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[Programa gravado, não permitindo a participação dos telespectadores]
Paulo Markun: Boa noite. Ligado à defesa dos direitos humanos, visado pelo regime militar, ele foi responsável por uma das maiores crises na polícia de São Paulo quando denunciou o Esquadrão da Morte no início da década de 70. Conhecedor e crítico do funcionamento da Justiça, diz que o Judiciário no Brasil não se modernizou como poder, e tratou apenas de manter e ampliar seus privilégios. Na política ajudou a fundar o PT, mas deixou o partido por discordar das diretrizes do governo Lula. O Roda Viva entrevista esta noite o jurista e procurador de Justiça, Hélio Bicudo. 84 anos, e mais um livro, dessa vez de memórias, o jurista Hélio Bicudo relata sua experiência de vida não apenas como coadjuvante, mas como personagem que testemunhou fatos e participou de um período importante de transformações da vida brasileira.
[Comentarista]: Hélio Pereira Bicudo é paulista da cidade de Mogi das Cruzes e formou-se em direito na Faculdade de Direito da USP, aos 22 anos. O livro Minhas memórias, lançado em 2006, conta sua trajetória. Ele começa com uma frase do escritor colombiano Gabriel García Márquez: “A vida não é a que alguém viveu, e sim a que alguém recorda, e como a recorda para contá-la”. Hélio Bicudo foi promotor público, procurador de Justiça, jornalista e editorialista; foi também chefe da Casa Civil do governo paulista de Carvalho Pinto e chegou a ocupar interinamente a cadeira do Ministério da Fazenda do presidente João Gourlart em 1963. Como defensor dos direitos humanos, investigou as atividades do Esquadrão da Morte, em São Paulo, no período de 1969 e 70. No livro Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte, revelou as pressões que sofreu, e a omissão das autoridades estaduais e federais na época. Revelou ainda detalhes que levariam à prisão alguma das mais famosas autoridades policiais paulistas. Hélio Bicudo defende que crimes cometidos por policiais devem ser julgados na polícia comum e não pela justiça militar. Na década de 90, Hélio Bicudo foi eleito integrante da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, e logo depois assumiu a presidência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Na vida política, foi fundador do PT, deputado federal, e eleito vice-prefeito da cidade de São Paulo na chapa formada com Marta Suplicy. Na década de 80, chegou a afirmar que o PT era um partido de burocratas e que, se não mudasse, correria o risco de ruir como os partidos comunistas do Leste Europeu. Pouco antes da reeleição do presidente Lula, Hélio Bicudo criticou o Partido dos Trabalhadores e se disse decepcionado com o governo petista. Bicudo é autor de vários livros de direito que prefere classificar como livros técnicos. Ele é casado há 60 anos com Déia Bicudo, tem sete filhos e 14 netos.
Paulo Markun: Para entrevistar o jurista Hélio Bicudo, convidamos Hugo Studart, diretor da sucursal de Brasília da revista Isto É; Percival de Souza, jornalista, escritor e comentarista da Rede Record de Televisão; Renato Lombardi, jornalista da TV Cultura; Lílian Christofoletti, repórter do Caderno Brasil do Folha de S. Paulo; Carlos Marchi, repórter e analista de política do jornal O Estado de S.Paulo, e Gilberto Nascimento, repórter do jornal Correio Brasiliense
Hélio Bicudo: Boa noite, Paulo.
Paulo Markun: Quando o senhor iniciou a sua atividade pública mais visível, justamente na questão do Esquadrão da Morte, o Ministério Público era uma instituição muito mais fraca que hoje em dia, com muito menos poderes.
Hélio Bicudo: Sem dúvida.
Paulo Markun: No entanto a sensação que eu tenho é de que o Ministério Público de hoje não consegue mas fazer muito mais do que o senhor fez em relação ao Esquadrão da Morte, dada a realidade do Brasil ser cada vez mais complicada. O senhor acha que algum dia, essa equação vai se resolver, o Ministério Público vai ter força suficiente para ser um poder influente na sociedade brasileira?
Hélio Bicudo: Eu acho que vai depender muito das pessoas que participam da instituição, e daqueles que comandam a instituição. Hoje, por uma série de fatores, a instituição não tem um comando unificado, existem muitos setores que digladiam com outros setores dentro do Ministério Público, e evidentemente, isso enfraquece a instituição como um todo. Quando eu fui designado para as investigações do Esquadrão da Morte, o que não foi feito de uma maneira unânime pelo Conselho Superior do Ministério Público, eu tive praticamente carta branca para atuar, mesmo porque o Procurador Geral da Justiça não era um homem ligado a esse tipo de problemas, ele estava sujeito naquele tempo a uma demissão ad nutum [pela vontade] pelo governador do estado, e ele, naturalmente, não queria se comprometer. Então, as coisas vieram como um todo para que eu assumisse a responsabilidade e atuasse em conseqüência. Essa questão de assumir responsabilidades e atuar em conseqüência era muito do agrado do secretário, por exemplo, da Segurança, e de outras pessoas do governo do estado, naquele tempo o governador era o Abreu Sodré, que estavam muito mais ligados ao sistema do que à administração de São Paulo como um estado autônomo. E evidentemente que eles esperavam que eu não fosse ter o mínimo êxito nessas investigações, aliás, isso me foi acentuado pelo secretário da Segurança de então, na presença do presidente do Tribunal de Justiça, quando ele disse: “Não, eu não vou lhe dar nenhum apoio porque o senhor não vai a lugar nenhum”.
Paulo Markun: Trazendo, então, a situação para os dias de hoje, para a realidade atual, o senhor imagina que alguém, na condição de representante do povo no Ministério Público, teria condições de enfrentar e denunciar determinadas mazelas que o país tem?
Hélio Bicudo: Eu acho que tem, e se não se faz é porque não se quer. Eu acho que o Ministério Público, na Constituição de 88, adquiriu uma configuração de quase um poder, ainda não é um poder, mas é quase um poder. Tem autonomia, liberdade, autonomia relativa porque o Procurador Geral da Justiça continua ainda sendo nomeado, mas é nomeado para um mandato, e durante o mandato, evidentemente, que ele tem todas as condições de atuar com autonomia e absoluta liberdade. Se não faz é porque não quer.
Carlos Marchi: Doutor Hélio, eu não lembro exatamente dos números, mas na semana passada eu li um texto de Márcio Chaer que é diretor do consultor jurídico na internet, e ele dizia que – para mim foi uma surpresa - ele fez um levantamento de denúncias feitas pelo Ministério Público na área política, e os números - eu infelizmente não os tenho, não recordo - mas era absurdamente diferente o número de denúncias contra o governo Fernando Henrique e contra o governo Lula. Era uma coisa assim: havia, se não me engano, 90 denúncias contra o governo Fernando Henrique, e quatro ou cinco contra o governo Lula. A grande maioria das denúncias contra o governo Lula vinha do procurador, famoso procurador Luís Francisco de Souza, desaparecido nos últimos tempos, Guilherme Chelby e mais alguns. O senhor identifica algum tipo de excesso no Ministério Público na denúncia na área política, principalmente no tocante à corrupção?
Hélio Bicudo: Não, eu não vejo, não vislumbro excessos, às vezes, eu até vislumbro...
Carlos Marchi: Partidarização?
Hélio Bicudo: Não diria partidarização, porque eu, pelo que eu conheço do Ministério Público ainda hoje, a maioria não pertence ou não milita, pode ter simpatias mas não milita em partidos políticos. Eu acho que essa questão de não se ter mais vigilância sob o governo Lula, é que talvez - meu ponto de vista - havia e há ainda alguma esperança de que o governo Lula realmente desse uma reviravolta no sistema de governar, muito mais aliado à vontade popular do que a sua própria vontade, e o que não está acontecendo. E procurou-se poupar o presidente da República em muitos fatos escabrosos que aconteceram, durante...
Carlos Marchi: Mas isso não seria leniência do Ministério Público?
Hélio Bicudo: Eu acho que sim, sem dúvida, sem dúvida.
Gilberto Nascimento: Doutor Hélio, no livro do senhor, o senhor fala, faz até um mea culpa a respeito do trabalho do senhor numa comissão, que foi criada pelo PT para investigar denúncias lá contra o advogado Roberto Teixeira [foi acusado de tráfico de influência porque sua empresa, a Cepem, teria sido contratada sem concorrência por prefeitos petistas, tornando-se um meio de desvio de verbas públicas para os cofres do partido], que é compadre do Lula. Eram acusações envolvendo uma empresa chamada Cepem [Consultoria para Empresas e Municípios, com sede em São Bernardo do Campo], que seria acusada de favorecer prefeituras do PT. E no livro o senhor fala que, apesar das evidências de comprovação de envolvimento lá do Roberto Teixeira, o PT e o senhor também que estava na comissão, não teriam levado adiante aquela investigação porque havia um receio de que aquilo comprometeria a imagem do Lula que era o grande líder operário, o grande líder da esquerda e tal. O senhor faz no livro um mea culpa a respeito dessa questão. Eu queria perguntar uma coisa para o senhor. Não há uma coisa que demorou-se demais, o senhor ficou muitos anos dentro do PT, e só agora que, ou há pouco tempo que esse caso foi tornado público...
Hélio Bicudo: Não, esse caso foi tornado público na época...
Gilberto Nascimento: Eu digo pelo senhor, pelas evidências que o senhor mesmo disse que haveria...
Hélio Bicudo: Eu acho que tudo tem seu tempo para ser feito e para ser dito. Essa comissão de investigação que foi nomeada pelo então presidente do PT, que era o José Dirceu, era composta por mim, pelo José Eduardo Cardozo [deputado federal, ex-integrante da CPI dos Correios, instaurada em 2005, e secretário geral do PT, em 2008] e pelo Paulo Singer [economista, administrador, sociólogo, professor e um dos fundadores do PT]. E nós tínhamos um prazo para cumprir relativamente essas investigações, que eram fruto de denúncias do Paulo de Tarso Venceslau [economista e ex-secretário das finanças das prefeituras de Campinas e São José dos Campos], de que estava havendo apropriação de dinheiro público por parte da Cepem, que o repassaria para os interesses do Partido dos Trabalhadores. Aquela questão das viagens que o Lula fazia aí pelo interior, pelo Brasil todo, para, evidentemente, criar fundamento para uma posterior candidatura à presidência da República. E nós chegamos no instante, verificamos a responsabilidade daquele que estava amealhando o dinheiro das prefeituras que era o Roberto Teixeira, e que era compadre do Lula, em cuja uma das casas o Lula residia gratuitamente, então isso despertou o interesse de: vamos para frente ou vamos cumprir o que nos foi determinado dentro do prazo que nós estamos trabalhando. E entregamos um relatório à direção do partido, onde aconselhamos uma comissão de ética tanto para o Paulo de Tarso Venceslau quanto para o Roberto Teixeira. Essas...
Lilian Christofoletti: Doutor Hélio, o senhor acha...
Hélio Bicudo: Só um instantinho...
Gilberto Nascimento: Só o senhor Paulo Vanceslau é que acabou punido na história?
Hélio Bicudo: Somente. Pois é, por isso que eu queria chegar a isso...
Gilberto Nascimento: O senhor estava convencido de que havia esse recolhimento de dinheiro?
Hélio Bicudo: Não diria que eu estava convencido, eu achava que se nós pudéssemos aprofundar as investigações, talvez nós pudéssemos contar com o indiciamento do próprio Lula nesse processo de recolhimento de recursos pela Cepem.
Gilberto Nascimento: E por que não seria conveniente então?
Hélio Bicudo: É aquela história das esquerdas. Nós sempre tínhamos a expectativa de que o Lula, na verdade, era o grande representante da esquerda no Brasil, e eu não escondo que eu ainda, embora eu seja mais idoso, não sou tão tonto como muitos podem pensar, de que a esquerda ainda é para a sociedade brasileira o alvo a ser atingido. Não foi atingido, mas poderia ter sido, e quem sabe o Lula poderia ter sido o instrumento para se chegar a esse ideal.
Lilian Christofoletti: Mas doutor Hélio, por exemplo, se o PT tivesse agido de forma mais dura, investigado tanto o caso Cepem quanto o caso Lubeca, que também é anterior, a gente teria passado para o mensalão, teria chegado a mensalão, sanguessugas?
Hélio Bicudo: Eu acho que não. Eu acho que essa questão do mensalão, essas questões da Lubeca, depois o caso da Cepem, foram amadurecendo algumas pessoas, dentro da direção do partido, no sentido de que você só vai atingir o poder se você tiver o poder do dinheiro.
Hugo Studart: Agora, doutor Hélio, por que o PT descambou? O senhor dizia aqui numa entrevista ainda de 92 para a revista Isto É, ou seja, tem muitos anos, que “caso o PT não mude por dentro, corre o risco de se transformar em algo parecido com os partidos comunistas do Leste Europeu”. E agora no seu livro o senhor chama o PT de “práticas de direito no campo econômico e sobretudo ético, loteamento de poder, o PT caiu na vala comum, a administração de Lula é um fracasso”. O que deu errado? Como o senhor explica essa...
Hélio Bicudo: Eu acho que, como todo partido político aqui no Brasil, infelizmente as bases são esquecidas a partir de um determinado instante. Na medida
Hugo Studart: Paulo Maluf disse outro dia que "Lula é mais malufista do que eu”. O senhor acha que PT malufou?
Hélio Bicudo: Não, eu acho que não chega a tanto, mas quase. [risos]
Lílian Christofoletti: Mas essa aproximação do Maluf agora com o PT, já prevendo um acordo para 2010?
Hélio Bicudo: Pois é.
[?]: Mas isso não é de agora, aconteceu em 2004.
Hélio Bicudo: Essa questão mostra, exatamente, que ao invés de o presidente da República seguir a linha partidária, é o partido que está seguindo a linha do presidente de República. Então isso, evidentemente, que passa pelo conchavos para você obter votações na Câmara e votações no Senado, conchavos que se demonstraram altamente possuídos pela corrupção, no caso do mensalão e de outros casos que nós todos estamos acostumados a ler nos jornais.
Paulo Markun: Doutor Hélio, vamos fazer um rápido intervalo, voltamos num instante com o Roda Viva.
[intervalo]
Paulo Markun: Doutor Hélio, não tem um pouco da situação de alguém que saiu do centro do poder, o senhor foi vice-prefeito, foi candidato a vice-governador com Lula, e hoje é tão àcido em relação ao PT. Não pode haver essa leitura de dizer assim: “é alguém que já não está mais gravitando em torno do poder” nas suas críticas?
Hélio Bicudo: Olha, eu nunca gravitei em torno de poder Paulo, porque eu fui muito usado, hoje eu tenho consciência disso, pelo partido. Por exemplo, a minha candidatura a vice-governador do estado foi para temperar a candidatura do Lula, que era um líder operário.
Paulo Markun: Hoje seria o contrário né, o Lula que iria temperar a candidatura do senhor?
Hélio Bicudo: [risos] Pois é. Não sei, porque podia esse tempero ser muito apimentado e não ser digerível. Mas então, Paulo, eu acho que, por exemplo, eu fui deputado federal praticamente por minha conta e risco; o partido não me deu absolutamente qualquer ajuda na minha candidatura. Eu quando falo partido, falo direção do partido, porque naquele tempo ainda a militância tinha alguma voz dentro do partido, hoje não tem mais.
Paulo Markun: Mas mesmo o partido elegendo seus dirigentes pelo voto direto, aliás, é o único que faz isso...
Hélio Bicudo: Pois é, mas então, o partido não deu apoio; as minhas duas candidaturas foram feitas pelo esforço próprio e pelo trabalho que eu tinha feito aqui no estado de São Paulo e em alguns lugares do Brasil.
[?]: Eu queria retomar só um...
Hélio Bicudo: Só terminando aqui com o Paulo. Por exemplo, a candidatura a vice-prefeito foi uma doação que eu fiz ao PT, porque havia um problema entre dois candidatos a vice e que podiam atrapalhar a candidatura da Marta [Suplicy, psicóloga e política brasileira, foi deputada federal, prefeita de São Paulo de 2001 a 2005 e ministra do Turismo a partir de 2007] que estava se opondo ao Maluf naquela ocasião. Então houve uma solicitação da própria Marta, do [Eduardo Matarazzo] Suplicy [economista e administrador de empresas, foi deputado federal e estadual, senador pelo estado de São Paulo e ex-marido de Marta Suplicy], do Rui Falcão [advogado, jornalista, foi um dos fundadores do PT e ex-secretário de governo da prefeita Marta Suplicy], que foram a minha casa insistindo para que eu assumisse a candidatura de vice-prefeito. Porque isso daria também mais espaço para a candidatura da Marta, e sanaria essa pequena rebelião que estava acontecendo no centro do partido com duas candidaturas opostas. Eu fui para prestar mais um serviço ao partido, acredito que tenha sido talvez um dos últimos serviços que eu prestei ao partido.
Gilberto Nascimento: Doutor Hélio, complementando a pergunta do Markun, no livro o senhor fala também, tinha discussão, como o senhor falou, o senhor era o vice-prefeito da Marta, quando ela foi disputar a reeleição, foi discutido o vice e a participação do senhor, trocaram o senhor de candidato. Mas o senhor relata que havia uma proposta, um acordo de se dar um cargo ao senhor, talvez um cargo no exterior, uma embaixada, alguma coisa assim. Se tivesse sido dada essa embaixada, o senhor estaria no PT até hoje?
Hélio Bicudo: Não acredito. Porque meu senso crítico não é pago por uma embaixada. Eu acho que a minha liberdade de opinião foi sempre muito clara dentro do partido, e eu acho que, por isso mesmo que, a partir de um certo momento, eu fui afastado dos órgãos diretivos do partido.
Gilberto Nascimento: O senhor disse também no livro que o Dom Cláudio Hummes [cardeal, ex-arcebispo da Arquidiocese de São Paulo e prefeito da Congregação para o Clero (2008)] e a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] teriam indicado o senhor como embaixador do Vaticano, e o próprio Lula vetou, por que razão?
Hélio Bicudo: Porque na verdade não foi esse o primeiro veto do Lula a minha pessoa. O primeiro veto foi a candidatura a vice-prefeito de São Paulo, porque ele só foi constrangido a aceitar o meu nome. Ele não queria. E depois, ele vetou o meu nome para o cargo de secretário dos Negócios Jurídicos na gestão da Marta. Porque houve o seguinte, quando, se vocês me permitem... Quando eu assumi o cargo de vice-prefeito, a Marta queria que eu fosse secretário de Negócios Jurídicos, eu disse a ela: “Marta não vou ser, não posso ser porque eu tenho um cargo eletivo e não vou poder me subordinar à prefeita”. Porque o secretário se subordina à prefeita. Então para mim fica um problema muito complicado do ponto de vista ético, você ser eleito popularmente e você ser secretário e se subordinar a uma pessoa que foi eleita com você. Bom, passaram-se os dias, meses, e tal, e ela voltou a insistir, ela perdeu a secretária, que era secretária de Negócios Jurídicos, e voltou a insistir que eu fosse o secretário. E, nesse tempo, houve aquela reunião no Rio Grande do Sul do Fórum Mundial, e ela foi para lá, e conversou, ao que eu soube, com o Lula, e eu disse para ela: “você vai para lá, pensa, eu penso também, e depois quando você voltar, nós resolvemos essa questão”. Embora eu estivesse convencido de não aceitar pelos mesmos motivos que eu havia alegado anteriormente. E ao que eu soube, ela foi desaconselhada pelo Lula a me dar o cargo de secretário de Negócios Jurídicos.
Hugo Studart: Afinal, quando e por que o senhor brigou com Lula?
Hélio Bicudo: Eu não briguei com o Lula.
Hugo Studart: No livro o senhor diz o seguinte, que em 2002, quando Lula ganhou o presidência, o senhor num ato de grandeza, aconselhado por sua esposa, o senhor foi visitá-lo no palanque da vitória, inclusive acompanhado do seu filho José, que está aqui...
[?]: E acho que lá no Palácio também o senhor foi recebido por ele recentemente.
Hélio Bicudo: Não, não, recentemente não.
Hugo Studart: O senhor deu um abraço no Lula e a Marisa disse assim: “Olha, doutor Hélio, está vendo como o Lula ainda se lembra do senhor?”. Essa frase irônica mostra que havia um fosso profundo entre vocês dois, o que aconteceu?
[?]: E no livro também ele referencia mágoas antigas.
Hélio Bicudo: Acho que aconteceu a Cepem. Eu acho que aconteceu o Ricardo Teixeira, o Roberto Teixeira.
Renato Lombardi: Aí que eu queria retomar história do Cepem e também a história da Lubeca. Eu queria que o senhor explicasse como é que partido age. No caso da Cepem, o compadre do presidente foi excluído da história; no caso da Lubeca, só a prefeita Luíza Erundina que entrou nessa história e acabou saindo do partido. O outro continuou no partido, o outro envolvido que era o ex-deputado Luís Eduardo Greenhalgh [advogado, deputado federal, membro fundador do PT, foi um dos acusados no caso Lubeca de receber dinheiro clandestino de empreiteiros com interesses na administração municipal petista]...
Hélio Bicudo: A Luíza não estava envolvida no problema da Lubeca.
Renato Lombardi: Sim, mas ela era prefeita.
Hélio Bicudo: Ela era prefeita e se deixou levar...
Renato Lombardi: Eu queria que o senhor explicasse como o partido age na história, como é que é, quem...
Paulo Markun: Só acrescentando gostaria de lembrar que o telespectador mais jovem não sabe o que significa Lubeca e do que se trata.
Hélio Bicudo: Era um empreendimento empresarial aqui perto de Santo Amaro.
Paulo Markun: E havia suspeita de que tivesse havido favorecimento.
Hélio Bicudo: De que havia corrido dinheiro, favorecimento, para que a prefeitura aceitasse um determinado grupo para fazer o empreendimento.
Renato Lombardi: O senhor que é fundador do partido, que deixou o partido em 2005, que tipo de peso tem nessa história aqui para excluir um e bater no outro?
Hélio Bicudo: Eu acho que foi uma progressão ou uma regressão do partido no sentido de deixar os seus ideais de busca de uma sociedade nova para manter o status quo existente. O caso da Lubeca é bem ilustrativo, o caso da Cepem, da mesma maneira, é ilustrativo, mostrando como o partido foi, aos poucos, se deixando levar por uma direção que tomou conta dele, que não é e não representava, até um determinado momento, o partido dos trabalhadores, quer dizer, a grande militância dos trabalhadores, e que redundou no que hoje nós estamos assistindo, nessa atuação do presidente da República, que ao invés de escolher os ministros de sua confiança, escolhe os ministros de confiança da chamada base aliada.
Percival de Sousa: Agora, doutor Hélio, o senhor tem um capítulo no livro que é "Encanto e desencontros". O senhor esteve encantado pelo partido por algum tempo e desencantou-se...
Hélio Bicudo: Exatamente.
Percival de Sousa:Eu gostaria de saber que episódio levou o senhor a raciocinar “não dá mais, chega, acabou, não é possível”, houve um fato específico?
Hélio Bicudo: Cepem.
Percival de Sousa: Foi esse episódio?
[?]: Mas o senhor ficou muitos anos no partido ainda.
[?]: Mas demorou muito, doutor Bicudo.
Hélio Bicudo: Eu fiquei muitos anos, mas teve um fato, que eu não acreditava que se desdobrasse em outros fatos. Você sempre quando está numa posição, a esperança não é que as coisas piorem, é que as coisas possam melhorar. E acho que não fui só eu que ficou no partido durante muito tempo na esperança de que alguma coisa acontecesse de novo, como não aconteceu... Por exemplo, por que eu saí do partido? Eu saí do partido porque no momento em que se fazia a renovação do Diretório Nacional, a minha expectativa era que houvesse realmente uma renovação, porque o partido estava um partido "chapa branca". O Lula dizia, como hoje, vocês viram nos jornais hoje, o líder do PT na Câmara ir ao Planalto e voltar dizendo: “Não, o que Lula quer é o que tem que se fazer”. Pode não ter dito com essas palavras mas foi isso o que ele disse.
Gilberto Nascimento: Doutor Hélio, ainda sobre esse assunto da Cepem, o senhor disse que uma vez o próprio Lula, junto com Paulo Okamoto, os dois estiveram no sítio do senhor, e pelo que dá para compreender ali da leitura, eles foram lá, teriam ido lá meio que para dizer para deixar essa história para lá, e não mexer com o Roberto Teixeira...
Hélio Bicudo: Eles não chegaram a explicitar, o Lula não chegou e nem o Paulo Okamoto chegaram a explicitar...
Gilberto Nascimento: É o que dá para entender pela leitura do que o senhor escreve ali.
Hélio Bicudo: A minha leitura era essa, era que “pára aí, não vamos mexer com nada”.
Gilberto Nascimento: Esses fatos não seriam mais do que relevantes, então, para o senhor ter essa compreensão que o senhor tem hoje?
Hélio Bicudo: Não, eu tinha essa compreensão, tanto que eu fui me afastando.
Renato Lombardi: Mas demorou muito. O senhor não acha que demorou muito?
Hélio Bicudo: Eu acho que tudo tem seu tempo, Renato.
Paulo Markun: Emerge do livro do senhor como grande figura pública, o ex-governador Carvalho Pinto, e candidato ao senado derrotado. Ele foi senador e depois foi derrotado na reeleição pelo Orestes Quércia. Um homem que terminou na Arena, que era o partido do governo, o partido do “sim, senhor” , o partido do sim, sei lá se tinha essa definição na época, Arena e MDB. O senhor não acha uma incongruência isso, o Carvalho Pinto ser uma figura mais iluminada na sua constelação?
Hélio Bicudo: Nós pudemos intervir no sentido de que o professor Carvalho Pinto não se filiasse à Arena, mas se filiasse, ou ficasse fora, ou se filiasse ao MDB. Eu me lembro até de um episódio em que surgiu o problema da disputa da prefeitura de São Paulo, e o doutor Julinho de Mesquita - naquele tempo eu trabalhava no Estadão, ele sabia das minhas ligações, é lógico, eu tinha sido secretário do professor Carvalho Pinto quando ele foi governador do estado, depois fui com ele para o Ministério da Fazenda - e conseguiu uma entrevista com o Carvalho Pinto, porque ele queria convencer o Carvalho Pinto a ser candidato a prefeito de São Paulo. E não conseguimos que o candidato Carvalho Pinto assumisse a candidatura. O problema, eu acho, que é problema um pouco de família e de círculos de amizades dele que achavam que era uma [...] você sair do governo do estado para ser prefeito...
Paulo Markun: Depois de ser governador.
Hélio Bicudo: Quando realmente na minha visão não era...
Paulo Markun: O que ele tinha que os atuais governantes brasileiros não têm?
Hélio Bicudo: Seriedade, seriedade, e tinha um projeto, o Carvalho Pinto tinha um projeto. Nos quatro anos ele desenvolveu um projeto, não um projeto de crescimento, mas um projeto de desenvolvimento, que vai muito além do que apenas o crescimento econômico. O crescimento econômico pode engordar um lado e emagrecer outro lado, como está acontecendo hoje no Brasil. O desenvolvimento é outra coisa, o desenvolvimento é educação, é saúde, é liberdade, uma série de coisas que levam ao desenvolvimento.
Carlos Marchi: Eu militei na esquerda durante muito tempo, eu me lembro, outro dia conversando com um velho amigo, a gente se lembrava de que a gente era muito leniente com as pessoa da esquerda. Eu, por exemplo, tinha a utopia que levava à ingenuidade. Eu achava que todas as pessoas de esquerda tinham um caráter impávido, imaculado, e todas as pessoas de direita tinham um caráter lá embaixo. O tempo me levou a mudar um pouco esses conceitos, eu fui forçado a mudar esses conceitos. O senhor já teve um conceito parecido com isso? Eu queria que o senhor falasse sobre a ética e o caráter das pessoas da esquerda.
Hélio Bicudo: Eu acho que o que você disse me contempla. Eu acho que é exatamente isso. Essa leniência dos militantes de esquerda para os companheiros de esquerda. Sempre você tem uma esperança de que vá acontecer alguma coisa que mostre ao conjunto da população brasileira que o que interessa, realmente, à política, é o desenvolvimento harmônico do povo, e isso, infelizmente, não aconteceu, não está acontecendo...
[?]: O poder muda, doutor Bicudo?
Hélio Bicudo: Eu acho que mudou. Eu acho que a busca do poder, não é bem o poder, começa com a busca do poder, e você desconhece todos os processos éticos para você chegar ao poder, e passa a atuar de maneira aética para conseguir estruturar a sua estrutura, vamos dizer assim, para dominar o poder. Então acontece o que aconteceu, eu vou repetir outra vez: ao invés de o presidente seguir a linha do partido, o partido segue a linha do presidente. O que é um contra-senso, no meu ponto de vista, muito grande.
Gilberto Nascimento: Doutor Hélio, dentro do PT, o senhor era um duro crítico do ex-ministro José Dirceu. O que o senhor acha do Zé Dirceu?
Hélio Bicudo: Eu acho que o Zé Dirceu é um homem engajado num foco que é o poder. E ele para atingir o poder, ele fez, e vai continuar fazendo aquilo que ele possa fazer no sentido de chegar ao poder. Nem que seja o poder, vamos dizer assim, obscuro, atrás do principal figurante, como ele está fazendo hoje. Eu não tenho dúvida nenhuma do prestígio e da interferência do José Dirceu no governo do presidente Lula.
Gilberto Nascimento: O senhor o responsabiliza pelo que o PT se transformou?
Hélio Bicudo: Ele é um dos responsáveis, não o único.
Gilberto Nascimento: Quem são os outros?
Hélio Bicudo: [Hélio Bicudo sorri] Você tem toda a direção nacional do partido, com algumas exceções, responsável por aquilo que está acontecendo no partido.
Percival de Sousa: Doutor Hélio, esse episódio que foi a gota d'água para o senhor se desencantar com o partido, que é ainda o episódio da Cepem, como jurista, como o senhor vê o episódio? Paulo de Tarso Venceslau fez um dossiê com elementos probatórios no mínimo razoáveis, e o partido, além de não tomar providência alguma, demonizou literalmente o autor da denúncia. Como jurista, como o senhor se sentiu nesse momento? Paulo de Tarso tornou-se uma figura maldita, embora o que ele dissesse fosse correto.
Hélio Bicudo: Não para nós, para nós nunca ...
Percival de Sousa: O senhor ficou numa posição delicada dentro do partido...
Hélio Bicudo: Não só eu fiquei numa posição delicada dentro do partido, como também o José Eduardo Cardozo e o Paulo Singer ficaram na mesma posição porque o relatório que nós fizemos, com a recomendação de que se realizasse uma comissão de ética para apurar as responsabilidades do Paulo de Tarso e do Roberto Teixeira, isso morreu no Diretório Nacional, e todos nós sabemos que isso morreu por interferência do próprio Lula.
Percival de Sousa: Foram violadas as normas processuais, entre aspas, do próprio partido?
Hélio Bicudo: Do próprio partido.
Percival de Sousa: Procedimentos de apuração.
Hélio Bicudo: O que me levou a sair do partido, evidentemente que isso vai, você põe uma pedrinha ali e aqui, vai subindo e tal, você vai construindo um edifício, que é edifício da convicção, de você permanecer ou não permanecer no partido. Durante o mandato que eu desempenhei na Câmara, os projetos que eu apresentei e que eu acho que eram importantes para o problema da própria segurança, estabelecer princípios para a segurança pública, não tive absolutamente o apoio do partido. E esse projeto, por exemplo, que acabou redundando em que os crimes de homicídio praticados por policiais militares contra civis fossem objeto de julgamento no tribunal do júri, foi o único que eu consegui passar, e assim mesmo, decepado. Por que só homicídio, por que não os outros crimes? E confesso a você que nessa luta - aos companheiros que estão aqui - nessa luta toda, para que esse projeto realmente fosse implementado e transformado em lei, e que era muito mais amplo, porque era que todos os crimes praticados pelos policiais militares contra civis fosem julgados pela justiça comum, eu não tive o apoio do PT, e por incrível que pareça, eu tive o apoio do Luís Eduardo Guimarães [político baiano do PFL, filho do ex-governador da Bahia e senador Antônio Carlos Magalhães, foi deputado e presidente da Câmara, morreu precocemente aos 43 anos] que bancou o projeto na Câmara, que foi aprovado na Câmara na sua totalidade, nós levamos o autógrafo desse projeto ao presidente do Senado que era o senador José Sarney, e lá ficou.
Hélio Bicudo: E está lá!
Hélio Bicudo: [risos] Só passou esse pedacinho, o resto ficou lá.
Hélio Bicudo: Doutor Hélio, vamos ver a pergunta do advogado José Carlos Dias.
[VT de José Carlos Dias]: “Hélio, há muitos e muitos anos que nós participamos do mesmo caminho, da mesma jornada, em atividades, junto à Comissão de Justiça e Paz, fui seu advogado, estive em Washington como ministro para sua posse, no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, acompanhei o lançamento do seu livro. E pergunto: o que você diria, qual foi o momento em que você mais sentiu a necessidade da sua luta como promotor, como homem público, como político? Quando é que você experimentou a palavra medo, alguma vez na vida?
Hélio Bicudo: [Héio Bicudo sorri] Eu acho que o medo é inerente à natureza humana. Medo eu tive. Medo por mim, e muito mais pelo, pelas pessoas da minha família. Mas você sabe, José Carlos, o medo, às vezes, nos leva ao cumprimento até mesmo de um dever que se nós não tivéssemos medo nós não iríamos cumprir.
Paulo Markun: Vamos fazer mais um rápido intervalo, voltamos com Roda Viva num instante, que tem esta noite na platéia, Marco Lara Tortorello, advogado; Maria Lúcia Bicudo, fonoaudióloga e Marcelo Nobre, advogado.
[intervalo]
[Comentarista]: Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte já está na sua décima edição. A primeira, de 1976, foi publicada pela Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, criada na época pelo cardeal João Paulo Evaristo Arns. O jurista Hélio Bicudo atuava no movimento de defesa dos direitos humanos, não só na comissão como também no Ministério Público, de onde comandou as investigações sobre o Esquadrão da Morte e sua atuação
Paulo Markun: Doutor Hélio, em relação ao Esquadrão da Morte, existe alguma diferença entre aquilo que acontecia aqui no início dos anos 70, final dos anos 60 e o que acontece hoje com as milícias?
Hélio Bicudo: Acho que não há muita diferença não, sabe? Hoje, evidentemente, essas estruturas são mais sofisticadas. No Esquadrão da Morte, eles eram os pioneiros das milícias. Eram policiais e que, evidentemente, recebiam propinas por parte de comerciantes, da população, por questão da segurança e tal. E problema de tráfico de drogas que já havia naquela ocasião, de uma maneira incipiente, mas também...
Paulo Markun: Quer dizer, só para entender, o Esquadrão da Morte não acometia bandidos em geral?
Hélio Bicudo: Não.
Paulo Markun: Eram só alguns bandidos?
Hélio Bicudo: Na verdade eles queriam dar impressão ao povo, como há pouco tempo aconteceu em São Paulo, com aquela chacina do Castelinho, em que foram mortas 12 pessoas, eliminadas dentro de um ônibus.
Paulo Markun: Doze presos, né?
Renato Lombardi: Não, não. Eram doze assaltantes.
Hélio Bicudo: Não, não eram presos, não.
Paulo Markun: Ah, desculpe, assaltantes que estavam...?
Hélio Bicudo: Não eram.
Paulo Markun: Também não eram assaltantes?
Hélio Bicudo: Tinha alguns que nem tinham folha corrida.
Paulo Markun: A polícia assim os apresentou?
Hélio Bicudo: É, o espetáculo para mostrar eficiência à população. Quando a polícia vai caindo em descrédito, no caso, por exemplo, antes do Castelinho, em que houve uma série de rebeliões nos presídios, o helicóptero desceu no pátio do presídio, e tirou preso de lá...
Renato Lombardi: Em Guarulhos.
Hélio Bicudo: Seqüestros em grande número e tal. Então para você mostrar que a polícia está funcionando, você descobre uma maneira de levantar o nome da polícia perante a população. No tempo do Esquadrão da Morte foi isso.
Percival de Sousa: Agora, o Esquadrão começou de outra maneira, não é doutor Bicudo? O Esquadrão começou quando São Paulo vivia uma série de criminalidade. A criminalidade e a violência eram muito altas, e o que fez o governador? Reuniu um grupo de policiais de elite, montou policiais, os empresários passaram a colaborar com dinheiro para esses policiais, para que eles fizessem a criminalidade baixar, só que aí a coisa desandou, não é isso?
Hélio Bicudo: Desanda, como nesse caso do Castelinho. Foi um fato que poderia se desdobrar em outros fatos que não se desdobraram porque vieram as denúncias mostrando que aquilo tinha sido uma montagem do governo do Estado para mostrar a eficiência da polícia. A mesma coisa com o Esquadrão da Morte, ele foi montado para mostrar a eficiência da polícia.
Paulo Markun: No governo Sodré [Roberto Costa de Abreu Sodré (1917-1999), foi deputado estadual e governador de São Paulo, eleito indiretamente, de 1967 a 1971]?
Hélio Bicudo: No governo Sodré. Aquela questão, por exemplo, de você encontrar cadáveres com o cartaz do Esquadrão da Morte, eram presos que eram retirados de Tiradentes, gente pé de chinelo que eles tiravam do Tiradentes para mostrar que estavam funcionando, que a segurança estava atuando em benefício do cidadão.
Paulo Markun: Mas se a gente fizer uma pesquisa hoje junto à opinião pública, eu suspeito que boa parte dela vai achar que esse serviço é melhor do que defender, por exemplo, direitos humanos de presos.
Hélio Bicudo: Eu acho que sim. Eu acho que sem dúvida.
Paulo Markun: Como se contorna isso, se é que se contorna?
Hélio Bicudo: Acho difícil, porque, infelizmente, a mídia explode na ocasião em que você tem casos pontuais de violência, como se todo o estado de São Paulo, todo o Brasil fosse vítima de uma mesma violência, então, todos sentem-se violentados. E quando todos sentem-se violentados, a emocionalidade cresce e você então procura soluções para sanar essa questão emocional. E geralmente, essas soluções elas não encontram a repercussão necessária. Agora, por exemplo, endurecimento de pena, endurecimento de cumprimento de pena...
Paulo Markun: Redução da maioridade penal.
Hélio Bicudo: Maioridade penal, mais a proposta do governador de São Paulo de se aumentar de três para dez anos o tempo em que os delinqüentes menores passam a ser mantidos em instituições fechadas. Isso tudo vai levar ao caos.
Paulo Markun: O senhor acha que nada disso funciona?
Hélio Bicudo: Nada disso funciona. Você imagina nossos presídios...
Paulo Markun: O que funciona?
Hélio Bicudo: Eu vou dar uma resposta já, já. Nós temos 140 presídios
Percival de Sousa: 144 mil presos hoje.
Hélio Bicudo: Não tem um presídio que não esteja superlotado. Superlotação quer dizer promiscuidade, corrupção e quer dizer a intranqüilidade da população com relação ao que está acontecendo do ponto de vista da segurança. Eu tenho um antigo projeto que eu acho que atenderia, se fosse cumprido, em grande parte, ao anseio que a população tem de segurança, que é o seguinte. Quando o governador Carvalho Pinto exercia o seu mandato aqui
Paulo Markun: Quer dizer, é uma cadeia de faroeste num certo sentido?
Hélio Bicudo: Não diria de faroeste, mas distrital. Você sabe que o que me levou a isso, foi não só a minha experiência como promotor público em cidades pequenas, como quando eu era promotor na primeira Vara Criminal aqui de São Paulo, eu recebi uma rogatória de Berlim Ocidental da 347º - me lembro muito bem - Distrito Judicial de Berlim Oriental, que naquele tempo não tinha mais do que dois milhões de pessoas, e tinha 347 distritos judiciários. Ou seja, você fazer justiça aqui na Barra Funda para dez milhões de pessoas, isso é uma brincadeira!
Hugo Studart: Professor Hélio, quando o senhor combateu, desbaratou o Esquadrão da Morte, o delegado Fleury, eu ainda era criança, eu cresci sabendo que o senhor era uma figura pública importante, mas só agora, lendo seu livro.
Hélio Bicudo: Você me torna velho, hein! [risos]
Hugo Studart: Não é tão criança assim, né doutor Hélio, só tem cabelo branco precoce! Só agora lendo seu livro, que eu tive a exata dimensão histórica do seu papel. Eu acho que o senhor foi um verdadeiro herói; a coragem que o senhor teve, uma iniciativa praticamente individual naquela época de enfrentar o Esquadrão da Morte, enfrentar o delegado Fleury, eu acho...
[?]: Enfrentar o regime militar, era mais do que isso.
Hugo Studart: Eu acho que ajudou muito a dar coragem a outras pessoas, a enfrentar o regime militar, talvez salvou vidas pessoas de torturas. Mas o tempo mudou, e hoje a nossa realidade é de uma violência que parece que não tem paralelo àqueles tempos. Eu pergunto a essa pessoa que, na minha opinião foi um herói lá atrás, quando vê, quando ouve falar de uma criança que é estuprada e assassinada na pia batismal dentro da igreja; uma criança como o João Hélio, estraçalhada no carro, o senhor começa a repensar que talvez "bandido bom seja bandido morto"?
Hélio Bicudo: Não, eu acho que bandido é pessoa humana, e a gente tem que respeitar [não se entende o final da frase de Hélio Bicudo porque Hugo Studart faz outra pergunta]
Hugo Studart: E o senhor acha que os assassinos do João Hélio ainda são seres humanos?
Hélio Bicudo: Exatamente. Eu acho que o problema não é o problema do bandido. É como esse bandido se fez bandido. Como o Estado ajudou esse bandido a ser bandido. Por isso que eu estava falando nessa proposta de você criar em São Paulo, por exemplo, 500 varas distritais, com competência plena, cada juiz tem competência plena, ele vai julgar, vai participar de um distrito com 20, 30 mil pessoas. Então, ele vai participar dos processos criminais, porque o juiz hoje não participa de processo criminal. Por que ele não participa? Porque ele não vai do interrogatório até a sentença, nesse percurso você tem quatro ou cinco juízes, então o juiz que vai dar sentença, ele vai dar uma sentença sob o papel, é o que estamos propondo agora no processo virtual. Isso é desqualificar a distribuição da Justiça.
Lílian Christofoletti: O filósofo Renato Janine Ribeiro, num artigo para a Folha, disse que a morte do João Hélio era para repensar tudo o que ele havia defendido na vida, inclusive a pena de morte que ele sempre foi contra. Ele fala até em suplícios medievais, numa morte lenta e sofrida para os criminosos. Como o senhor analisa essa...?
Hélio Bicudo: Eu não entro nesse problema porque é um problema da cabeça dele. Se ele pensa assim, deveria também se olhar no espelho para verificar se aquilo que ele está dizendo corresponde àquilo que ele pensava e aquilo que ele pensa. Nós temos que, nessa questão toda, verificar que a estrutura do Estado brasileiro é uma estrutura que favorece a violência. Nós precisamos mudar essa estrutura. Mas quem vai mudar essa estrutura? Quando o Sarney assumiu a presidência da República, ele convocou as entidades da sociedade civil para uma luta contra a violência, e convidou a Comissão de Justiça e Paz para uma conversa no Planalto. Eu pertencia à Comissão, e fui. Ele começou dizendo o seguinte: “Olha, a primeira coisa que temos que fazer é revogar a Lei Fleury”. E o que era a lei Fleury? Era uma lei que permitia que os réus primários respondessem pelos seus crimes em liberdade. Então eu disse para ele...
Paulo Markun: Só para esclarecer, ela foi feita para favorecer o delegado Sérgio Fleury depois de suas acusações.
Hélio Bicudo: E que estava preso através de um pedido meu.
Hugo Studart: Preso pelo senhor e aí o regime militar tirou o Fleury da cadeia, contra o senhor, fazendo a Lei Fleury.
Hélio Bicudo: Exatamente. Então eu disse a ele [presidente Sarney] : “a lei Fleury só tem de mau o nome, porque impede a promiscuidade nas prisões”. E contei um pouco desse projeto que é um projeto antigo de você fazer distritos judiciários, e o ministro da Justiça, que era o Fernando Lira, me disse: “Hélio, você não quer fazer uma experiência piloto aqui em Brasília? Eu disse: “quero, você me dando os meios, eu quero”. E realmente fui à Brasília várias vezes, naquele tempo o governador de Brasília era José Aparecido, ele deu todos os elementos para nós começarmos, escolhemos o local, fizemos o projeto, e aí o Fernando Lira deixou o Ministério da Justiça e acabou tudo. Quer dizer, não existe uma continuidade na política, até do ponto de vista da segurança pública, porque isso importa na segurança pública. Você veja, soldado da Polícia Militar ou o policial da Polícia Civil tem que ter contato com aquelas pessoas com quem eles estão dando segurança, porque se não conhecem ninguém, eles vão fazer o que costumam fazer, atiram e matam porque não conhecem.
Lílian Christofoletti: Você acha que essa mentalidade pode mudar?
Hélio Bicudo: Acho que pode, é uma questão de querer. Por que São Paulo não pode ter 500 distritos judiciários? Por que você não pode ter um juiz acompanhando as decisões, o processo criminal, até a decisão, para saber a quem ele está condenando, a quem está impondo uma pena?
Percival de Sousa: Mas doutor Hélio, muitos dos nossos telespectadores eram meninos como Hugo Studart, e não sabem os meandros dessas histórias do Esquadrão. O José Carlos Dias perguntou se o senhor sente medo, eu queria extrair rapidamente uma coisa do seu livro para explicar qual a sensação de o senhor ter sido o que foi naquela época. O governador de São Paulo era violentamente contra o senhor, o secretário de Segurança Pública era contra o senhor, a polícia inteira era contra o senhor, o chefe do Ministério Público era contra o senhor. E aí doutor, como era isso? Como o senhor andava, trabalhava, andava com receio, escoltado, protegido? Era o senhor contra o mundo!
Hélio Bicudo: Pois é, acho que foi um pouco de inocência da minha parte. Eu achava que podia fazer e, achando que podia fazer alguma coisa, fiz.
[?]: Quanta gente foi para a cadeia, doutor Bicudo?
Percival de Sousa: Pouca gente, três ou quatro no máximo.
Paulo Markun: E só os de baixo?
Percival de Souza: 39 indiciados, né?
Hélio Bicudo: Cadeia mesmo.... [risos]
Paulo Markun: Em relação ao delegado Sérgio Fleury que, além de ser acusado de ter sido mentor e chefe do Esquadrão da Morte, era também acusado ...
Hélio Bicudo: O mentor talvez não ele, talvez o Sodré.
Paulo Markun: Ele também era acusado de ser uma figura proeminente na repressão política, por vários ex-presos políticos, os filhos dele fazem duras acusações ao senhor, dizem que não verdadeiras as acusações que o senhor apresenta. E mais, no livro o senhor relata episódios de presos que estiveram falando com o senhor sobre o envolvimento do delegado com as drogas. Eu queria que o senhor dissesse se essas refugas da parte da família do delegado Fleury não mudam seu ponto de vista?
Hélio Bicudo: Não mudam. Veja bem, Paulo. O delegado Fleury estava sempre nas suas diligências, de manga de camisa, e de mangas arregaçadas, mostrando os braços e tal. Normalmente quem se dopa, se dopa pela braço. E eu perguntei um dia a um investigador, que estava...
Paulo Markun: Só um parêntese, por que teria que haver a relação entre alguém andar dopado e ação do delegado?
Hélio Bicudo: Porque os crimes que eles praticavam não eram crimes para serem praticados por pessoas que estivessem na plena consciência, eram coisas tão malucas que eu acho que somente quem estava sob o efeito de uma droga que poderia retirar, por exemplo, um preso pé de chinelo, correcional - naquele tempo se falava - da casa de detenção ali do Tiradentes, e levá-lo para as barrancas da periferia de São Paulo e fuzilá-lo pura e simplesmente. A pessoa não pode estar na sua consciência sã para praticar um ato como esse. Então eu perguntei para um investigador, ele falou: “Isso aí é droga”! Eu disse: “droga? Mas como? O delegado Fleury está sempre com os braços nus, e não se verifica nada nos seus braços”. Ele disse assim: “Então o senhor manda ele levantar a calça e baixar a meia, é ali que ele se dopa”.
Percival de Souza: Era o "calcanhar de Aquiles".
Carlos Marchi: Doutor Hélio, queria levantar com o senhor uma questão. Queria lembrar um pouco o que a Lilian já tinha mencionado, o famoso artigo do Renato Janine Ribeiro, que pregava, que dizia até que a pena de morte era pouco; ele queria muito sofrimento, quer dizer, muda o conceito da cadeia, o artigo ficou histórico. Mas eu queria falar de outra coisa, queria falar do Estatuto da Criança, que prevê uma internação máxima de três anos para menor que praticar crime. Desculpe, eu não quero trazer o lugar-comum, mas eu não tenho como me esquecer do Champinha, todo mundo fala no Champinha. Champinha pode ficar solto, conviver em sociedade? Eu queria falar com o senhor sobre a ética da convivência. Como se faz com menores que não têm condições de viver em sociedade? Não tem condições psicológicas, emocionais, éticas. Eu me lembro que o doutor Evandro Lins e Silva falava muito em atestar a capacidade de conviver em sociedade, e falava muito em privação da liberdade. Quer dizer, privação por um tempo indeterminado, até que a pessoa tenha condições viver
Hélio Bicudo: Olha, Carlos, eu acho que essa questão se põe no caso do Champinha, mas se põe no caso de um grande número de meninos e meninas. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece um lapso de tempo de três anos para a reeducação, o problema é que não se faz a reeducação. Outro dia eu estive conversando com uma psicóloga de alto nível e perguntei a ela, porque eu também tenho esse interesse que você tem de encontrar uma luz no fundo do túnel, e perguntei a ela: “você acha que é tempo suficiente?” Ela disse: “Olha doutor, o adolescente é matéria que está facilmente manipulável. Você pode levar o adolescente tanto para cá, para um extremo, como para outro extremo. Três anos é mais do que suficiente, se nós adotarmos o tratamento adequado, para você tirar esse adolescente do atoleiro onde ele está”...
Carlos Marchi:O senhor não acha irresponsável fixar um tempo já que é tão improvável essa data precisa de quando a reeducação se dará? Por que o Estatuto não diz: pelo tempo necessário à sua reeducação.
Hélio Bicudo: Aí você entra no problema da prisão sem prazo.
Carlos Marchi: Mas essa é outra questão, é o Estado se capacitar para...
Hélio Bicudo: Mas na prisão sem prazo, você encontra um óbice constitucional, ela tem um prazo. O Estado é que, assumindo a responsabilidade da reeducação, é muito mais responsável do que o Champinha.
Percival de Souza: Aliás, isso que o Carlos está falando se aplica aos adultos. O que adianta essa pena de 300 anos?
Hélio Bicudo: Pois é, exatamente, isso não existe.
[?]: 200, 100 anos, se pode ficar no máximo 30...
Gilberto Nascimento: Tem casos de adulto que o crime é gravíssimo, em que se a pessoa não é presa em flagrante fica muito menos tempo do que o menor na Febem.
Hélio Bicudo: O problema que está se fazendo hoje, via Congresso, que é endurecimento de pena, endurecimento do sistema de progressão da pena, isso vai arrebentar o sistema, o sistema já não agüenta mais. Porque essas leis, por exemplo, vão entrar em vigor só daqui a um ano, um ano e meio, e não tem efeito retroativo, quer dizer, os presos que estão no regime atual vão continuar no regime atual.
Percival de Sousa: Como o senhor vê, doutor Bicudo, a violência extrema de hoje? Eu vou dar dois exemplos rápidos assim. Dois ladrões, um deles já passou pela cadeia, assalta, porque vai ser reconhecido, bota um casal, com o filho, e uma outra pessoa e bota fogo. Aí tem no Rio de Janeiro, pára o ônibus, bota fogo no ônibus, dois ônibus... Como é que se explica? Qual é a sua explicação a respeito disso? E nos explique também, por favor - porque as pessoas fazem muita confusão, e muita gente usou isso como plataforma política sobre direitos humanos - o que são direitos humanos e o que é essa violência que acontece hoje?
Hélio Bicudo: Olha, eu acho o seguinte, você não vai deixar de punir uma pessoa que cometeu um delito grave como esses que você está apontando e que foram cometidos. Agora, veja bem como a mídia usa esses fatos. Quando se trata de pessoas de menor status social, dois dias no jornal e acabou; quando se trata de pessoas de classe média e classe média alta, isso vira uma história universal. Então, na verdade, eu acho que o problema é você punir os criminosos de acordo com a lei que está aí, dar a eles a garantia de defesa, que isso é inato e está na Constituição, e puni-los de acordo com aquilo que está escrito na lei. Agora, direitos humanos não quer dizer impunidade, pelo contrário, nós achamos que a impunidade é mola da violência. Por que nós estamos atravessando essa fase de violência quase exacerbada? É porque existe um sentimento geral de impunidade! Quem vai para cadeia é o pé de chinelo, que você não vai encontrar na cadeia, talvez duas ou três pessoas diferenciadas, mas a grande maioria é pé de chinelo.
Hélio Bicudo: Doutor Hélio, sobre direitos humanos nós temos uma pergunta do advogado Belizário dos Santos Júnior, vamos ver.
[VT Belizário dos Santos Júnior]: Meu caro Hélio Bicudo, você foi membro e mesmo presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No Brasil nós não estávamos muito acostumados a usar esse tipo de recurso. Qual é, segundo você, a melhor possibilidade que temos de melhorar a eficiência do sistema interamericano e do sistema universal para defesa dos direitos humanos?
Hélio Bicudo: Você sabe que nós temos o sistema interamericano, temos o sistema europeu, o sistema africano e tal, são sistemas regionais. E eu acho que eles são fundamentais para uma reflexão por parte dos Estados no que diz respeito à questão da segurança das pessoas e da atuação do próprio poder de Estado em relação aos indivíduos. Mas são sistemas muito pequenos, com muito pouco poder. Por exemplo, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Defesa dos Direitos Humanos no que diz respeito à jurisdição da corte interamericana. Isso quer dizer que uma decisão da corte interamericana tem que ser obrigatoriamente seguida pelo Estado brasileiro. Não é. Nós temos o caso da Febem, que existe uma determinação da corte americana e que não está sendo cumprida...
Paulo Markun: Qual é a determinação?
Hélio Bicudo: São várias as determinações no sentido de você encontrar exatamente aquilo que nós queremos: a reeducação do adolescente para que ele tenha condições e capacidade para atuar fora do instituto fechado. E no caso, por exemplo, dos presídios, nós temos medidas provisórias decretadas pela corte com relação à questão penitenciária
Percival de Sousa: Doutor, essas questão que o senhor acaba de citar da corte, o senhor acha que o Direito tem resposta para todos esses problemas que estão sendo colocados aqui?
Hélio Bicudo: Não.
Percival de Sousa: A Lilian fez uma pergunta lá e o senhor focou na mídia, mas os chamados intelectuais estão se engalfinhando em cenas de pugilato nesse episódio. Tem acadêmicos que fugiram da academia. Isso me lembra [o escritor português] Eça de Queirós, “o Brasil tem muitos doutores e poucos brasileiros”. O que o senhor acha desse momento aí? O povo não está cansado de tudo isso?
Hélio Bicudo: Eu acho que sim. Eu acho que está, e com toda razão, porque todas as medidas que você procura para que elas, implementadas, possam modificar o cenário da violência, da segurança pública, elas são rejeitadas. Você pega, por exemplo a reforma do poder judiciário, que se tornou uma piada. O que se reformou no poder judiciário para que o poder judiciário não decretasse a impunidade que decreta todos os dias neste grande Brasil? Nada. Você quer uma reforma da polícia? Não anda.
Renato Lombardi: De quem é a culpa?
Hélio Bicudo: Nossa.
Renato Lombardi: Os políticos não têm culpa disso?
Hélio Bicudo: Porque nós é que elegemos os políticos.
Gilberto Nascimento: Doutor Hélio, porque uma instituição como a Febem gasta dois mil reais por mês com cada adolescente e não consegue mudar nada?
Hélio Bicudo: Não gasta com o adolescente, gasta com a estrutura da Febem.
Gilberto Nascimento: Por que não se muda isso, não se deixa de gastar com a estrutura e se gasta realmente com a reeducação?
Hélio Bicudo: Porque não há vontade de se mudar. As mesmas pessoas que torturaram, que espancaram, que continuam espancando na Febem, dentro da Febem.
Gilberto Nascimento: Todos os governos, todos os secretários que assumem, falam a mesma coisa, constatam e não muda.
Hélio Bicudo: Falam, mas não fazem, o problema é de fazer. Eles estão lá para fazer, não estão para deixar o tempo passar, e ponto final, mudar apenas o nome da Febem para Fundação Casa não resolve coisa nenhuma.
Paulo Markun: Doutor Hélio, nos anos 70, o senhor participou de uma articulação de um partido socialista que tinha boa parte das figuras políticas que estão hoje no cenário, no governo ou na oposição. Tinha lá Fernando Henrique Cardoso, Lula, Chico de Oliveira, tinha, não me lembro mais...
Hélio Bicudo: Serra, Almino Afonso, Covas.
Paulo Markun: A pergunta que eu faço ao senhor é a seguinte: dá sensação de que o senhor ficou no bloco do “eu sozinho”?
Hélio Bicudo: [risos] Não, eu não tenho essa sensação. Eu acho que muita gente está tão decepcionado quanto eu. Então, todos os decepcionados fazem parte do bloco do “eu sozinho”.
Paulo Markun: O PSOL [partido formado pela ex-senadora Heloisa Helena e outros parlamentares expulsos do PT por fazer oposição a ações do governo Lula] não é uma opção para esses decepcionados?
Hélio Bicudo: Eu não acho porque o radicalismo, pelo menos a minha experiência política me ensinou, não leva a uma solução.
Paulo Markun: Mas uma figura que sempre foi seu parceiro, que é o Plínio de Arruda Sampaio [parlamentar que foi do PT paulista, transferindo-se para o PSOL foi candidato à governador do estado de São Paulo], foi, aliás, responsável por várias das suas aproximações com instâncias da ação política, está lá, né?
Hélio Bicudo: Pois é, mas é uma opção pessoal dele. Eu acho que eu não entraria no outro partido.
Carlos Marchi: O senhor diria em quem o senhor votou em 2006?
Hélio Bicudo: Agora em 2006? Para governador do estado?
Carlos Marchi: Para presidente da República.
Hélio Bicudo: Para presidente da República votei no... Como é?
Renato Lombardi: Alkmin? [do PSDB]
Hélio Bicudo: Não. Cristovam Buarque. [ex-ministro da Educação de Lula, foi do PT e tranferiu-se para o PDT partido pelo qual foi candidato à presidência da República.
Gilberto Nascimento: Para governador o senhor votou no Serra?
Hélio Bicudo: Eu votei no Serra.
Gilberto Nascimento: Não votou no Plínio?
Hélio Bicudo: Não, não.
Renato Lombardi: Voltando um pouquinho, falando ainda a respeito da mágoa, que dá impressão de tudo o que se diz aqui, para quem é pessoa que fundou o partido, que foi destaque, que participou de um governo, que participou de uma prefeitura no tempo da Marta. O senhor está magoado, até que ponto a respeito de tudo, de como o senhor foi tratado? Porque o que parece é que o PT - pena que não tenha ninguém aqui do PT para poder se defender, porque vai dar a impressão que a gente só está batendo no PT - mas parece que o PT costuma tratar pessoas ligadas a ele, essas pessoas ligadas ao partido que foram tão fundamentais como o senhor, de uma hora para outra descartou...
Hélio Bicudo: Autofagia.
Renato Lombardi: Exatamente. Como é que o senhor se sente?
Hélio Bicudo: Eu não sinto mágoa nenhuma. Eu acho que na minha vida eu procurei fazer aquilo que me pareceu o mais correto, o mais ético, e que talvez isso sirva, no futuro próximo, remoto, para uma modificação nos costumes políticos do Brasil. De maneira que eu não sinto mágoa, eu até entendo essa loucura em busca de um poder que se dilui no seu próprio exercício, porque na verdade, este poder exercido pela maneira pela qual está sendo exercido não leva a uma nova sociedade para qual nós estávamos...
Paulo Markun: O senhor acha que não há diferença entre o governo Lula e o governo Fernando Henrique?
Hélio Bicudo: Eu acho que há diferenças.
Paulo Markun: Quais?
Hélio Bicudo: Eu acho que, por exemplo, em matéria de direitos humanos, eu ponho o governo do Fernando Henrique muito acima do governo Lula. O governo Lula não fez absolutamente nada em matéria de direitos humanos. Eu me lembro que há dois anos eu estive presente na Comissão de Direitos Humanos da ONU, onde o Brasil apresentou um relatório sobre o cumprimento do tratado dos protocolos sobre direitos civis e políticos no Brasil, durante os últimos oito anos. E nós fizemos um relatório paralelo, e esse relatório paralelo, praticamente, foi absorvido pelo comitê que desprezou todas as informações que o Brasil trouxe ao comitê, a ponto de que, no final, quando estavam se encerrando os trabalhos do comitê, a presidente do comitê que era uma francesa, eu não me lembro agora o nome dela, ela disse: “Olha, eu acho que o que Brasil tem muitos planos” - é a tal história de você tentar levar a coisa para esse tipo de atuação, tem muitos planos, tem muitos projetos e tal - mas quero saber se o Brasil cumpriu o artigo tal do protocolo de direitos civis e políticos? Esse artigo tal, isso não está dito e não foi dito. E tanto que as recomendações feitas ao governo brasileiro sequer foram respondidas até agora, o Brasil tinha prazo até outubro do ano passado e não respondeu.
Percival de Sousa: Doutor Hélio, porque o senhor acha que esse governo não abre os arquivos da época da ditadura militar, o governo petista, por que não? [“Eu sabia que iam me fazer essa pergunta”, diz Hélio Bicudo em voz baixa] O que tem nesses arquivos que o governo - aliás a Secretaria de Direitos Humanos tem status de ministério, os titulares da pasta foram guerrilheiros, participaram da luta armada, e ninguém quer abrir os arquivos. Por quê?
Hélio Bicudo: Acho que aí é para você não criar um problema entre o governo e as Forças Armadas, porque as Forças Armadas - você sabe perfeitamente - que elas estão muito mal se nós levantássemos essas questões dos arquivos. Isso leva ao problema da Lei de Anistia...
Carlos Marchi: Foi feito algum acordo para isso?
Hélio Bicudo: Não digo que tenha feito um acordo, mas um acordo tácito de não se fazer nada, por uma questão da Lei de Anistia. É uma lei de duas vias, isso é um absurdo jurídico.
Paulo Markun: Como teria que ser?
Hélio Bicudo: A Lei de Anistia deveria anistiar aqueles que foram vítimas do processo da ditadura militar e não os algozes dessas vítimas. Porque quando fala em crimes conexos, crime conexo é o crime praticado apenas por uma pessoa ou por duas pessoas no mesmo sentido, na mesma linha. Dois ladrões por exemplo vão assaltar uma casa, um faz isso, outro faz aquilo, são crimes conexos, mas não há conexidade entre o crime praticado por eles e o sofrimento das vítimas. Isso não existe em matéria de direito.
Paulo Markun: O senhor acha que existem condições políticas dessa situação reverter-se aqui como já aconteceu na Argentina, por exemplo?
Hélio Bicudo: É que os brasileiros não querem correr o risco. Política é correr risco, vamos enfrentar essa questão! Aqueles que mataram, que torturaram, que prenderam ilegalmente, têm que sofrer na medida da sua atuação.
Paulo Markun: Se ainda estiverem vivos, né, porque como disse o Studart, ele já está ficando velho.
Hélio Bicudo: Essa questão, por exemplo, da tortura. Tortura hoje é crime imprescritível, de acordo com tratados que o Brasil se inscreveu e ratificou. Ninguém quer mexer nessa questão. Ainda há pouco tempo, vocês assistiram essa questão do processo contra o Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI-Codi, órgão da repressão da polícia da ditadura militar, entre 1970 e 1974], não é contra o Ustra, é o processo que envolve o Ustra, e ele foi homenageado por forças do Exército. Onde está o presidente da República nisso?
Percival de Sousa: O presidente não República não é o comandante supremo das Forças Armadas?
Hélio Bicudo: É o que eu estou dizendo: onde está o presidente da República? Com quem ele está?
Percival de Sousa: Está com as Forças Armadas.
Hélio Bicudo: Evidente.
Lílian Christofoletti: Mas essa ação declaratória contra o coronel Ustra pode ser o primeiro passo do Brasil rumo a...
Hélio Bicudo: Pode, eu acho, dependendo da sentença do juiz. Se o juiz decidir e reconhecer que houve tortura, como a tortura é um crime imprescritível, isso vai para o Ministério Público e tem que haver uma denúncia contra esse coronel.
Lílian Christofoletti: Ele já abriu um processo, que foi decisão importante também, ele podia ter rejeitado...
Hélio Bicudo: Não, o processo está sendo... é o processo declaratório. Quer dizer, uma vez que juiz declara que realmente aconteceu aquele fato, esse fato como é o resultante de uma tortura, deve ir obrigatoriamente ao Ministério Público. E aí, então, você abre espaço para uma atuação mais ampla, se é que o Ministério Público vai topar essa luta.
Paulo Markun: Doutor Hélio, o nosso tempo está acabando, eu faço uma última pergunta. O senhor no livro se declara também como um atleta e disse que continua correndo diariamente, aos 84 anos, eu pergunto o seguinte: o que o senhor imagina que continue a ser o seu combate, não nas pistas de atletismo, mas no cenário político brasileiro?
Hélio Bicudo: Direitos humanos. Você sabe que eu presido a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, que foi uma entidade fundada por antigos presidentes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e que funciona no Brasil, na Venezuela, nos Estados Unidos, no Chile e Argentina. Para você ter uma idéia, um dos membros da nossa fundação é o atual ministro da relações exteriores da Argentina que é o Jorge Taiana.
Paulo Markun: Então essa é a bandeira?
Hélio Bicudo: Minha linha é essa. Nós estamos trabalhando. Agora, por exemplo, a questão indígena. Estamos levando para a Comissão Interamericana, solicitando uma audiência temática para discutir o problema indígena no Brasil. Você viu o que está acontecendo no Mato Grosso do Sul? E no resto do Brasil! Nós temos relatórios importantes produzidos por entidades de direitos humanos, como o Cime, por exemplo, que mostram que isso está completamente extravasando aquilo que a Constituição determina que seja feito em benefício dos povos indígenas.
Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado a nossos entrevistadores, a você que está em casa.