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Memória Roda Viva

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Miguel Srougi

6/3/2006

A humanização no tratamento do doente e o investimento em pesquisa podem promover a transformação da sociedade, segundo o urologista, especialista em câncer de próstata, que tem entre seus pacientes empresários e políticos influentes

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Programa ao vivo

Paulo Markun: Boa noite. Ele disse que o Brasil desperdiça dinheiro na saúde pública, não alcança os resultados que busca porque não aplica direito as verbas. Considera que é preciso investir mais em pesquisa, que o conhecimento científico precisa ser usado para melhorar a vida dos brasileiros e que as escolas de medicina devem formar médicos mais humanos. São idéias e preocupações do mais reconhecido especialista brasileiro em câncer da próstata, o médico Miguel Srougi, novo professor titular do Departamento de Urologia da Universidade de São Paulo, que é o convidado desta noite no Roda Viva. O professor Miguel Srougi tem chamado a atenção da área médica para três temas: o sentido real da ciência e da pesquisa, o papel dos educadores médicos e a situação dos sistemas públicos da saúde no país. Temas que ele agora busca colocar no horizonte de uma das importantes escolas de medicina do país.

[Cometarista]: Miguel Srougi assumiu a cadeira de titular de urologia da USP depois de dar aulas nove anos na Unifesp, a Universidade Federal de São Paulo, onde foi o responsável pela implantação de uma nova unidade hospitalar dedicada à assistência, ensino e pesquisa em urologia. Com o apoio de empresários foram construídos teatro, teleconferência, telemedicina, novas enfermarias e adquiridos equipamentos de tecnologia avançada, que permitem até cirurgias assistidas por robô. Pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard nos Estados Unidos e autor de mais de 400 publicações científicas, o professor Miguel Srougi estudou e pesquisou tumores urológicos e as doenças da próstata. É o cirurgião mais requisitado nessa área, e já escreveu oito livros médicos além de uma publicação destinada ao público leigo, onde informa e alerta sobre o tumor maligno que atinge um em cada seis homens com mais de 50 anos de idade no Brasil. Conhecedor dos problemas que envolvem a saúde pública, o professor Srougi tem questionado o desperdício de recursos na área, e o fato do Brasil gastar mais dinheiro com pagamento de juros da dívida do que com educação e assistência médica. Há dez anos na linha de frente do ensino de medicina no país, Srougi tem críticas à educação médica no Brasil, mas é otimista, acha que ainda é possível formar bons médicos por aqui.

Paulo Markun: Para entrevistar o médico Miguel Srougi, nós convidamos o doutor Luís Antonio Machado César, diretor da Unidade Clínica de Doenças Coronárias do Incor [Instituto do Coração] e professor de cardiologia da Universidade de São Paulo; o doutor Drauzio  Varella, médico cancerologista e infectologista; Laura Caprilioni, repórter do jornal Folha de S. Paulo; Cilene Pereira, editora de Medicina e  Bem-Estar da revista IstoÉ; Mônica Teixeira, editora especial de Ciência e Tecnologia da TV Cultura; Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e professor titular de clínica médica na Unifesp; e Herton Escobar, repórter de Ciência e Meio ambiente do jornal O Estado de S. Paulo. E também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos, momentos e flagrantes do programa. Boa noite, professor.

Dr. Miguel Srougi: Boa noite, boa noite a todos os telespectadores, aos jornalistas aqui presentes, muito obrigado por esta deferência permitindo que eu participe de um programa da relevância que é o Roda Viva.

Paulo Markun: Professor, o senhor como cirurgião, sabe - e muito mais que nós, meros leigos - que a questão, por exemplo, do câncer da próstata tem cura desde que o diagnóstico seja precoce. O diagnóstico da saúde pública brasileira é mais do que precoce, sabe-se há anos e anos que o Brasil gasta mal, que o Brasil, às vezes, gasta pouco e que não se formam bons médicos e nem se faz pesquisa na quantidade necessária. Que cirurgião é preciso ter, ou melhor, que cirurgia é preciso fazer para que a saúde pública no Brasil melhore?

Dr. Miguel Srougi: Paulo, infelizmente, o Brasil vive um problema complexo nessa área. Surgiram nos últimos anos algumas tentativas para se organizar o sistema de saúde pública no Brasil. A criação do SUS [Sistema Único de Saúde] foi um evento importante. O SUS é um sistema muito bem planejado, mas infelizmente a implantação dele acabou não se fazendo de forma correta. Existe um defeito básico no Brasil que é a falta de recursos destinados à saúde. Só para você ter uma idéia, nos Estados Unidos se gasta, anualmente por habitante, 6.700 dólares mais ou menos para dar apoio à saúde da população americana.

Paulo Markun: Seis mil e setecentos?

Dr. Miguel Srougi: No Canadá se gasta 4.400 dólares por habitante; na França, até um dado que eu tenho de dois ou três anos atrás, eram 3 mil dólares por habitante e no Brasil se gasta 170 dólares por ano por habitante. Existe um problema de origem, sem um financiamento adequado você nunca vai conseguir montar um sistema de saúde realmente eficiente para a população brasileira. Esse talvez seja o primeiro grande problema. Existe um problema do fato de o SUS não ter sido implantado de forma adequada, o plano em si foi idealizado de forma muito apropriada. O SUS sugere, define que o atendimento à saúde pública tenha que ser universal. Todo brasileiro tem direito à saúde pública, atendimento de saúde; ele preconiza a integridade, a integralidade do tratamento, esse atendimento é feito na prevenção e também na cura das doenças, e ele preconiza a eqüidade. E aí talvez comece o grande problema. Eqüidade significa você dar um certo caráter de justiça à igualdade, quer dizer, você não pode tratar todo mundo igual. E nesse ponto começa a falhar um pouco o SUS, porque as pessoas que têm posses podem recorrer ao SUS e, obviamente, como o cobertor é curto, isso prejudica a população mais carente que acaba ficando, por vezes, à margem desse processo. O SUS preconiza a descentralização do sistema de saúde, ele deveria ser feito em cada município, e ele tem um mecanismo muito interessante de controle, que é o controle social. Pelo plano original do SUS, cada comunidade deveria constituir os chamados "conselhos de saúde" que deveriam vigiar a aplicação dos recursos, e com isso maximizar essa aplicação.

Paulo Markun: Mas isso é teoria.

Dr. Miguel Srougi: Isso tudo acabou não ocorrendo. A descentralização não ocorreu de forma correta, existe ainda uma centralização muito forte do governo federal. Os conselhos de saúde que deveriam defender os interesses da comunidade acabam não funcionando, acabam sendo usados politicamente, de modo que tudo isso deturpou esse sistema que, quando foi criado, tinha realmente um sentido bastante grandioso, e isso tem prejudicado severamente os cuidados à saúde do povo brasileiro.

Paulo Markun: Desculpe, mas eu vou insistir: o senhor ainda está no diagnóstico, qual é a cura? Qual é o tratamento que se deve ter? O que é preciso fazer?

Dr. Miguel Srougi: Acho que nós teríamos que começar pelo financiamento à saúde. É preciso que o governo federal, os governos estaduais e municipais compreendam a importância da saúde. Na verdade, com esse tipo de financiamento que nós temos será impossível criar um sistema sólido, consistente, que dê atenção a toda a população. Eu acho que tem que haver uma descentralização real, os cuidados de saúde têm que ser feitos ao nível dos municípios. Esse é um detalhe muito importante. Eu acho que existe um mecanismo perverso nesse processo. As operadoras de saúde, o sistema privado de saúde empurram um pouco dos seus doentes para o SUS, eles não querem ressarcir o SUS desse atendimento de doentes que teriam direito a serem atendidos pelas operadoras, e por esse sistema privado de cuidado à saúde, eles não ressarcem o SUS, e o SUS acaba tendo também um prejuízo muito grande com esse tipo de ação, que a meu ver é indevida. O governo precisaria, a meu ver... Existem soluções fáceis para se economizar recursos. Eu acho que o Programa de Atenção à Saúde da Família, que é um programa que foi criado, muito bem elaborado, os agentes comunitários são grupos formados em cada pequena comunidade, e que ajudam o médico a proteger a população adotando cuidados preventivos, cuidados de promoção à saúde. Esses grupos têm sido utilizados, mas a ação deles precisaria ser incrementada. No momento que nós criamos agentes de saúde, nós podemos diminuir os número de postos de saúde, e com isso economizar recursos para esse sistema. Se nós criarmos o sistema de atendimento domiciliar, por exemplo, uma idéia que já foi lançada, muitos doentes poderiam sair do hospital, ficar na sua residência e serem atendidos por equipes de enfermeiras, equipes de paramédicos que propiciariam a esse doente algum cuidado específico, e nós precisaríamos de menos leitos hospitalares, que é um dos problemas também que existem no Brasil. Existem soluções que podem ser adotadas, mas acho que tudo precisaria começar com uma determinação real do nosso governo para financiar a saúde. Eu já referi isso há pouco tempo num texto que eu escrevi. O Brasil pagou no ano passado 157 bilhões de juros, dinheiro de juro é um dinheiro que é queimado e não atenua a nossa dívida; ele não eliminou desigualdade, e por outro lado, ele destinou apenas 33 bilhões de dólares para a saúde - de reais, perdão - apenas 7 bilhões de reais para a educação, e sem a conjugação desse binômio educação/saúde, nós não vamos conseguir avançar. Gastam-se 157 bilhões por uma despesa que não oferece nenhum retorno ao povo brasileiro, e apenas 40 bilhões de reais para dar todo o apoio à saúde, educação, valores absolutamente insuficientes para darem qualquer tipo de respaldo para a sociedade brasileira nessas duas áreas.

Paulo Markun: Quem se habilita?

Cilene Pereira: O senhor fala bastante na questão da destinação dos recursos para essa área, mas eu gostaria de saber, na sua opinião, além do financiamento, propriamente dito, o que pode ser feito para melhorar a qualificação dos profissionais de saúde que estão na rede pública hoje?

Dr. Miguel Srougi: Infelizmente, houve nos últimos anos uma grande proliferação de escolas médicas, e os médicos no Brasil têm sido produzidos em grande quantidade, mas de qualidade muito heterogênea. Existem no Brasil, atualmente, o último dado que eu dispunha era de 146 escolas médicas, mas poderão me corrigir, afirmo hoje que já existem hoje 144 escolas médicas. Nos Estados Unidos, que tem uma população 60, 70% maior que a nossa, existem 120 escolas médicas. Essa produção excessiva de médicos sem critérios e sem qualidade, obviamente, cria uma grande distorção no atendimento médico. Os médicos brasileiros, infelizmente, não estão sendo bem preparados, eles têm uma formação muito ligada à cura das doenças, são mal preparados para promover a saúde, para encarar a medicina num lado que é grandioso, que é o lado de apoio às comunidades para reduzir a incidência das doenças. Essa distorção realmente, a gente paga um preço alto por ela...

Cilene Pereira: O senhor está falando também da Faculdade de Medicina da USP?

Dr. Miguel Srougi: A Faculdade de Medicina da USP prepara bem os seus alunos, mas eu até acho que ainda existem pontos fracos na Faculdade de Medicina. O lado humanístico, embora ele esteja no programa, um programa de saúde pública que é fundamental - ele consta do currículo da Faculdade de Medicina - mas na prática, eu acho que os alunos deixam de receber essa formação humanística talvez mais consistente.

Paulo Markun: Onde é que se perdeu isso? O que tinha?

Dr. Miguel Srougi: Existem vários motivos para isso. O médico está perdendo um pouco o ideal, infelizmente. Existe uma pesquisa feita na Inglaterra, foi publicada no ano passado, em que se perguntou para os médicos se eles eram felizes ou infelizes. Sessenta por cento dos médicos ingleses são infelizes com a medicina. A sociedade se tornou muito exigente em relação aos médicos, eles exigem nada menos do que a perfeição, sem compreender que existem fatos inexoráveis - a morte é inexorável - existem doenças incuráveis, existe a decadência física pela idade, e a sociedade não aceita isso, ela quer a perfeição do médico. A sociedade tem muita informação, então ela passou também a exigir muito do médico. Por incrível que pareça, se diz que as consultas médicas são curtas atualmente, mas eram mais curtas antigamente. Todos os estudos que avaliam a duração das consultas dizem que as consultas agora são mais demoradas do que há vinte anos. Porque a sociedade é exigente, ela não quer apenas saber que remédio tem que tomar, quer saber como previne, quais as conseqüências, o que  acontece com a família. Esse é um movimento bom, mas isso vai desgastando muito o médico. A sociedade tem outro problema complicado, na verdade, talvez, a mídia, nem é a sociedade, tem um papel um pouco hostil em relação aos médicos, ela cobra muito dos médicos, os médicos vivem na defensiva, e isso cria um pouco de conflitos; às vezes os médicos se sentem... o ideal deles fica um pouco abalado por causa disso. Existe um pouco de culpa do governo. O governo achatou os salários dos médicos, exige mais trabalho deles e restringiu sua autonomia. Os médicos agora têm que obedecer a certos critérios de atendimento, não podem pedir exames, isso vale muito mais ainda para as operadoras, os serviços privados que restringem a atuação médica. Ele não pode pedir muito exame, ele tem que fazer alguns tratamentos que, às vezes, não são os que mais ele gostaria de indicar, porque ele não tem recursos para isso. O governo também teve um papel um pouco complexo nesse processo, permitindo a proliferação de escolas médicas, apenas para obedecer interesses políticos de pequenas cidades que queriam ter um status de ter uma escola médica. E os médicos também participaram um pouco desse processo. Os médicos têm perdido um pouco o idealismo porque eles são cercados por um ambiente indigente. A população brasileira, o povo é indigente, infelizmente, o médico passou a ser envolvido por um pouco de violência, os médicos que trabalham na periferia, sofrem, a todo momento, atos de violência de pacientes e familiares, e isso não é só no Brasil. Na Inglaterra, 50% dos médicos, em algum momento, sofreram algum ato de violência no seu dia-a-dia. Os médicos, infelizmente, com todo esse processo, se afastaram um pouquinho dos seus parceiros que são os doentes. Eles passaram a se focar na doença, a parte de relacionamento humanístico se deteriorou um pouco, eu acho que esse enfoque tem que ser revivido, e as escolas médicas não têm feito isso no nível adequado a meu ver.

Herton Escobar: Doutor, diante desse quadro, como é que os recursos que já são poucos e a formação médica devem ser direcionadas? Quer dizer, se tem pouco dinheiro, se não está formando o médico bem, se você tem que priorizar, o Brasil precisa mais de pesquisadores ou de médicos? Dá para conciliar as duas coisas?

Dr. Miguel Srougi: Nós somos as duas coisas. O Brasil tem um número suficiente de médicos, eles estão mal distribuídos. A proporção ideal de médicos é de um médico para cada mil habitantes; aqui em São Paulo tem um médico para cada 260 habitantes, nós temos mais médicos do que precisamos. No Pará tem um médico para cada 4 mil habitantes, faltam médicos lá. Na verdade, a produção de médicos é razoável, a qualidade talvez não seja tão perfeita pelos problemas que eu disse: a proliferação de escolas que não têm uma qualificação completa para formar médicos. A parte de pesquisa é um ponto mais complexo a meu ver. A pesquisa sempre foi usada no Brasil como uma forma de promoção do professor. Ele fazia a pesquisa, gerava um pequeno conhecimento, publicava esse conhecimento numa revista qualificada, e achava que tinha cumprido o seu papel, engrossado o currículo e dizia que fazia pesquisa. O mundo não aceita mais isso. A pesquisa tem que ser desenvolvida de uma forma altamente qualificada; essa pesquisa tem que se transformar em desenvolvimento tecnológico, e isso tem que se transformar em inovação, ou seja, a aplicação daquele conhecimento na sociedade. É dessa forma que a pesquisa vai cumprir o seu papel, que é gerar transformações na sociedade, fazer a nossa sociedade evoluir.

Mônica Teixeira: Mas doutor Miguel, eu conheço a pesquisa médica e biomédica no estado de São Paulo com algum detalhe e, em absoluto, isso que o senhor está dizendo, de ser uma pesquisa para promoção do professor, incipiente, é o que acontece na Universidade de São Paulo, na Unifesp, na Universidade de Campinas. Exatamente do que o senhor está falando então?

Dr. Miguel Srougi: Na verdade existem...

Mônica Teixeira: Porque na Faculdade de Medicina da USP, por exemplo, tem laboratórios extraordinariamente bem montados.

[?]: A USP é que mais forma.

Mônica Teixeira: Tem papers da Faculdade de Medicina, aliás, acho que o paper mais citado do Brasil é o da Faculdade de Medicina da USP.

Dr. Miguel Srougi: Talvez eu tenha sido até um pouco injusto, porque existe um número grande, indivíduos de grande valor, de grande valor científico, cientistas renomados...

Mônica Teixeira: E desculpe, eu queria dizer só mais uma coisa, mas a pesquisa no Brasil nasceu na medicina. A pesquisa no estado de São Paulo começou no final do século 18, 19, lá com Vital Brasil, Oswaldo Cruz, nas áreas médicas para resolver problemas que vinham da exploração do interior, do avanço da agricultura, da necessidade de abrir os portos.

Dr. Miguel Srougi: Você tem toda razão, mas eu queria lhe apresentar alguns números apenas para mostrar que nós estamos longe ainda da situação ideal, para o porte da nossa nação, pelo que a gente anseia para a nossa nação. O Brasil publica - eu até comentei isso nesse artigo recente que eu escrevi - enquanto no Brasil atualmente são geradas 220 patentes por ano - patente é uma forma de quantificar o quanto do conhecimento é transformado em desenvolvimento, tecnologia e em inovação. O Brasil, ano passado, registrou em 2004, perdão, 220 patentes nos Estados Unidos, a Coréia registrou 4 mil. A renda per capita no Brasil é de 7.700 dólares, a da Coréia é de 20 mil dólares. Acontece que trinta anos atrás, o Brasil produzia três vezes mais patentes que a Coréia, - dos dois eram baixos, mas era três vezes mais - e nossa renda per capita era três vezes maior que na Coréia. A Coréia se entregou ao processo de desenvolvimento tecnológico e de inovação, eles registram agora 20 vezes mais patentes que o Brasil nos Estados Unidos, e a renda per capita na Coréia é três vezes maior que o Brasil. Outro número para você compreender o que significa transformar pesquisa em desenvolvimento e inovação e promover avanço da sociedade. Enquanto que para cada trabalho científico publicado no Brasil são geradas oito patentes, para cada trabalho nos Estados Unidos são geradas 190 patentes. E para cada trabalho na Coréia, 210 patentes.

Mônica Teixeira: Sim, mas isso é um problema da pesquisa em geral, não da pesquisa em medicina. Não é isso?

Dr. Miguel Srougi: Não, em geral.

Mônica Teixeira: No Brasil...

Dr. Miguel Srougi: Veja, não quero tirar o mérito dos grandes valores que o Brasil teve e que tem, apenas não existe ainda uma mentalidade disseminada de que pesquisa é um instrumento importante para promover a transformação da sociedade, para que a gente possa redesenhar um novo país. Essa percepção é que precisa ser disseminada.

Herton Escobar: Só para aprofundar essa questão da importância da pesquisa. Todos os indicadores mostram que nos últimos dez anos a produção científica no Brasil vem crescendo significativamente. E a área que mais contribui para isso é a medicina. Mas como o senhor colocou, os números de patentes não necessariamente acompanham esse crescimento da publicação de trabalhos. Então, até que ponto esse conhecimento que está sendo gerado, na prática, está realmente beneficiando o paciente?

Dr. Miguel Srougi: Essa é a questão, Herton. Nós estamos produzindo conhecimentos, mas eles acabam se encerrando em si mesmos; nós aprendemos um fenômeno biológico, aprendemos como um gene funciona em determinada doença e a coisa se encerra aí. Existem pessoas de valor que têm transformado o conhecimento do Brasil em desenvolvimento tecnológico, têm inovado, mas ainda falta muito para os pesquisadores brasileiros chegarem a esse ponto em que a maioria exerce esse papel transformador. Em medicina, como eu disse, agora está se começando a entender esse processo. Para que ele possa ser desenvolvido plenamente, eu acho que nós precisamos, inclusive, mudar as nossas universidades. A universidade tradicional, quando foi criada, representava um agrupamento de escolas nas diferentes áreas do saber. E esse foi o critério ou definição inicial de universidade. A gente evoluiu, e agora se considera a universidade como a instituição que desenvolve ensino, pesquisa e extensão à comunidade, mas até este conceito, acho que, a meu ver, tem que ser mudado um pouco. Acho que a universidade tem que se inserir um pouco mais na sociedade. Essas três propostas, ou essas três finalidades da universidade, estão muito imbricadas. A gente achar que vai montar um grupo para fazer ensino, um grupo para fazer pesquisa e um grupo para promover transformações, é uma coisa que já não é mais real. A universidade precisa entrar mais firmemente dentro da sociedade, da comunidade a que ela pertence; ela precisa entender os anseios dessa comunidade, e ela precisa gerar conhecimentos dentro da universidade que possam ser depois utilizados pela sociedade para que exista essa transformação positiva que a gente quer. As universidades têm que se transformar num elo, num centro tecnológico que atenda as demandas de outras instituições. Nos Estados Unidos está acontecendo um fenômeno muito interessante. Em torno da Universidade de Harvard existem 120 empresas de biotecnologia, que usam a Harvard e uma plataforma tecnológica criada dentro da Harvard como ponto de apoio para esse desenvolvimento, ou seja, para transformar o desenvolvimento em inovação. Aqui no Brasil, esse movimento ainda não é muito claro. A Unicamp tem feito isso, a USP tem feito isso, mas são poucas universidades perto desse universo muito grande que nós temos aqui.

Cilene Pereira: Por que o senhor acha que isso não acontece?

Dr. Miguel Srougi: Talvez por uma falta de percepção mesmo, de quem está dentro da universidade...

Cilene Pereira: Há uma resistência da academia?

Herton Escobar: Do pesquisador ou da academia?

Dr. Miguel Srougi:  A universidade é muito fechada no Brasil. Por mecanismos que eu talvez nem saiba explicar bem, as universidades se fecham em si próprias, viram grandes corporações, que às vezes procuram defender os interesses das pessoas que estão lá dentro, cada membro procura defender o seu interesse. E essa percepção de que, na verdade, a universidade é um instrumento da sociedade, que a sociedade espera que seja utilizada para produzir essas transformações, ainda não foi captada dentro da universidade. Ela ainda é pouco usada pelos seus membros, e acho que essa percepção precisa se disseminar; na universidade, realmente, é muito importante o desenvolvimento social.

Dr. Luiz Antonio Machado César: Miguel, eu queria lhe fazer uma pergunta. Você falou sobre faculdades, pesquisa e ensino. Você acredita que faculdade de medicina pode existir sem pesquisa? Talvez não esteja aí um dos problemas de inúmeras faculdades que estejam sendo abertas e a qualidade não seja boa?

Dr. Miguel Srougi: É muito difícil você dissociar ensino de pesquisa. As faculdades têm que realmente atuar, ter ações de ensino, de pesquisa, isso é fundamental. No Brasil infelizmente isso não tem ocorrido. A maior parte das escolas médicas é criada e se dedica especificamente ao ensino, nem todos os professores são qualificados; existem critérios de qualificação de professores, a gente sabe que a maior parte das escolas não preenche esses critérios. Eles contratam alguns professores titulados e, depois de algum tempo, despedem esses professores, e a escola não pode ser fechada pelo governo, obviamente. O ensino não é feito talvez na sua dimensão maior, a pesquisa muito menos, porque a pesquisa exige recursos, exige apoio obviamente governamental, e muitas escolas privadas acabam não desenvolvendo pesquisa. Isso é um defeito grave nosso.

Dr. Luiz Antonio Machado César: Talvez isso até signifique que precisasse de um outro filtro que uma OAB [Organização dos Advogados do Brasil], por exemplo, tem e que nós ainda não conseguimos fazer, o filtro da prova após a faculdade?

Dr. Miguel Srougi: Acho que a prova após a faculdade é um mecanismo talvez necessário, dada a grande heterogeneidade de escolas. Mas é um mecanismo perverso, você pegar um jovem, deixar ele cursar seis anos uma escola mal qualificada, e na hora em que ele se forma, você não lhe dá o direito de exercer a profissão, é muito complicado para esse jovem. Isso é não culpa dele, é culpa daqueles que demagogicamente permitiram que fosse aberta uma escola sem qualificação e deixaram que ela funcionasse. Então, obviamente esse exame é importante por um motivo emergencial. Você não pode colocar a população nas mãos de médicos mal qualificados, mas existe um processo complexo por trás disso que nós deveríamos criticar severamente. Não se pode permitir a abertura de escolas que não estejam qualificadas para criar bons médicos, e infelizmente isso é feito de forma totalmente incontrolável no Brasil.

Drauzio Varella: Você falou do relacionamento das faculdades de medicina com a sociedade. Você não acha que o conhecimento gerado na faculdade de medicina praticamente não chega à sociedade? Quer dizer, não existe nenhum veículo, nenhuma forma de ligar a universidade, de a universidade se sentir ligada à sociedade, em termos de campanhas educativas? Eu vou pegar um exemplo típico. Metade da população chega aos 50 anos hipertensa, e a hipertensão, você sabe melhor do que eu, é uma doença que causa muitas complicações de saúde, ataques cardíacos, derrames cerebrais e etc. Você não vê praticamente nada sendo discutido com a sociedade nesse aspecto. Estou pegando hipertensão como um exemplo, existem muitos outros. O que você acha que poderia ser feito para que esse conhecimento dominado pela universidade chegue ao usuário final, que é o público?

Dr. Miguel Srougi: Essa situação é perversa, Drauzio, extrapola um pouco a própria universidade. Se tiver que dar um peso para ver o que está gerando esse desencontro que você está referindo, eu diria que nosso sistema de saúde indigente talvez seja o principal fator. A população brasileira não tem acesso a cuidados médicos, aos serviços de saúde. O Brasil tem 50 milhões de pessoas vivendo abaixo dos limites de pobreza, tem um contingente enorme de pessoas que não tem nenhuma forma de chegar a encontrar um médico na sua frente. O sistema é absolutamente indigente, essas pessoas vivem nos limites mais profundos da indecência quando a gente pensa em apoio médico. Se você falar para um indivíduo pobre que ele precisa fazer exame de próstata uma vez por ano, onde é que ele vai fazer esse exame? Se ele for num hospital público, leva três ou quatro meses para ser atendido; se for atendido, o exame leva mais quatro meses para ser feito, se for solicitada uma biópsia... Quer dizer, o processo não termina. E queria até dar um exemplo perverso justamente sobre esse ponto que você abordou. Os urologistas têm cumprido o seu papel, a gente tem alertado os homens sobre os riscos do câncer de próstata, quando é que incide, quem é que tem mais chance e quando o homem deve fazer exames. Eu fiz um cálculo grosseiro, e por ser grosseiro, não precisei um número, mas uma faixa. Se aqui no Brasil nós tivermos que fazer uma campanha para detectar câncer de próstata em todos os homens com mais de 50 anos, existem muitos homens com câncer de próstata acima dessa idade, 18% dos homens vai ter câncer da próstata em algum momento da vida, 18%. Se nós formos identificar todos esses homens, fazer diagnóstico, ou seja, uma biópsia, fazer exames para definir até onde o tumor cresceu nos casos em que a biópsia vem positiva, tratar esses homens, com o tratamento vão surgir algumas complicações, e para tratar as complicações, nós gastaríamos no Brasil algo entre 3 e 6 bilhões de reais, só para tratar uma doença. Como é que.... o Ministério da Saúde dá para o Brasil a cada ano 33 bilhões de reais, como é que nós vamos exigir que se faça uma campanha para todos os homens brasileiros para detectar câncer de próstata, se isso vai captar e vai levar cerca de 6 bilhões de reais desse pequeno volume de dinheiro que a gente dispõe para saúde? Então, veja como é complicada a indigência, quer dizer, a injustiça social talvez seja o motivo mais importante pelo qual os médicos não conseguem exercer seu papel, e não acho que seja defeito da universidade não, acho que o problema está na injustiça social.

Drauzio Varella: Você não acha a universidade, nesse ponto, acomodada dentro do sistema, Miguel?

Dr. Miguel Srougi: Eu acho que a gente tem cumprido nosso papel, Drauzio. Os médicos trabalham ainda um pouco idealisticamente, embora o ideal atualmente seja mais reduzido. A gente tenta cumprir o papel, mas como eu disse, o sistema é indigente. Eu me lembro de alguns anos atrás quando foi feita uma campanha para se detectar câncer de colo de útero nas mulheres. Se fez uma grande campanha no Brasil, uma tentativa importante e válida para ajudar as mulheres. O problema é que se descobriu um contigente grande de mulheres com câncer de colo de útero, e elas não tinham onde ser tratadas. Elas sabiam que tinham o câncer e não tinha hospital para tratar essas mulheres. Veja que situação dramática e perversa. Eu continuo achando que injustiça social é o principal fator que impede que a gente tenha uma atuação mais grandiosa, levando da universidade para a população esse tipo de apoio que você está preconizando.

Laura Capriglione: Eu queria saber, doutor Miguel, parece que a medicina tem hoje um grande paradoxo. Ao mesmo tempo que ela hoje pode diagnosticar doenças com uma grande antecedência, antes mesmo até que se manifeste, ao mesmo tempo as dificuldades para se conseguir estabelecer políticas de atendimento à população parecem cada vez... Parece que o grande desafio da medicina é menos científico do que político hoje em dia. E quero saber se o senhor concorda com isso, e se existe algum tipo de avaliação que o senhor faça, de que, por exemplo, o senhor mencionou 157 bilhões, eu também achei impressionante a menção que o senhor fez no artigo que o senhor escreveu sobre os 157 bilhões, comparando com os gastos de saúde e educação. E pensando como o senhor tem, entre a sua clientela, pessoas tão influentes e importantes, fiquei pensando: o que será que acharam dessa cifra os pacientes que o senhor atende e que são tão importantes na República?

Dr. Miguel Srougi: Acho que todos são tomados por um pouco de indignação. O problema é que a gente não tem para quem reclamar, a gente também não pode ser irresponsável e simplesmente fingir que essa dívida não existe. Eu não sou economista, eu confesso que eu não sei como resolver essa equação. Eu acho que mesmo essas pessoas que dirigem o Brasil, quando são confrontadas com esses números, elas ficam envergonhadas, entendeu? Mas eu acho que não existe solução muito óbvia. A gente teria que parar de pagar esses juros e negar nossa dívida, isso cria problemas complexos que a gente já viveu em outras épocas, e que pode não ser bom para o país. Mas acho que precisa ter um pouco de coragem. A Argentina fez uma ação nesse sentido e, apesar de todas as ameaças, não aconteceu nada e eles cresceram 9% no ano passado, o PIB deles cresceu 9%. Acho que precisa um pouco de coragem e que existe um argumento muito forte que é a justiça social. Qualquer país desenvolvido pode compreender um pouquinho disso. Se a gente mostrar que em vez de pagar 157 bilhões, se a gente pagasse metade disso e alongasse a nossa dívida, ou criasse algum mecanismo para - isso é coisa de economista - e esse dinheiro seria obviamente empregado para promover um avanço social na área de educação, eu não consigo separar educação de saúde. A gente sabe que tem uma relação muito intensa entre educação e saúde. Eu acho que se não forem criados mecanismos para a gente tirar um pouco desse dinheiro e aplicar em educação e saúde, o Brasil vai ficar sempre com um futuro que não chega, entende? Eu não tenho soluções. Todos ficam indignados, envergonhados, aqueles que dirigem o Brasil, mas ninguém apresenta uma solução concreta.

Dr. Antonio Carlos Lopes: Eu queria comentar um aspecto que você repetiu algumas vezes e que diz respeito ao fato de a sociedade ser exigente, mais exigente nos dias de hoje. Será que isso é 100% verdade? Pelo seguinte, num trabalho que fizemos na Unifesp, tentando exatamente ver qual o grau de exigência da nossa população, da nossa comunidade, verificamos que realmente o que eles querem é o mínimo de atendimento, o mínimo de humanismo no relacionamento com eles; eles querem ser chamados pelo nome, querem que o médico ouça, é isso o que eles querem. Então, essa exigência é muito pouca em relação ao contexto. Eu concordo que essa exigência é grande quando se vai para uma clínica privada, por exemplo, como a que você tem, e aí a exigência realmente vai até a última instância. De forma que eu acho que essa exigência para nossa comunidade é muito pequena. Dá pena até de ver o quão pouco eles exigem do sistema que dá atenção a eles; eles querem pelo menos uma maca que tenha um colchão, e não ficarem no chão ou sentados numa cadeira por doze horas. A exigência é muito pequena. Esse é um aspecto que eu queria comentar em relação a sua fala. Em segundo lugar, eu queria dizer em relação à pesquisa. Evidentemente nós, como professores universitários, somos adeptos à pesquisa, à elaboração da divulgação do conhecimento, senão não poderíamos estar numa universidade, não seríamos professores titulares como somos. Mas por outro lado, o que me chamou muito atenção, mesmo porque eu tenho uma atenção muito voltada para o social, e me preocupa muito o social nos dias de hoje, é que muito da nossa pesquisa não tem quase repercussão nenhuma na comunidade. Nós estamos hoje diante de verdadeiros ratólogos, indivíduos que estudam o rato durante cinco anos, e quando acabam de estudar o rato já não sabem mais o que sabiam quando entraram para a pesquisa. E essa pesquisa não tem nenhum compromisso com a comunidade, e isso é dinheiro público, isso é dinheiro que vai para o ralo, que precisaria ser respeitado de outra forma. E os culpados são os orientadores que pegam 20 orientandos quando não têm competência para orientar dois ou três. E isso sucateia de certa forma a graduação, porque estamos preocupados em formar médicos. E eu tenho certeza de que se qualquer um de nós for procurar um médico nos dias de hoje, este médico encontrado por nós não teria nenhum projeto, nem na Fapesp ou em qualquer outra entidade de fomento, nenhum deles teria. Então, eu tenho certeza absoluta de que se nós formos procurar um médico hoje para cuidar de qualquer um de nós, este médico não teria projeto em entidade de fomento, este médico estaria à beira do leito, estaria ensinando e aprendendo com o sofrimento, porque o médico só aprende quando sofre. E nós estamos passando uma fase também complicada, que é exatamente esse ensino virtual. Os indivíduos falam de medicina a todo instante, e há muito tempo que não vêem o doente. Quer dizer, eles imaginam a medicina de uma forma e, na realidade, a prática é outra completamente diferente daquilo que nós vemos. E na linha mesmo que você apresentou, em relação ao Sistema Único de Saúde, o que acontece? Exatamente isso: os indivíduos são convidados para cargos de gestão, para cargos diretivos, que não têm nenhuma formação profissional, transformam um bom cirurgião muitas vezes em gestor...

Paulo Markun: Só queria propor, Antônio Carlos, que você se restringisse às perguntas, porque você abriu quatro leques de respostas e nós não vamos ter o programa...

Dr. Antonio Carlos Lopes: Porque todas confluem para um único ponto.

Paulo Markun: Eu imagino.

Dr. Antonio Carlos Lopes: E neste ponto se diz exatamente isso, quer dizer, o fato que realmente estamos caminhando para uma falta de ensino dentro do contexto geral. Eu acho que se nós conseguirmos ensinar e estar à beira do leito e formarmos bons profissionais, é o que a comunidade nossa quer. Ela não está preocupada em ensino, como se forma o cálculo biliar, ela quer saber que o cirurgião opere direitinho, e não lese o colédoco [pequeno canal que liga o fígado ao intestino] na hora de retirar o cálculo biliar...

Dr. Miguel Srougi: Os seus comentários são pertinentes...

Drauzio Varella: O médico tem projeto aprovado na Fapesp, é uma publicação internacional de peso.

Dr. Antonio Carlos Lopes: Parabéns!

Dr. Miguel Srougi: Eu queria só fazer um comentário, Antonio Carlos. Nós vivemos numa área geográfica com dois países. Existem 53 milhões de brasileiros cuja família o rendimento é menos de um salário mínimo por mês, são pessoas que vivem no limite da pobreza. Essas pessoas não são exigentes, não pedem nada, se arrastam, são ignoradas, e este é um Brasil. Existe um outro Brasil dos 132 milhões, é o grupo dos 132 que eu chamo, a qual eu pertenço e você pertence. Esse grupo é exigente, exigente não só no sentido de querer que você explique um pouco melhor, mas em todos os sentidos. Ele é um país desenvolvido, onde o índice de mortalidade é de 17 por mil, no Maranhão é 56 por mil. É o Brasil dos 132 onde existem 7% de analfabetos, ao contrário do Maranhão onde existem até 36% de analfabetos. Quer dizer, nós temos dois países. Existe um país miserável, ignorado, vítima da injustiça social, e esses não exigem nada, você tem razão. Esses, se você oferece, estende uma mão, eles se ajoelham e lhe agradecem. E existe outro que é mais complexo e que acaba obviamente talvez atuando e exercendo um pouco mais de pressão sobre os médicos, e que é bom por um lado, mas, por outro lado, cria alguns problemas aos quais eu me referi da relação médico-paciente.

Herton Escobar: A formação do médico deve ser direcionada para um ou para outro? Quer dizer, para o médico que vai ficar do lado do leito ou para o médico que vai pesquisar os camundongos e acrescentar o conhecimento, vamos dizer?

Dr. Miguel Srougi: Eu acho que a formação médica é meio complexa. Embora, à primeira vista, quando a gente fala em medicina, a gente pensa na formação do sujeito que vai curar doenças, a medicina tem duas áreas muito grandes. Metade do que se faz em medicina ou das doenças que surgem na população, na verdade não são doenças como essas que a gente trata com remédios, são doenças decorrentes de toda uma estrutura ambiental indigente. São as doenças que surgem porque não tem água tratada, porque a pessoa não come, ela é faminta, porque ela vive sem condições adequadas de habitação, ou seja, é uma área onde a promoção da saúde poderia resolver esses problemas; são crianças que não são imunizadas, porque não conseguem chegar a um médico. Esse é um tipo de medicina que atualmente é ensinado nas faculdades, e que os médicos começam a perceber que é real; uma medicina em que a gente pode ter um papel muito importante. Aliás, nem precisa ser o médico, esse tipo de medicina a que eu estou me referindo pode ser exercida por todo um grupo multidisciplinar, que atua nas comunidades, promovendo um avanço dessas pequenas comunidades, e com isso eliminando as doenças que podem ser eliminadas. Existe outra medicina que é a medicina da cura das doenças que surgem sem relação com o meio ambiente. Os alunos, infelizmente, são treinados mais para o segundo tipo de medicina, mas já existe uma percepção de que o primeiro tipo é importante, de que o primeiro grupo é importante, de que as ações nesse primeiro grupo são importantes. Existe um fenômeno, a sua pergunta me lembra um aspecto também muito importante, que a gente agora tem que discutir com os alunos. Os avanços tecnológicos têm sido tão rápidos que isso tem gerado grandes problemas na área até moral. A gente não consegue ensinar isso para os alunos...

Paulo Markun: A propósito, só queria colocar a pergunta do doutor Eduardo Massad que é professor titular de informática médica da Faculdade de Medicina da USP, que é exatamente sobre esta questão para reforçar o que o senhor está afirmando, vamos ver.

[VT de Eduardo Massad]: A pergunta que eu gostaria de fazer é como você vê a perspectiva dos avanços da tecnologia da informação na prática médica, na medida em que já existem sistemas especialistas baseados em técnicas computacionais que são capazes de realizar diagnósticos, orientações e propostas terapêuticas, e agora com os avanços da robótica invadindo a área das especialidades cirúrgicas. Será que daqui 30 ou 40 anos o médico humano será dispensável? Como é que a gente vai preparar nosso aluno para esse futuro tecnológico na prática médica? E será que nossa escola está preparada para isso?

Dr. Miguel Srougi: Queria agradecer, o Eduardo é um grande amigo. Na verdade, todas essas transformações que estão ocorrendo na área de comunicação são importantes, estão sendo assimiladas pela medicina, mas eu não acho que o impacto delas ainda foi muito grande. Pouco tempo atrás me convidaram para uma reunião, eu me postei frente a uma tela e me disseram que a minha aula ia ser transmitida para todo o Brasil. Dei a aula e quando a terminei, quem estava do meu lado falou: “Vocês aí do Ceará perguntem para o doutor Miguel alguma coisa sobre a palestra dele sobre câncer de próstata”. Não veio nenhuma pergunta. “Vocês em Salvador?” Não venho veio nenhuma pergunta. De repente ele falou: tem alguém ouvindo? Ninguém. Não tinha ninguém [risos], era um sábado, ao meio-dia. E o  que aconteceu, um programa super elaborado, eu fiquei duas horas sentado ali falando para uma câmera e não tinha ninguém assistindo, ou seja...

Herton Escobar: Nem na platéia não tinha ninguém?

Dr. Miguel Srougi: Não, era uma sala pequena, fechada, então...

[?]: Nem o cameraman. [risos]

Paulo Markun: O senhor pode ficar tranqüilo que aqui no Roda Viva tem gente assistindo, temos diversas perguntas dos telespectadores que serão formuladas. [risos]

Dr. Miguel Srougi: Mas veja o problema da tecnologia: do outro lado não tinha ninguém assistindo. Existe um fato que eu faço questão de enfatizar. A medicina é uma mistura de ciência com humanismo. Nenhum médico vai ser um grande médico se ele não se postar ao lado de uma cama quando ele for estudante, se ele não for tratar no hospital público das pessoas indigentes para conhecer um pouco da injustiça social, da influência negativa que a injustiça social tem sobre o aparecimento de doenças. E isso as máquinas, as telinhas não conseguem transmitir. Não conseguem! E nesse ponto eu tenho um grande companheiro de embate que é o Antonio Carlos, a gente se bate muito por esse aspecto. Esta semana eu fiquei bravo, que meu filho estuda na USP, está na USP há pouco tempo, está fazendo curso de moléstias infecciosas, em tempo integral. São dez períodos por semana, de manhã e à tarde, dez períodos; nove períodos são aulas teóricas, e só um período, uma manhã e uma tarde, eles ficaram com os doentes. “Mas está errado esse negócio, Vitinho”!. “Ah pai, o curso está bom, ótimo”. Eles só ficaram uma manhã com pacientes. Esses alunos não vão ser impregnados por sentimentos mais fortes que impliquem em conhecer o sofrimento humano, saber se comunicar com o doente sofrendo. Entendam que medicina é uma mistura de ciência e humanismo, e os próprios médicos, os próprios professores, às vezes, não entendem isso. Na telinha não existe essa parte humanística que é obtida com contato, a hora em que você põe a mão no doente, a hora em que vê um professor conversando com um paciente na sua frente, é isso que impregna o aluno de sentimentos genuínos em relação à parte humanística, essa parte que é um componente importante do exercício da medicina.

[Comentarista]: O doutor Miguel Srougi é um dos médicos mais requisitados no país na área de prevenção e tratamento de doenças da próstata. Tem entre os seus clientes, os empresários Abílio Diniz, Antonio Ermírio de Moraes, Paulo Maluf, o prefeito de São Paulo, José Serra, o governador paulista Geraldo Alckmin, e o vice-presidente José Alencar, entre outros. Miguel Srougi é também um médico com o maior número de operações de câncer da próstata no país, e se tornou um divulgador importante da prevenção da doença ao escrever um livro destinado ao público leigo: Próstata, isso é com você. Em linguagem simples e informativa, ele explica como funciona e o que pode acontecer com a glândula responsável por parte da produção do líquido seminal. Localizada na base da bexiga e envolvendo a uretra, a próstata apresenta um crescimento benigno em quase todos os homens após os 40 anos de idade. Ao aumentar de tamanho, passa a comprimir a uretra e dificultar a saída da urina até o ponto de ser necessária uma cirurgia. Mas a partir dos 50 anos, o crescimento da próstata pode resultar num tumor maligno. Não há sintomas e nem dor, é uma doença traiçoeira que por isso mesmo exige exames preventivos periódicos. Mas o exame mais importante, que é o toque retal, enfrenta preconceito e é rejeitado pela maioria dos homens desinformados. A incidência do câncer da próstata aumenta a partir dos 50 anos, chega a atingir quase 50% dos homens aos 80 anos e provavelmente não poupará nenhum que viver até os 100 anos.

Paulo Markun: Professor Srougi, eu tenho 53 anos, não conheço um companheiro de viagem que faça o exame todo ano. Por quê? Faz um ano, não faz o outro, faz de vez em quando...

Dr. Miguel Srougi: Essa situação está melhorando Paulo, os homens estão ficando mais conscientes sobre os problemas da próstata. O câncer de próstata é muito comum, atinge 18% dos homens. Mas a medicina evoluiu, e nessa área os médicos têm cumprido seu papel. Dezoito por cento dos homens vão ter câncer de próstata, 3 ou 4% vão morrer da doença, o que significa que nós curamos 15% dos pacientes que desenvolvem a doença. E você e seus amigos vão escolher de que lado querem ficar: se você quiser ficar ao lado dos 15%, você tem que fazer os exames anuais.

Paulo Markun: E o que mais? Nada mais?

Dr. Miguel Srougi: O exame anual que a gente preconiza para detectar o câncer de próstata é uma combinação do toque com PSA [Antígeno Prostático Específico], que é uma proteína que se eleva nos casos de tumor. O grande problema é que nenhum desses dois exame é perfeito; o toque falha em alguns casos, o PSA falha em alguns casos, mas quando nós combinamos os dois exames, não escapa praticamente nenhum caso, de modo que o  importante é que todo homem faça um exame anual, o toque e o exame de PSA. Com isso, ele está se protegendo, se por infelicidade, surgir o problema, essa doença vai ser identificada provavelmente no início, e isso permite que ele possa ser tratado adequadamente.

Paulo Markun: Márcio Lins, aqui de São Paulo, pergunta se o câncer na próstata é hereditário, ele quer saber se deve ter cuidado pois tanto o pai quanto o irmão apresentaram a doença.

Dr. Miguel Srougi: O câncer de próstata tem um componente hereditário. A gente sabe atualmente é que se o indivíduo tem parentes de primeiro grau - parentes de primeiro grau significam pai, irmão ou filhos com câncer de próstata - os riscos de desenvolver a doença aumentam de duas a cinco vezes. Mas existe um ambiental real. A incidência do câncer de próstata está aumentando por influências que a gente não soube ainda reconhecer mas são reais. Um japonês que mora no Japão tem sete vezes menos câncer do que um indivíduo que mora na Dinamarca. [o japonês] Tem 30% só do número de casos de câncer de chances de desenvolver um câncer do que o indivíduo que mora nos Estados Unidos. Quando esse japonês muda para os Estados Unidos, as chances dele desenvolver a doença quase se igualam ao de um norte-americano, de modo que alguma coisa nesse ambiente influencia negativamente a próstata e faz surgir um tumor.

Cilene Pereira: Poderia estar relacionada à dieta, por exemplo?

Dr. Miguel Srougi: Dieta é um dos fatores prováveis. Existe inclusive um trabalho muito importante feito aqui em São Paulo, na Unifesp, um trabalho perverso que mostra a face ruim do que a gente chama de civilização. Existe uma tribo de índios no Pará, paracategê - os índios têm pouco câncer de próstata, a chance do índio desenvolver câncer de próstata é três vezes menor do que um indivíduo branco ocidental. Essa tribo foi colonizada pelos brancos, e esse estudo foi feito pelo doutor Botero e o doutor Arruda, da Escola Paulista de Medicina, eu participei apenas como auxiliar nesse estudo. Mas o que esse estudo demonstrou foi um fenômeno muito perverso. A hora em que essa tribo foi colonizada, 70% dos homens se tornaram obesos, e a incidência de câncer de próstata - foi feita uma pesquisa de câncer nesses índios - se igualou aos dos brancos. Veja que coisa complicada. Eles foram colonizados, adquiriram os hábitos e estilo de vida ocidental, ficaram obesos e passaram a ter câncer. A dieta tem um papel importante, talvez seja um dos fatores que tenham influenciado negativamente esse grupo.

Cilene Pereira: Só mais uma coisa. Eu gostaria de complementar nessa questão da dieta, em que medida o consumo de tomate, por conter o famoso licopeno, pode de fato ajudar a prevenir o câncer de próstata?

Dr. Miguel Srougi: Nós não temos ainda medidas muito completas para prevenir o câncer. Nós discutimos o papel do tomate, da vitamina E, do selênio; existem alguns alimentos que talvez tenham algum efeito protetor, mas são idéias ainda não validadas cientificamente.

Paulo Markun: Mas já se validou que mais sexo, mais atividade sexual melhora as chances do cidadão...

Dr. Miguel Srougi: Isso mesmo. Essa suspeita....

Paulo Markun: Por quê?

Dr. Miguel Srougi: A idéia é de que o indivíduo que tem muita atividade sexual lava a próstata, vai eliminando esperma e isso impediria o desenvolvimento de câncer. Essa idéia surgiu porque os padres, que são presumivelmente celibatários, têm mais câncer de próstata do que os indivíduos que não são padres. E daí surgiu a idéia, e isso foi comprovado. Existe um estudo na Austrália em que verificaram que os homens com grande atividade sexual na terceira década de vida tiveram 30% menos câncer de próstata quando chegaram à idade adulta madura. Você tinha falado desses agentes de prevenção, a gente recomenda que os pacientes comam tomate, tomem vitamina E, selênio, encontrado em grande quantidade na castanha do Pará, mas cientificamente não existe nada absolutamente comprovado nesse sentido; são idéias que talvez tenham algum fundamento, mas precisam de validação ainda.

Dr. Luiz Antonio Machado César: É tomar vitamina, complemento, ou alimento que tem vitamina?

Dr. Miguel Srougi: Existe um estudo curioso. Eles administraram vitamina E em cápsulas, 400 miligramas por dia para homens que tinham câncer, que fumavam muito, para tentar evitar câncer de pulmão. E nesse estudo que envolveu 7 mil homens, a vitamina E não preveniu câncer de pulmão, mas diminuiu a chance de câncer de próstata. Mas esse estudo, como eu disse, não foi validado ainda.

Drauzio Varella: Miguel, acho que a localização anatômica da próstata é demonstração de que o homem não nasceu para viver 50 anos, porque a natureza jamais projetaria uma próstata que a uretra precisa atravessar, de modo que quando a próstata cresce, ela comprime a uretra. Queria que você falasse um pouco sobre a chamada hipertrofia prostática benigna, o aumento benigno da próstata.

Dr. Miguel Srougi: A próstata é uma glândula pequena, ela tem o tamanho de uma castanha, pesa quinze gramas, do tamanho de bola de pingue-pongue, mas ela realmente é responsável por uma série de sofrimentos no homem maduro. Primeiro é o crescimento benigno, quase todos os homens têm o aumento de próstata, isso oclui a uretra que passa no meio da próstata e o indivíduo passa a urinar com dificuldades. Quase todos os homens têm alguma dificuldade para urinar após os 50 anos, mas felizmente um terço só é que desenvolve sintomas mais exuberantes que acabam exigindo alguma forma de tratamento, com medicamentos, ou até, em último caso, com uma cirurgia. O crescimento benigno nada tem a ver com o câncer de próstata, são doenças diferentes que surgem de forma independente. O câncer tem outras causas, outras conseqüências óbvias; o crescimento benigno, apesar da alta prevalência, na verdade acaba prejudicando a qualidade de vida de talvez 20 ou 30% só dos homens, de modo que é um problema que não tem um impacto tão grande quanto o câncer de próstata.

Mônica Teixeira: Para que serve a próstata?

Dr. Miguel Srougi: A próstata é uma glândula que tem um papel importante na fase reprodutora do homem, pois ela produz o sêmen que transporta os espermatozóides; passada a fase reprodutora, ela perde a função biológica.

Mônica Teixeira: A fase reprodutora do homem é eterna, digamos assim... [risos]

Dr. Miguel Srougi: Mas, passando a fase reprodutora, ela, na verdade, deixa de ter qualquer papel biológico, e passa a só atrapalhar o homem. Ela não é importante para a vida sexual do homem, isso é importante, os homens fazem muito essa confusão. O indivíduo com próstata ou sem próstata tem vida sexual normal. O problema é que quando ele desenvolve um câncer de próstata e precisa remover este câncer, na remoção ou quando ele faz um tratamento com radioterapia, os nervos responsáveis pela ereção podem ser prejudicados, então é o tratamento do câncer que prejudica a função sexual, e não é a próstata em si.

Paulo Markun: Pergunta que vários telespectadores fizeram aqui. Valdir Santos, de São Paulo, Carlos Afonso, aqui de São Paulo, Antônio Siqueira de Belo Horizonte, e João, de Itaquera, fazem praticamente a mesma pergunta: um paciente de 75 anos com tumor maligno na próstata pode ser caso de cirurgia?

Dr. Miguel Srougi: Exatamente. O tratamento do câncer de próstata é complexo, porque as técnicas que nós temos curam os pacientes, a cirurgia cura, radioterapia cura, na maior parte dos casos. Mas todos os tratamentos do câncer de próstata podem causar seqüelas, que comprometem muito a qualidade de vida do paciente; impotência sexual é uma das seqüelas, descontrole da urina, que chamamos de incontinência é outra seqüela, doentes que tomam hormônio podem perder massa muscular e ter descalcificação óssea. De modo que os pacientes com câncer de próstata atualmente podem ser curados de forma consistente, mas infelizmente pagam um preço por isso, porque a medicina não chegou ainda num ponto ideal de poder tratar esses casos propiciando uma chance grande de cura sem deixar seqüelas.

Paulo Markun: O senhor já disse que entre a cirurgia e o tratamento radioterápico, é uma questão do que vem antes, botar o carro adiante dos bois para simplificar as coisas, quer dizer, não há no caso da radioterapia, é difícil se fazer uma cirurgia posteriormente, já o contrário pode acontecer, não é isso?

Dr. Miguel Srougi: Isso mesmo. Os dois tratamentos são válidos, a cirurgia cura um pouquinho mais que a radioterapia, mas causa um pouco mais de inconvenientes. E nessa hora, o médico que cuida do doente tem a oportunidade de exercer a medicina na maior dimensão. Nenhum médico pode chegar para o doente e falar: “Faça cirurgia ou faça radioterapia”. O que o médico tem que fazer é apresentar as opções, mostrar as chances de cura e os inconvenientes dos tratamentos. E os pacientes, levando em conta seus sentimentos, participarem da decisão. Esse médico está exercendo a medicina na sua dimensão única e maior.

Laura Caprigluione: Doutor Miguel, o senhor acabou de falar os problemas que uma cirurgia pode acarretar à vida de um paciente que tenha câncer de próstata - incontinência, impotência, enfim. E parece - e o senhor me corrija, por favor, se eu estiver errada - que a habilidade do cirurgião é fundamental para reduzir ou minimizar essas seqüelas. Como é que uma pessoa que esteja com câncer de próstata e que não possa contratar o doutor Miguel Srougi faz para escolher um cirurgião nessa hora?

Dr. Miguel Srougi: O médico brasileiro é muito habilidoso, ele tem que superar dificuldades de ordem tecnológica, tratando de forma um pouco mais apurada os seus pacientes. É por isso que os cirurgiões brasileiros são muito destacados, eles têm uma ação muito grandiosa, todos os cirurgiões brasileiros. Nos Estados Unidos o sujeito opera, manda para a UTI [Unidade de Tratamento Intensivo] e na UTI eles recuperam o paciente, uma recuperação até meio suja e porca. E no Brasil a técnica cirúrgica tem que ser perfeita porque a gente não dispõe de UTI para todos os doentes, não dispõe de cuidados perfeitos depois de uma intervenção cirúrgica. Para ser um indivíduo hábil em cirurgia de câncer de próstata, não precisa fazer centenas e centenas de cirurgias. Qualquer médico que faça mais que 30 intervenções por ano se torna habilitado a fazer com grande precisão essa cirurgia. Em todas as cidades brasileiras nós encontramos grupos de médicos com essas características, de modo que o paciente brasileiro não deve se preocupar muito com esse problema. Nós temos indivíduos altamente qualificados em todas as cidades brasileiras, nas maiores cidades pode-se fazer com segurança essa intervenção.

Paulo Markun: Agora, professor, a pergunta de Adenor Quadros, de Santo André: por que ainda se faz citoscopia, biópsia da próstata ou mesmo ressonância nuclear magnética da próstata com bobina endoretal sem anestesia?

Dr. Miguel Srougi: Essa prática está sendo abandonada. Na verdade, manipular um paciente com todos os avanços que a medicina tem no sentido de controlar a dor e impedir o sofrimento, não tem muito sentido. Quer dizer, nós temos que usar esses recursos. Atualmente qualquer doente, recebendo um cuidado razoável, recebe uma pequena sedação e pode fazer todos esses exames sem sofrer maior agressão. Eu queria só aproveitar a oportunidade, a pergunta anterior sobre se o indivíduo de 75 anos precisa ser tratado ou não, eu queria dizer o seguinte. A idade deixou de representar um limite para se tratar alguém com uma cirurgia ou qualquer outra forma de terapêutica. É muito importante a gente falar em perspectiva de vida, porque um indivíduo de 75 anos que tem uma grande forma física, está em plena atividade intelectual, profissional, conduzindo a sua família, tem que receber tratamento curativo, cirurgia radical, o que for; e tem indivíduos com 60 anos que estão absolutamente debilitados por sucessivas doenças, e estes, o médico tem que ter o bom senso de não ser agressivo e não tornar o tratamento pior do que a doença. Então, no caso do indivíduo de 75 anos, tem que prevalecer o bom senso médico, o sentimento de compreensão e solidariedade do médico em relação ao doente para tratá-lo de forma correta.

Paulo Markun: E a pergunta agora é do médico Lauro Aventurato, sobre as questões psíquicas que afetam as pessoas quando ficam sabendo que estão com câncer. Vamos ver.

[VT de Lauro Aventurato]: É comum o paciente, quando é comunicado que seu diagnóstico é um câncer, precipitar um estado de angústia intensa, muitas vezes acompanhado até de um quadro depressivo. Como o senhor aborda tal situação? Como, dentro da sua experiência, o senhor orientaria os profissionais de informação tão voltados para a tecnologia, cada vez mais distantes da vida psíquica, da possibilidade de olhar para aquele ser humano, lidar nas instituições, na equipe interdisciplinar, com tal problemática?

Dr. Miguel Srougi: O indivíduo, quando descobre que tem um câncer - isso vale para todas as situações - é tomado por um sentimento obviamente de profundo sofrimento, e eu acho que existem dois motivos importantes para isso. É que a mente humana, em primeiro lugar, não aceita a idéia do aniquilamento físico. A primeira idéia que surge à nossa cabeça quando o indivíduo tem câncer é que vai ocorrer esse aniquilamento. E nós não aceitamos também a separação, a gente sofre muito com a possibilidade de se separar das pessoas que a gente realmente ama e que a gente tem a nossa volta. O indivíduo que tem câncer, esse sentimento de que a vida talvez vai se extinguir, cria realmente um sofrimento muito grande. Ele passa a ter, obviamente, momentos de grande temor até, ou de grande terror, vamos dizer assim -  exagerando um pouco -  porque ele sabe que ele vai decair fisicamente, ele vai se desfigurar. Existe sempre a perspectiva no indivíduo com câncer, do abandono, ele acha que as pessoas vão abandoná-lo; ele sofre porque vai perder o papel social dele, porque vai perder aquele papel de liderança na família, ou seja, existem vários sentimentos que tomam a cabeça do sujeito, que passam a povoar a mente desse indivíduo e que criam um tremendo sofrimento. O médico precisa reconhecer isso, ele precisa saber que tudo isso passa pela cabeça do indivíduo que tem câncer. O que eu tento transmitir para os indivíduos que estão à minha volta e que eu preciso ensinar que eles têm que ajudar esse paciente? Eu acho que existem três ações muito importantes. A primeira ação é o indivíduo aprender a ouvir o paciente. No momento em que o médico ouve o paciente, ele elimina um pouco das apreensões desse paciente, ele dá para o doente a sensação de que ele está controlando o processo também. A hora em que o médico ouve o doente, ele permite que um pouco daqueles sentimentos de culpa sejam colocados para fora, que é uma das coisas que faz o paciente sofrer. O médico precisa ensinar as outras gerações - isso a gente tenta fazer - a se expressar numa dimensão maior, não apenas ouvir, mas falar numa dimensão maior. E o que significa falar com o doente numa dimensão maior? Significa gerar esperança para esse paciente, significa eliminar as apreensões desse paciente; falar numa dimensão maior significa criar vislumbres de esperança para essa pessoa.

Paulo Markun: Mas, só para entender, isso não significa engabelar o paciente e vender gato por lebre?

Dr. Miguel Srougi: Exatamente, não significa isso. Eu acho que nessa forma de se comunicar com o doente – e isso que você falou é muito importante, Paulo - o médico que tem sensibilidade sabe até onde pode ir; ele não pode simplesmente começar a jogar números frios em cima da cabeça de um doente, e apresentar uma situação que nem todo o doente quer ouvir. O doente com câncer, às vezes, quer saber com precisão o que pode acontecer com ele, e outros não querem ouvir. E o médico precisa ter sensibilidade para falar para quem quer ouvir e não despejar números...

Paulo Markun: Desculpe interromper o senhor. Não existe, então, um procedimento no manual: “cada vez que você encontrar um paciente com câncer, diga a ele o que o vai acontecer com ele”...

Dr. Miguel Srougi: De jeito nenhum. O exercício de medicina implica nesse tipo de sentimento, de sensibilidade, de percepção. Você reconhecer em cada ser humano um indivíduo único, cujos sentimentos têm que ser respeitados. E o médico que não consegue perceber isso não é um bom médico. Isso diferencia muito os médicos, às vezes o médico é bom tecnicamente, mas ele não consegue ter essa percepção e ele não vai fazer medicina direito.

Mônica Teixeira: Já aconteceu, na sua prática clínica, de alguém sobreviver a um câncer que o senhor não apostaria, o senhor alguma vez foi surpreendido por algum paciente?

Dr. Miguel Srougi: Acontece muito, os médicos vivem muito isso, e o tempo nos ensina até por esse motivo, Mônica, a não fazer previsões. A medicina é uma ciência inexata, inumana, sabe? O médico que se acha conhecedor de todos os segredos e se coloca numa posição de começar a querer ditar a história, a evolução, só faz bobagem.

Mônica Teixeira: A evolução pode ser então diferente do que o senhor imagina?

Dr. Miguel Srougi: Sem dúvida. E esse é um dos mecanismos que a gente usa até para dar alento aos doentes, entendeu? Muitas vezes a situação pode parecer perdida, mas existem exemplos de pessoas que superaram obstáculos que pareciam instransponíveis. Esses exemplos têm que ser apresentados para os doentes.

Cilene Pereira: O que o senhor acha do uso de recursos como yoga e meditação como ações coadjuvantes no tratamento do câncer?

Dr. Miguel Srougi: Acho que têm grande valor. Quando eu falei que o médico tem que se expressar numa dimensão maior, é dar valor para esses sentimentos, respeitar os sentimentos do doente. Valorizar a espiritualidade, por exemplo, é um tremendo fator de pacificação para o espírito do paciente. Como eu disse, ninguém aceita o aniquilamento físico, e uma das formas que nos permite enfrentar uma situação tão difícil quanto essa é saber que se o paciente apela para a espiritualidade, ele sabe que a vida não vai terminar naquele momento; ele sabe que depois da vida poderá ter uma outra vida, então isso ajuda a atenuar um pouquinho o sofrimento. Nem por isso a gente fica querendo morrer porque vai ter outra vida, mas estimular a espiritualidade, permitir que o doente exerça esse tipo de sentimento é uma ação muito importante para o porte dos médicos e que nem sempre é feita. Muitos médicos, às vezes, mal preparados e com pouca sensibilidade, dizem: “Isso é bobagem, não faça isso!” Pelo contrário, temos que estimular isso.

Paulo Markun: Professor, estimular isso realmente é importante. Infelizmente o Roda Viva nós não conseguimos prolongar além do seu horário. E eu queria agradecer muito a sua entrevista, desejar boa sorte nessa empreitada agora de professor titular de urologia da Universidade de São Paulo.

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