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Memória Roda Viva

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Moisés Naim

17/5/2006

O economista, especializado em política e economia internacional, analisa como o tráfico de drogas e de armas - que envolvem operações ilícitas e violentas - o comércio ilegal, a pirataria e outras ações geram o "dinheiro sujo" fundamental para a economia

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Programa gravado (sem perguntas de telespectadores)

Paulo Markun: Boa noite. Tráfico, contrabando e pirataria se tornaram atividades globalizadas cada vez mais poderosas, resistentes a controles e que quase sempre contam com a cumplicidade de autoridades. Traficantes, contrabandistas e piratas ampliam suas fatias no mercado internacional e respondem hoje por cerca de dez por cento da atividade econômica no mundo. O comércio ilegal e sua nova cara na economia global são os temas de Moisés Naim, economista venezuelano, que está hoje no centro do Roda Viva. O comércio ilegal tem uma abrangência hoje que não se imaginava. Existe pirataria, tráfico e contrabando de tudo: armas, drogas, órgãos humanos, arte roubada, bens falsificados, tudo interligado com a lavagem de dinheiro, a corrupção, a prostituição e a imigração clandestina. É o mundo desvendado por Moisés Naim, doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que também já foi ministro da Indústria e Comércio da Venezuela e diretor executivo do Banco Mundial. Hoje ele é editor da Foreign Policy, revista americana especializada em política e em economia internacional e também escreve para os jornais Financial Times, da Inglaterra, El País, da Espanha, e Corriere della Sera, da Itália. Moisés Naim tem oito livros publicados, o último deles chegando agora ao Brasil, tratando do comércio ilegal e do crime internacional.

[Comentarista]: É o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Ao escrever ilícito, Moisés Naim mergulha numa questão crucial e pouco compreendida. Contrabandistas, traficantes e piratas sempre existiram, diz Naim, mas “nunca com a capacidade de operar no plano global, conectando os lugares mais remotos do planeta às capitais cosmopolitas, na velocidade da internet”, e internet é a palavra-chave. Se o fim da Guerra Fria, a abertura de fronteiras e a queda de barreiras comerciais aceleraram a dinâmica global, a internet acabou de vez com as distâncias, tornou alucinado o ritmo do negócios e ofereceu também anonimato. Era tudo o que o comércio ilegal precisava. A globalização abriu novas oportunidades também para o crime e para a corrupção. No livro, Moisés Naim revela como os contrabandistas, traficantes e piratas se transformaram numa comunidade global organizada, ágil, com negócios cada vez mais lucrativos e diversificados. Nas estimativas de Moisés Naim, o tráfico de drogas na década de 90 dobrou de 400 bilhões para 800 bilhões de dólares ao ano. Os valores que circulam nas redes de lavagem de dinheiro aumentaram dez vezes, chegando a 1,5 trilhão de dólares ao ano, e o comércio de produtos piratas e falsificados já bateu na casa dos 600 bilhões de dólares anuais. O chamado dinheiro sujo virou parte fundamental da economia mundial.

Paulo Markun: Para entrevistar o economista Moisés Naim, convidamos Lorenzo Parodi, autor do livro Manual das fraudes e do site Monitor das fraudes; Renato Lombardi, da TV Cultura; Roberto Porto, promotor de justiça do Gaeco, Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado; Raul Juste Lores, repórter do Caderno Mundo dp jornal Folha de S. Paulo; Luiz Nassif, comentarista de economia da TV Cultura, e Cláudio Weber Abramo, diretor executivo da Transparência Brasil. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. Boa noite.

Moisés Naim: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar pelo seguinte. O senhor menciona no seu livro que a estimativa é de que esse mundo ilegal represente dez por cento da economia mundial. Existe alguma segurança de saber que percentual do negócio mundial é possível ter nesse campo, já que não há estatísticas confiáveis, certamente eles não declaram imposto de renda, não têm registro de balanço de entrada e saída?

Moisés Naim: Esses números são estimativas, mas há um número final, que é a lavagem de dinheiro. No fim, todos esses negócios são muito lucrativos e todos rendem dinheiro. O Fundo Monetário Internacional [FMI] estima que a lavagem de dinheiro, num levantamento de seis ou sete anos atrás, seja de 7% a 8% da economia mundial. Há outras estimativas de economistas que se especializam em aferir isso que chegam a 30% da economia mundial. Porém, o mais importante dos novos tráficos não é seu poder financeiro, mas seu poder político.

Paulo Markun: Como assim?

Moisés Naim: Cada um desses negócios alcançou magnitudes que são mais internacionais do que nunca, que são mais lucrativas do que nunca e que afetam mais cidadãos e mais indústrias do que nunca. É impossível alcançar essa magnitude sem a cumplicidade de muitos governos. Cada um desses negócios não ocorre num só país, ocorre em muitos países. São cadeias que se ligam por oceanos, montanhas e continentes. Isso é feito de forma muito eficiente, de forma muito ágil, usando as mais sofisticadas tecnologias de informação, de comunicação, de transporte, de estruturas financeiras. É impossível acontecer isso sem a conivência de funcionários públicos e de governantes em muitos países.

Paulo Markun: Há países em que há mais conivência e outros onde há menos conivência?

Moisés Naim: Eu vi isso em todo lugar. Nos EUA, o tráfico de drogas é importantíssimo, apesar dos esforços. Os EUA gastam US$40 bilhões por ano para interromper a importação e a distribuição de drogas, mas não conseguem. Os EUA tentam controlar o fluxo de pessoas, o tráfico de pessoas, e também não o conseguiram a Inglaterra, a Europa e a Ásia. Faz 10 anos que estudo essas questões e muitos mercados de muitos tipos, não só de drogas e armas, mas há uma grande quantidade de mercados diferentes, e o único fator em comum que encontro é que não há nenhum exemplo de sucesso do governo para conter o crescimento desses mercados.

Renato Lombardi: Eu gostaria de passar um pouquinho para a nossa situação do Brasil. Eu estava lendo seu livro, suas entrevistas, e o senhor se surpreendeu uma vez andando em Milão e vendo que um africano estava vendendo uma bolsa Prada; depois o senhor foi a Nova Iorque, e a mesma coisa – e a gente sabe que em Nova Iorque existe um centro lá, que é a Rua do Canal, onde se compra tudo, qualquer tipo de marca, de qualquer tipo de grife. E no Brasil nós vivemos hoje isso numa ascendência muito grande. Hoje nós temos um centro de pirataria, de contrabando, em São Paulo, que é a principal cidade desse país, que é a região da [rua] 25 de Março, que é um lugar onde encontra-se de tudo, e não há jeito - como o senhor acabou de falar - os países não têm condições de segurar isso. Nessa sua pesquisa, nos países de maior poder aquisitivo, como os Estados Unidos, Inglaterra, que não conseguem, o que dirá o Brasil? Como é que o senhor analisa, vê essa ascensão do contrabando? Porque antes era só o contrabando. Nós tínhamos aqui em São Paulo, há alguns anos atrás, uma cidade pequena, no interior de São Paulo, chamada Vera Cruz, próxima à Marília, e que era o centro do contrabando. O contrabando saía do Paraguai, ia para Marília, para Vera Cruz, e depois era trazido para as grandes capitais, mais para São Paulo principalmente. Agora não, chegam os contêineres, chega tudo aqui. Eu queria que o senhor fizesse uma análise, exatamente situando a nossa situação.

Moisés Naim: É muito interessante, porque a situação do Brasil não difere muito da situação de outros países. No Brasil aconteceu o que acontece no mundo todo, ou seja, mercados pequenos... O contrabando é tão antigo quanto a humanidade. Fala-se de contrabando na Bíblia, nos papiros egípcios. Os mercados negros sempre existiram. O que aconteceu a partir da década de 90 foi uma revolução nas comunicações, nos transportes, nas cargas. O contêiner é um instrumento importante, que permite e facilita o comércio internacional. A internet, os cartões pré-pagos dos celulares, os cartões para fazer saques nos caixas automáticos em qualquer lugar do mundo. Esses são instrumentos que facilitaram muito e fizeram o contrabando, que sempre existiu, adquirir uma dimensão mundial. É isso que acontece no Brasil. Coisas que sempre existiram ganharam dimensões muito maiores e se “transnacionalizaram”. Antes era um negócio de brasileiros, agora esses brasileiros estão conectados a redes mundiais na China, na Coréia, na Europa. Há partes desses negócios que são frívolas – a carteira elegante que se compra e tudo mais - mas há partes que são horríveis. Há uma rede internacional de tráfico de mulheres brasileiras, que vão parar no Japão. É uma rede muito sofisticada, que funciona em conexão com todas essas redes. É um dos temas centrais do livro. Sempre ouvimos falar do tráfico de drogas, do tráfico de armas e de pessoas. O livro mostra que estão todos conectados e que os especialistas nesses tráficos são especialistas em logística, em transporte, em comunicação e em transporte de produtos ilegalmente em todo o mundo.

Renato Lombardi: Se organiza muito mais. O crime organizado hoje é o crime organizado mesmo.

Moisés Naim: Exato, com a diferença de que não é o crime organizado de antes, que era uma pirâmide com um chefe e toda uma estrutura. Se alguém derrubasse o chefe, o ponto mais alto, toda estrutura era afetada. Agora são células que funcionam de maneira conectada e muito ágil, que não têm uma centralização, não têm um controle central. É uma estrutura muito descentralizada.

Cláudio Weber Abramo: O seu livro é um livro muito pessimista sob o ponto de vista - como eu leio - da capacidade de controle desses fenômenos porque as organizações criminosas vão aqui e os governos vão correndo atrás. Existe uma quase impossibilidade de os mecanismos de controles nacionais fazerem frente a isso, assim eu o leio. Nesse quadro, eu lhe pergunto o seguinte: uma das saídas para isso é fortalecer os mecanismos internacionais, certas convenções e a adoção de mecanismos padronizados de controle. Agora, existem enormes resistências a isso. A primeira delas vem - ela se fere no ponto que me parece crucial em todo o processo de tráfico internacional de mulheres, ou de pirataria de produtos, etc. - que é a questão das transações financeiras. Quer dizer, tudo isso passa pelo mercado financeiro, isso é o fulcro [suporte, apoio, alicerce] do sistema. E existem resistências extraordinárias para que se discipline os fluxos internacionais de dinheiro. Eu lhe pergunto se isso não coloca um prego no caixão quase na possibilidade de controle desses fenômenos.

Moisés Naim: Primeiro quero esclarecer que eu não sou pessimista. Eu acho – e esta é uma das conclusões do livro – que se você acredita no poder das idéias, precisa ser mais otimista. À medida que o mundo tiver mais consciência disso, mais possibilidade haverá. Vou dar um exemplo. O tabaco vicia muito. Fumar cigarros vicia muito. No entanto, hoje nos EUA, o consumo de tabaco é o mais baixo dos últimos 54 anos. Há tecnologia, capacidade social, experiência e instituições que podem fazer uma população abandonar uma conduta de vício de maneira voluntária, não utilizando instrumentos policiais. Se é assim, quer dizer que há esperança em outros mercados. Não estou dizendo... Não ingênuo. Sou otimista, mas não ingênuo. Muitos mercados são impulsionados por um lucro gigantesco e têm capacidades e motivações que não serão eliminadas, mas é possível fazer muito mais do que se faz agora se houver mais consciência da dimensão do problema e de como funciona. Nesse sentido, sua pergunta é muito importante, porque vai ao cerne de um dos problemas, que são os mercados financeiros. No final, tudo termina em dinheiro, e esse dinheiro faz parte dos mercados financeiros. Houve muito avanço na tentativa de controlar e regulamentar os crimes financeiros, no entanto, uma coisa que aconteceu nos anos 90, foi uma explosão do sistema financeiro mundial. Explosão no sentido da proliferação de centros financeiros, de regulamentação financeira, aumento de tecnologias. Hoje em dia é muito fácil passar o dinheiro de um continente a outro à velocidade da luz, por meio de um computador. Isso tem aspectos que podem ser controlados. Ao mesmo tempo, uma boa notícia: essas transações são mais controláveis, porque deixam... há papéis, há evidências. Essas transações acontecem de maneira muito mais aferível e deixam um rastro de informação. Acho que estamos começando um processo de experimentação. Houve avanços, mas certamente continua muito mais fácil lavar dinheiro, e o processo está começando agora. Você tem razão. No mundo financeiro está uma parte importante da solução.

Luis Nassif: Professor, o senhor coloca no seu livro a importância do estado nacional como uma alavanca para tentar coibir esse tipo de operação. Nos anos 90, a tendência foi do livre fluxo de capitais, que o senhor coloca como um dos fatores de proliferação dessa lavagem de dinheiro. O Brasil, em 96, 97, teve uma CPI dos precatórios [Comissão Parlamentar de Inquérito criada para apurar as irregularidades relativas à autorização, emissão, e negociação de títulos públicos estaduais e municipais nos exercícios de 1995 a 1996] onde ficou muito clara toda essa interligação, esse submundo onde transitava – aí que entra o problema – o dinheiro de grandes corporações, transitava o grande capital brasileiro que não quer pagar imposto. Você tem hoje esse grande capital que praticamente não paga imposto, até operadores de mercado que recebem bônus lá fora, você tem a engenharia fiscal e tem também o caixa-dois, tem o crime organizado. Daí, quando vai avançar mais, tem o dinheiro da "caixinha" política, tudo implicado dentro de uma mesma lógica. A questão fiscal, hoje, nós temos empresas que são controladas por fundos, até nos Estados Unidos,  Delaware e outros lá, fora a grande [Ilhas] Caimãs e tudo, que você não sabe quem são os controladores. À medida que você tem, como nós tivemos também no final do século XIX, na América Latina, esse livre fluxo de capitais, mas você tem também a parceria entre o político, o grande capital nacional que não quer pagar imposto, que não é necessariamente criminoso, o grande capital nacional criminoso e o capital internacional, qual a força...? O 11 de setembro [data em que dois aviões sequestrados por terroristas do Talibã se chocaram contra as Torres Gêmeas, em Nova Iorque, causando milhares de mortes] foi um fator que ajudou a avançar em alguns controles, mas como o senhor vê a tendência para se chegar a uma legislação internacional, por exemplo, que obrigue a abertura de informações sobre o correntista que tenha, que atue nos diversos países? Porque se depender das nações, a contaminação do sistema político é muito grande, não é meramente um pé-de-chinelo, a gente sabe disso.

Moisés Naim: Há varias coisas. Primeiro é preciso ter cuidado com a tentação de achar que o Estado pode controlar. O Estado pode fazer mais e pode fazer melhor, se fizer menos. Se o Estado tiver de fazer tudo em todo lugar, ele será fraco. Para fortalecer a eficiência do Estado, é preciso que ele seja mais seletivo e inteligente com relação ao que procura controlar e regulamentar. Nesse sentido, regulamentar todo o fluxo financeiro de todo o mundo, todas as transações, todos os fundos, todos os instrumentos financeiros e instituições é perigoso, porque cria a ilusão de regulamentação, mas não gera regulamentação. É melhor fazer intervenções bem focalizadas em atividades, instituições e lugares que têm perfis muito específicos. Mas você tem razão ao dizer que a solução... Nenhum país poderá progredir se atuar sozinho. Nem os países mais poderosos do mundo, os que têm os sistemas mais sofisticados, os que têm mais dinheiro ou os que têm maior capacidade militar têm esperança de progredir atuando sozinhos. Esse é um problema mundial e requer soluções em que os países colaborem entre si. A colaboração entre países é sempre desejável, mas é a maneira mais ineficiente de organizar a atividade humana. A atividade multilateral é sempre muito ineficiente.

Raul Juste Lores: Hoje há enclaves de dinheiro sujo nos países ricos. Você pega em Miami, os grandes corruptos latino-americanos, os grandes traficantes de drogas do México, dos Estados Unidos, da Colômbia, estão em Miami, de onde comandam seus negócios impunemente. Em Marbella, na Espanha, a máfia russa, a máfia árabe, estão lá também aparentemente intocadas. O senhor acredita que esses enclaves de dinheiro sujo, tão intocados, vão se multiplicar nos próximos anos? E os países ricos nessa área são tão permissivos como os países pobres?

Moisés Naim: Sim, há uma proliferação. É verdade que a partir do 11 de setembro houve uma preocupação maior em cortar a ajuda financeira ao terrorismo. Para isso houve várias iniciativas, que tentaram controlar melhor o tráfico internacional de dinheiro. É claro que há núcleos mundiais, em Miami, na ilha de Manhattan, em Londres. Há indícios de que Londres seja um ponto importante do tráfico de dinheiro do mundo. Não é preciso ir às Ilhas Caimã e a certas ilhas do Pacífico para lavar dinheiro. Pode-se fazer isso em Manhattan e em Londres. Isso indica que esse é um problema com o qual os países mais ricos também têm dificuldades. Essas dificuldades, às vezes, são falta de motivação, mas também são dificuldades técnicas importantes. Não é simples, do ponto de vista técnico, diante da complexidade e da velocidade que o sistema financeiro tem hoje. Não é simples uma autoridade monetária regulamentadora de um país ter sucesso no tráfico. Repito, é preciso tentar ser mais seletivo, ir atrás de certas atividades que tenham um perfil muito mais propenso a isso. E também é importante descriminalizar muitas coisas. É preciso tentar fazer alguns desses tráficos... Repito, a única esperança do Estado é atuar de maneira muito central. Isso não é possível se tudo for criminalizado.

Paulo Markun: Doutor Moisés, antes de ir para o intervalo, vamos à pergunta de Walter Maierovitch, presidente do Instituto Giovanni Falcone sobre crimes internacionais.

[VT de Walter Maierovitch]: Eu gostaria de lembrar a convenção das Nações Unidas sobre criminalidade organizada sem fronteiras. Na abertura da convenção de Palermo, o secretário geral da ONU, Kofi Annan, disse que o lucro das organizações criminosas cresce 40 a 50% ao ano. Eu tive a oportunidade, nessa convenção, de dividir uma exposição e debates com o procurador nacional anti-máfia, um procurador italiano. E nós lembramos Giovanni Falcone [juiz italiano assassinado pela máfia em 1992], que foi o mártir dessa luta contra o crime organizado e que recomendava, em primeiro lugar, cooperação internacional e, em segundo, enfrentar, desfalcar a economia movimentada pelo crime organizado. A convenção foi no ano 2000, nós estamos em 2006. Pois bem, o entrevistado é otimista ou é pessimista com relação a bons resultados no contraste a esse fenômeno?

Moisés Naim: A Itália é um ótimo exemplo do progresso, embora a máfia na Itália continue sendo importante e a corrupção na Itália seja muito forte e a política italiana tenha ligações fortes com a corrupção, o fato é que os italianos e a sociedade italiana conseguiram criar anticorpos capazes de avançar no combate à máfia. Há o caso do procurador Falcone, que foi assassinado por combater a máfia, mas ele e outros como ele conseguiram progressos. Nos EUA a máfia também existia, mas hoje em dia, a máfia tradicional nesse país já não tem a mesma força. São exemplos que mostram que quando uma sociedade tem motivação e idéias claras... Volto a dizer. Enquanto não houver mais consciência da dimensão disso, de sua importância e da ameaça que representa para nós, enquanto isso não gerar vontade política de atuar e, sobretudo, que haja idéias mais claras de como funciona e quais são as melhores formas de intervenção, enquanto isso não acontecer, não é possível ser otimista.

[Comentarista]: Moisés Naim conta que seu interesse pelo tema do comércio ilícito nasceu em uma década de trabalho sobre as surpresas da globalização. Como editor da revista Foreign Policy, Naim foi pesquisar as conseqüências das transformações políticas e econômicas dos anos 90, e começou a perceber que nesse mundo novo as atividades criminosas tinham um papel mais atuante e mais influente do que se imaginava, e que as notícias sobre o comércio ilícito nos jornais de qualquer lugar do mundo tinham algo em comum: eram a manifestação de um mesmo e único fenômeno global alimentado pelas novas tecnologias, pelas mudanças políticas e disposto a tudo para obter lucros. Para Moisés Naim, as redes de comerciantes de bens ilícitos, sem pátria, estão mudando o mundo tanto quanto os terroristas, e talvez até mais. Mas o mundo, atordoado pelo terror, ainda não se deu conta.

Paulo Markun: Doutor Moisés, eu queria começar pelo seguinte. O senhor fez essa passagem do campo da economia, das relações internacionais e questões como as que interessam para o Banco Mundial para o campo que até bem pouco tempo era restrito à área policial, no máximo à Justiça. O senhor acha que isso pode ser um caminho para enfrentar a questão? Quer dizer, deixar de tratar isso como uma questão policial pura e simplesmente?

Moisés Naim: Um dos erros que o mundo cometeu para entender esse problema foi encará-lo apenas do ponto de vista moral, apenas do ponto de vista policial e criminoso e apenas do ponto de vista nacional. É um problema moral, mas também econômico. Não estamos falando de gente que não tem moral, estamos falando de mercados que geram lucros imensos. São mercados com centenas de milhares de consumidores com grande apetite para comprar e centenas de muitos milhares de vendedores agressivos querendo vender. Há o mercado. É difícil julgá-lo apenas em termos morais. É preciso considerar não apenas esse lado moral e entender também como funcionam esses mercados. Ou seja, até agora tratamos a questão apenas do ponto de vista criminal, como um problema policial. Já estamos vendo que as dimensões vão muito alem do que a polícia pode fazer. Dizer que esse é um problema do departamento de polícia é uma ilusão. Isso tem dimensões de segurança nacional, tem dimensões internacionais, econômicas, financeiras etc. Vai além do problema policial. E a outra ilusão da qual já falei, é que o problema seja nacional. Sim, é nacional mas tem escala mundial. Qualquer solução nacional está condenada ao fracasso, porque é preciso haver uma coordenação internacional.

Roberto Porto: O senhor sustenta no seu livro que o sistema de combate aos ilícitos hoje não funciona e que nós deveríamos começar a pedir, a diminuir o número de coisas proibidas que pedimos ao governo para controlar. O senhor acha que esse sistema funcionaria num país como o Brasil? Eu queria citar como exemplo a pirataria. Ela primordialmente deixaria de ser um problema do Estado e seria diretamente ligada às empresas lesadas, por exemplo?

Moisés Naim: Sim. No caso, o que vai acontecer, em parte, é encarar uma situação que é real. O tráfico de drogas, o tráfico de maconha no Brasil é uma realidade, independentemente do que o Estado e as leis digam. As leis financeiras sobre lavagem de dinheiro no Brasil estão entre as melhores do mundo, mas a capacidade de execução e de pôr essas leis em ação é muito fraca. Parte do problema é entender o que se deve descriminalizar. Para isso, é muito importante entender qual desses tráficos ameaça mais a sociedade, a democracia, o funcionamento do sistema político, a vida dos cidadãos. Há diferentes tipos de tráfico. Há os tráficos que realmente são muito perigosos para a sociedade. O tráfico de pessoas, de crianças, de mulheres, de órgãos humanos, o tráfico de drogas pesadas como a heroína, são ameaças. O tráfico de armas, sobretudo as de destruição em massa. A sociedade deve pôr em ordem hierárquica as ameaças e aceitar que há outros ilícitos que existem e que são realidade, independentemente das leis.

Lorenzo Parodi: Doutor Moisés, novamente sobre esse tema, que eu acho bastante importante. O senhor escreveu, declarou, constatou na realidade um fato: que grande parte desses crimes são interligados um com o outro, tráfico com pirataria, com lavagem de dinheiro, etc. Mas isso é um fato, acho que tem pouco a se discutir sobre isso. Também constatou, isto é bastante evidente, que é muito difícil impedir que milhões de compradores comprem de milhões de vendedores quando ambos estão querendo se encontrar. Aí, como proposta, veio justamente descriminalizar ou legalizar situações de menor risco ou de menor dano. Duas perguntas sobre esse ponto. Primeiro, não acha que legalizando ou descriminalizando situações de menor risco, que não deixam de ser crimes hoje, estaria facilitando o processo criminoso, que, como dissemos aqui, são interligados? Portanto, eliminar, facilitar uma etapa desse processo, facilitaria de forma geral o processo como um todo, primeiro. Segundo, não acha que uma atitude desse tipo seja um sinal negativo frente à sociedade? Uma espécie de derrota que possa acabar sendo um incentivo aos criminosos para... outros crimes menores, nem que sejam menores, mas...

Moisés Naim: Ótima pergunta. Acho que você tem razão. Sei que a descriminalização tem custos. Não acho que seja gratuita, que as propostas que faço sejam fáceis. No entanto, não sei qual é a alternativa, mas tenho certeza de que a situação que temos agora tem custos e não leva a avanços. A criminalização existe em todos os lugares do mundo e já faz muitos anos. Qual é a evidência de progresso? Onde há um exemplo de que as coisas estejam melhorando? Não há. Tenho certeza de que o que temos agora não funciona. Acho que esse é um consenso fácil. Acho que isso nos leva a experimentar alternativas que sempre terão custos. Nada é gratuito, haverá custos. Custos sociais, financeiros, sinais equivocados etc., mas é preciso fazer experiências com novas formas, porque não há dúvida de que o que estamos fazendo agora não funciona.

Raul Juste Lores: O senhor fala de centralização, eu perguntaria, quais seriam esses crimes menores que, se o senhor pudesse hoje, descriminalizaria?

Moisés Naim: Por exemplo, acho que é preciso descriminalizar o uso de maconha. Para todos os efeitos práticos, é um produto de muito consumo e de fácil obtenção no Brasil e no mundo todo. Acho que, em certas falsificações, é preciso passar a proteção da propriedade intelectual do governo para os donos. É preciso dizer aos produtores de programas, à Microsoft e empresas assim, que não peçam proteção ao governo, porque o governo, na verdade, não as protege. É uma ilusão. A Microsoft é que deve gastar dinheiro para desenvolver tecnologias que evitem que seus produtos sejam copiados. A solução para aqueles que não querem ser copiados não são os advogados, são os tecnólogos. É o investimento em tecnologia que vai proteger a propriedade intelectual, não a proteção dos advogados e do governo, porque na verdade, no mundo inteiro, nem os advogados nem o governo têm tido sucesso em impedir a cópia. A cópia é ampla, está crescendo, e está prejudicando indústrias importantes. A indústria do livro está sofrendo e outras também. É muito importante. Em alguns setores, a tecnologia não será a solução. No caso dos livros, sei que será muito difícil que a tecnologia proteja contra a cópia. Nesse caso é preciso haver algum outro tipo de intervenção, mas o fato é que tudo tem a ver, afinal, com ser mais sinceridade sobre a situação. Nós vivemos no mundo uma grande falta de sinceridade com relação a esses tráficos.

Luis Nassif: Professor, o que deu para perceber é uma angústia do senhor com o processo que está proliferando. O senhor acha que tem que ter foco, e ter foco é descriminalizar algumas atividades. O Lorenzo colocou muito bem, são vasos comunicantes. Talvez o foco não ajude porque pode criar outras facilidades. O único foco que a gente vê que congrega tudo isso é o livre fluxo de capitais, por onde passa esse dinheiro, por onde o dinheiro vai de uma atividade ilícita para atividade lícita, volta, esfria, esquenta... E a gente vê que o livre fluxo de capitais, que foi algo que ocorreu muito também no século XIX, levando também ao avanço do crime organizado, ele aprofunda as desigualdades, tem impactos fiscais terríveis, porque o grande capital não paga imposto, provoca desequilíbrio entre nações, crises cambiais, é um grande incentivo ao crime organizado. O senhor acredita, na condição de economista do MIT [Instituto Tecnológico de Massachusetts], que esse ciclo de liberalização ficou disfuncional a ponto de nós, nos próximos anos, podermos esperar formas de controle sobre esses fluxos ou virou já uma tendência irreversível, essa liberalização?

Moisés Naim: Eu não duvido que a liberalização financeira mundial tenha tido custos, mas também não duvido que o controle financeiro tenha custos ainda maiores. A ilusão é dizer que há uma desregulamentação financeira e, portanto, a forma de controlar os custos é levar os governos a intervir e controlar os fluxos financeiros. Se você fizer isso, vai gerar enorme corrupção. Nessa área, a tentação de intervenção do governo gera imensas distorções, gera uma imensa corrupção. Não é justa – por mais que haja custos em relação ao controle de capitais – a idéia de que haverá funcionários públicos que vão intervir e decidir, que vão mediar um sistema muito sofisticado e que isso seja solução, é uma idéia muito perigosa, porque de novo é a ilusão de que o Estado consegue conter o que é uma avalanche de motivações e com lucros imensos. Isso e a necessidade de que...

Luis Nassif: O senhor me desculpe, mas o Estado, a Receita Federal nos Estados Unidos ou no Brasil, em qualquer parte do mundo, o Ministério Público, eles têm por função criar mecanismos de controle... A receita americana é muito sofisticada. Ela exige que você defina, quando tem saída de capital, qual é a aplicação final do capital. Quer dizer, a questão finalística lá de quem que é o dono do capital, tudo mais, então esses controles a que me refiro são controles que são tradicionalmente de Estado, que são sujeitos à corrupção, como toda estrutura, mas que o Estado não pode abdicar, ele tem que aprofundar.

Moisés Naim: Sim. Com relação aos EUA, a partir de 11 de setembro, houve uma grande mobilização de regulamentações financeiras. Os bancos foram obrigados a conhecer seus clientes, saber os nomes, isso que você disse, todas essas coisas. Este ano saiu um livro do Instituto de Economia Internacional de Washington, de Truman e Peter Reuter [Chasing dirty money: the fight against money laundering (Perseguição ao dinheiro sujo: a luta contra a lavagem de dinheiro)]. Por quatro anos, eles estudaram como era o funcionamento do combate à lavagem de dinheiro nos EUA e chegaram à conclusão, com métodos muito sofisticados, de que a probabilidade, nos EUA, de capturar e identificar quem faz lavagem de dinheiro é de 5%. 95% deles escapam. E estamos falando de um dos países mais sofisticados do mundo.

Luis Nassif: Mas o senhor vê que a atuação das grandes empresas norte-americanas, fora dos Estados Unidos, mudou substancialmente. Aqueles escândalos corporativos que nós tínhamos de grandes companhias, na Argentina, no Brasil, nós sentimos aqui diferença na forma de atuação dessas empresas.

Moisés Naim: Nunca saberemos se o que desapareceu foi a visibilidade ou a conduta. É possível que as condutas continuem, mas de maneira mais sofisticada e subterrânea. O fato de não vermos não significa que elas não existam. As forças, as motivações e os lucros que as orientavam antes não desapareceram. Nessa área é muito importante diferenciar entre a regulamentação financeira de empresas que não existem para ser criminosas e de empresas cujo único propósito é a criminalidade. Há organizações, há empresas que são normais e legais e que ocasionalmente cometem um crime pelo qual devem ser punidas. Outras empresas são criadas e existem apenas para cometer crimes. É muito importante entender a diferença entre ambas.

Cláudio Weber Abramo: Eu queria só fazer uma observação a respeito, não é a minha pergunta ainda, mas com respeito à possibilidade de se coibir, por exemplo, a pirataria de software, colocando a responsabilidade sobre as empresas, isso é impossível, é impossível a custo razoável. A Microsoft, por exemplo, que foi mencionada, como tantas outras, buscam isso o tempo todo; em questão de horas, os mecanismos são colocados em prática para evitar e são quebrados, não funciona dessa maneira. A menos que o custo do produto fique absolutamente inatingível, o que não é uma solução. Bom, mas não era essa a minha pergunta. A minha pergunta é a seguinte: eu queria fechar sobre um tipo de crime que não envolve tráfico de coisas físicas, coisas, incluindo os seres humanos, que é o problema da corrupção. A corrupção se dá no interior de Estados nacionais, embora a corrupção internacional se dê, se materialize dentro de um Estado nacional e se dê – compartilho da sua apreciação – isso não é um problema moral, é um problema que tem a ver com a ineficiência dos mecanismos regulatórios nacionais. Nesse sentido, para esse particular, um país como o Brasil, a Venezuela, o Peru, não importa, não poderá recorrer a auxílio internacional, apenas aqueles que dizem respeito a convenções, como a da OCDE [Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais], a convenção da OEA [Organização dos Estados Americanos], ou a federação da ONU [Organização das Nações Unidas] contra a corrupção, etc. Quer dizer, não é possível, acredito - pergunto aqui qual é o seu ponto de vista a esse respeito - atribuir a terceiros a responsabilidade por coibir corrupção. Então vai mais ou menos na linha do Nassif. O Estado brasileiro não pode abdicar do aperfeiçoamento dos seus mecanismos de controle sobre atos de corrupção, e uma das soluções para isso não pode ser descriminalizar atos de corrupção. Atos de corrupção são atos de corrupção e não tem jeito. Não vamos fazer como estão querendo fazer aí, dizer que caixa-dois eleitoral não é crime. Quer dizer, é claro que é crime e precisa ser coibido. Não se pode entrar nesse tipo de ficção. Quero saber qual é o seu ponto de vista sobre o problema da corrupção.

Moisés Naim: Eu não acho de maneira alguma que o Estado deva abdicar da luta contra a corrupção. Corrupção é corrupção, e deve ser punida, e é um problema nacional. Procurar desculpas fora muitas vezes é simplesmente um golpe para desviar a atenção de um problema nacional. Também não estou dizendo que o Estado deva abrir mão desses controles. Pelo contrário, quero um Estado forte e inteligente. Repito: o Estado nunca será forte e inteligente se tiver de fazer tudo. A única esperança é ser mais inteligente e seletivo. Com relação à corrupção, é isso mesmo. A corrupção é um câncer importante nos nossos países, na América Latina. No entanto, vejo com muita preocupação a corrupção da guerra contra a corrupção, uma vez que em toda a América Latina, a corrupção se tornou o tema central da vida política dos países, por muitas razões.

Cláudio Weber Abramo: Objeto de demagogia também, não é?

Moisés Naim: Por muitas razões. Em primeiro lugar – e mais importante – porque a corrupção é importante e existe, ela impede o progresso dos países, cria todo tipo de distorção e tudo mais. O problema é fazer uma guerra à corrupção que é basicamente uma guerra de escândalos. São mais de 10 ou 15 anos em que a corrupção tornou-se um tema forte na discussão nacional dos países.

Cláudio Weber Abramo: E uma guerra de palavras.

Moisés Naim: É basicamente uma guerra de escândalos, midiática, na qual há uma rotatividade periódica e que leva à eleição de líderes inadequados. E não é só na América Latina, mas no mundo. É importante lembrar que Putin [Vladimir Putin (1952-), presidente da Rússia desde 2000] foi eleito com uma plataforma eleitoral de denúncias contra a corrupção, e hoje a Rússia é uma grande... Berlusconi [Silvio Berlusconi (1936-), primeiro-ministro da Itália por quatro mandatos, o último começou em 2008] foi eleito na Itália com plataforma de luta contra a corrupção. Hugo Chávez [(1954-),  eleito presidente em 1999], na Venezuela, foi eleito com plataforma contra a corrupção e hoje, na Venezuela, há mais corrupção do que nunca num país que sempre teve muita corrupção. A corrupção está se tornando o único tema de debate nacional e exclui outros temas, a educação, a infra-estrutura...

Cláudio Weber Abramo: Desenvolvimento.

Moisés Naim: E exclui porque não se pode fazer nada e não vale a pena discutir nada se não for corrupção. Coisa que é verdade, mas temos muitos diagnósticos, muitos escândalos e pouca solução.

Roberto Porto: Nós estamos tratando do problema de corrupção, corrupção estatal, e obviamente o combate a essa corrupção passa por defasagem de salário. O senhor menciona que há no mundo uma defasagem entre o setor público e o setor privado que gira em torno de 20%. Acredito que num país como o Brasil esse índice é muito maior. Para o senhor ter uma idéia, hoje no Brasil, o salário de um delegado de polícia inicial é de três mil e cem reais, gira em torno de três mil e cem reais. Ou seja, é muito pouco em relação ao setor privado. O senhor sustenta ainda que a solução não estaria num aumento do salário e sim em abordagens mais inovadoras. Como é possível, num país como o Brasil, se falar em combate ao crime organizado – obviamente que a origem não está só aí –  mas se falar em crime organizado com delegado de polícia ganhando três mil e cem reais?

Moisés Naim: Esse é o tema central, é uma pergunta importantíssima. E não é só no Brasil, é no mundo em geral. Estamos pedindo a esses heróis, muitas vezes, que enfrentem os criminosos mais sofisticados, mais ricos, mais agressivos e mais inteligentes do mundo e que arrisquem suas vidas, mas eles ganham mal, não têm plano de carreira, não têm a possibilidade de dar um futuro à sua família e tudo mais. Há uma desproporção entre a sofisticação e o dinheiro que têm as redes criminosas e a sofisticação e o dinheiro que a sociedade tem para controlar isso. Muitas vezes essas redes de criminosos têm tecnologias muito mais sofisticadas de comunicação, de criptografia de comunicações, e inclusive de armas, de instrumentos financeiros. São muito mais sofisticados. Mais uma vez, se você está no negócio do crime e tem muito dinheiro, poderá contratar os melhores talentos do mundo. Os melhores advogados, os melhores financistas, os melhores especialistas em logísticas etc. Essa desproporção que você mencionou é um problema importantíssimo.

Paulo Markun: Moisés Naim, entrevistado de hoje no Roda Viva, é um economista venezuelano, editor da Foreign Policy, revista americana especializada em política e economia internacional, autor de livros e artigos sobre economia, comércio, globalização, que se tornou um estudioso do comércio ilegal, que hoje se espalha pelo mundo através de redes organizadas, muitas vezes protegidas por autoridades. Aliás, num certo sentido, é essa a direção da pergunta de Emerson Kapaz do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, entidade que trabalha contra a sonegação de impostos e o comércio ilegal de produtos. Vamos ver.

[VT de Emerson Kapaz]: Doutor Moisés, no livro que o senhor fala sobre o ilícito, o ilegal, as ilegalidades, além do caráter econômico, tem uma questão que nos preocupa muito, que é uma questão cultural, ligada ao consumidor, ao cidadão, que é a questão da flacidez ética, da frouxidão moral que se tem hoje, não só no Brasil como em outros países do mundo. Como é que o senhor encara essa questão? Como, por exemplo, as elites poderiam servir de exemplo, em termos de atitude, para todo o resto da população, e não cumprem esse papel?

Moisés Naim: Sim, já falamos sobre isso, e meu amigo Emerson Kapaz tem razão. Há uma tolerância, uma complacência moral com relação a essas coisas, mas volto a dizer que é complicado concentrar tudo em tentar impor condições éticas a instintos humanos muito básicos. Se um estudante precisa ter acesso a um programa de computador, por exemplo, e alguém os vende bem barato, é muito básico o instinto de comprar. As mulheres da Guatemala, que deixam a família e arriscam a vida para ir aos EUA trabalhar ilegalmente para poder dar comida aos filhos estão cometendo um crime, mas ao mesmo tempo estão respondendo a instintos humanos básicos, em que a moral... O que seria moral aí? Seria ela cumprir a lei e não ser imigrante ilegal ou fazer o necessário para dar um futuro, comida e educação aos filhos?

Renato Lombardi: Queria só, antes de fazer a pergunta, dizer que hoje, São Paulo, a maior capital desse país, se transformou numa grande feira: os vendedores ambulantes cresceram muito nos últimos anos, o mercado informal, e não há como segurar isso. E a cada dia que passa um número maior - e os fornecedores também - a cada dia que passa, eles aumentam, os fornecedores da pirataria, do contrabando. Eu vou dar aqui uns números ao senhor, que o senhor deve saber exatamente, pois é um estudioso nesse assunto, os números são do Conselho Nacional de Combate à Pirataria no Brasil. A pirataria no Brasil movimenta 56 bilhões de reais por ano, movimentou em 2004, eliminou dois milhões de empregos formais em 2004, de carteira assinada. O governo brasileiro deixou de arrecadar oito bilhões e quatrocentos milhões em impostos por causa da pirataria, e entre 2004 e 2005 foram apreendidos mais de 100 milhões de dólares em mercadorias pirateadas e contrabandeadas como CDs, DVDs, softwares, tênis, bolsas, relógios, cigarros e bebidas. A apreensão, pelo que a gente sabe, que os combates, que os setores da Polícia Federal, a Polícia Civil, Polícia Militar, a apreensão é pequena perto do que existe aqui. A apreensão deveria ser muito maior porque os setores de combate são muitos, tem pouca coisa para fazer, pouca gente... Tanto é que quando se faz um grande trabalho, a Polícia Federal, que é quem investiga esse tipo de crime, pirataria, contrabando, traz policiais do Brasil inteiro para formar uma equipe para uma determinada cidade. Esses números impressionam o senhor? O que senhor diz sobre esses números aqui, num país como o nosso, no Brasil?

Moisés Naim: Esses números resultam da convergência de duas tendências. Uma é a globalização e a outra é a “informalização” da economia na América Latina. Os vendedores ambulantes, os vendedores informais são o final de uma cadeia mundial que provavelmente começa na China ou em outro lugar. Eles são a ponta do iceberg. Nesse sentido, fazem parte de um processo que vai além do Brasil. A segunda é que a economia brasileira, como a maior parte das economias da América Latina, não produz empregos formais estáveis suficientes, produz muitos empregos informais. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento, 50% dos trabalhadores da América Latina têm trabalho informal. A América Latina parece muito ineficiente para criar postos de trabalho formal e muito eficiente para gerar postos de trabalho ilícitos. Em muitos sentidos, a América Latina é um continente ilícito. Uma parte importante das exportações da América Latina vem das drogas. Uma parte muito importante da entrada de dinheiro vem de remessas de latino-americanos que vivem em outros países e mandam dinheiro a seus familiares e muitos deles são ilegais. Os números que você citou são impressionantes no que se refere ao volume do ilícito no Brasil. Há muitas razões para achar que a América Latina é um continente ilícito em sua economia. Uma forma de combater isso é tornar as coisas ilícitas mais lícitas. É importante que partes dessas transações sejam levadas à economia formal.

Renato Lombardi: Quer dizer, nos tornamos um grande setor que favorece a criminalidade?

Moisés Naim: Há uma convergência de regulamentações públicas, da situação da economia e até uma dimensão cultural que favorece a informalidade. Nem toda informalidade é ilegal, nem toda informalidade é ilícita. Há parte da informalidade que apenas responde a instintos humanos muito básicos. Se você não tem como conseguir dinheiro para alimentar sua família, você também vai ser vendedor ambulante, se for a única opção.

Luis Nassif: Professor, você sabe que a Inglaterra no século XIX, em sua trajetória para se tornar uma grande potência, ela, para contornar as barreiras comerciais dos diversos países, recorreu ao contrabando, recorreu ao superfaturamento, a todo estoque de jogadas para conseguir colocar os seus produtos. Aqui no Brasil, especialmente em São Paulo, a gente vê uma rede fantástica de colocação de produtos da Coréia, é fantástico.

Paulo Markun: Da China.

Luis Nassif: Da China, da Coréia. O senhor acredita que por trás disso tem uma estratégia nacional?

Moisés Naim: Não. Primeiro porque vi isso em outros lugares do mundo. Isso que você descreveu não é só no Brasil...

Luis Nassif: Nacional, que eu digo, é da Coréia e da China para exportar.

Moisés Naim: Não tenho dúvidas. Na China, a produção de produtos copiados é uma parte importante da economia. Há centenas de milhares, talvez milhões de famílias na China que vivem disso e cuja subsistência depende da fabricação, distribuição e comercialização de produtos copiados. O mesmo se dá em outros países. É verdade, isso existe. Não sei se é uma estratégia nacional deliberada, mas na China há muita complacência. É uma indústria importantíssima. Todos os governos tendem a ajudar e proteger as indústrias mais importantes, que geram mais empregos e mais divisas. Em todo país, é uma conduta normal que o governo, com uma indústria que gere centenas de milhares de empregos, seja muito cuidadoso com ela.

Lorenzo Parodi: Doutor Moisés, no seu livro o senhor escreve, e é um fato também que a luta aos ilícitos é um processo complexo, e dois dos fatores que o senhor menciona são a vontade política e a participação de todos. Eu acho que a vontade política depende, em boa parte, da qualidade dos políticos, e um outro fator relevante é a corrupção. Por sua vez, a participação de todos depende, eu acredito, de educação, porque para participar precisa entender do que se participa, e de informação de qualidade. Esses são todos os fatores coligados, porque a qualidade dos políticos também depende de educação, porque se não tem um povo educado, não vai eleger políticos, se não tem uma informação de qualidade, não vão saber combater corrupção, etc.  Quais são os caminhos para tentar resolver uma equação desse tipo?

Moisés Naim: Percebi que os políticos são muito sensíveis aos incentivos da sociedade. Os políticos vão responder ao que a sociedade pedir. À medida que a sociedade não pedir atuação nesses setores, os políticos não terão incentivos para fazer isso. Os políticos raramente... São muitos poucos os líderes que se adiantam à sociedade. Os líderes lêem suas sociedades, entendem quais são os limites do que a sociedade tolera, e alguns vão mais além. Há líderes capazes de levar suas sociedades além do que elas pedem, mas o normal é que respondam ao ambiente. Nesse sentido, acho que é preciso pedir mais aos líderes políticos do Brasil e de todo o mundo, para agir no sentido de dar mais eficiência aos sistemas policiais, respeitar mais os funcionários públicos que se arriscam para lutar contra isso. Que sejam mais inteligentes nas regulamentações, que trabalhem mais internacionalmente e, sobretudo, que reconheçam a necessidade de divulgar mais a ameaça que tudo isso significa. Um dos problemas desses crimes é que há uma certa tolerância social. Muitos desses crimes parecem ser crimes sem vítimas, que quando alguém compra um produto falsificado ou quando se lava dinheiro, não há vítimas, e portanto, moralmente, não há maiores problemas. Acho que isso é importante também. É importante não só dar um tratamento moral, mas também não esquecer a parte moral, e nesse sentido a educação – não só a escola, mas uma educação coletiva, pública – é muito importante.

[Comentarista]: O tráfico de drogas, o mais violento e o mais rentável de todos os ilícitos, traz à reboque, a lavagem de dinheiro e também um outro tipo de tráfico, o de armas. De pistolas leves a fuzis, metralhadoras a granadas e bombas, é possível obter qualquer coisa, desde que se pague o preço pedido. O comércio de armamentos, que antes era feito entre governos e grandes corporações, mudou totalmente. Como o fim da Guerra Fria, o estoque excedente da indústria bélica passou a percorrer caminhos ilícitos, sendo vendido e entregue em qualquer lugar do mundo por uma rede de comerciantes informais e invisíveis. Através de traficantes de drogas e de seus próprios contrabandistas, o comércio ilegal de armas abriu novas possibilidades para grupos revolucionários, milícias de todo tipo e facções criminosas. Um mercado milionário e crescente que, segundo a ONU, abasteceu, na década de 90, cerca de cinqüenta conflitos armados ao redor do mundo, especialmente na África, ao mesmo tempo que também deu poder de fogo a milhares de quadrilhas que se enfrentam no mundo do crime e aumentam cada vez mais os índices de violência em qualquer cidade do mundo.

Paulo Markun: Moisés, nessa questão do contrabando de armas, que até agora nós falamos pouco sobre ela, não é esse o sustentáculo da questão? Se o objetivo final é obter dinheiro, a arma não é a maneira pela qual esses setores criminosos asseguram seu poder? Aqui no caso do Brasil, principalmente nas favelas, é por aí que se estabelece o controle desses setores sobre diversas comunidades.

Renato Lombardi: E a máfia do Leste Europeu, que é uma das que mais fornecem armas para os traficantes aqui no Brasil.

Moisés Naim: O tráfico de armas também é muito antigo. Não há nada de novo no tráfico de armas como tal. A novidade é a proliferação de produtores de armas e o volume de armas traficadas no mundo. Mais uma vez, a globalização ajudou a criar uma distribuição mundial de armas que não só financia atividades criminosas mas também guerras. Muitas das guerras civis na África e em outros lugares são ativamente motivadas e impulsionadas pelas armas. Temos um bom exemplo. Qual foi a última vez em que uma insurreição, um movimento insurrecional, uma guerrilha ou uma guerra civil deixou de acontecer por falta de armas? As armas parecem disponíveis em todo lugar do mundo para quem puder pagá-las. Assim como as drogas, não parece haver redução na disponibilidade das armas, apesar dos controles, dos embargos, dos tratados internacionais etc.

Renato Lombardi: No caso da Colômbia, das Farcs [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], nós temos as informações, pelo menos dos setores de inteligência da própria Polícia Federal, no Brasil, nos Estados Unidos, nós temos um traficante aqui chamado Fernandinho Beira-Mar, que está preso, à disposição da Justiça, é condenado por tráfico de drogas, e que fazia troca de armas por cocaínas, com as Farcs. E ele recebia essas armas que vinham de fora e passavam pelo Paraguai – o Paraguai fazia essa troca. O mercado de armas no Brasil cresceu muito. O criminoso que antes assaltava com revólver calibre 38, hoje ele quer uma arma automática, e é fácil encontrar com o traficante ou com um ladrão, um fuzil AK-47, que é uma arma de guerra. Então esse crescimento, como diz o Markun, é uma coisa muito séria, e parece passar ao largo das autoridades como se outras coisas... E ao lado do tráfico de armas tem a lavagem de dinheiro, que é muito importante.

Moisés Naim: Correto. Às vezes, alguém poderia pedir que a sociedade focasse o tráfico de armas. Essa é uma área que ameaça muito mais a sociedade do que outras formas de tráfico que discutimos.

Roberto Porto: Nós estamos falando em tráfico de armas, em tráfico de entorpecentes, os exemplos todos são citados, por exemplo, no Brasil, em regiões mais pobres como as favelas do Rio de Janeiro, que o senhor menciona inclusive no seu livro. O senhor sustenta que o crime não é produto da pobreza, pelo contrário, essa afirmativa serve para legitimar o crime. O crime, na opinião do senhor, seria produto do quê? Por exemplo, da omissão do Estado?

Moisés Naim: Não há dúvida. Primeiro, são vários tipos de crimes, e não há dúvida de que o crime não acontece apenas nas favelas, acontece também nos ministérios, acontece dentro dos bancos, dentro das empresas, dentro das organizações mais elegantes. O crime não é apenas dos pobres. Primeira questão. Segunda questão, as motivações do crime são muito diferentes e de diferentes naturezas. Eu quero enfatizar que dizer que a pobreza é a razão do crime é uma idéia muito perigosa. Há países muito mais pobres do que o Brasil que não têm índices de criminalidade do Brasil. Não há dúvida que a pobreza faz parte, mas começar a dizer ou concluir isso, simplesmente, que os crimes existem porque há muitos pobres. Esperar que a pobreza acabe para que o crime diminua é uma idéia perigosíssima, porque torna legítima uma tolerância, uma coexistência pacífica com o crime, que é muito perigosa porque contribui para a expansão das atividades criminosas.

Luis Nassif: O senhor procurou desde o começo caracterizar que o combate ao crime tem que ir nas fontes econômicas dele. Eu queria que o senhor analisasse um pouquinho a questão do sistema de patentes mundial, que quando foi criado, visava estimular a inovação, o pioneirismo, e hoje a gente vê um abuso em muitas áreas, em que o sistema de patente está funcionando - a própria Microsof é típico nisso - como um fator inibidor da inovação dos concorrentes e tudo mais. Como o senhor vê essa questão do sistema de patentes dentro dessa proliferação da pirataria?

Moisés Naim: Esse é um problema dual. Você tem razão. Estão abusando do sistema de patentes para tentar excluir ou inibir a concorrência. Isso vem acontecendo. Ao mesmo tempo, também diminuiu a capacidade dos governos de fortalecer, executar, implementar e proteger os donos da propriedade intelectual por meio de patentes. As patentes, por um lado, em áreas de alta tecnologia, tornaram-se muito importantes. Por outro lado, tornaram-se muito fracas. As duas coisas estão acontecendo. As patentes, por um lado, protegem demais e por outro lado, protegem muito pouco. O certo é que está mudando. O regime de propriedade intelectual no mundo, em 10 anos, será muito diferente do que temos hoje.

Cláudio Weber Abramo: O senhor mencionou há pouco que a América Latina e o Brasil, em particular, têm revelado pouca capacidade de gerar empregos formais, sendo isso uma das causas da proliferação de empregos informais, dos quais, partes são dedicados a esse território do ilícito. Ora, não estaria aí a origem real do problema? Quer dizer, as pessoas não preferem trabalhar no emprego informal, obviamente – algumas talvez – mas não de modo geral. Não estaria aí, na falta de projetos de desenvolvimento nacional, na falta de estratégias de criação de empregos, que são subsidiárias a projetos de desenvolvimento, uma razão muito mais sólida ou mais determinante para a disseminação dessas atividades que são fugazes, ilegais, muitas vezes?

Moisés Naim: Sim, é verdade. Esses empregos informais, os vendedores ambulantes proliferam porque não têm alternativa, porque muitas vezes não há empregos formais para eles. A falta de emprego formal tem a ver com a lentidão do crescimento econômico, com a inibição do desenvolvimento econômico. No entanto, é perigoso concluir o seguinte: “vamos esperar que haja crescimento econômico e que o país se desenvolva para que essas atividades, essa informalidade comece a desaparecer”. É preciso fazer coisas muito mais dirigidas a isso, em vez de esperar. O diagnóstico é correto, mas é um diagnóstico que paralisa demais.

Cláudio Weber Abramo: O senhor veja o seguinte, existe no Brasil, por parte do setor privado especialmente, de grandes empresas, de segmentos significativos do setor privado, um esforço permanente de informalizar o emprego formal, o que joga, as empresas não querem ter as obrigações...

[?]: Terceirizados.

Cláudio Weber Abramo: Não, não é apenas terceirização, é a eliminação de direitos trabalhistas, por exemplo. Isso que estamos vendo na França, neste momento, está acontecendo no Brasil. Quer dizer, a tentativa de afrouxar as leis trabalhistas está sendo procedida, se processa um mecanismo desse tipo no Brasil há vários anos. Agora, o indivíduo que deixa de ser empregado por uma empresa, empregado formalmente por uma empresa, mas ele continua sendo empregado por essa empresa informalmente, ele chega mais perto dessas atividades aí dos camelôs e tal nas ruas. Quer dizer, se diluem as diferenças. Há uma tendência na economia brasileira - eu não sei o que ocorre no resto do mundo, na América Latina - mas há uma tendência de destruir o esquema de relação entre capital e trabalho. Isso não poderia alimentar essa maior informalidade nas relações, com relação àquilo que se comercializa, por exemplo?

Moisés Naim: Completamente. Isso está correto. Eu só acrescentaria uma coisa. Acho que a carga não está nas empresas, mas nas leis, nas leis trabalhistas e no tipo de regras que fazem a empresa preferir não ter um funcionário. As empresas simplesmente respondem ao mercado e às possibilidades e restrições dele. É preciso criar regras de trabalho que motivem as empresas a querer um funcionário. Em condições normais, a empresa quer ter um funcionário fixo, porque faz parte de sua estrutura, do treinamento, porque é mais estável do que ter funcionários terceirizados, inconstantes. No entanto, se os custos para isso são muito altos, a empresa vai preferir não fazer isso. Isso está mais ligado ao ambiente de negócios, às regras trabalhistas e às leis do que às empresas em si.

Raul Juste Lores: O unilateralismo do governo Bush colocou essa cooperação internacional que o senhor fala em compasso de espera. Ou seja, como confiar em tratados internacionais, como esperar mais tratados, se é um governo que desconfia e quer fazer tudo sozinho? Eu pergunto, agora que o Iraque está praticamente sob uma guerra civil, o senhor vê alguma mudança nos Estados Unidos, um arrependimento dessa política que possa permitir mais acordos no futuro?

Moisés Naim: Eu vejo, mas não vejo credibilidade do outro lado. O que houve no governo Bush foi que, desde que assumiu o poder e até antes disso, ele trazia mensagens muito claras de que não acreditava na colaboração internacional e que a participação em fóruns internacionais, como a ONU, impunha limitações ao país mais poderoso do mundo – e ele poderia, portanto, atuar unilateralmente. E foi o que se fez no Iraque, foi o que se fez com o acordo ambiental de Quioto e com muitas outras coisas. Foi uma atitude muito negativa com relação ao trabalho conjunto com outros países. Não demorou para que esse governo se desse conta da realidade, e ele logo sentiu, no Iraque, que não avançaria sem a ajuda de outros. Ele logo percebeu que não teria sucesso no combate ao terrorismo sem a ajuda dos serviços de inteligência de outros países, inclusive, e sobretudo, dos países árabes. Ele descobriu que a reconstrução do Iraque não daria certo sem a colaboração de agentes como o Banco Mundial e outros agentes multilaterais. Ele foi levado a descobrir que era necessário trabalhar multilateralmente, mas foi muito tarde.

Raul Juste Lores: O comportamento está mudando?

Moisés Naim: Muito tarde. Agora ele não tem credibilidade e encontra muita hostilidade com relação a ele, então... Eles estão se esforçando, Condoleezza Rice [(1954-), secretária de Estado dos Estados Unidos] está fazendo um grande esforço para trabalhar mais multilateralmente, mas já existe uma história recente que não permite isso. E ninguém quer estar associado ao fracasso. Neste momento, associar-se para fazer algo no Iraque é um risco. Quem vai querer participar desse desastre? Nesse sentido, os EUA ficarão cada vez mais sozinhos, e prevejo que em breve vão abandonar o Iraque.

Paulo Markun: Doutor Moisés, o nosso tempo está acabando, e a última pergunta é a seguinte. Quando alguém entra numa cruzada como essa, e a sua cruzada não é diferente das outras, tem que se saber com quem se conta como aliado. Quais seriam seus aliados?

Moisés Naim: As pessoas. O que vi pelo mundo ao falar disso foi que existe resposta. Existe resposta no mundo. Acredito, como já disse, no poder das idéias. Quando as idéias fazem sentido, as pessoas respondem a elas. Os aliados são todos que estão nos vendo, todos os que podem ler o livro e que vão encontrar nele uma forma de entender como funcionam as coisas, que não devem continuar assim.

Paulo Markun: E há adversários?

Moisés Naim: Os adversários são os que conhecemos, são os políticos que estão presos a essas redes, que são sócios ou empregados dos criminosos, são as grandes redes internacionais e os que acham que isso não é um problema.

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores, a você que está em casa.

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