa, a história da eleição municipal, a história partidária municipal é uma, a história estadual é outra e a história nacional é outra. Estas coisas se interpenetram, se relacionam. Mas aonde o PT será avaliado, depende da sua estratégia: ah, vai associar sua imagem à Marta [referindo-se à Marta Suplicy, prefeita de São Paulo de 2001 a 2005]? Bom, então ele está convidando o eleitor a fazer uma avaliação.

Maria Dalva Kinzo: Mas aí independe dele.

Fabiano Santos: Está certo? Eu não terminei, eu só queria completar, porque tem o segundo ponto. Só para chegar ao segundo ponto que eu acho fundamental, quer dizer, por que é importante para o PT crescer? Evidentemente que qualquer partido quer crescer, quer ganhar eleição e quer crescer, mas por que é fundamental uma eleição municipal? Para conseguir ganhar capilaridade, para conseguir montar rede nos pequenos municípios, no sentido de se tornar menos dependente dos  seus parceiros e parceiros mais a centro-direita, mais conservadores, como hoje o PT é neste atual governo. Se ele consegue capilaridade nos pequenos municípios, uma eventual campanha e uma eventual reeleição se dará de forma, digamos, menos compartilhada com partidos muito distantes do ponto de vista ideológico. Então, é fundamental o PT crescer. Como crescerá e se crescerá pelo fato de ser governo, é pelo lado da estratégia de oferta do PT, ou seja, hoje em dia o PT faz muito mais aliança do que fazia ano passado. Fazendo mais alianças e flexibilizando os seus parceiros, ele tem melhores condições de disputa e melhores condições de vitória.

Gilberto Dupas: Eu queria abordar essa questão de forma um pouco diferente. Eu me perguntaria que PT está sendo posto à prova e, em última análise, qual o PT que será posto à prova nas eleições municipais, diga-se de passagem. Não atribuo muita importância a não ser por um aspecto que eu vou considerar no final. Essa pergunta pressuporia uma outra que é: que projeto de país este PT tem e está testando? Essa é uma questão complexa, eu me lembraria aqui de um programa antigo, acho que o Markun não estava aqui no Roda Viva ainda quando a gente entrevistava o Ulysses Guimarães, logo depois da grande vitória do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro] na democratização do país. E o PMDB começava a governar e começava a abandonar algumas das suas bandeiras, e eu brinquei com o doutor Ulysses naquela época e disse assim: “olha, eu estou me lembrando da  [...] que dizia que o poder equaliza as ideologias porque os instrumentos para se manter nele são sempre os mesmos”. Basicamente, eu acho que essa questão está em jogo. Um ano de governo deu uma nova cara ao PT. Na realidade, nós tivemos um projeto inicial que foi devidamente revisto e equilibrado para ganhar as eleições a partir da Carta aos Brasileiros [foi um texto assinado por Lula, em junho de 2002, quando se candidatou à Presidência da República, assegurando que, em caso de vitória, o PT respeitaria os acordos nacionais e internacionais firmados anteriormente], nós tivemos o desafio da manutenção da estabilidade que foi, digamos, enfrentado de uma maneira, de um vigor, surpreendente. Nós temos, ao mesmo tempo, a tentativa de, no Fome Zero [programa de governo de Lula criado em 2003 para erradicar a fome e a pobreza no Brasil] e nas reformas, diferenciar. O Fome Zero, infelizmente, foi um projeto que tinha dois defeitos fundamentais, dois pecados de origem: a questão logística e a questão de que ele sempre atenderia, ainda de que maneira assistencialista, um pedaço pequeno da população e deixaria de atender a maior parte, isso politicamente é muito complicado. Me lembro do Mário Covas [(1930 – 2001), governador de São Paulo de 1995 a 2001] quando perdeu as eleições aqui [em São Paulo], ficou muito decepcionado porque num dos bairros que ele mais investiu, ele teve menos votos e aí foi feita uma discussão e tal, e foi dito a ele: “é simples, o senhor com os mutirões mostrou que é possível dar alguma coisa para aquele pessoal, mas deu para 10%. Os 90% que sabem que agora podem e não tiveram votaram contra o senhor”. Então, quer dizer, o Fome Zero é um programa logisticamente complicado e politicamente não universal. As reformas, nós já temos uma visão razoável, pelo menos na área econômica. A reforma tributária, ela praticamente estagnou e o governo correu para que não significasse simplesmente um aumento de carga e que fossem prorrogados alguns instrumentos fundamentais, por isso não houve progresso e a reforma previdenciária teve algum processo, um progresso a longo prazo razoável, 10% do estoque de dívida, mais no curto prazo, na questão do curto prazo, não. Portanto, passada essa etapa, a pergunta que se tem é a seguinte: o ano de 2004 que vem aí, se sustentará sobre o quê? Ele se sustentará sobre um crescimento de uns 2,5 a 3%, que nós sabemos que vem. Depois de um longo período de estagnação, desde a estabilização do real [unidade monetária adotada no Brasil em 1994, depois de 7 mudanças sucessivas] até este ano em que cresceremos próximo de zero, esse crescimento do ano que vem, que será de alguma coisa em torno de 2,5, 3,5%, por aí, dado como uma questão concreta, será um fator politicamente extremamente importante, porque se comparado com anos anteriores ele dará uma folga que será expressiva. A grande questão aí é o seguinte: será o vôo da galinha ou não será o vôo da galinha? Se for o vôo da galinha e se, ao mesmo tempo, o ano de 2004 significar uma ampliação da estrutura partidária do governo, de maneira intensa, digamos, uma aglutinação de forças em termos desse projeto de governo que está aí, e de repente em 2005 nós temos de novo uma recessão, como é que fica esse aparato enorme de poder diante de um novo ciclo recessivo? Então, para mim, a interrogação vai aparecer em 2005 ou pelo menos a partir do final de 2004, quando a questão de que se o crescimento voltou sustentado ou não, eu acho que é difícil que ele volte sustentado, aparecerá de novo. Aí nós teremos, então, a hora da verdade, na minha opinião, porque ela coincidirá com a lógica do segundo mandato e, então, estará, digamos, em marcha.

Paulo Markun: E você deixou de falar, qual é o peso, qual o significado da eleição municipal que você disse que achava que tinha.

Gilberto Dupas: Então, as eleição municipais, me parece que elas são, classicamente no Brasil, eu acho que eu concordo com você, eleições menores. O que vai ser testar nas eleição depende do que o partido pretenda que se teste. Eu acho que ainda assim os debates nas eleições municipais, talvez excluindo as metrópoles, cujas conseqüências econômicas e políticas globais são mais sensíveis em termos de precarização, miséria, segurança e pode ser mais atacada, no grosso das cidades médias e pequenas, eu acredito que as eleições municipais não atinjam, tendam a não atingir, temas nacionais, mas elas podem servir para aumentar a extensão da aliança em torno do governo, para estruturar melhor essa máquina partidária intensa.

Cláudio Weber Abramo: Mas aquilo que eu - só muito depressa... - aquilo que o Fabiano disse, quer dizer, a necessidade que o Partido dos Trabalhadores tem de se capilarizar nos municípios, nós temos evidências concretas de que eles estão, de fato, preocupados com isso. Recentemente o PT anunciou que havia atingido 100% dos municípios brasileiros com seus diretórios, que é exatamente nessa direção: em que medida a política nacional se refletirá na política local e vice-versa? É claro que está sujeito as chuvas e trovoadas, agora, não nos esqueçamos que o PT é o único partido orgânico que tem aí no cenário. Quer dizer, é um partido que tem disciplina, impõe essa disciplina e, insisto, tem um projeto de poder. Pode não ter um projeto de governo, mas que tem um projeto de poder, claramente tem.

Paulo Markun: Sérgio.

Sérgio Cardoso: Olha, eu acho que as eleições são sempre fundamentais, é um momento de parada, de reflexões, do país, mas eu tenho a impressão que a característica destas próximas eleições é de que elas não vão ser muito polarizadas, eu acho que elas não serão polarizadas, muito polarizadas. Primeiro porque a oposição ao bloco de governo não conseguiu realmente se firmar. Quer dizer, eu acho que esse governo está governando quase que sem oposição, porque oposição mais conservadora etc não conseguiu realmente se impor, se firmar, marcar um projeto, marcar claramente as suas linhas, as suas posições. O PT foi muito hábil, até agora, nesse jogo parlamentar no Congresso. Então... e não nos esqueçamos que ainda entra o PMDB nesse jogo de alianças, quer dizer, e agora com uma força muito grande. Então, a minha impressão é de que a eleição não será tão polarizada, o que é uma coisa importante para as eleições. Segundo ponto, eu acho que o capital político, o capital de prestígio do Lula continua muito alto, quer dizer, mesmo que o governo tenha se desgastado muito, o Lula continua transferindo prestígio e confiança para o governo, sobretudo nas camadas mais pobres da população, quer dizer, em que o prestígio dele continua muito alto. Então isso é para... Ele pode também transferir prestígio para os políticos locais na medida em que houver uma intervenção do partido, razoável. E terceiro ponto, eu acho que, como disse o Gilberto, essas eleições vão estar muito marcadas pelo ambiente da retomada ou não... eu acredito que haja também, ainda que seja, ela possa não ser uma retomada sustentada, mas no ano que vem eu tenho a impressão, é o que tudo indica, que nós vamos ter algum crescimento. E num país que vem, a tanto tempo, com esta taxa de crescimento aí ou próxima do zero, ou próxima da recessão, eu acho que vai ser uma coisa significativa. Então, eu acho, quer dizer, eu não sei se isso é bom ou mal mas o governo está entrando com um capital, nessas eleições, muito razoável, o bloco de governo. Então, não vai ser uma eleição muito polarizada, eu acho que o capital de prestígio do Lula continua de pé, e eu acho que ele transferirá isso para os candidatos a que a ele se ligarem, e vai ter ainda um ambiente de algum crescimento, que não é, no  nosso país hoje, desprezível.

Maria Dalva Kinzo: Eu gostaria de só comentar o que foi dito. Eu também acho que as eleições nacionais e as eleições estaduais, municipais, as estaduais nem tanto, né, ocorrem segundo outra lógica. Mas essas eleições não vão ocorrer no segundo... Porque se você tem um projeto de expansão, se um partido que está no poder tem um projeto de expansão, ele necessariamente vai ter que usar este capital aí, porque o capital é nacional, está no governo federal. E o Lula, para conseguir aumentar sua capilaridade, necessariamente vai ter que nacionalizar a disputa. Então, não acho, eu acho que de fato, sempre foi assim nas grandes capitais, a eleição municipal acaba se misturando com temas nacionais. Não digo no Rio de Janeiro, porque você aí não está com o PT, mas em São Paulo, numa capital em que o PT está governando, logicamente que vai haver uma combinação aí, uma mistura do que vai ser discutido. E também, Fabiano, eu acho que não é uma questão apenas de qual estratégia que o PT... a oferta que o PT vai... se ele não quiser nacionalizar a disputa não vai ocorrer, mas vai depender dos competidores, dos outros competidores. Quer dizer, se a oposição resolver nacionalizar o discurso, necessariamente essa questão acaba se...

Paulo Markun: [interrompendo] Resta saber se eles terão espaço na televisão para fazer isso, só queria lembrar essa coisa, que quando você pega, bota o PMDB... Há poucos dias atrás a candidatura do Vicentinho [Vicente Paulo da Silva, metalúrgico, deputado federal e líder sindical que concorreu em 2000 e em 2004 à prefeitura de São Bernardo do Campo-SP, sendo derrotado em ambas] a prefeito de São Bernardo foi patrocinada, foi apadrinhada, o tema é esse que foi utilizado pelo jornal do próprio interessado, pelo ex-governador Orestes Quércia [governador de São Paulo de 1987 a 1991, filiado ao PMDB], e num evento que aconteceu em São Bernardo, o Vicentinho deu a seguinte declaração que parece muito...

[...]:  [interrompendo] Sintomática?

Paulo Markun: Sintomática. Que é dizer o seguinte: “Finalmente os nosso dois partidos recuperam a história deles no ABC”, porque realmente o Quércia nos anos... no início dos anos de 1980, chegou inclusive a transportar líderes sindicais no carro dele de senador, abrigou como toda a oposição fez, que na época, oposição essa, só existente no MDB [Movimento Democrático Brasileiro. Partido político fundado para abrigar os opositores do regime militar de 1964. Fundado oficialmente em 1966], porque não existia o PT. Agora, a pergunta é: se o PT, o PMDB, o PTB, o PL, todos esses partidos de alguma forma estiverem coligados e você não tiver espaço de televisão, por mais que a campanha municipal se dê na mídia impressa, nos telejornais etc e tal, isso não vai galvanizar [todos falam ao mesmo tempo]...

Maria Dalva Kinzo: Uma questão só para eu dar continuidade ao que eu tinha, é o seguinte...

Paulo Markun:  A provocação foi boa.

Maria Dalva Kinzo: É o seguinte, porque a estratégia, um projeto de expansão, de capilarização para o PT hoje é diferente do que ele tinha anteriormente, porque anteriormente era um projeto oposicionista, você tinha todo um discurso de oposição. Agora ele não vai ter um discurso de oposição.

Gilberto Dupas: Isso que eu queria retomar [todos falam ao mesmo tempo], só um minutinho, fazer uma consideração rápida sobre isso que você colocou. A questão importante que me causa bastante perplexidade é o seguinte, como é que se estruturará esse acordo político, essa aliança ampla encabeçada pelo PT? Eu faço a seguinte análise, vamos ver ser vocês concordam comigo, fenômeno curioso: primeiro, o PT perdeu os seus intelectuais, foi a primeira grande perda, então a lista que começou com Chico de Oliveira [sociólogo. Saiu do PT em dezembro de 2003], Paulo Arantes, Fiori [José Luís Fiori, economista], Reinaldo Gonçalves [economista] etc etc a esquerda...

Maria Dalva Kinzo: [interrompendo] Mas eles não tem voto.

Gilberto Dupas: Então, mas isso  não importa, não tem voto mas formam opinião pública. Então, de alguma forma o PT perdeu os intelectuais [todos falam ao mesmo tempo]. Quais são os intelectuais hoje de prestígio que apóiam o PT?

Cláudio Weber Abramo:  Eu acho que não é relevante.

Gilberto Dupas: Ah bom, se não é relevante...

Cláudio Weber Abramo: Porque o Fernando Henrique perdeu muitos intelectuais também. Isso se caracterizou pelo fato de haver uma certa oposição as alianças à direita do Fernando Henrique, houve uma alienação de uma parte considerável, não sei que tamanho, não posso dar porcentagem, mas dos apoios de intelectuais que existiam para o governo de FHC. Não é que seja relevante, acho que intelectual não conta em eleição.

[...]:  Eu também acho.

Gilberto Dupas: Vamos supor que ele não conte, e é bem provável que tenha razão, muito bem. Por outro lado, a chamada classe média, que teoricamente nos países de maior concentração de renda a classe média faz um segmento importante da opinião pública, no Brasil passa por um downgrade desgraçado, quer dizer, a classe média, estamos terminando uma pesquisa agora, a nova classe média da região metropolitana de São Paulo é a família de 1.200, 1.300, 1.400 reais, do indivíduo que o principal, o líder da família ganha 50 reais por dia, vezes 20 dias e a mulher trabalha meio período e tal. Essa é a nova classe média, essa classe média está passando por sensível deterioração nos últimos anos e não se recuperou nesse primeiro ano do governo PT, muito pelo contrário, a renda real média continua caindo. Portanto, isso quer dizer, na minha opinião, que o avanço do PT, aliança fundamental do PT, se dá com o povão. Agora que povão é esse? O que este povão, mesmo depois de abandonadas algumas teses clássicas de esquerda do PT etc, continua sobre o prestígio do Lula, que na minha opinião é "um de nós que chegou lá", quer dizer, acho que essa claramente é a linguagem. A linguagem do Lula, a forma de se expressar quando a seleção [brasileira de futebol] empata, tudo o que o Lula diz na posição de presidente, identifica fundamentalmente o povão de uma maneira muito sólida, muito importante. “Olha, é um de nós que chegou lá”. Quer dizer, esse, evidentemente, é um estoque político fundamental. Eu acho que aí é que nós teríamos que olhar um pouco como é que se daria essa dinâmica eleitoral a partir do ano que vem. E que instrumentos, a partir de um marketing político utilizado com extrema competência, que digamos, por quanto tempo este marketing político brilhante agüenta lidar com os fatos da realidade utilizando a questão da imagem, versus o problema das condições de vida, desemprego etc etc.

Paulo Markun: Sebastião.

Sebastião Velasco e Cruz: Eu queria retomar a questão da nacionalização. Eu acho que o fato do PT ter constituído no Congresso uma base de sustentação partidária tão ampla e o fato, que já foi observado também, da oposição estar muito desarticulada, militam contra a possibilidade, a hipótese, de uma polarização, em termos nacionais da eleição municipal. Em grande parte dos municípios, eu não sou um especialista em sociologia eleitoral partidária, mas em grande parte dos municípios o PT vai estar disputando com aliados no plano nacional que vão estar em condições de reivindicar, e também, enfim, ainda que parcialmente, essa legitimidade e o apoio que o governo tem junto ao eleitorado. Então, enfim, a polarização, em termos nacionais ocorreria, e talvez aconteça certamente em São Paulo. São Paulo é um bom candidato para palco de uma situação desse tipo. Porque aqui nós vamos ter um embate entre as forças que venceram no ano passado e as forças que foram derrotadas, não é?

Paulo Markun: Desde que o PSDB consiga um candidato.

Sebastião Velasco e Cruz: Desde que o PSDB... enfim, vamos admitir que esta preliminar esteja assegurada. Então... E a história eleitoral de São Paulo tem, também por outro lado, um segmento conservador de direita que pode se apresentar nesse momento e polarizar com o PT, ainda que isso não esteja muito claro, me parece, a essa altura dos acontecimentos. Eu tendo a achar que a tendência realmente será de, enfim, campanhas mais...

Paulo Markun: [interrompendo] Locais?

Sebastião Velasco e Cruz: Focadas nas questões municipais.

Paulo Markun: Sérgio.

Sérgio Cardoso: Olha, eu queria acrescentar uma observação ao que o Lucas falou. Porque você coloca a sustentação do governo, fundamentalmente, nos excluídos. Eu tendo a discordar disso, porque eu acho que do ponto de vista dos interesses que estão em jogo, você tem toda razão, você tem uma diminuição do poder de renda da classe média, você tem uma depressão mesmo econômica da classe média, e várias coisas assim. No entanto, quer dizer, eu acho que a política, sobretudo, porque nós estamos falando da política, ela não se faz só pela análise desses interesses contra aliados ou satisfeitos, mas por esperança, por medo, por decepção etc. Eu tenho a impressão que, desse ponto de vista, o apoio do governo é muito mais amplo. Você toma a classe média, por exemplo, que tem alguma poupança, o medo que ela poderia ter tido, porque ela é beneficiária desse sistema - aliás, um dos problemas que o governo teve em relação à questão da possível supressão, ou de medidas assim de pagamento da dívida interna e externa - essa classe média que ela não ia absolutamente aceitar de uma hora para outra, ter seus meios diminuídos, ou não saber o que fazer com seu capital, ou fazer como os argentinos, sair correndo para aplicar em dólar. Isso pega uma ampla classe média, a antiga classe média, talvez, que ainda tinha alguma capacidade de poupança, quer dizer, então você tem... Ela não foi decepcionada, essa classe média...

[...]:  [interrompendo] Classe média que virou rentista.

Sérgio Cardoso: Isso, que virou rentista, ela não foi decepcionada. Do lado do capital industrial brasileiro há esperança, eles acreditam numa retomada do desenvolvimento de pequenas, médias empresas que começam a exportar, que começam a fazer. Então, esse capital que, do ponto de vista dos interesses, eu concordo com você, digamos, o grande apoio do governo seriam essas políticas sociais que não estão aparecendo muito, mas já começam fazer, já começam a fazer volume e vulto em muitas regiões do Brasil, sobretudo no Nordeste. Agora, do ponto de vista das expectativas, das esperanças etc, eu tenho a impressão que o apoio é um pouco mais amplo. Você tem razão em relação aos intelectuais, porque os grandes decepcionados com a política do governo foram os intelectuais de esquerda, esses foram os primeiros decepcionados. Quer dizer, nos primeiro dias de janeiro, quando eles perceberam o que ia se passar, eles caíram fora, dois ou três dias depois do governo tomar posse. Então, esses são os grandes decepcionados. Independente do acerto ou do erro da avaliação deles, eu não sei, eu acho que tem uma influência na classe média mais intelectualizada, mas eu não sei se tem - tendo a concordar com Maria Dalva - o peso eleitoral que poderia parecer.

Cláudio Weber Abramo: Eu queria, bom, nós estamos aqui num exercício de especulação, está certo? Nos arriscamos, mas eu queria, muito rapidamente, colocar uma espécie de contradição que pode acontecer no ano que vem entre o que eu acredito ser uma tendência de o Partido dos Trabalhadores, enquanto ocupante do poder central, de se fortalecer dos municípios, e o que isso pode significar para a sua base de sustentação no Congresso. Evidentemente que uma atitude muito agressiva ou pelo menos muito determinada nos municípios vai ferir interesses de aliados. O que isso pode trazer para a base de sustentação e para as condições de sustentabilidade do governo no Congresso? Não sei se coloco isso mais ou menos no ar.

Paulo Markun: Está certo.

Cláudio Weber Abramo: Agora, eu queria pegar um outro aspecto da questão que é, que eu acho que vai ser, outra vez assim, como uma espécie de vaticínio, por favor não me cobrem depois. A política... é sempre muito difícil a gente distinguir entre imagem e realidade, na política isso é especialmente verdadeiro, quer dizer, a política é muito feita de transformação, tentativa de transformação da imagem numa projeção de realidade, porque é uma mistificação política bem conhecida. Eu acho que nós veremos no ano que vem, no plano político, uma radicalização desse processo. Eu acho que esse governo transformou o marketing político em marketing de governo e muitas e muitas vezes de forma totalmente desmistificadora. Eu vou dar um exemplo concreto que me ocorreu aí nestes últimos dias: há um anúncio publicado, um anúncio impresso, publicado aí em veículos, que faz propaganda de uma coisa que se chama, um programa que se chama, Luz Para Todos [programa do governo federal, lançado em 2004, de universalização do acesso e uso da energia elétrica], alguma coisa. Então, diz assim, o título do anúncio é: “Chegou a luz”. E tem uma senhora atarraxando uma lâmpada que se acende, e o texto diz: “O programa Luz Para Todos levará luz durante os próximos quatro ou cinco anos para não sei quantas pessoas”. Quer dizer, o anúncio é mentiroso, quer dizer, a luz não chegou naquelas pessoas. Na verdade, a luz chegará  se o  programa for conduzido. É um programa, é algo virtual, na verdade este anúncio deveria ser tirado do ar, porque é um anúncio que fere um princípio elementar, aliás, eu me pergunto o que é que o conselho, como é que se chama esse negócio de...

Paulo Markun: Conar [Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária].

Cláudio Weber Abramo: É, que é um negócio que existe aí, ativamente para defender os interesses dos consumidores de anúncios, mas só defende os interesses das agências de publicidade. Deveriam estar olhando isso, quer dizer, eu me sinto enganado pelo anúncio, esse anúncio deveria sair do ar. Me parece que isto, esse tipo de coisa, deveria haver uma radicalização nisso, uma radicalização desse processo de mistificação da política. Nós vimos isso onde os atuais publicitários favoritos estão trabalhando, claramente. Eu me pergunto o que é isso terá traz de saudável para a democracia brasileira? Acho que isso é muito prejudicial.

Gilberto Dupas: Aí eu gostaria de acrescentar uma coisa que me parece importante, quer dizer, nós temos um lado forte da figura do Lula, me parece ser um presidente que ainda é muito popular e que ainda não é explicitamente populista. Essa é uma questão muito importante, porque o que acontece? Na realidade o esgotamento, o impasse, com que as políticas de abertura econômica acabaram acarretando os estreitamentos dos espaços de perda de renda, aumento do emprego, aumento da informalidade etc, basicamente tem um complicador. Porque esse discurso hegemônico que começou na década de 1980, ele foi praticado na América Latina, por exemplo, num raro momento em que democracias estavam no ar. Foram regimes democráticos, uma onda de democracias que aplicou as políticas de abertura imaginando que viria um novo crescimento e não  veio, pelo contrário, o impasse se caracterizou. Então, eu atribuo, digamos, a essa nova onda populista na América Latina, que já virou populista em vários países, como claramente uma resposta à inviabilidade desses Estados nacionais de responderem essas demandas e, pelo contrário, entregarem uma situação pior. O Brasil está no interregno curioso, quer dizer, nós temos um presidente popular, mas que ainda não é populista. Quando o Lula passa a mão na cabeça de uma criancinha pobre, a gente enxerga que ele está sentindo o que ele está fazendo, ele é popular, ele sabe o que é aquilo. Quanto tempo isso durará? Quer dizer, na realidade, quanto tempo o marketing político... se ao mesmo tempo ao lado não houver algum tipo de recuperação econômica que garanta a volta do mínimo de empregos etc, melhoraria ligeira da renda, quanto tempo durará essa questão? Eu acho que isso é muito importante quando se fala em marketing político, porque eu costumo dizer, fundamentalmente: haja Duda Mendonça [um dos mais importantes publicitários brasileiros. Comandou a campanha política de Lula em 2002] se isso não voltar!  Quer dizer...

Maria Dalva Kinzo: Eu acho que nós também temos que ter um pouco de cuidado de não radicalizar, achar que  tudo é marketing político. Porque eu considero, acho que um dos problemas, uma das falhas do governo Fernando Henrique Cardoso foi justamente o problema de comunicação. Quer dizer, na verdade, toda política social que dizia que não tinha sido feita, que era só ênfase na estabilização [da moeda brasileira, o real], não foi mostrada, e hoje se vê que se fez muita coisa. Mas eu acho que não houve uma tentativa, um marketing de governo, no sentido de apontar. Eu acho que no caso do governo Lula, eles estão realmente, desde o início, utilizando, quer dizer, da comunicação. Eu acho que é importante, porque se você pensar bem, num país das dimensões como o Brasil e dos problemas que tem, ou você mostra as políticas que você faz, porque você não tem condições de fazer com que todos saibam, se faz, sei lá, um açude numa determinada região, ninguém fica sabendo se você não comunicar. Então, eu acho que esse fator é importante, sim, logicamente que não se deve exagerar.

Paulo Markun: Não se deve fazer como falava o ministro Ricupero [Rubens Ricupero. Ministro da Fazenda em 1994]: “O que é bom a gente mostra, o que é ruim  você esconde”.

Maria Dalva Kinzo: Mas eu acho que é importante porque é uma forma de você prestar contas também.

Paulo Markun: Neste segundo bloco, eu queria colocar em discussão uma questão que me parece relevante. O governo brasileiro, com o presidente Lula à frente, parece ter adotado uma ligeira inflexão na sua política externa. Essa inflexão se dá, em algum campo pelas declarações e até pelos posicionamentos, mas se dá muito mais pela presença do presidente Lula e pelo barulho, se é que é a palavra se justifica, que ele vem fazendo lá fora. Quer dizer, a receptividade que tem tido as visitas internacionais do presidente em quantidade muito maior do que a do governo anterior, que era muito criticada pelo PT, tem sido muito grande. E há quem argumente que essa inflexão, à medida em que, por exemplo, vai para o Oriente Médio e diz que tem que resolver o problema e que a invasão do Iraque [foi a invasão de forças norte-americana e britânica ao país em 2003] não foi muito bacana e tal, que não é mudança radical do que se dizia, mas o tom disso poderia trazer problemas para o Brasil? A pergunta então, é essa, quer dizer: existe realmente essa mudança? Esta mudança trará problemas para o país? Aí já inverto, vamos começar pelo Fabiano, que foi preterido.

Fabiano Santos: No último bloco, então, eu tento responder a uma série de observações ao que eu tinha proposto. Mas eu não tenho nenhuma expertise em política internacional, eu sou um curioso, acho que cada vez mais é um campo de análise fundamental para quem quer entender a política interna dos países. Eu tenho, ao longo do tempo, me especializado em observar mais o que acontece internamente no Brasil. Eu acho, vendo aí duas coisas muito interessantes no que diz respeito à política internacional, estratégia do presidente, do governo, na sua inserção na política internacional. Respondendo sua pergunta muito diretamente, primeiro lugar: eu acho que no plano interno existe uma restrição muito grande na margem de manobra do governo, aquilo que ele é capaz de fazer para impulsionar uma agenda de crescimento, de emprego, de renda, sabe disso, então, ele está jogando com timing, está certo, ele está tentando promover algumas políticas prudenciais aqui, internamente, para ver se faz um movimento de crescimento no segundo ano e, ao mesmo tempo, abrindo mercado lá fora, fazendo uma política pesada de abertura de mercado, apostando nisso para, digamos assim, superar este vaticínio aí do vôo da galinha, não é? Então, eu acho que, do ponto de vista estratégico, a política internacional é um desaguadouro natural porque, no ponto interno, existe uma restrição muito grande. Há uma diferenciação clara com a postura internacional, eu não sei se de conteúdo, mas certamente de agressividade, na retórica, na escolha dos parceiros. Acho que tem uma série de diferenciações importantes, especialistas na mesa podem dar mais detalhes ou discordar disso, mas é a impressão que eu tenho, isso no primeiro ponto. No segundo ponto, eu acho que a política externa hoje em dia tem que ver com o próprio dilema que é a [que a] social democracia [de] centro-esquerda vem enfrentando no mundo, não é? Se a gente observar o panorama europeu dos partidos de esquerda e a sua antiga base social de apoio, está completamente modificada e diversificada, perdendo apoio sistematicamente naqueles lugares em que sempre teve. A estrutura do mercado de trabalho está sendo modificada, a inserção dos sindicatos, a importância dos sindicatos na estrutura social, na economia e no eleitorado também está se modificando. Então, a base social dos partidos de centro-esquerda está se modificando, quer dizer, que nova classe média é essa, não é? Esta é a pergunta. Então, eu acho que aqui na América Latina, no Brasil, isso também está em tela de juízo. Não só esse aspecto, mas também todo o histórico brasileiro, da informalidade, da falta de associativismo, isso agrava muito mais. Eu acho que a política externa nunca foi tão importante para definição dos rumos que uma social democracia, uma centro-esquerda teria ou venha a ter no panorama político interno dos países.

Gilberto Dupas: Acho que a diferenciação fundamental do governo Lula, em relação ao governo Fernando Henrique Cardoso, por curioso que pareça, está na política externa. Na realidade, eu acho que o Lula beneficiou-se de uma série de circunstâncias que fez com que seu tipo de liderança seja vista hoje pelo Estado internacional como uma liderança preciosa. Em primeiro lugar, o esgotamento do modelo de crescimento que se imaginou que a globalização iria provocar durante as duas últimas décadas. Esse impasse, que estourou principalmente nos grandes países da periferia, gerou questões graves de natureza política. Basicamente o quadro econômico se deteriorou, os impasses da dívida externa e interna afloraram e a onda de populismo surgiu, e a sombra Chávez [referindo-se ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez] espraiou-se, por exemplo, sobre a América Latina. Nesse contexto, uma liderança que ganha as eleições da forma como o Lula ganhou, afirmando que é possível conciliar extrema ortodoxia monetária e fiscal com o resgate do social, é uma liderança que é vista com salivação intensa pelas lideranças, pelo establishment internacional [risos], não há um produto melhor. Dado que pelo menos até que se prove se é possível ou não, eu tive um feeling que seja muito improvável essa equação se manter de pé, mas mesmo assim o Lula percebeu isso com muita clareza. A tolerância com que o establishment internacional tem por essa atuação original do Lula na área internacional, seja nos Estados Unidos, seja no resto do mundo, está muito em função da preservação de um tipo de liderança que é fundamental que se mantenha,  vamos dizer, muito bem conservado. O Lula percebeu isso com muita clareza e, na minha opinião, usa com bastante competência e com bastante inteligência esse tipo de situação com aquilo que eu chamo de política estrábica. Ele faz a política externa olhando na política interna. Então, na realidade ele avança sobre concessões importantes. E foi dito aqui, a política independente, uma retomada, digamos, de alguma forma do janismo a partir de 1961 e tal, fazendo acenos, com a área da esquerda insatisfeita aqui, que de repente se vê identificada nessa política que é original e que, por incrível que pareça, mantenha alguns resultados positivos... depois de um erro de tom, na minha opinião, em Cancun [refere-se à reunião da Organização Mundial do Comércio em 2004], em que efetivamente se rosnou mais do que se mordeu... isso é perigoso porque nós temos reservas limitadas de poder, portanto temos que usá-las com cuidado. A coisa de Miami e da Alca [Área de Livre Comércio das Américas], na minha opinião foi extremamente inteligente e bem-sucedida. Dado que Alca é definitivamente ruim para o Brasil e boa para a maior parte dos países da América Latina, talvez não tenhamos tempo de discutir porquê aqui, mas na minha opinião isso é claro, conseguiu-se o arranjo pelo qual, junto com os Estados Unidos, sem brigar com a potência hegemônica... eu sempre digo que apontar com o dedo na boca de um leão é um risco de perder a mão. Então, sem, digamos, entrar em conflito aberto com os Estados Unidos, encaminhou-se uma espécia de “Alca light”, em que o Brasil não é obrigado a assumir compromissos que não lhe convém, até porque a reciprocidade não haveria na linha de abertura de comércio para um país do tamanho do Brasil e com o nível de produção que ele tem. E, ao mesmo tempo, abriu-se espaço para uma série de medidas a la carte que permite acomodar interesses do Brasil em aspectos setoriais da sua indústria, em segmentos que isso interessa. Me parece que esse foi um avanço inteligente, eu não sei se ela é instável porque não sabemos se [...],  ou se as eleições presidenciais, que talvez exijam um novo Bush [George W.Bush, presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009], que não é este, para ganhar a próxima eleição, possa introduzir inovações neste momento de pausa muito útil para o Brasil. Mas acredito que no caso Alca, especificamente depois de alguns desacertos, a política externa brasileira, além de jogar só para a platéia de cá, produziu alguns resultados positivos que me parece que vão levar a dados interessantes durante o ano que vem.

Sérgio Cardoso: Olha, eu concordo boa parte com a análise que o Dupas está colocando, mas eu gostaria de nuançar também essa questão, porque eu acho que a política externa para esse governo é fundamental. Ela, dentro da estratégia do governo de tentativa de crescimento com estabilidade, ou seja, deixa uma margem muito pequena para investimento etc. Quer dizer, ele [o presidente] precisa da política externa para duas coisas, no meu entender: primeiro, ele precisa criar confiança de que o país... quer dizer, passar uma imagem de que o país possa crescer, de que o país tem possibilidade de receber de uma maneira sustentada etc, investimentos que não seja do capital especulativa. E isso, de alguma maneira, o governo está fazendo. Segundo ponto, ele sabe que o Brasil não vai crescer sozinho e que precisa de apoio na política internacional para um mínimo de reequilibração do jogo externo. Daí, essa tentativa do eixo África do Sul, Índia, Brasil, China; a China que começa a entrar também, e a América Latina. Quer dizer, tem uma preocupação muito grande, eu acho, que do governo com a América Latina... porque sabe também que, no caso do Brasil, nós precisamos de apoios estruturais para os investimentos. Primeiro porque externamente você tem uma visão da América Latina e não do Brasil. Então, se a América Latina não for junto com a gente... eu tenho a impressão que o governo percebeu isso muito claramente... de algum modo, nós dificilmente vamos caminhar para adiante. Depois, quer dizer, dada a fragilidade estrutural da economia do país, o apoio possível dos países latino americanos, eu acho também bastante importante. Então, a política externa do Brasil, com esses dois eixos, eu acho que ela está tentando criar instrumentos para um desenvolvimento para o qual nós não temos condições de poupança interna etc, para levar. Então, criar uma imagem do país que incentive...

Maria Dalva Kinzo: [interrompendo] Investimentos?

Sérgio Cardoso: Investimentos não especulativos. E criar, na cena externa, um campo de equilibração de forças que possa permitir o Brasil enfrentar em condições melhores o jogo duro que é a cena internacional. E, do ponto de vista do nosso crescimento mesmo, essa necessidade de estender o campo para América Latina. Quer dizer, eu acho que é uma política inteligente, de alguma maneira, mas necessária, cujos resultados não são dados de ante-mão. Em qualquer um desses pontos, desses três pontos, eu acho que a política pode derrapar, uma aposta, mas que tem dado certo, por enquanto, pelo menos a construção dos instrumentos para essa política, eu acho que estão sendo postos.

Sebastião Velasco e Cruz: Eu vou na mesma linha, mas acrescentaria um passo. Eu acho que a política externa é determinante na conduta da política governamental. E isso por uma razão que é conhecida, mas que não foi mencionada até agora, que é o fato de nós, o Brasil e os países da América Latina, estarmos todos envolvidos numa negociação que atinja agora o clímax e que não é uma negociação que diga respeito à relação externa dos países. Mas há possibilidade de desenvolver políticas internas, políticas de desenvolvimento. É esse o conteúdo da Alca, é esse também o conteúdo da agenda que está em discussão em Cancun. Então, assim, ao contrário de muitos analistas que imaginam a política externa como mecanismo de compensação para uma política econômica interna muito conservadora, eu tendo a ver a coisa num sentido contrário. Ou seja, no final do ano passado, quando o Brasil estava mergulhado numa grave crise cambial e os  prognósticos todos eram de um início de governo caótico para o Lula, foi feita uma opção, né?, por uma política econômica e macro-econômica muito prudente, conservadora, não é? Essa política era condição para desenvolver a estratégia de afirmação nacional no plano tanto hemisférico quanto internacional. Basta imaginar o que seria a tentativa de realizar a política que o Itamaraty vem desenvolvendo desde janeiro até mesmo antes, né?, porque já em dezembro o presidente eleito, através de seu emissário, intervinha numa crise num país vizinho que, enfim, o que seria dessa tentativa se nós estivéssemos internamente convivendo com explosões inflacionárias, fuga de capital, enfim, um quadro que se desenhava no início do ano? Então, há uma relação de funcionalidade, mas eu veria não tanto, digamos assim, o condicionamento da política macro-econômica pela política externa, porque o que nós estamos fazendo, no momento, não é exatamente política externa. Está se lutando, no plano externo, pelas condições de realização de políticas internas que são estratégicas.

Paulo Markun: Maria Dalva.

Maria Dalva Kinzo: Eu não teria nada a acrescentar, eu concordo que a política externa do Brasil hoje é uma política, não é uma reação ou uma tentativa, uma estratégia para compensar os problemas, os constrangimentos internos. E justamente nessa linha, eu acho que é uma tentativa de criar uma aliança com parceiros alternativos, que são... quer dizer, tem um mercado aí, China, Índia, agora Oriente Médio, que pode ser expandido nesse sentido, eu considero que seja, podem ter pontos positivos aí, eu tenho a impressão... O problema todo é a forma, eu concordo com o Gilberto quando ele disse que, às vezes, a forma é demasiadamente agressiva em alguns momentos, mas fora esses percalços, eu acho que é, de fato, uma política de outro tipo.

Paulo Markun: Cláudio.

Cláudio Weber Abramo: É. Bom, eu também não sou especialista em política externa, quer dizer, eu sou um curioso, tenho certo interesse. Me parece que assim, com essa qualificação, me parece que o governo Lula, essa foi uma das áreas em que o governo Lula teve um desempenho nitidamente inovador, digamos. Eu acho que há duas dimensões disso, são complementares ou pelo menos se interceptam: uma é a dimensão comercial, a política comercial externa brasileira depende obviamente de determinados lances na área internacional, mas eu acho que também há uma retomada aqui de projetos geopolíticos. E, notadamente, eu acho que isso é muito claro na América Latina, o Itamaraty sempre teve na América, desde o tempo do barão do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845 – 1912), foi um diplomata, ministro, geógrafo e historiador brasileiro], uma atitude light com relação à América Latina, quer dizer, é um país muito grande, muito ameaçador para seus vizinhos, então o Itamaraty era light, não era agressivo. O Brasil, por exemplo, não tem uma saída para o pacífico, que seria normal no século XIX, entrar aí pela Bolívia e ganhar saída pelo Pacífico, isso nunca aconteceu aqui. Agora, o Brasil procura uma liderança na América Latina, [procura] explicitamente afirmar uma liderança que é algo que é agressivo para, por exemplo, os argentinos, ele iriam odiar uma coisa dessas, né?, isso me parece ser uma diferença bastante grande. Acho que a Alca é uma área em que parece, precisamos ver como vêm as rodadas seguintes, mas parece que os americanos e os brasileiros arrumaram uma forma de coexistência, está se encaminhando, existe uma, um drive do governo Lula no sentido de ganhar ou de conquistar, como se queira chamar, um assento no Conselho de Segurança da ONU [Organização das Nações Unidas], estão indo em cima disso. Há uma certa tentativa de ampliar os horizontes diplomáticos, esse tipo de viagem para o Oriente Médio, embora eu acho que interesses comerciais no Oriente Médio sejam um tanto duvidosos, mas enfim, sei lá, não entendo de política comercial. China, Rússia, União Européia são áreas que estão aí, não sei o que vão ver. Agora, eu acho que existe uma coisa que é um pouco diferente na arena internacional do que é na nacional, alguns resultados têm que ser esperados. Então, a Alca é claramente uma arena em que resultados de algum tipo precisam ocorrer, essa reivindicação de assento no Conselho de Segurança vai dar certo ou não vai dar certo, se não der certo é uma clara derrota, claramente vai ficar definido, e a política no continente, eu diria que depende muito das negociações na Alca, no Mercosul, porque depende essencialmente da capacidade do Brasil oferecer aos seus vizinhos saídas econômicas para suas exportações, trocas que levem a alguma espécie de perspectiva de riquezas para esses países.

Paulo Markun: Muito bem, eu só queria, antes da gente encerrar este bloco, que será necessariamente mais curto que o anterior, dar um palpite aqui, porque o mediador, às vezes, fica nesta tarefa só de passar a bola, apenas chamar atenção para o fato curioso e relevante. Na verdade, o presidente Fernando Henrique Cardoso, que tinha um perfil supostamente muito mais adequado e muito mais compatível com uma performance internacional brilhante, jamais chegaria às mesmas condições justamente por esta característica. Porque o que surpreende, o desempenho do presidente Lula no exterior, isso me foi dito por um grande empresário que o acompanhou na viagem para a África, é justamente a característica de ser um líder que veio da classe operária, quer dizer, um sujeito com uma formação completamente diferente e muito menos acadêmica e bem acabada do que o presidente anterior e, no entanto, tem um desempenho nos salões e nos encontros que surpreende. Casado com isso, com a observação que o Dupas fez de que realmente é o que se espera neste momento. Basta lembrar que o presidente Fernando Henrique Cardoso foi ministro das Relações Exteriores [de 1992 a 1993] do país antes de ser ministro da Fazenda [em 1994] e, no entanto, nunca teve essa repercussão que o presidente Lula está tendo. A definição desse empresário que o acompanhou na viagem para África, e como ele me falou em off eu não posso dizer quem é, ele me disse o seguinte: “Para nós, empresários brasileiros que temos negócios no exterior, não existe parceiro melhor do que o presidente Lula, só resta aos empresários brasileiros irem à luta agora, porque a receptividade dele é impressionante”. É curioso o registro no sentido de que nem sempre o sujeito mais, digamos,  preparado para ganhar a corrida ganha, principalmente se a corrida se refere a essa circunstância da arena internacional onde o Brasil sempre foi visto como uma piada.

Paulo Markun: Eu queria colocar como debate neste programa, que não permite a participação dos telespectadores porque está sendo gravado, para a gente encerrar este raciocínio, a seguinte questão: parece que neste primeiro ano nem todo mundo está muito confortável no seu novo papel. O governo talvez esteja um pouco mais confortável porque descobriu o chamado núcleo duro, a cúpula do governo, como é que se age quando se é governo, mas a oposição perdeu um pouco do seu discurso. Essa história de oposição conseqüente, ou posição que coopera, aprova as reformas, ficou um cenário um pouco embaralhado. Eu queria saber de vocês se vocês acham que neste ano de 2004 isso deve ficar mais claro e o que é que está levando a essa confusão no meio de campo. Maria Dalva.

Maria Dalva Kinzo: Eu acho que o problema mais sério, e aí está ligado com sistema partidário brasileiro que é um problema no Brasil, é justamente essa dificuldade de você formar os campos. A construção da coalizão do governo Lula mostrou quão difícil é justamente essa questão. Na verdade, nós não tivemos uma clara alternância de poder, nós só tivemos alternância no sentido de que o PT...

Paulo Markun: [interrompendo] No executivo?

Maria Dalva Kinzo: No executivo. Mas ele precisou chamar PTB que estava em outro governo, PMDB. Então, isso cria uma situação, principalmente para o eleitorado, um problema de representação muito grave. Você não sabe muito bem quais são os autores, quer dizer, quem é governo e quem é oposição. E adicionando a esse problema é o fato de que a agenda, até agora, deste primeiro ano, foi uma agenda que era agenda... a continuidade da agenda do governo Fernando Henrique Cardoso. Quer dizer, não é à toa que quem deu suporte para a aprovação da reforma da previdência foram os partidos da oposição. Quer dizer, sem PSDB, sem PFL [Partido da Frente Liberal, tornou-se Democratas em 2007], na verdade, essas reformas não teriam passado. Então, isso cria um problema para oposição, quer dizer, você não pode se distinguir, você não tem condições de se distinguir. Eu acho que ano que vem, quando começarem a surgir novas questões, que são questões próprias da agenda do PT, do novo governo, é que talvez seja possível definir melhor o campo da oposição e o campo do governo. Eu acho que esse é o maior problema que nós enfrentamos hoje, esta dificuldade aí de definir os campos..

Paulo Markun: Fabiano.

Fabiano Santos: É, eu... Pode ser que hoje em dia exista esta, digamos, essa certa maleabilidade, interpenetração de situação e oposição, mas não na verdade no governo anterior, onde se tinha uma oposição muito bem definida. Então, eu não sei se existe esta debilidade do sistema partidário, isso é uma discussão antiga, eu e Dalva sempre divergimos, concordamos e, às vezes, divergimos, então eu não vejo com tanto... Eu acho que uma coisa é importante notar, a força do [poder] executivo no Brasil é muito grande, isso atrapalha a vida dos partidos. Quando o governo convida um partido para fazer parte do seu Ministério, é muito difícil para um partido dizer não. Para determinados partidos, principalmente de centro, que não tem um perfil muito bem implantados na sociedade, então isso é mais dramático ainda. Então, o exemplo do PMDB está posto. Agora, eu acho que tem uma distinção muito interessante, tem duas dificuldades que o governo tem passado e que são fruto dessa inovação, dessa sucessão no poder, dessa alternância no poder. Eu acho que está acontecendo, acho que a discussão anterior de política externa deixou isso muito claramente, quer dizer, a questão é criar uma margem de manobra para política interna. O governo está preocupado com isso e sabe que política externa agressiva é o crucial, agora, do ponto de vista interno. A participação da oposição sistemática na votação dos projetos governamentais é uma distinção com o governo anterior. No governo anterior, a oposição não votava nunca com o governo e não precisava. Então, as votações eram decididas quando o governo tinha consenso, quando o governo conseguiu unir a sua base, os partidos iam unidos para plenário, eles votavam. Neste governo não, às vezes o governo sabe que vai contar com dissidências na sua própria base, ele tem que recorrer a partidos de oposição para poder aprovar a sua agenda, isso é uma distinção importante, uma certa coalizão, uma dinâmica de governo dividido, uma dinâmica distinta da dinâmica anterior. Outro ponto de dificuldade, isso tem saído na imprensa, as análises que têm feito são críticas a este respeito, diz respeito ao que chama, ao aparelhamento, a partidarização de determinadas agências burocráticas, e isso é uma questão muito complexa para um governo do PT, por quê? Porque do ponto de vista dos azeites, dos quadros que vão ocupar essas agências, é importante para o governo que eles sejam leais, que eles sejam, digamos, joguem com o governo. Se você vai delegar tarefas para determinadas alianças burocráticas, esses caras têm que estar afinados com a concepção do governo sobre o que é a política pública, está certo? Isso nunca foi problema para governos conservadores ou com uma hegemonia conservadora anteriormente, por quê? Porque os quadros estavam aí. Então, é nomear um doutor Francisco Gros para o BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social] ou para a Petrobras não é um problema para um governo que tem uma inclinação privatizante, voltado para o mercado. Essa é a dificuldade que um governo [de] centro-esquerda está enfrentando, ocupar nas burocracias fundamentais gente que sejam afinadas com sua condição de política públicas.

Paulo Markun: De preferência que funcionem.

Fabiano Santos: Não funciona, é correção, é corrigir, pode não funcionar num lugar, pode funcionar num outro, pode surpreender num lugar, pode não surpreender num lugar, pode não surpreender num outro. Eu não vejo como aparelhamento pura e simplesmente, eu acho que aparelhamento é necessidade de um partido que nunca esteve no poder e precisa criar quadros. Está certo, para fazer parte das burocracias fundamentais para condição de políticas públicas, é o custo que se paga da alternância.

Paulo Markun: Cláudio.

Cláudio Weber Abramo: Bom, me parece que uma das características ou, enfim, uma das peculiaridades que ocorreram neste primeiro ano e que tende a se reproduzir no futuro é que o governo do PT transformou o PFL num partido político, quer dizer, ele não era, passou a ser [risos]. Eu acho que isso é bom para um debate político, você tem uma oposição que tem lá clareza dos seus... Eu posso não concordar com os objetivos, mas tem lá clareza. Me parece que... Agora eu queria tomar essa observação que você fez sobre o aparelhamento.

Fabiano Santos: Queria discordar.

Cláudio Weber Abramo: Não, eu creio que esta é uma visão que prejudica o Estado. Quer dizer, quando o Estado é ocupado por militantes, não sei quais são os números, não sei quantos cargos de gerência no aparato federal estão sendo ocupados por militantes ou áreas próximas do Partido dos Trabalhadores, ignoro. Leio na imprensa que são muitos. Eu acho que isso é prejudicial em longo prazo para o Estado. Eu acho que o agente do Estado, quer dizer, aí diria, sou liberal na concepção talvez antiga, fora de moda, mas me parece que o funcionário do Estado é um funcionário do Estado, mas não é funcionário do partido político “X” ou “Y”. Esse é o clássico Estado francês, o Estado europeu, social democrata clássico é assim. Nós herdamos essa concepção do Estado, nossa herança político-administrativa é essa, acho que essa, esse drive, essa ocupação, se for nesse nível, que se verifica neste governo, é muito prejudicial em longo prazo para o país, quer dizer, o agente do Estado não pode ser partidário.

Paulo Markun: Sebastião.

Sebastião Velasco e Cruz: Eu acho que aqui nós tocamos num ponto importante, porque não cabe a comparação entre Brasil e França, é uma característica estrutural estudada, né?, do Estado, da administração brasileira, é a enorme quantidade, são milhares de cargos de nomeação, né?, do presidente. A tal ponto que um estudioso da administração pública brasileira formulou como problema do seu trabalho, de sua tese, o seguinte: dado o grau de desorganização da estrutura formal, como entender que essa estrutura funcione? E a análise que ele desenvolveu demonstrou que havia um mecanismo informal que assegurava esse resultado, que era o mecanismo da indicação. Ou seja, há, e sempre houve, na sociedade brasileira, grupos que indicavam pessoas para diferentes cargos dentro da administração. Essas pessoas operavam de forma previsível porque estavam inseridas em redes, que eram externas, mas que se confundiam com o Estado. Aliás, o ex-presidente é famoso por uma expressão para denominar este efeito dos anéis burocráticos. Ora, nós estamos, no Brasil, vivendo uma situação de alternância, efetivamente. O PT não é diferente dos partidos tradicionais apenas porque é mais partido, é um partido que teve uma origem completamente distinta, não teve origem parlamentar, foi um partido que ao longo de vinte anos se estendeu, cresceu, ganhou inserções na estrutura de poder, mas que se fez fora do Estado, não é? A partir do momento em que esse partido assume a função, a incumbência, de governar o país, ele se vê diante de um problema que é um problema clássico para os partidos de esquerda na história, enfim, a burocracia tem o condão, tem a capacidade de imobilizar, de inviabilizar uma administração. E a necessidade de contar em posições importantes, posições-chave, de [com] pessoas que sejam leais, não necessariamente que sejam do partido, mas que trabalham, Ciro Gomes [governador do Ceará de 1991 a 1994, foi deputado estadual, federal e prefeito de Fortaleza. Foi minsitro da Integração Nacional de 2003 a 2006] é um exemplo claro, não é? Nunca foi do partido, nunca foi do PT, foi adversário do PT, disputou, assume um Ministério e, como ministro, tem um desempenho que o credencia para, enfim, funções de relevo. Isso é fundamental e isso está sendo efetivamente buscado.

Paulo Markun: Sérgio.

Sérgio Cardoso: Olha, eu acho que realmente o espectro de direita, esquerda, da definição política ideológica, programática do governo está complicada porque... pelo menos é nítido para quem assiste, acho que você tem toda razão, e vai ficar mais ainda com a entrada do PMDB para valer nesse bloco de governo. A impressão que se tem de uma maneira geral é que o governo está fazendo a política do PSDB, está fazendo a política do Fernando Henrique. O que torna as coisas mais complicadas e mais indistintas do ponto de vista da direção do governo, sentido do governo. Eu tendo a acreditar que o problema é mais a entrada do PMDB do que essa idéia de que ele estaria cumprindo a política peessedebista, porque eu acho que a aposta do governo é a seguinte: ele, por questões políticas e por questões conjunturais econômicas, ele teve que apostar na possibilidade de desenvolvimento com ajuste fiscal, com equilíbrio de contas e daí por diante. Agora, o que o governo deve ter pensado foi o seguinte: não se faz política de desenvolvimento só com políticas macroeconômicas, é preciso apostar nos programas de desenvolvimento, numa política industrial, que o governo tem feito, numa política externa, que o governo tem tentado fazer como nós vimos no bloco anterior, numa política social. O que nós temos apreciado do governo, que eu acho que causa essa sensação de indistinção, é a política macroeconômica do governo. Quer dizer, quando a gente passa para as políticas regionais do governo, vamos ver que política industrial esse governo vai fazer ou pretende fazer, que política social ele, efetivamente, tem feito? Para nós que somos universitários, por exemplo, que política o Ministério da Educação tem feito sobretudo para as universidades? Quer dizer, eu acho que isso vai definir muito mais a orientação do governo do que esse bloco da política macro-econômica, que realmente aí a opção foi, vamos dizer, conservadora. Se esperava, sobretudo, acho que esquerda esperava, achava que era uma grande chance histórica, sobretudo os petistas. Acho que os petistas mais que a esquerda achavam que havia uma grande chance histórica do governo fazer um gesto de coragem, um gesto de ruptura à altura do seu discurso anterior, à altura das expectativas do partido e o governo não fez. O governo não fez. Nós podemos apreciar bem ou mal isso, mas isso não foi feito. Quer dizer, o que a esquerda pretendia era que para que houvesse desenvolvimento nós tínhamos que parar de pagar nossa dívida externa e, eventualmente, uma parte da dívida interna também. Era isso que a esquerda esperava, isso não foi feito. Agora, como isso não foi feito, nós temos uma margem de manobra muito pequena. Então, a política macroeconômica, todo mundo tem razão, ela é conservadora. Agora, eu acho que talvez o governo esteja apostando nas políticas setoriais, se ele vai conseguir fazer uma boa política industrial, se ele vai conseguir fazer uma boa política externa, se ele vai conseguir fazer uma boa política educacional, o que também não é garantido, isso demora. Quer dizer, os resultados da política econômica, da macro economia, a gente vê rapidamente, agora, dessas políticas, é preciso trampar, é preciso trabalhar.

Maria Dalva Kinzo: Voltando para essa questão da... Tem um minutinho?

Paulo Markun: Sim.

Maria Dalva Kinzo: Do que foi levantado com relação à partidarização, da tomada da administração. Eu acho que esse é um problema sério, mas é um problema que está ligado, não acho que seja porque os governos anteriores, por serem conservadores, então era mais fácil pegar os técnicos. Eu acho que reflete o fato de ser um partido orgânico, como dito, ele realmente é um partido de massa, orgânico, que tem que responder à sua, seu ranking e que tem que distribuir incentivos seletivos. Na verdade, incentivos são os incentivos que seriam responder às grandes propostas políticas que o PT queria, que defendia, né?, não foram possíveis. Então, é importante aí defender essa... colocar o pessoal dentro do partido. Agora, teve um impacto muito grande, né? Eu acho que é natural que ocorra isso, que o partido ocupe os postos mais importantes, controlem posições importantes, estratégicas. Agora, o fato de que esse pessoal era muito inexperiente, teve impacto nessas políticas, na operacionalização dessas políticas. Eu acho que demorou, ou está demorando, muito tempo para começar a funcionar a máquina. Esse que talvez tenha sido o problema maior em conseqüência dessa partidarização.

Paulo Markun: Dupas.

Gilberto Dupas: A questão colocada aqui, qual o espaço das oposições do governo Lula, ou melhor, por que é que a oposição não encontra o tom, eu acho que é uma questão importante. Eu diria que, repassando um pouco o que foi dito, eu concordo com Sérgio, política econômica tem um espaço de manobra muito pequeno. Veja a questão da política de juros, teria o governo do Serra reduzindo mais radicalmente os juros? Depende da base em que ele estava, nós temos que supor que os juros subiram mais por conta da incerteza da coisa Lula, mas nós sabemos hoje, por contraditório que pareça, que o Serra talvez tivesse, se eleito, condição de ser menos ortodoxo que o Lula foi. De novo uma contradição curiosa. Na área de política industrial, o Fernando Henrique Cardoso fez muito pouco e Lula, por enquanto, também não fez nada. Tem alguns anúncios, algumas possibilidades, há possibilidades de fazê-los, os limites não são grandes, os espaços são pequenos, mas há como avançar. Eu diria que, fundamentalmente, nós temos que balizar essa discussão um pouquinho voltando àquelas categorias clássicas de ética da convicção, típica dos governos, ética da responsabilidade, típica dos governos, e ética típica dos intelectuais ou da oposição. Na realidade, a gente assiste um pouco a essa questão: virou o governo, as variáveis e os atributos, as responsabilidades, mudam de escala. E cabe, teoricamente, à oposição ou aos intelectuais, assumir a sua ética da convicção. Nós estamos procurando a ética da convicção entre os intelectuais e entre os políticos. Até porque, a característica da ética da responsabilidade é desembaraçar os nós, enquanto que a característica da ética da convicção é poder, eventualmente, cortar os nós, o que nos governos é muito mais complicado. Sobrou a área externa em que o governo Lula se diferenciou, até porque a área externa foi imensa. No momento em que o governo dos Estados Unidos faz o que fez, vira uma potência unipolar, com o discurso agressivo que tem, que permite ao Papa apontar o dedo para Bush e dizer assim: “Não fale em nome de Deus”, isto cria um espaço para um discurso Lula dessa retórica, imenso, que ele ocupou com competência e procurou polarizar, digamos, o que  podia nessa área. Então, a diferenciação veio na área externa. Por enquanto, é possível que essa diferenciação se converta em oportunidades comerciais, por enquanto nós não sabemos, os países que ele visitou no Oriente Médio não são propriamente os países que podem fazer comércio conosco, mas ainda assim eu acho que aí é um espaço interessante de diferenciação que esse governo está aproveitando. Vai dar certo, vai dar errado, e que tipo de oposição vai surgir no meio disso, vai depender muito da natureza da recuperação econômica do ano que vem.

Paulo Markun: Muito bem, nós estamos chegando ao final deste programa. Eu lembro que na próxima semana nós teremos um programa que vai discutir um pouco do cenário econômico, embora sempre essas duas coisas, uma coisa está ligada a outra. Só queria fazer uma observação final que eu acho que muitas vezes, o noticiário não dá o devido destaque, é o fato de que o PT, além de ser um partido orgânico e de ser um partido organizado, que nasceu de debaixo para cima, é um partido que é uma grande confederação. Eu acho que parte das questões que hoje surpreendem os analistas e quem acompanha o fato é em função do desconhecimento do jogo interno do PT, aonde hoje o grupo que está comandando o partido e que tem um grande acordo, embora não seja algo que tenha, todo mundo a mesma origem, esse grupo teve grandes dificuldades, em longos períodos do PT, de manter o controle sobre o partido. E na hora que um grupo como esse, que hoje responde e representa a grande maioria da base petista, assume o poder e passa a exercer, a sensação que eu tenho é que isso vai mudar a cara do PT. Quer dizer, isso vai facilitar com que o partido seja um pouco mais consistente e talvez menos democrático, porque a característica da democracia... Muito embora eles tenham chegado ao poder pela eleição direta nas últimas disputas internas, mas o fato é que...

[...]:  [interrompendo] É uma democracia assembleista, né?

Paulo Markun: É. Agora fica um pouco mais complicada a coisa, como diria o ministro José Dirceu [na época ministro chefe da Casa Civil], a vida é dura mas não é tão dura para todo mundo da mesma maneira.

[...]:  Há suas compensações.

Paulo Markun: Na próxima semana nós estaremos de volta aqui discutindo as perspectivas de 2004 na questão da economia. Eu agradeço aos nossos participantes, e a você que está em casa. E até segunda-feira às dez e meia da noite.

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