;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Mary Robinson

15/6/2000

Ela modernizou a Irlanda na presidência da República e trabalha nas Nações Unidas pela retomada da cultura dos direitos e da dignidade do homem

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

Paulo Markun: Boa noite! Ela já foi considerada um símbolo da Irlanda moderna. Lutou pelo divórcio, fez campanha em favor do aborto, foi senadora e presidente de uma república considerada muito conservadora. Hoje, viaja por vários países do mundo em nome da ONU [Organização das Nações Unidas] para debater a situação dos direitos humanos no planeta. O Roda Viva entrevista esta noite a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson. Advogada e militante dos movimentos de defesa dos direitos humanos na Irlanda, Mary Robinson se tornou conhecida e famosa ao fazer carreira política e se eleger senadora e depois presidente da República. Um cargo mais simbólico – já que, na Irlanda, o poder executivo está nas mãos do primeiro-ministro –, mas um cargo importante para quem planejava apoiar movimentos e mudanças que até então não tinham sido bem considerados no processo político da Irlanda. Em 97, foi convidada e assumiu o cargo de alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. E, nessa condição, Mary Robinson veio ao Brasil debater com a sociedade civil e representantes do governo questões relacionadas aos direitos humanos. Para entrevistar a alta comissária dos Direitos Humanos, Mary Robinson, nós convidamos o cientista social Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP; o jornalista Ademir Azevedo, presidente do Conselho Deliberativo do Programa Estadual de Proteção às Testemunhas de São Paulo e um dos fundadores do Movimento Nacional de Direitos Humanos; a arquiteta Dulce Maria Pereira, presidente da Fundação Cultural Palmares e membro da Comissão Preparatória Brasileira da Conferência Mundial contra o Racismo; a psicóloga Edna Maria Roland, presidente da ONG Fala Preta e doutoranda pelo programa de psicologia social da PUC; o jornalista Vicente Adorno, editor de internacional da TV Cultura; a socióloga Amélia Cohn, pesquisadora do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea e professora da USP, e o administrador de empresas Carlos Idoeta, fundador da Anistia Internacional no Brasil. [Programa gravado, que não pernitiu a participação do telespectador via fax, telefone ou internet] Boa noite, Mary Robinson.

Mary Robinson: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar recuperando um pouco da sua história política, que a gente resumiu, aí, muito rapidamente na apresentação do programa. Quando a senhora se interessou pela primeira vez por essa questão dos direitos humanos? Ela já está no início da sua carreira política?

Mary Robinson
: Acho que desde o início, quando decidi estudar direito, ou até antes, quando tinha 15 anos. Eu tinha um grande senso de lealdade e justiça e conversei com meu avô, que era advogado. Eu me interessava pela lei, não como uma coisa estática, mas como um instrumento para mudanças. Quando estudei direito, em Dublin, fiquei um pouco frustrada, pois eles tinham uma abordagem antiquada. Tive sorte de ir para a Faculdade de Direito de Harvard [Cambridge, Massachusetts, EUA] e descobri que havia um questionamento maior. Era época da Guerra do Vietnã e os jovens questionavam a moralidade daquela guerra. Havia também os movimentos pelos direitos civis. Tudo isso me influenciou. Assim, eu me envolvi com a lei com uma forte componente de direitos humanos.

Paulo Markun
: A senhora acha que, desse período para hoje, o mundo da lei, quer dizer, o predomínio dessa lei que a senhora buscava, digamos, de alguma forma defender, lei que seja a favor dos direitos humanos, aumentou no planeta? É positivo o balanço que se faz ou ainda nós estamos tão atrasados quanto estávamos quando a senhora começou?

Mary Robinson
: Acho que aumentou enormemente. Tenho ciência da posição central que os direitos humanos ocupam. Acho que o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos causou um grande impacto em cada país, em todas as regiões e entre os jovens, pois os professores mostraram aos estudantes que os direitos humanos são muito importantes, é preciso conhecê-los. Eu sabia muito bem, pois já era alta comissária de Direitos Humanos, que estávamos criando uma verdadeira cultura de direitos humanos, da importância disso. Mas se fala em direitos humanos em todos os contextos. Direitos humanos no comércio, na comunidade empresarial, direitos humanos nas questões de tortura, direitos da criança... mas também, muito importante, direitos econômicos e sociais: direito à comida, à educação, todo o conceito do direito ao desenvolvimento... E os direitos humanos, em parte, abordam a discriminação, questões de desigualdade. Acho que é uma moldura moral para este século.

Paulo Sérgio Pinheiro
: O que eu queria perguntar era uma coisa bastante recente, um fato bastante recente, que foi algo que os brasileiros seguiram de uma forma intensa, que é a questão da Chechênia. Eu li o seu relatório, que não só é circulado na ONU, mas tem sido publicado na New York Review of Books [revista norte-americana dedicada à literatura, cultura e atualidades, publicada quinzenalmente], e a senhora faz uma constatação devastadora, especialmente das suas impressões sobre a cidade de Grozni. E a senhora chamava... convidava as autoridades russas a estabelecerem uma comissão independente. O que a senhora acha que foi efetivamente conseguido? Qual foi a repercussão da sua visita na própria Federação Russa?

Mary Robinson: Em primeiro lugar, às vezes é importante estar perto das vítimas de violações de direitos humanos, mostrar que alguém se importa, que há uma identificação com sua dor, seu medo, com a situação terrível em que estão. E quando eu fui a Inguchétia [república da Federação Russa que faz divisa com a Chechênia a oeste] e Chechênia, vi muitos que haviam passado por experiências terríveis. Ir para Grozni foi inesquecível. Vi toda uma cidade no chão e vi idosos tentando achar comida, tentando viver na cidade destruída. Estar lá já foi importante. Eles sabiam que alguém queria mostrar aquilo. Foi o que me disseram: “Diga ao mundo, conte a todos, faça algo, ajude-nos”. Foi bom, pois pude fazer o relatório para a Comissão de Direitos Humanos, que é o principal órgão da ONU em direitos humanos. Mas o verdadeiro foco é tentar fazer a Federação Russa aceitar a posse e a responsabilidade. Acho que isso está começando a ocorrer. Mantenho um diálogo constante, fui convidada a voltar. Espero que a situação esteja melhor, pois a violação dos direitos humanos foi muito grave. E tenho de levar isso para as autoridades russas.

Carlos Idoeta
: Eu queria explorar um pouco com a senhora Robinson a questão da independência do cargo dela. Os direitos humanos são um sonho, não é? De 1948, os legisladores de 48 sonharam com o mundo livre do medo e da miséria. A declaração veio para acabar com o medo e a miséria no mundo, na esteira das atrocidades da Segunda Guerra Mundial em escala inerte, enfim. E a grande novidade da declaração foi essa emergência do indivíduo num espaço que era exclusivo do Estado. E o que eu aprendi com a minha militância é a importância da independência, quer dizer, o foco na vitima, independentemente de considerações partidárias, nacionais, religiosas e econômicas. A senhora Robinson ocupou um cargo novo no qual nós outros, militantes, depositamos grande esperança. Eu me pergunto: como funciona um cargo como esse dentro de uma organização intergovernamental como a ONU? Em que medida ela pode atuar com independência, livre de junções nacionais, econômicas, partidárias, como funciona esse cargo? Eu tenho curiosidade para saber qual é a liberdade de manobra de que a senhora dispõe hoje no exercício desse cargo que, repito, nutre grandes esperanças nos militantes de direitos humanos.

Mary Robinson
: Em primeiro lugar, concordo com você. É muito importante ter essa independência e integridade. O que ajuda foi que, quando me apresentei por meu país, Irlanda, como candidata para ser alta comissária, foi porque queria trabalhar pelos direitos humanos. Eu tinha uma única agenda. Isso me torna pessoalmente muito independente. Eu não viso a nenhum outro cargo ou agenda. Só quero ajudar a fazer os direitos humanos progredirem. E há a função do alto comissário, que é muito interessante, como lembrou. Não sou uma ONG, sou a ONU, porém busco trabalhar com a sociedade civil e também dialogar com os governos. É algo muito grande e devo fazer parceria com outros. Isso é muito bom pra o meu departamento. Somos um departamento pequeno na ONU e fico feliz por isso, pois os direitos humanos são pertinentes a todos e parte do que devo fazer é ser um catalisador e um estimulador para que todos assumam sua parte de responsabilidade nos direitos humanos. Para trabalharmos juntos no que eu espero que venha a ser uma aliança global. Se eu puder explicar e responder a sua pergunta sobre como eu vejo a capacidade da ONU para ajudar nos direitos humanos. Em primeiro lugar, eu recebi a tarefa de conduzir os direitos humanos através do sistema da ONU, do secretário-geral Kofi Annan [diplomata africano que ocupou o cargo de secretário-geral da ONU entre 1997 e 2007 e recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2001]. Isso significa que todos os programas e agências trabalham para os direitos humanos. A Organização Mundial da Saúde [OMS], a Organização Internacional do Trabalho [OIT], Unicef [sigla em inglês de Fundo das Nações Unidas para a Infância], Unesco [sigla em inglês de Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], UNDP [sigla em inglês de Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, como é chamado no Brasil], parceiros muito importantes. Uma coisa que fiz ontem, em Brasília, foi me reunir com a família da ONU e discutimos como eles, uma equipe da ONU no país, estão trabalhando pelos direitos humanos no Brasil. Posso ajudar a dar forma, a dar uma liderança, a estimular esse processo. Eu também trabalho com os tratados. O Brasil tem um bom histórico de ratificar tratados, mas não de fazer relatórios. Recentemente fez um relatório sobre tortura que será avaliado em Genebra. Há pouco tempo, conheci um grupo de ONGs brasileiras que foram a Genebra com um relatório alternativo sobre direitos econômicos, sociais e culturais, porque o governo brasileiro não havia feito um relatório. Isso causou um forte impacto no Comitê em Genebra. Essa é outra área que meu departamento apóia. E há os relatores. Fiquei feliz em saber, ao chegar aqui, que o Brasil convidou o relator especial sobre torturas para uma visita. Isso é muito positivo, ajudará muito. Finalmente, há o trabalho do meu departamento, as visitas que posso fazer, em questões críticas como Chechênia ou Serra Leoa, a países que estão abertos a um bom diálogo, como o Brasil e muitos outros países. Temos programas de cooperação técnica com cinqüenta países. E fico feliz, pois esta manhã, em Brasília, assinei uma carta de intenções para um programa de assistência técnica em que poderemos introduzir uma forma de cooperação técnica na administração judiciária, no treinamento policial, áreas nas quais podemos ajudar o governo. É aí que a ONU, no contexto dos direitos humanos, está tentando desempenhar um papel, pois os direitos humanos tornaram-se fundamentais no nosso século. Quero ainda dizer que temos muita sorte, vamos começar o século com um sentimento conjunto da importância dos direitos humanos. É a primeira vez que isso acontece. Agora, temos de construir, colocando os direitos humanos em prática, na base, onde interessa.

Vicente Adorno: A senhora parece ter um bom trânsito com governos. Com a importância do seu cargo, naturalmente a senhora é bem recebida. A senhora relatou a sua experiência na Chechênia. Eu soube que a senhora esteve também na África, na Serra Leoa e outros lugares. Eu gostaria de saber como funciona isso. A senhora estabelece esse contato com os governos: eles têm um compromisso, digamos assim, com as Nações Unidas de respeitar a Carta dos Direitos Humanos, dos Direitos do Homem [Carta Internacional dos Direitos do Homem, constituída pela Declaração Universal dos Direitos Humanos; pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos]... Mas como funciona isso na prática? Depois que a delegação da ONU vai embora, existe alguém que fique de olho nisso? Existe alguma possibilidade de garantir que o que é combinado, por exemplo, numa visita sua, vai se estender? Vai ser cumprido? Vai se tornar a norma, e não a exceção, e não se vai voltar à barbárie de antigamente? Eu estou falando isso, porque, justamente nesses dias, o governo russo decidiu dificultar ao máximo a vida dos jornalistas, não só russos, porque invadiu redações, invadiu locais de televisão, impediu a chegada de equipes de reportagens e também está ameaçando, agora, impedir que os estrangeiros continuem fazendo esse trabalho. Como a senhora reagiria a isso?

Mary Robinson
: Em primeiro lugar, acho que o sistema internacional, o sistema da ONU não é perfeito nem é a resposta verdadeira. São as normas que agora são universais e é um mecanismo, um processo para tentar garantir essas normas no âmbito de um país inteiro. Mas as verdadeiras forças estão dentro do próprio país; aí entram também a responsabilidade do governo e as forças da sociedade civil, o monitoramento e o apoio da sociedade civil. Amanhã, estarei muito interessada no lançamento e desenvolvimento de observatórios no Brasil. Isso envolverá ONGs e jovens, no sentido de monitorar os direitos humanos. De certa forma, isso é algo que deixarei e também, como já disse, fico feliz com a carta de intenções para um programa de assistência técnica. Porém, muito mais importante do que o que a ONU faz, são a responsabilidade dos governos e o papel da sociedade civil para fazer o governo cumprir suas obrigações. Esse é o verdadeiro impulso para os direitos humanos. Uma última coisa: você disse que sou bem recebida pelos governos. Um sábio colega me disse: “No cargo de alta comissária para os Direitos Humanos, se você ficar muito popular, não está trabalhando direito. Deve estar preparada para não ser popular”. [risos]

Amélia Cohn
: Eu queria colocar duas coisas. Na sua experiência intensa de visitar Grozni, Ruanda, Serra Leoa etc, onde a violência é mais visível, seja por questão de guerra, de tragédias, como lidar com algo... por exemplo, o que acontece no Brasil? Recentemente, um grande cientista social brasileiro escreveu um artigo dizendo que o Brasil está produzindo um "apartheid à brasileira", que não é aquele apartheid que você vê e separa, como na África do Sul, porém essa violência econômica e social dos direitos básicos do cidadão é algo que está aí na nossa sociedade. Agora, isso é algo muito mais difícil de se lidar enquanto defesa de direitos humanos, porque não é a questão da violência na prisão, da violência da polícia etc. Eu queria que a senhora contasse um pouco dessa sua experiência do lidar com coisas que são mais marcantes, pactantes e mais definidas e com essa violência que é difusa e que tende a ser naturalizada. Quer dizer, este apartheid de brasileiro está indo na direção de se naturalizar para a pobreza, naturalizar a exclusão?

Mary Robinson: Acho que você tem razão em dizer que é mais fácil tratar das violações claras dos direitos humanos. Podemos usar os mecanismos existentes, podemos protestar, demonstrar revolta, podemos inflamar a opinião pública. Mas as divisões mais sutis, as discriminações e barreiras em uma sociedade são mais difíceis. Acho muito importante que isso seja abordado. É difícil, para alguém que faz uma visita tão breve, entender toda a complexidade. Mas este é um momento muito especial para o Brasil, porque vocês estão reformulando sua identidade. Estão comemorando 500 anos e foi com luta e dificuldade... vocês ainda não formaram totalmente sua identidade. E deve ser uma identidade inclusiva. Vocês não podem ter essas barreiras. Mas, em uma sociedade que é muito desigual, é preciso abordar a questão da igualdade. É absolutamente fundamental. Sei que as pessoas querem segurança e elas têm direito à segurança, mas a verdadeira segurança é uma sociedade inclusiva, justa, que desenvolva uma força e uma coesão social. E o Brasil deve abordar esse problema, na minha opinião.

Dulce Maria Pereira: A senhora falou da questão tão importante que é [a] da organização, hoje em dia, de uma cultura dos direitos humanos. Agora, existem várias agendas em várias partes do mundo para essa cultura dos direitos humanos. Muitas vezes e eu certamente me refiro, inclusive, a sociedades como a sociedade brasileira, são sociedades altamente hierarquizadas, onde se produz, como foi bem dito, esse apartheid, não é um apartheid sem lei, mas é um apartheid real, do ponto de vista do cotidiano. E ainda há sociedades onde as referências, as hierarquias se estruturaram e produziram processos de desenvolvimento muito perversos e culturas de desenvolvimento também muito perversas que, na verdade, não são coerentes com uma cultura de direitos humanos. Nesse contexto, eu perguntaria para a senhora: qual a importância da Conferência Mundial de Combate ao Racismo? Certamente a senhora, sendo mulher, sendo irlandesa, há de depositar muita expectativa nesse processo em todo mundo.

Mary Robinson: Acho que a Conferência Mundial é muito importante, pelos motivos que citou. Acho que abordará, em diferentes regiões e países, problemas sérios que precisam ser abordados. A primeira coisa é um importante processo de preparação e a preparação no âmbito nacional é quase tão importante quanto o que ocorrerá na África do Sul no final de agosto, início de setembro do ano que vem na Conferência Mundial. Será o final desse processo. O meu país, Irlanda, foi um país de onde as pessoas emigraram, em busca de uma vida melhor. Agora, a Irlanda é muito próspera e não recebe bem refugiados e aqueles em busca de asilo. E sentimos um racismo e uma xenofobia que as pessoas não conheciam há dez ou vinte anos. Há um grande questionamento sobre o problema na Irlanda. Em vários países da Europa, há o mesmo questionamento. Cada região tem seus problemas particulares. Há o problema dos ciganos, há problemas em diferentes partes da África. E há os problemas do Brasil. Fiquei impressionada com uma pesquisa de opinião, com o reconhecimento de que a discriminação racial é um problema grave aqui. Para mim, é o começo de um bom processo admitir e seguir em frente. Assim, uma boa preparação nacional aqui, no Brasil, será, em parte, reformular e encontrar um novo posicionamento da identidade brasileira moderna. E ela será abrangente e enriquecida por isso.

Dermi Azevedo: Em uma de suas entrevistas, a senhora faz referência a três personalidades que marcaram muito a sua vida e a sua opção pelos direitos humanos, a luta pela democracia. A senhora se refere a Mahatma Gandhi [(1869-1948), grande líder pacifista da história, liderou o processo de independência da Índia, em realação à Inglaterra, por meio de um movimento de resistência pacífica e da pregação da não-violência], Nelson Mandela [um dos maiores líderes políticos da história, foi presidente da África do Sul de 1994 a 1999 e principal representante do movimento antiapartheid. Por sua atuação como guerrilheiro, sabotador do regime oficial e militante do Congresso Nacional Sul-Africano (CNA), foi preso em 1962 e só foi libertado 28 anos depois] e a Václav Havel [(1936), premiado dramaturgo tcheco dos anos 1960 cujas peças eram sátiras políticas e foram proibidas em 1968 após o fim da Primavera de Praga, movimento de intelectuais reformistas do Partido Comunista Tcheco duramente combatido pelo governo russo. Em conseqüência, Havel criou o Charter 77, movimento de defesa dos direitos humanos, o que lhe rendeu detenções e prisões, causando protestos em todo o mundo]. Eu pergunto quais os pontos incomuns que a senhora distingue nessas três personalidades, cada qual no seu contexto, e que inspiram a sua mística de atuação em favor dos direitos humanos?

Mary Robinson: Acho que são idealismo, coragem e, mesmo sofrendo, não ficar hostil ou ressentido, mas aberto e disposto a construir pontes. Foi isso que me impressionou.

Edna Maria Roland: Senhora Mary Robinson, me parece que a senhora teve uma percepção muito precisa acerca do Brasil quando disse que o Brasil é muito bom para assinar convenções, mas não tão bom para encaminhar os relatórios que demonstram as violações que ocorrem cotidianamente no nosso país. Eu queria me referir, todavia, ao relatório da Anistia Internacional de 1999 e também ao relatório de direitos humanos elaborado pelos Estados Unidos, em que a questão da brutalidade da polícia aparece como mais grave problema de direitos humanos no Brasil. Considerando a presença desproporcional dos negros no sistema carcerário no Brasil e também a atuação seletiva da polícia nas ruas, eu gostaria de saber se a senhora considera se esses abusos da polícia, na verdade, estão profundamente articulados com a questão da discriminação racial nesse país.

Mary Robinson
: Sim, acho que estão relacionadas, mas acho que é mais amplo que uma questão racial. É um problema muito grave. No passado, era aceito o uso da violência e tortura por parte da polícia e isso ficou arraigado como uma espécie de cultura. Uma cultura ruim. E será muito importante, em primeiro lugar, reconhecer a gravidade. E eu fui auxiliada por um relatório da Anistia quando me preparava para a visita. Eu tenho, no papel, uma boa idéia da gravidade do problema. É importante voltar para essa cultura dos direitos humanos. Porque, basicamente, é sobre a dignidade e o valor do ser humano. Se o policial conhecer o valor e dignidade de cada pessoa, será dado um grande passo. Isso englobará a discriminação racial, mas também se você for pobre, jovem, homem ou até mulher, é provável que não seja respeitado. Mas você deve ser respeitado. Essa é a cultura dos direitos humanos. Será preciso treinamento, será preciso disciplina firme, será preciso enfatizar que a verdadeira segurança é baseada nos valores dos direitos humanos, na cultura dos direitos humanos. Não baseada na repressão e no encarceramento, quando outras sentenças seriam melhores para delinqüentes juvenis. Baseada em boas condições dos presídios, que propiciem uma chance de reabilitação. E não é apenas idealismo, é uma realidade prática de se criar coesão em uma sociedade. Mas, para voltar, sem de forma nenhuma menosprezar a gravidade, estou preocupada com a necessidade de tratar disso e fico feliz pelo fato de o relatório contra a tortura ter sido enviado para o Comitê contra Torturas. E o relator especial virá em uma visita oficial e irá às prisões, irá às polícias e abordará essas questões de modo bem aberto. E fico feliz que haja um reconhecimento maior dos problemas de violência, tortura, maus-tratos às crianças, crianças de rua e a exploração brutal das crianças. São questões que devem ser tratadas com seriedade. Mas, para mim, há uma abertura em relação a isso e conheci em Brasília grupos que fazem um ótimo trabalho e sei que o mesmo ocorre em São Paulo e no Rio. A sociedade civil está engajada e isso é importante.

Paulo Markun: Senhora Mary, nós vamos fazer um rápido intervalo e o Roda Viva volta daqui a instantes. Até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson. Eu queria começar esse bloco falando um pouco do lado pessoal da vida da senhora. Um dos detalhes que me chamou atenção na sua biografia é o fato de que a senhora é uma católica casada com protestante, o que na Irlanda é muito mais do que se pode imaginar no Brasil. A senhora imagina que essa experiência particular de tolerância pode ser a regra geral da humanidade? Eu digo isso, porque o que a gente assiste no mundo... a maior parte das lutas, certamente, hoje, não se dá por questões econômicas, mas se dá por questões religiosas, por questões étnicas, problemas que aparentemente o bom senso deveria resolver.

Mary Robinson: Sim, acho que o fato de eu ser uma católica casada com um protestante, na Irlanda, deu-me um discernimento prático, em especial para lidar com as duas comunidades na Irlanda do Norte. Eu fiz isso trabalhando como advogada e senadora, mas ainda mais como presidente. Isso significava que eu poderia me comunicar, porque, de certa forma, havia uma idéia de que nós havíamos vivido e tratado dessas questões. E para nossos três filhos isso não foi um problema. Isso também me fez ver a enorme contribuição que as religiões fazem. Pode haver um lado negativo, mas aprendi, como alta comissária, a ver as religiões. Fico feliz que haja um diálogo maior entre as religiões e eu me esforcei ao máximo, durante o 50º aniversário, para convidar estudiosos islâmicos a irem à ONU, em Genebra, para discutir a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Porque a declaração também é deles, não é uma abordagem ocidental. Eu aprendi que devemos escutar mais e eu dou a mesma importância para o lado humano, mas, se queremos ter uma verdadeira ética global – e acredito que precisamos disso–, ela deve ser fundamentada nos direitos humanos, mas também precisa do apoio do pensamento religioso.

Dulce Maria Pereira
: Senhora Robinson, é muito marcante a sua atuação como mulher no mundo, a sua independência, a sua capacidade de questionar e, ao mesmo tempo, de ser extremamente firme e de propor ruptura com ordens que são ordens estabelecidas através da história. O quanto de cultura feminina, de fato, se aplica de forma consciente nessa sua atuação?

Mary Robinson: Sempre foi importante para mim trabalhar como advogada, participar do Senado, envolver-me em discussões que dizem respeito à Europa, sempre consciente da força de ser uma mulher e da necessidade de apoiar outras mulheres, porque sempre achei que mulheres têm muito a contribuir. E vejo isso o tempo todo. Vejo nos tribunais da Irlanda, no parlamento, no governo. Vejo no contexto europeu e nas Nações Unidas. Kofi Annan chamou mulheres para chefiar várias agências e, mesmo antes dele, pessoas como Sadako Ogata [alta comissária das Nações Unidas para os Refugiados de 1991 a 2001], nos Refugiados; Carol Bellamy [diretora-executiva do Unicef entre 1995 e 2004], agora Gro Brundtland [diretora-geral da OMS de 1998 a 2003 – ver programa Roda Viva Gro Brundtland], na OMS; Catherine Bertini [foi diretora-executiva do Programa de Alimentação Mundial e nomeada subsecretária-geral da ONU em 2002 por Kofi Annan, tendo recebido, em 2003, o Prêmio de Alimentação Mundial], no Programa de Alimentação Mundial. E juntamos nossas forças. [Há] Também a subsecretária-geral, Louise Fréchette. Nós sabemos que trazemos a força das mulheres. Não somos melhores que os homens, mas temos prioridades diferentes, um sentido menos hierárquico, um jeito prático de fazer. E vejo em minha própria filha que ela começa em um ponto bem diferente do nosso e pode construir a partir disso, mas, às vezes, não dá o devido valor. E a reunião “Pequim +5” é uma boa lembrança daqueles que lutaram tanto no passado e também de que não estamos seguros. Temos de construir, manter e reforçar o que já foi compreendido, que os direitos das mulheres são direitos humanos, que as mulheres, em todos os níveis decisórios, inclusive na comunidade empresarial e sindicatos, têm uma enorme contribuição a fazer. E o valor da limpeza doméstica e o papel da educação da criança também devem fazer parte dessa equação.

Paulo Sérgio Pinheiro: O tema a que a senhora acabou de se referir é justamente aplicação da ética dos direitos humanos na cultura empresarial. A senhora vai se encontrar aqui no Brasil com vários empresários. Eu acho que a sociedade fica se perguntando como é o mundo onde o segredo é exigência maior que a transparência, em que a competição é mais presente do que a solidariedade. O que a senhora vai dizer para esses empresários aqui no Brasil?

Mary Robinson: Você, como um especialista em direitos humanos, deve saber que esse é um debate novo para nós. Olhamos a responsabilidade dos empresários nos direitos humanos e sabemos que os empresários também podem violar os direitos humanos dos povos indígenas, com o trabalho infantil, sendo maus empregadores, explorando os trabalhadores. Há dois lados, pois, agora, as empresas são muito poderosas. E, com o poder, vem a responsabilidade. E fico feliz que muitos líderes das maiores empresas estejam estudando seriamente o que chamam de responsabilidade sócio-empresarial. Amanhã falarei para líderes empresariais aqui em São Paulo e sei que muitos deles estão realizando trabalhos significativos com jovens, dando educação, não se envolvendo com aqueles que exploram o trabalho infantil. Mas, sabendo que deve haver uma renda alternativa, ser realista. Não basta dizer que não se quer o trabalho infantil. É preciso dar oportunidades econômicas, treinamento, experiência de trabalho. Acho que estamos começando um debate muito importante. Eu me preocupo com o fato de que, apesar de tudo, os governos são os maiores responsáveis pela violação dos direitos humanos e por promover e defender os direitos humanos. Se os governos tiverem poder e influência menores, então haverá um modo menos regulamentado de assegurar a proteção dos direitos humanos. Mas, no final, teremos de criar essas parcerias. E teremos de encontrar caminhos e aprender uma nova abordagem que inclua as empresas como parceiras na proteção e promoção dos direitos humanos.

Carlos Idoeta
: No bloco anterior a senhora tocou num ponto que, a meu ver, é central para essa discussão. A criação de uma cultura dos direitos humanos. E eu acho que as organizações de direitos humanos estão percebendo a importância, não só de proteger os direitos humanos, como também de promover os direitos humanos. Nós estamos descobrindo que as violações ocorrem também porque as pessoas fecham o olho ou até aplaudem as atrocidades que são cometidas ou toleradas pelo Estado. Nós, por exemplo, na Anistia Internacional Brasileira, investimos já coisa de 15 anos nesses cursos de educação e direitos humanos, tanto em escolas e faculdades quanto em academias de polícia, que é para realmente aumentar o número de cidadãos que se tornam uma barreira a essas atrocidades, que o seu departamento, as ONGs e alguns governos tentam, aí, obstinadamente erradicar. Eu tenho uma curiosidade de saber se existe essa percepção clara no seu departamento hoje dentro da ONU. E como a senhora... qual é a receptividade que a senhora encontra nos governos? Quer dizer, há essa proposta de criação de uma cultura dos direitos humanos, de levar essa mensagem dos direitos humanos a públicos eméritos, que é de certa forma o que nós temos feito no Brasil, o Paulo é testemunha. Quer dizer, há uma geração de militantes aqui que quase tiraram os direitos humanos da clandestinidade há coisa de 15 ou vinte anos. Os direitos humanos eram ou uma abstração jurídica para gente boazinha ou era aquele pessoal que defendia bandido. A questão da segurança, hoje, de que se fala tanto, passa por isso. No momento em que pioram as condições de segurança nas grandes cidades brasileiras as pessoas tendem a apoiar atrocidades contra bandidos ou contra presidiários. Isso é uma guerra dura, é uma luta permanente. E eu tenho essa curiosidade: qual é a receptividade que a senhora sente hoje, nesse seu novo cargo, nas suas andanças pelo mundo? A proposta da formação dos direitos humanos.

Mary Robinson: Concordo com você em que a percepção dos direitos humanos era pequena e limitada, na realidade, a questões de violações ligadas a repressão, torturas, execuções sumárias, censura etc. E acredito, profundamente, que a primeira coisa [necessária] para ter uma verdadeira cultura de direitos humanos e para se enraizar uma cultura é ter uma noção mais ampla dos direitos humanos. É importante dar a mesma ênfase aos direitos econômicos, sociais e culturais. Direito a educação, saúde, abrigo, moradia, emprego. E não é idealismo. Deve haver o acesso ao emprego, estar em uma posição, de fato, de ter comida suficiente, nutrição, boas condições de vida, como diz a Declaração Universal. Assim como direitos civis e políticos. Nessa agenda mais ampla há uma série de novos parceiros, pois aqueles que trabalham com os jovens, grupos de mulheres, igrejas, sindicatos, todos eles têm agendas de direitos humanos, embora eles possam não se ver nesse contexto. E, para mim, é aí que as normas universais entram como uma ferramenta muito prática. O pacto dos direitos econômicos, sociais e culturais é uma ferramenta prática para a sociedade civil utilizar no Brasil e para o governo medir seu comprometimento. Seu compromisso não é concretizar, instantaneamente, esses direitos para todos amanhã, mas sim uma implantação progressiva. Assim, todas as decisões de natureza financeira, mesmo no contexto do FMI [Fundo Monetário Internacional], deveriam acompanhar esse avanço na implantação progressiva do direito à saúde, educação, alimentação, abrigo. E, se a sociedade civil tiver ciência disso, é um sistema muito bom, não apenas de uma cultura, mas de um modelo legal dessa cultura. Eu vejo a importância de assegurar que tenhamos uma abordagem correta para tratar a pobreza. E, quando nos preparamos, como o Brasil está fazendo, para a avaliação de cinco anos de Copenhague, é em um contexto em que a discussão da pobreza no Brasil deve ser feita sob o aspecto dos direitos humanos. Isso também é afirmativo, pois não é o caso de atender às necessidades das pessoas. É dizer que as pessoas têm direitos. O governo é legalmente obrigado a implantar progressivamente esses direitos. E isso passa por muitas barreiras no Brasil, pelos 5.500 municípios, pelos estados e pelo poder federal, pois há um contexto de direitos. É nesse sentido que acredito que a cultura de direitos humanos é algo em que podemos trabalhar juntos.

Vicente Adorno: Quando a senhora se referiu à situação da Irlanda, a senhora me chamou atenção para uma coisa que talvez seja uma das mais antigas questões nos seres humanos: o direito de asilo. Então, a gente vê, de país para país... havia assim uma política ora um pouco mais tolerante, quando há necessidade de importar mão-de-obra barata, e depois uma política um pouco mais dura quando aparecem problemas como desemprego e problemas raciais e étnicos que costumam acontecer nessas ocasiões. Nós vivemos numa época em que se fala tanto em globalização, internet, que não há mais barreira nenhuma, mas o que eu sinto é que está havendo um recrudescimento dessa tentativa de fechar as fronteiras e de cada país se conter dentro de si mesmo sem permitir, digamos assim, uma invasão de estrangeiros. A senhora falou também do caso que os irlandeses, que já foram grandes imigrantes, agora, de repente, ficaram um pouco mais ricos e também desenvolveram essa xenofobia. Ele me chamou atenção para essa coisa que a gente deve cultivar, que é a cultura dos direitos humanos. Como é que a gente pode transportar isso para esse direito de asilo? Será que o direito de asilo não seria também um direito humano inerente a qualquer povo, em qualquer condição? E como a gente poderia garantir isso?

Mary Robinson: Acho que citou um problema crítico para o mundo moderno. É um problema da globalização e um problema relevante para a Conferência Mundial contra Racismo e Xenofobia no ano que vem. Precisaremos ver os problemas da migração sem preconceitos. Precisaremos ver que a globalização significa movimento livre de capital, de bens, mas não movimento livre de pessoas. Mas há uma atração de migrantes para fazer o trabalho que os outros não fazem. Há a atração, mas não a dignidade de tratar do problema. Assim, há migrantes ilegais, migrantes inseguros, tráfico de seres humanos. Temos muitos problemas graves e esta é a hora de tratar deles. Vamos começar um novo século. Estou cada vez mais ciente de que teremos de ver de modo amplo a globalização e seus impactos nos direitos humanos. E um deles será a questão da migração. Temos, em nível internacional, uma convenção. O trabalho foi feito há vinte anos, a Convenção para Migrantes e suas Famílias. Bastam vinte países para ratificá-la, para colocá-la em prática, pois isso daria direitos legais. Meu departamento está se esforçando ao máximo e espero que, durante a preparação para a Conferência Mundial, possamos nos concentrar na Convenção para Migrantes e suas Famílias, para ter vinte ratificações, para colocá-la em prática e fazer com que mais países a ratifiquem.

Vicente Adorno: Eu vejo que, por exemplo, na África, várias potências européias ocuparam diferentes países europeus, durante séculos talvez. Depois, se foram embora e simplesmente a África, hoje, é quase um continente ignorado. Então, digamos, essas divisões geográficas arbitrárias que foram criadas pelas potências européias simplesmente não se coadunavam com as necessidades dessas populações. Então a gente vê, agora, um movimento de guerras entre elas, por causa de territórios, de campos de cultivo e também migrações enormes por causa de perseguições entre tribos, enfim, de tudo quanto é possibilidade de violência que se pode imaginar. A senhora não sente que é justamente na África em que se deveria aplicar com mais intensidade esse conceito? Porque dali se poderia tirar uma lição que, eu acho, para toda humanidade seria muito forte, porque acho que é ali que se concentram os problemas mais sérios nessa área.

Mary Robinson
: Sim, certamente, os problemas da África são de alta prioridade no meu departamento. Além do que disse, há problemas de distribuição de terras, problemas graves devido a erros do passado, mas o mais importante é tratar dos conflitos. Para mim, é um dos maiores problemas dos direitos humanos. Apesar de cinqüenta anos de existência da legislação, mecanismos de relatórios e mais educação sobre os direitos humanos, ainda temos graves violações. Ano passado, tivemos Kosovo, Serra Leoa, continuou em Angola, Timor Leste. Este ano foi na Chechênia, Serra Leoa de novo, Etiópia, Eritréia. Como prevenir? Devemos investir na prevenção. Pois o custo da violação é terrível em vidas humanas, em destruição e no custo da reconstrução. Veja o custo de reconstrução em Kosovo. É terrível em todos os níveis. E Kosovo tem agora novos problemas de minorias: os sérvios no Sul e os ciganos. Temos um longo caminho a percorrer, mas a maior força para o novo século é que o comecemos com uma sociedade civil cada vez mais ciente. Temos a internet para nos comunicarmos e nosso site, em Genebra, recebe mais de três milhões de visitas por mês, pessoas buscando informações. E fico muito feliz, é apenas o início. Temos um site para a Conferência Mundial contra o Racismo. As pessoas podem nos procurar, ter a informação. Isso ocorre cada vez mais. Vejo isso aqui no Brasil, a rede de trocas de informações, o modo como os jovens tão rapidamente conhecem o computador, acessam a internet e isso dá um poder a eles. Podemos fazer muito mais agora para educar sobre direitos humanos e para criar bons módulos dessa educação e eu enfatizo muito isso.

Paulo Markun
: Antes de passar para o Dermi, queria apenas que a senhora mencionasse o endereço desse website para que as pessoas que queiram acessar possam acessar.

Mary Robinson: É www.unhcr.ch.

Dermi Azevedo: Outro aspecto, doutora Robinson, sobre o qual a gente gostaria que a senhora refletisse, é sobre a questão dos direitos das vítimas. Na perspectiva dos direitos humanos, o que a senhora tem refletido no alto comissariado a respeito da situação de tantas pessoas que são vítimas das mais diversas violências e que, muitas vezes, se sentem desassistidas e quase sempre pelo próprio Estado, pessoas atingidas pela violência doméstica ou mesmo por aquilo que se chama de incivilidade das grandes cidades, falta de respeito do trânsito, as violências que acontecem em todas as áreas e que vão tornando as grandes cidades como se fossem arenas e que todos se digladiam ao mesmo tempo? Então, muitas vezes, os inimigos dos direitos humanos, como nós sabemos, nos enfrentam dizendo, que nós não atentamos, suficientemente, para os direitos das vitimas. Que medida o Alto Comissariado vem analisando? Vem propondo programas também para conscientizar governos e a própria sociedade civil para a devida atenção com as vitimas da violência?

Mary Robinson: Certamente é uma questão muito importante e uma preocupação bem recente. Fico feliz que, em muitos países e em âmbito internacional, percebamos a importância. Há muitos aspectos. Há a proteção de vítimas para que forneçam provas em tribunais, há comissões de reconciliação, há a necessidade, durante os procedimentos judiciários, de ter a situação da vítima corretamente apreciada em um processo adequado. Também estamos aprendendo que, a menos que se lide com períodos negros da história de um país, não haverá uma cura para as vítimas, mesmo muito depois. Isso é algo que enfatiza a importância de se levar muito a sério os efeitos traumáticos nas vítimas e em suas famílias das violações dos direitos humanos. E falamos em homicídios, estupros, esses tipos de violações. Em âmbito internacional, há mais conferências e seminários reunindo as boas experiências e compartilhando-as entre os países, tentando estimulá-los, porque é no âmbito nacional que os melhores remédios para as vítimas e os melhores apoios devem existir, na legislação nacional.

Dermi Azevedo: Um outro aspecto dessa questão que é inconexo é a questão da violência cometida contra os defensores dos direitos humanos, até me reportando a uma pergunta que o Vicente fez há pouco... Muitas pessoas que, por defenderem políticas democráticas de segurança pública – como nós vivemos recentemente no Rio de Janeiro–  são obrigadas a pedir asilo, a se auto-exilarem em épocas democráticas. Então, de que modo, o alto comissariado também vem pensando políticas para proteção dos defensores dos direitos humanos?

Mary Robinson: Sim, desde que eu cheguei, nesta visita ao Brasil, minha atenção se volta aos problemas e temores dos defensores dos direitos humanos. Esse é um problema sério em vários países. Temos um escritório em Bogotá, Colômbia. É um problema muito grave, mas ocorre em muitos países no mundo todo. Há dois anos, a Comissão de Direitos Humanos adotou a Declaração dos Defensores dos Direitos Humanos. Foi um passo à frente. Este ano, a Comissão criou um mecanismo. Indicado por Kofi Annan, o secretário-geral, haverá um representante especial para tratar dos defensores dos direitos humanos no mundo. Meu departamento apoiará esse representante. Se um defensor dos direitos humanos tiver problemas, ele poderá contactar esse representante. Esperamos que haja milhares de cartas pedindo auxílio. Então, o representante pressionará o governo, chamará a atenção do público, será uma espécie de advogado dos defensores dos direitos humanos. Mas o fato de haver essa declaração coloca a responsabilidade principal sobre os governos. Eles devem ter um regime que proteja os defensores dos direitos humanos. Devem reconhecer a importância da função e da coragem e da ajuda para as pessoas daqueles que estão preparados para arriscar seus empregos e até suas vidas, deixando suas famílias preocupadas, porque acreditam em advogar, proteger, defender como advogados, jornalistas, sindicalistas, professores, os direitos dos outros. Eu sei muito bem quantos defensores dos direitos humanos pagam com suas vidas. São presos, censurados, são tirados de seus cargos, têm de deixar o país. É um grande problema.

Amélia Cohn: Eu gostaria de que a senhora fizesse uma avaliação da importância da agenda social da ONU para essa ampliação da cultura dos direitos humanos. E qual a sua expectativa para essa segunda rodada desta agenda, que nós estamos à véspera de "Copenhague +5", e já teve a de educação?

Mary Robinson
: Acho que é uma agenda e uma chance muito importante. Recentemente, na Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, houve um diálogo especial sobre pobreza e direitos humanos. E o diálogo foi diferente do de alguns anos atrás. Houve um reconhecimento de que a pobreza é uma terrível privação de vários direitos humanos, privação do direito à educação e à saúde. Mas também quem vive em pobreza extrema não vota, não tem um poder na comunidade. Os dois tipos de direitos são muito relevantes. Para mim, a mudança essencial é que olhemos para a erradicação da pobreza sob o aspecto dos direitos humanos. Isso significa olhar do ponto de vista dos compromissos de cada um dos tratados. Assim, é relevante para o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que isso seja progressivamente implantado. É relevante para os direitos civis e políticos, para a Convenção dos Direitos da Criança, que lida com os dois assuntos. E os orçamentos devem prever que não haja redução em investimentos sociais que promovem os direitos humanos. Não apenas tratar da pobreza, mas promover os direitos humanos. E, se conseguirmos colocar isso na cabeça, acho que isso estará no espírito da ONU e da preparação para essa reunião social. Ainda temos de avançar mais. Nós estamos no caminho, mas acredito que isso pode ser muito prático e, se mais países virem que a sociedade civil está fiscalizando o governo, acompanhando os orçamentos... Fiquei feliz esta manhã, em Brasília, ao ver que entidades civis estão acompanhando os investimentos e vendo como os setores vulneráveis são tratados. Isso significa que daríamos prioridade para crianças, adolescentes, idosos, educação, saúde. E essas devem ser as prioridades.

Paulo Markun: Senhora Mary, vamos fazer um intervalinho e voltamos daqui a alguns instantes. Até já!

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando, num programa gravado, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson. Eu queria aproveitar aqui, furar a fila e fazer duas perguntas para a senhora. Vendo a senhora falar, me passa muito a sensação de uma pessoa que tem o treinamento de alguém com uma experiência religiosa, não diria uma freira, mas um cardeal. [risos] Pelo grau de tranqüilidade, de certeza de que as coisas vão dar certo no final que a senhora nos passa. E, de outro lado, imaginando o trabalho que a senhora desenvolve, eu tenho certeza que existe uma enorme carga de frustração que a senhora deve carregar na bagagem junto com essa aura que a senhora passa para todo mundo de que as coisas estão melhorando, [de] que os direitos humanos vão cada vez melhor, muito obrigado. E, ao mesmo tempo, penso que a atitude de uma pessoa que seja realmente prejudicada, do ponto de vista dos direitos humanos, seja na África, seja numa cidade Brasil, seja nos Estados Unidos, onde também existem desigualdades e injustiças, porque, às vezes, parece que lá não existe... essas pessoas não carregam na bagagem... até não tem bagagem, frustração apenas, mas uma enorme carga de revolta. As duas perguntas que eu queria fazer... primeiro, é o seguinte: saber se realmente existe essa carga de frustração, que a senhora leva consigo e qual é essa frustração. E, de outro lado, se a senhora não acha que um dia, mais cedo ou mais tarde, essa revolta das pessoas que são efetivamente prejudicadas podem interferir nesse processo? Ou se tudo vai se resolver com as organizações não-governamentais, as militâncias, os governos e o alto comissariado?

Mary Robinson: Em primeiro lugar, pode parecer algo estranho de dizer, mas tenho um forte sentimento interno de justiça. Eu fico revoltada muitas vezes, realmente revoltada pelas vítimas e pelas injustiças. Às vezes não é muito evidente, mas, dentro de mim, há uma grande revolta e é por isso que me dedico tanto a esse trabalho. E acho que a maior frustração é a frustração com a burocracia dentro da ONU. Ao assumir o cargo, disse a Kofi Annan que não defenderia o indefensável. Há uma burocracia indefensável nos momentos em que estamos tentando fazer algo importante. Eu também me identifico com o sofrimento das vítimas. Acho que o fato de ser mulher ajuda. Às vezes, não é fácil, porque acho difícil não chorar também. É preciso tentar manter uma imparcialidade. Mas, na verdade, já me vi várias vezes, até no ano passado, em Serra Leoa, sentada ao lado de uma mãe e um pai contando como seus seis filhos foram mortos diante deles e eles me mostraram fotos. É muito difícil. Acho que o envolvimento emocional ajuda, não é apenas um envolvimento intelectual. Mas eu acho que tenho uma disposição para ser otimista, porque, sendo otimista, pode-se realizar mais. E admito que estudei em uma escola católica por seis anos, talvez seja isso [risos].

Paulo Markun: E a questão da revolta, das pessoas que, enfim, não têm chance de ter um espaço para lutar, e que são vítimas permanentes? A senhora acha que isso pode pesar na balança? Porque não é o que a gente assiste.

Mary Robinson: Acho que, quando as pessoas não têm como expressar a injustiça e a desigualdade, é compreensível que elas lutem. E há lutas justas pela liberdade e para combater a injustiça. Mas é óbvio que é melhor evitar os conflitos, pois há mais vítimas quando há conflitos. Mas, quando há uma grande desigualdade em uma sociedade, não há coesão social. Falando do Brasil... Antes, quero dizer, e falo como alta comissária: todos os países têm problemas de direitos humanos.  O pior é quando o país não admite que tem problemas. E há países que acham que direitos humanos são problemas em outros países. Então, eu começo com problemas deles. Em um país como o Brasil, com grandes desigualdades, por exemplo, na distribuição de terras, se isso não for resolvido rapidamente, pode haver um conflito e isso seria uma tragédia. A coesão social é muito importante, ter uma sociedade inclusiva. Assim, encontrar modos de acelerar a redistribuição de terras é, para mim, prioritário.

Edna Maria Roland
: Eu iria lhe fazer uma outra pergunta, mas o que você acabou de falar me leva a referir o fato de que doutor [Antônio Augusto Cançado] Trindade, vice-presidente da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, considera que nós estamos vivendo no Brasil um processo de deterioração em relação aos direitos sociais, culturais e econômicos. Ele relaciona isso à falta de investimento social, para que de fato possamos mudar o quadro cruel da sociedade brasileira. Eu gostaria de saber, primeiro: em que medida que a senhora relaciona tanto a situação em que nós vivemos no Brasil, como muitos outros países de terceiro mundo, as nossas próprias misérias internas, a nossa desigualdade... mas também qual o peso que as relações injustas entre países pobres que produzem meios de vida e países ricos que produzem meios de capital jogam na produção dessa realidade? Juntando isso com o conceito de prevenção [de] que a senhora tem falado no campo dos direitos humanos, eu me perguntaria: qual o escopo desse conceito de prevenção? E ele se limita à questão, por exemplo, da educação em direitos humanos? Ou se ele tem uma amplitude maior? Por exemplo, a questão do perdão da dívida externa dos países pobres entraria dentro do seu conceito de prevenção?

Mary Robinson: Você levantou várias questões. Perguntou primeiro sobre a posição do Brasil. Eu diria que o Brasil tem uma posição única devido ao tamanho. Uma população de 170 milhões, um território enorme, estruturas muito complexas, muito descentralizadas, 5.500 municípios e grandes desigualdades. Mas também, e é importante notar, forças muito reais – talvez eu as veja mais, estando aqui em uma visita curta–, forças da sociedade civil. Eu acho extremamente importante. A participação ativa, a informação, a consciência, a crítica, o acompanhamento, o papel dos acadêmicos, dos ativistas, grupos que trabalham com comunidades vulneráveis, mas que as fortalecem para que falem por si, e que estão cientes da necessidade de mudanças. E há comunicação, há muito trabalho conjunto. São forças reais e acredito que são relativamente recentes. E acredito que devem ser desenvolvidos, confio muito no potencial... Na prevenção, a educação está no centro, mas é mais amplo. Por exemplo, a Conferência Mundial contra o Racismo. Esse processo de preparação é preventivo. Porque pode significar uma sociedade mais inclusiva, removendo e tratando de parte da discriminação e de causas da discriminação. O foco em direitos econômicos, sociais e culturais é preventivo. Diplomacia serena é preventiva. Participação da sociedade, a necessidade de ter formas mais amplas de participação é muito importante. Acho que, no Brasil, a segurança pessoal é uma questão de destaque, mas é importante discutir como obter essa segurança. Não com mais grades nas casas, mais seguranças particulares, mais divisões na sociedade, mas, em vez disso, construindo essa sociedade mais inclusiva e justa, em que haja coesão social sem esses muros, arames farpados etc. São todas medidas preventivas e quando eu comparo o Brasil... Como eu disse, o que me impressiona é que eu acho que este momento é crucial, quando até a preparação para a Conferência Mundial pode ajudar a formar um país mais inclusivo, mais rico, multirracial, multicultural, genuinamente unido, um Brasil moderno. E ele tem uma enorme força e capacidade como país na região.

Dulce Maria Pereira: Eu vou citar, na verdade, três exemplos de questões que eu acho de realidades que são muito importantes. Uma delas, por exemplo, no caso do Brasil: nós estamos, agora, depois de quinhentos anos de história, começando a entregar os títulos das terras para as comunidades de ex-escravos. No entanto, não há consenso entre a população de que esse de fato, que esse tipo de ação, deva realmente acontecer, porque a história de escravidão também moldou o imaginário social de tal forma que, muitas vezes, as ações de governo, mesmo que ações justas, são desqualificadas pelo conjunto social. Outro exemplo seria o caso de alguns países africanos em que os países estabelecem uma agenda interna de respeito básico algumas áreas de direitos humanos e, no entanto, atendem a interesses perversos dos seus antigos colonizadores, muitas vezes, e acabam não conseguindo implementar essa agenda de direitos humanos no espaço doméstico. E ainda associaria, para fazer a minha pergunta, a questão... divergindo da Convenção, que nós todos assinamos e algumas cláusulas, que são cláusulas, que na verdade os governos não têm a possibilidade de fazer com que elas aconteçam. Eu cito esses três casos, porque eu queria lhe fazer uma pergunta. A senhora já disse da importância da sociedade civil estar engajada no processo de construção das Conferências, e, sobretudo, de acompanhamento do resultado das Convenções. Agora, há a necessidade de mais responsabilidade nos setores sociais além dos governos. Eu acredito. Qual a cultura dos direitos humanos? A gente pode citar no caso do Brasil, a questão da tortura. Os instrumentos de tortura utilizados nas cadeias são os mesmos que foram construídos durante a escravidão e que, na verdade, só passaram a ser considerados de alguma forma agressivos no cotidiano público, na medida que passaram a atingir os filhos, sobretudo, da classe média, durante o período militar, porque atuava no movimento estudantil, sobretudo, em outros movimentos e foram vítimas desses instrumentos de tortura. Então, a impressão que eu tenho, eu acho que é um pouco das suas colocações, é que a sociedade, como um todo, precisa assumir tarefas juntamente com os governos, não é mesmo?

Mary Robinson: Sim, acho que se torna cada vez mais evidente que devemos estar cientes de que uma sensação de dor, uma sensação de ferida que não é curada pode durar gerações. E, se eu puder citar, as recentes desculpas do Papa por dois mil anos, pelo que foi feito em nome da Igreja. E isso tem uma repercussão para muita gente, muitos países do Oriente Médio, por exemplo. O primeiro-ministro britânico desculpou-se pelo que aconteceu em relação à Irlanda [Tony Blair desculpou-se publicamente pelo erro judiciário que condenou 11 irlandeses inocentes por envolvimento em ataque terrorista do Exército Republicano Irlandês (IRA) que matou sete pessoas em 1974, com base em falsas provas. O caso inspirou o premiado filme Em nome do pai, de Jim Sheridan, 1993]. Isso significou muito para o povo da Irlanda. Significou muito. E temos de entender que, se queremos seguir adiante, temos de olhar para essas questões. Sei que essa questão será tratada de várias perspectivas diferentes na Conferência Mundial, na África do Sul. E não devemos subestimar sua importância como uma cura e um início, assim como uma remoção das discriminações existentes. Apenas reconhecer... e você falou da questão das terras no Brasil, sobre a qual tenho ouvido muito falar, mas a questão das terras para povos indígenas é crítica em muitos países. Coordeno um trabalho com povos indígenas e acompanho de perto. E essa é uma questão muito difícil, porque há resistências. E acho que teremos de fazer mais para abrir espaço para culturas e identidades e povos vulneráveis que, no passado, foram dizimados e não importavam. E teremos de reconhecer e dar prioridade a países com povos indígenas. E sentir-nos enriquecidos por essa cultura antiga, que tem uma oportunidade maravilhosa de se relacionar com a modernidade. Temos de usar métodos modernos para proteger essa cultura, como a propriedade intelectual. A propriedade intelectual dos povos indígenas. Sua questão é bem ampla, mas acho que a Conferência Mundial será interessante, pois lidará com algumas dessas questões.

Paulo Sérgio Pinheiro: A senhora, alta comissária, eu vou voltar de novo à outra viagem. Como a senhora sabe, eu sou altamente entusiasmado por uma alta comissária que viaja. Eu acho que as vítimas se sentem gratas, a senhora tem visto como a sociedade civil no Brasil se sente feliz com a sua presença entre nós, por todas essas razões que aqui estão aparecendo. Dito isso, eu queria falar de uma outra viagem, que é a sua viagem à China, que foi também uma viagem bastante delicada, bastante difícil. E eu agregaria mais um elo na pergunta que é o fato de apesar de toda visibilidade que as graves relações de direitos humanos que ocorrem na China, que os telespectadores brasileiros seguem, de uma certa maneira, pela importância do país... Nós vimos que, na última Comissão de Direitos Humanos, apesar das prestações de contas que a alta comissária fez à Comissão de Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos não se impressionou muito e a China saiu ilesa. Então como a senhora já se relacionou com o parlamento, a Comissão de Direitos Humanos – é um pouco forçado, é quase uma espécie de uma câmara, onde a alta comissária se reporta–, eu gostaria de saber, se a senhora quiser dizer, qual foi a sua sensação, nesse sentido: mais uma vez, a China sai ilesa, enquanto outras nações, talvez com recordes não tão graves, recebem resoluções?

Mary Robinson: O debate sobre a China foi entre membros da Comissão de Direitos Humanos, ente os governos que são membros. É um debate muito político, que tem a responsabilidade de tratar das questões dos direitos humanos. Como estou envolvida, como alta comissária, em um diálogo muito sério com a China, que é complexo, eu mantenho distância desse debate político. De propósito. Porque eu tenho de fazer uma coisa difícil. Tentar concluir um acordo com a China de uma cooperação técnica do meu departamento para ajudar a China a fazer as mudanças para ratificar os pactos sobre direitos humanos que assinou. E, ao mesmo tempo, devo falar sobre questões dos direitos humanos, o que fiz na China no início de março. E as autoridades chinesas não gostaram quando falei em público e para a imprensa sobre as minhas preocupações com a deterioração da liberdade de expressão, liberdade de crença religiosa, liberdade de associação. Mas, para mim, foi muito importante, pois, de outro modo, eu não explicaria o que quero dizer por cultura dos direitos humanos. E entraríamos em um acordo conveniente que não seria significativo. O que me satisfaz é que isso parece ter sido entendido. Porque, muito embora eu tenha sido muito crítica, continuamos com diálogo. Mas sei que se me envolvesse em um debate mais político, não poderia continuar esse processo. É muito delicado. E, freqüentemente, preciso tomar essas decisões neste cargo. E nem sempre acho que estou fazendo certo. Mas tento fazer o melhor. E a agenda é clara: tentar fazer progressos. Às vezes, somos diplomáticos, às vezes, somos enfáticos, às vezes, é uma combinação, às vezes, evitamos o político e às vezes irritamos, pois não damos uma resposta em particular, por saber que não será útil [sorrindo].

Carlos Idoeta: Eu queria retomar a questão das grandes catástrofes humanitárias e colocar duas perguntas para a senhora. A primeira diz respeito ao que eu suponho ser um grande dilema hoje para os militantes de direitos humanos, que é a chamada Intervenção Humanitária Externa. Eu assisti a um debate interminável no Conselho Internacional da Anistia Internacional sobre isso. Pessoas sinceramente comprometidas com as vítimas tendo uma grande dificuldade em chegar a uma conclusão sobre se devemos apoiar ou não uma intervenção externa humanitária. De um lado, é virtualmente impossível se falar sério sobre direitos humanos, pactos internacionais, accountability, julgamentos justos etc com o governo de Slobodan Milosevic ou de Serra Leoa de hoje. Por outro lado, essas intervenções externas muitas vezes acabam desservindo o objetivo para os quais elas foram originalmente desenhadas. Então é realmente uma dificuldade muito grande. Eu gostaria de saber se o alto comissariado tem uma posição a respeito. E o segundo ponto é se a senhora acredita que nós realmente estamos indo ao caminho certo, com essa grande novidade que foi a criação do Tribunal Penal Internacional em Roma em 98, se nós vamos ter uma instância supranacional de Justiça, se a humanidade vai chegar a um estágio em que determinados crimes não serão toleráveis. Quer dizer, se as instâncias nacionais de Justiça não resolverem isso, vai haver interferência de uma instância supranacional de Justiça. O episódio Pinochet nos produziu, assim, sentimentos mistos de alegria e tristeza. Eu tenho a sensação de que foi um grande começo, mas eu gostaria muito de ouvir a sua opinião sobre esses dois assuntos.

Mary Robinson: Reparei que todos vocês fazem, pelo menos, duas perguntas [risos]. Sua primeira pergunta é bem fundamental e é uma das questões modernas mais difíceis. Eu fiquei muito perturbada com o bombardeio em Kosovo. E, como alta comissária, tive de falar sobre a necessidade de proporcionalidade durante aquela campanha. E, de fato, tive de levantar a questão da legalidade. E, se tivesse de ser decidido, que o fosse pelo Tribunal de Haia. Não foi algo popular. Não foi nada popular quando fiz isso. Mas foi importante fazer isso. Na época, a Federação Russa ficou muito contente por eu ter criticado o bombardeio em Kosovo. Tentei lembrá-los disso quando estava na Chechênia. Tentei mostrar o uso desproporcional de força contra os chechenos. Mas você colocou uma questão mais difícil, sobre intervenção humanitária quando há graves violações. É uma questão que não está resolvida, uma questão mais profunda. Minha maior preocupação é que não estamos tratando da prevenção das violações. E quando digo que não estamos tratando adequadamente, não estamos equipando a ONU. Veja Serra Leoa. Quando houve a crise, recentemente, a equipe de paz que foi para lá – os soldados nigerianos estavam se retirando– não estava equipada, tinha pouco armamento, estava mal treinada e com poucos homens. Quando Kofi Annan pediu uma rápida resposta, ninguém respondeu. Ele procurou os maiores países com seus grandes exércitos e ninguém respondeu. E essa é uma grave fraqueza do nosso sistema. A fraqueza do Conselho de Segurança, politicamente, a falta de vontade política para apoiar a ONU, de ser o mantenedor da paz. Acho chocante que centenas de pessoas que trabalham para manter a paz no mundo todo foram, de fato, impedidas. Acho inaceitável. Quando disse que fico revoltada, fico muito revoltada com isso em nome do que tentamos realizar no mundo. E é a política, é uma falta de vontade, em especial, dos países mais fortes e do mais forte de todos, de tratar da questão e aceitar que devemos ter uma ONU que possa cumprir seu papel de manter a paz. Mas, também, esses mesmos países precisam se dedicar mais à prevenção. Quanto à segunda pergunta: sim, aprovo o Tribunal Penal Internacional. Aprovo a decisão sobre Pinochet na Grã-Bretanha. Aprovo a decisão brasileira de atender ao pedido argentino de materiais de arquivo do período da ditadura. Todos esses são passos para lidar com a impunidade. E devemos fazer mais tanto em direitos humanos internacionais quanto no contexto dos países, da impunidade. Ninguém pode ficar impune ao violar os direitos humanos, a matança de crianças nas ruas. Os autores devem ser presos e julgados rapidamente. Isso faz parte da saúde de uma sociedade. É algo em que toda sociedade deve trabalhar. É a maior das seguranças. Acredito muito nisso.

Vicente Adorno: Vou fazer uma perguntinha bem rápida. A senhora disse que o seu trabalho é bom quando a senhora se torna impopular. Onde é que a senhora se orgulha de ser impopular? [Risos]

Mary Robinson: Kosovo foi um lugar. Não foi fácil. E foi um relatório para a Comissão de Direitos Humanos durante os bombardeios. Houve um claro sinal de desaprovação de alguns elementos poderosos. Mas, logo depois, as pessoas reconheceram que era importante levantar a questão. Mas eu acho que é muito difícil dizer. A Chechênia também foi difícil. Porque eu fui impedida de ver lugares que queria ver. Seria mais fácil ser educada, cumprimentar as autoridades e ir para casa. Mas eu mostrei publicamente que estava sendo impedida. Causou muita preocupação na Rússia, chamou a atenção da mídia e foi muito difícil. Eu não encontrei o presidente Putin, ele recusou-se a me receber, o presidente eleito. E disseram: “Alta comissária fracassa ao tentar falar com presidente”. Ficou parecendo um fracasso. Mas, na verdade, foi necessário. E, como eu disse, por haver muitas decisões neste cargo, eu sei, no meu coração, que cometo muitos erros. Nem sempre tomo a decisão correta. É muito difícil. Tenho muitos bons colegas, com quem trabalho. Não sou um cavaleiro solitário, recebo conselhos. Mesmo assim, nem sempre podemos tomar as decisões corretas. Esse é o pior problema, porque isso de fato importa.

Paulo Markun
: Senhora Mary, nosso tempo está acabando, mas eu queria... Havia outras pessoas inscritas, mas eu queria colocar uma última questão. A dificuldade de mediar isso é que, às vezes, a gente não pode fazer as próprias questões e tem que frustrar os outros, na medida, em que há uma hora em que tem que terminar o programa. E a pergunta é um pouco referente a isto que a senhora havia mencionado: os meios de comunicação são aliados dessa luta em favor dos direitos humanos? E, mais do que isso, a senhora acha que eles são aliados, mesmo tendo um papel importante na promoção de um sistema de vida em que o consumo é muito mais importante do que qualquer outra coisa? Em todos os países, na maior parte dos países onde há ilegalidades e violações dos direitos humanos, o sistema que existe hoje em dia é um sistema de que os meios de comunicação fazem parte dessa economia, economia que cria pessoas que são bilionárias, os homens mais ricos do mundo, cada vez mais ricos e mais distantes da vida normal das pessoas e o restante da população, as grandes parcelas dessa população alijadas de todo processo. No fim das contas, a mídia é um aliado da luta pelos direitos humanos?

Mary Robinson: A mídia é, potencialmente, uma grande aliada. E há alguns problemas. Um dos problemas está do lado do meu departamento, como alta comissária. Eu sei que deveríamos passar mais tempo explicando os direitos humanos, o que fazemos, o que a ONU faz, divulgando a mensagem. E a mídia poderia ajudar muito nisso. É uma solução parcial, mas deveríamos tentar. Por outro lado, cada vez mais a mídia vai atrás de uma declaração sensacional ou apenas vai para onde há um conflito e vai embora muito rápido. Não analisa, não fica tempo suficiente.

Paulo Markun
: A guerra torna-se um espetáculo, muitas vezes, até bonito de assistir quando é filmado e bem filmado.

Mary Robinson: Na televisão, é muito raro haver uma discussão como esta. Dedicar tempo suficiente para analisar com profundidade e ter perguntas de diferentes perspectivas. É aí que a mídia pode ter um papel importante. E também voltar a lugares onde houve crises, voltar ao Timor Leste regularmente, voltar para ver Kosovo e ver que a situação ainda é muito difícil e acompanhar. Mas, em geral, a mídia não só é um aliado em potencial para os direitos humanos, como é necessária. Faz parte da veiculação da mensagem. E o fato de os direitos humanos serem discutidos o tempo todo deu-nos um grande destaque e a mídia está interessada, mas precisa dar mais tempo e nós precisamos divulgar melhor nossa mensagem. Nos dois lados, há mais coisas a fazer.

Paulo Markun: Eu gostaria de agradecer muito a sua presença. Dizer que aqui da parte da TV Cultura, como na TV da rede pública brasileira, nós estaremos sempre abertos a colocar essas questões e outras questões que consideramos relevantes para a cidadania brasileira em debate. Aliás, quando esse programa estiver sendo exibido – eu faço questão de dizer isso com a maior satisfação – provavelmente, eu vou estar no Timor Leste fazendo um documentário para a televisão brasileira, aqui para TV Cultura e para a TV Senac. E agradeço muito a sua presença e desejo muita sorte nessa sua empreitada e que a senhora tenha cada dia mais oportunidade de ficar com menos raiva e com mais esperança de que os nossos direitos humanos sejam efetivamente respeitados. Aos nossos entrevistadores, muito obrigado pela participação. A você que está em casa também, por nos acompanhar. E uma boa noite, uma boa semana e até o próximo Roda Viva. Até lá!

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco