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Memória Roda Viva

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Drauzio Varella

28/11/1994

A carência de políticas públicas na área de saúde e o combate e prevenção à aids são os principais temas abordados por Varella

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Heródoto Barbeiro: Muito boa noite. Há treze anos, um boletim médico dos Estados Unidos alertava para uma até então desconhecida e fatal doença. O mal, segundo a publicação, atacava homossexuais, imigrantes haitianos e viciados em drogas injetáveis. Era a primeira vez que se falava da aids. De lá para cá, as notícias pioraram. Hoje, 15 milhões de pessoas têm o vírus da aidss em todo o mundo. No Brasil, são 500 mil infectados e a doença atinge cada vez mais os heterossexuais. Mesmo assim, há gente que não perdeu a esperança de que o avanço desse mal incurável seja detido. Um deles é o centro do Roda Viva de hoje, o médico cancerologista Drauzio Varella. Formado em medicina pela Universidade de São Paulo, com certificado de cursos de especialização nos melhores centros de pesquisa do exterior, Drauzio Varella é um cancerologista apaixonado pela engenharia genética, da qual, ele acredita, virão as primeiras vacinas eficientes contra o vírus da aids. Enquanto essa boa notícia não chega, ele vai a luta. Autor de livros sobre a doença, incansável participante de palestras e seminários sobre o assunto, Drauzio Varella acredita que a informação e os preservativos são as melhores formas para enfrentar a aids e elas devem ser usadas sem preconceito. É dele, entre outras, a idéia de as empresas distribuírem aos seus empregados, junto com o contracheque, um envelope com camisinha. A Rede Cultura começa hoje, com este Roda Viva, uma programação especial em atenção à Semana Internacional do Combate a aids. Nós convidamos para entrevistar o doutor Drauzio Varella, que está hoje no centro do Roda Viva, Aureliano Biancarelli, jornalista da Folha de S. Paulo; Carla Gullo, editora chefe da revista Saúde; doutora Marinella Della Negra, infectologista e presidente do segundo encontro nacional de aids Pediátrico, que começou hoje, em São Paulo; Maria Lins, jornalista da Rede Cultura; Roldão Arruda, do jornal o Estado de S. Paulo; doutor Fábio Mesquita, médico especialista em aids; Mário Scheffer, do Conselho Regional de Medicina e integrante do grupo Pela Vida e a jornalista Conceição Lemes, especializada em saúde. Doutor Drauzio, boa noite.

Drauzio Varella: Boa Noite.

Heródoto Barbeiro: Aproveitando, vou chamá-lo apenas de Drauzio, a pedido do senhor. Eu queria que o senhor rapidamente comentasse com a gente um telex enviado pela Agência Estado, que diz o seguinte: “O pesquisador norte-americano Alfred [sobrenome do pesquisador é incompreensível] visitou hoje o Centro de Doenças Infecto Contagiosas de Piracicaba, a 170 Km de São Paulo”. E ele [o pesquisador] está falando o seguinte: “Que há um novo medicamento no mercado chamado anticorti e que esse medicamento evita o aumento do cortisol, mantendo a resistência das pessoas”. Segundo ele, a principal vantagem dessa droga em relação ao AZT é que o anticorti não produz efeitos colaterais, de acordo com os testes realizados, etc. Eu gostaria de saber, primeiramente, o seguinte: se isso tem ou não fundamento e se o senhor conhece esse medicamento, chamado anticorti, que está sendo apresentado por esse pesquisador? E ele diz mais, diz o seguinte: “Que já foram investidos dois milhões e meio de dólares nos últimos 12 anos para desenvolver essa droga.”

Drauzio Varella: Não sei absolutamente nada sobre essa droga, mas acho que se está sendo feito um estudo. Acho que o Conselho Nacional de Saúde deve estar a par desse estudo, porque ninguém tem autorização de fazer estudos em seres humanos sem obedecer às normas do Conselho Nacional de Saúde, que são normas que estão entre as melhores do mundo. Então, eu acho que esse trabalho(...) Não sei nada disso, mas espero que tenha sido autorizado pelo Conselho Nacional de Saúde.

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, o senhor tem conhecimento se o Ministério da Saúde acompanha essas experiências, esses medicamentos, com atenção no Brasil? Há uma preocupação por parte das autoridades de saúde no país quanto a isso? O senhor tem acompanhado?

Drauzio Varella: Eu nunca trabalhei no serviço público. Eu não sei. Eu acho difícil acompanhar isso, porque você(...) Tem gente que pega o remédio e sai fazendo por aí. Como é que você vai atrás para descobrir onde está sendo feito? Você descobre aqueles mais famosos, os que conseguem reunir uma grande clientela em volta. Então, esses é que o pessoal fica sabendo. Mas isso é uma coisa que vai ter que ser feita. Tem que ter norma científica. Você não pode fazer um trabalho científico em seres humanos se não obedecer a essas normas. Aqui no Brasil, nós temos um código, que parece que é um código muito bem feito. O doutor João Mendonça, aí do Servidor [Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo], estava fazendo um trabalho com canadenses e mandou esse conjunto de regras e normas do Conselho para o Canadá. E voltou com os mais altos elogios. É um dos melhores do mundo. Então, tem que ser aplicado.

Conceição Lemes: Doutor Drauzio, há propostas, desse novo medicamento que estão falando, levadas com falsas esperanças, com falsas promessas, de certos tratamentos não convencionais, os ditos alternativos. Há pacientes que abandonam ou nem começam o tratamento convencional, que comprovadamente aumenta e melhora a qualidade de vida. O que o senhor diria aos pacientes que estão optando por esse tipo de tratamento? Isso pode abreviar a vida?

Drauzio Varella: Se eu fosse eles não faria isso. Eu não faria de jeito nenhum. Eu não tomaria um medicamento alternativo e deixaria de lado os recursos que nós já temos em termos de medicamento. Hoje, um doente com aids, que tem acesso ao sistema de saúde (...) Você leva um doente desses por 2, 3 anos, vivo, bem, trabalhando, exercendo funções e tendo infecções às vezes.

Conceição Lemes: Depois da aids já sendo certa?

Drauzio Varella: Depois da aids já instalada. Agora, você abandonar esses recursos para investir em uma coisa que é feita em seres humanos sem autorização nenhuma, sem nenhum tipo de observância mínima das regras que devem ser obedecidas em qualquer país civilizado. Uma pessoa qualquer sai dizendo que tal coisa é boa para a aids e sai aquele mundo de desesperançados atrás dessa panacéia milagrosa que vai resolver o problema. É compreensível, não é? Lógico. Mas é muito doloroso você assistir isso, pois é uma coisa que não devia acontecer assim.

Maria Lins: Esse medicamento, o  AZT continua sendo a melhor alternativa?

Drauzio Varella: Olha, o AZT continua sendo uma das melhores alternativas por ter sido a primeira droga contra o vírus que foi descrita, sendo a mais conhecida. Hoje, o que não se discute mais de jeito nenhum (...) Você pega um doente, uma pessoa infectada, e você sabe que a aids, hoje, leva 10 anos para desenvolver. Quem pega o vírus, hoje, novembro de 94, em média, vai levar 10 anos, vai chegar a 2004 para desenvolver a doença. Está certo? Isso acontece com o vírus da aids. Então, se você pega um remédio para tentar destruir o vírus, você tem que pensar em que fase da doença eu quero dar esse remédio. Porque o remédio tem uma ação limitada.

Maria Lins: Efeitos colaterais também, no caso?

Drauzio Varella: Tem, mas com doses mais baixas você controla melhor. Hoje em dia é difícil um doente não suportar. Tem uns que não suportam, vomitam, etc. Tem que parar, não adianta. Você dá um, ele vomita. Mas é raro isso, a maioria suporta bem. Nesses que suportam bem, o vírus, depois de um tempo, que varia basicamente entre 6 e 18 meses, o vírus desenvolve resistência contra o AZT.

Mário Cheffer: O Brasil deve começar agora a testar um produto candidato a vacina, não é? Um produto de um laboratório de aids, um laboratório americano, acho que em Belo Horizonte e no Rio. Isso parece que tem dividido a opinião de especialistas. Você é a favor de testar drogas sem eficácia comprovada em um país de Terceiro Mundo?

Drauzio Varella: Pergunta difícil, não é? [fica pensativo]. Aí é o seguinte (...). Eu tenho que dar uma resposta um pouco mais longa. A obtenção de uma vacina para a aids é diferente das vacinas comuns. Em vacinas comuns você tem modelos experimentais que você desenvolve em laboratório. Aí, você vacina esses modelos experimentais: rato, coelho, macaco, etc. No caso da vacina da aids não existe esse modelo experimental. É só o chipanzé que pega o vírus da aids e não fica doente. Ele carrega o vírus, depois, você pode pegar no sangue do chipanzé, cultivar e tudo. Você não vai trabalhar com chipanzé, pois é um animal enorme, quase gente. É o parente mais próximo do homem e os pesquisadores não gostam de trabalhar com chipanzé. Passa um tempo e o cara fica amigo do chipanzé, não é? Então, é um problema sério. Você tem que (...). A vacina da aids, esse é um dos grandes problemas, ela vai ter que ser testada em seres humanos, porque não adianta você fazer a vacina. Você vai ter que provar que essa vacina age. Que ela realmente protege quem toma. E onde é que você vai provar isso? No caso da aids é no ser humano. Não tem outro jeito.

Conceição Lemes: Mas dentro do protocolo ético, não é? Seguindo normas rigorosas.

Drauzio Varella: Lógico. Mas acho que nós temos que fazer isso aqui no Brasil, sabe por que? Porque nós temos que criar experiência com isso. Nós não sabemos se o nosso doente responde do ponto de vista imunológico exatamente como responde o doente americano, ou doente alemão, ou doente japonês. Pode ser que aqui a resposta seja diferente!

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, tem uma pergunta aqui, várias perguntas de telespectadores, mas [é interrompido].

Drauzio Varella: Só deixa concluir o que estava falando. Uma fechada final nisso. O que eu acho é que aqui cada um tem uma opinião. Acham que então: “Eu sou contra a vacina” ou “Eu sou a favor da vacina”. Nós temos um Comitê Nacional de Vacinas no Brasil, formado por gente competente. Nós temos um Conselho Nacional de Saúde. Acho que o Comitê de Vacinas analisa e decide se indica ou não esse tipo de vacina. Se o Conselho Nacional de Saúde disser que deve ser testado, então deve ser testado. Não interessa a minha opinião, a opinião do meu vizinho, deve ser testado. Deve ser testado. Mas, em princípio, eu sou a favor que se teste sim. Com todos os critérios de controle necessários.

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, nosso telespectador João Celso de Oliveira, de São Paulo, diz o seguinte: “Os médicos só falam como evitar a doença, mas falam muito pouco, para quem está doente, dos procedimentos e de como lidar com essa doença”. Procede a essa pergunta do nosso telespectador, ou não?

Drauzio Varella: Procede totalmente. Os médicos falam como prevenir a doença, porque é um problema maior. É um problema que atinge muito mais gente. Se você pegar quantos infectados nós temos no Brasil, hoje, para um número que ninguém brigue, 500 mil, vai. Este número, mais ou menos, todo mundo aceita. Então, você não fala para esses 500 mil infectados, pois, primeiro, uma parte nem sabe que está infectada. Então, você vai falar para parte desses que já tem sintomas, que já sabe que está infectada, é um número pequeno. Então, a prioridade tem sido prevenir, falar para os outros que ainda não pegaram o vírus. Mas está errado. Em um país pobre como o nosso você tem que transmitir essas informações porque economiza dinheiro depois. O doente bem informado sabe o que faz e, especialmente,m sabe o que não faz. Com isso, ele fica menos doente, vai parar menos nos hospitais e a sociedade economiza.

Carla Gullo: Por exemplo, o preservativo no Brasil é um dos mais caros no mundo. Até quando se deve interferir nisso, falando como é caro o tratamento? Você acha que deve interferir? Pode interferir?

Drauzio Varella: Na questão do preservativo? Acho que é fundamental interferir, porque você veja o seguinte (...) Eu perguntei para o pessoal da Johnson e Johnson, um pouco antes do programa, quantas camisinhas são consumidas no país. Não sei se a informação que eles me deram foi certa, mas me disseram que de 4,5 milhões a 5 milhões de camisinhas por mês no Brasil. Veja bem, 4,5 milhões a 5 milhões de camisinhas por mês. O que quer dizer que se 4,5 milhões, ou 5 milhões, para simplificar, se 5 milhões de brasileiros usassem uma camisinha por mês, só iria ter camisinha para esses cinco milhões. E o resto? Está usando o que? Quantos por cento da população brasileira têm vida sexual? Está em fase de vida sexual? Alguém sabe? Vamos dizer metade? Eu não sei o número.

Conceição Lemes: Provavelmente são 40 milhões, aproximadamente, pela aquela pesquisa que nós fizemos. Se você considerar que o número de mulheres é semelhante, você tem uns 80 milhões.

Drauzio Varella: Isso é um dado objetivo, não é? Nós temos 80 milhões de pessoas com vida sexual adulta e estão jogando no mercado 4,5 milhões, 5 milhões de camisinhas. Nós estamos brincando com a prevenção da aids, não é verdade? Agora, o que deve ser feito então? Deixa-me aproveitar e pegar carona. Como é que resolve isso? Acho que tem que ser o seguinte (...) Chama todo mundo que fabrica camisinha e diz assim: “Olha, as exigências técnicas são essas daqui, olha. Está certo? O que está atrapalhando vocês para produzir barato?” Ainda tem imposto em camisinha. Tira, pelo amor de Deus. Vai querer ganhar dinheiro na camisinha. O Estado está louco, não é? Então tira o imposto. Precisa pressionar o governo da Malásia para importar látex? Não sei se é o caso, mas vamos botar o nosso Ministério das Relações Exteriores para fazer isso daí. Agora, vocês vão pôr camisinha ao preço mais barato que conseguirem produzir e em grande escala, porque nós vamos imediatamente abrir as importações. [Como se estivesse falando aos fabricantes] Qualquer camisinha que chegue aqui no país e obedecer a essas condições técnicas, é uma situação de emergência, nós vamos jogar no mercado. Vocês vão competir com esse preço de camisinha. Agora, se vai fazer uma camisinha, com mola, que toque Strange Paradise, aí você cobra o quanto você quiser. Agora, a camisinha popular pode ser vendida a granel, custo baixo mesmo, tem que ser vendida ao preço mais baixo, por quem conseguir produzir a esse preço.

Maria Lins: Mas aí a gente não atinge um outro problema. Quer dizer, não é uma questão só de produzir, mas do brasileiro usar também. Parece que a grande maioria não usa.

Drauzio Varella: Mas (...) Está bom, mas, sem ter, aí é que não vai usar de jeito nenhum. Se tiver, ele pode usar ou pode não usar.

Maria Lins: Você acha que aí aumentaria o número?

Drauzio Varella: Eu não tenho dúvida disso.

Fábio Mesquita: Eu queria só pegar esse gancho da prevenção. Você é uma pessoa que trabalha a idéia do preservativo. E você tem trabalhando isso com muito respeito das pessoas que consideram importante levar essa mensagem para a população, do uso da camisinha, que é uma questão que a gente vem se batendo há anos. Quem está no movimento de luta contra a aids. No entanto, essa coisa do preservativo, você pega um único gancho e a gente tem alguns dados que eu queria passar rapidamente por eles. A gente tem no mundo inteiro 1 milhão de casos de aids e uma explosão da epidemia na Europa Oriental, na Ásia e na América Latina por uso de drogas injetáveis. Nós temos aqui, no Cone Sul, na região em que o Brasil convive com seus vizinhos, 25% dos casos de aids por drogas injetáveis. No nosso país também: de cada 4 casos, 1 é por uso de droga injetável. No estado de São Paulo são 35% dos casos de aids por uso de drogas injetáveis. Você produziu um material, que é um material extremamente interessante na Casa de Detenção, em que você coloca que o seu personagem central, que é o vira-lata, odeia a droga, odeia seringa, odeia (...) Quer dizer, ele tem uma posição que eu considero tão preconceituosa quanto aqueles que odeiam a camisinha, que acham que podem usar a camisinha como uma forma de proliferar o sexo, etc e tal. Então, eu gostaria de polemizar um pouco com isso. Quer dizer, você não acha importante também a gente fazer prevenção entre usuários de drogas injetáveis?

Drauzio Varella: Olha, eu estou um pouco confuso com relação a esse assunto agora. Eu sempre pensei que (...) Sempre acompanhei os estudos feitos no exterior, que demonstram claramente (...) Para mim não tem dúvida nenhuma. Você pega uma população e entrega seringa. Na outra população você não entrega seringa. A que você entregou seringa vai ter menos aids. Não tenho qualquer dúvida disso. Especialmente nos estudos em países onde comprar seringa é proibido. Você não pode comprar na farmácia. Você tem que distribuir, porque o cara vai alugar dos outros uma seringa. Você vê um estudo que diz que em Nova Iorque uma seringa era usada, em média, 16 vezes. Distribuindo seringa caíram para 4 vezes. Isso na cidade de Nova Iorque. Então, não tenho dúvida disso. Eu estou confuso agora. Porque, dos contatos que eu tenho com pessoal que usa droga, eles me garantem que droga injetável praticamente acabou, pelo menos aqui na periferia de São Paulo. Ainda existe um pouco, mas é uma quantidade mínima. O crack varreu a droga injetável. Eu não tenho dados para checar isso do ponto de vista prático, fazer um estudo profundo, etc. Mas eu tenho uma mostra que é muito significativa. Então, eu acho que esses programas às vezes me dão um pouco de medo. Será que esses recursos nesse momento...? Há 10 anos atrás (...) Isso é o que nós tínhamos que estar fazendo em 85. Tenho dúvida quanto a esses que estão aparecendo doentes, que agora se infectaram. Agora, nos dias de hoje, eu não sei. Eu acho que ajuda um pouco, mas eu tenho dificuldade, honestamente, dificuldade, se não tem um jeito melhor de usar esses recursos. Não era melhor saber, primeiro, se isso é mesmo verdade, se a cocaína injetável diminui significativamente.

Roldão Arruda: Mas você trabalha muito na Casa de Detenção. Lá dentro você percebe que o crack substituiu as drogas injetáveis. Na sua observação o que as pessoas utilizam?

Drauzio Varella: Em relação à cadeia, acho que tem que dizer uma coisa. Drogas injetáveis existem em qualquer cadeia. Droga existe em qualquer cadeia do mundo. Quando a gente fala da Casa de Detenção: “Lá tem drogas. Ah! Está vendo na Casa de Detenção tem.” A Detenção é o bicho da cidade, não é? Tudo que acontece de ruim a gente fala que é a Detenção. Parece que esquecemos que nós, a sociedade, enfiamos lá dentro 6, 7 mil homens. Colocamos umas pessoas para cuidar desses homens, pagamos uma ninharia para as pessoas que vão cuidar desses homens e, aí, ficamos chocados: “Ah! Entra drogas lá dentro.” Fui em um presídio na Suécia para 50 pessoas, 50 meninos que queriam largar isso, que se aplicavam para ir para o presídio. Eu quero parar de usar drogas, então, quero ir para esse presídio. Eram selecionados e aceitos. Todo dia de manhã, a porta do xadrez abria às 8 horas da manhã, fechava às 7 horas da noite, e tinha 1 por cela, 1 só por cela. Todo dia de manhã, eles saem da cela, vão, passam na sala do enfermeiro, colhem urina, com o enfermeiro olhando, e essa urina é testada para álcool, maconha, cocaína, heroína, um monte de drogas. Nessas condições, volta e meia, só tem 50 meninos, eles pegam gente com droga, na urina, positivo. Então, uma cadeia desse tamanho, é lógico que tem que ter droga, como é que não vai ter?

Roldão Arruda: Mas queria saber (...)

Drauzio Varella: Não existe droga injetável lá dentro. Não existe. Quer dizer, pode ter um ou outro caso isolado e tal, mas a onda da droga injetável acabou.

Roldão Arruda: O Departamento de Informática Médica da USP fez um levantamento, acho que no ano passado, mostrando que dentro da Casa de Detenção a principal forma de transmissão do vírus da aids seria pelas drogas injetáveis. Isso pode ser um retrato de algum período do passado? Hoje não seria mais?

Drauzio Varella: Porque você pega o cara infectado hoje e ele se infectou em 81, 82, 84, 85. Quer dizer, ele é positivo agora.

Fábio Mesquita: Os estudos de soro prevalência são estudos que fazem cortes. O corte é um estudo que você está fazendo nesse momento. É diferente de registro de caso. Registro de caso, sim, é quando estamos tratando de casos de aids. Estamos tratando de um caso que pode ter acontecido há 10 anos, há 5 anos, há 2 anos. Agora, estudo de soro prevalência, ele faz um corte naquele momento. Esse estudo da Detenção apresentou 38% de hepatite C, uma associação muito grande. A curva é idêntica, do crescimento da hepatite C com o crescimento do HIV. Então, os indícios são muito fortes de que a transmissão é basicamente parenteral [que acontece por meio das veias] e que é uma transmissão que acontece lá dentro. A gente, só para... [muda de raciocínio]. Está existindo um outro estudo que a gente tem trabalhado nele. É um estudo em 5 cidades brasileiras que envolvem a cidade de Santos, onde eu moro, a cidade de Itajaí, em Santa Catarina, uma cidade que tem um problema importante, a cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, a cidade de Salvador, na Bahia, e a cidade do Rio de Janeiro. Nestas 5 cidades, a cocaína injetável continua bastante presente, embora, no estado de São Paulo esteja crescendo o crack. Mas não há uma substituição, há um acréscimo. É como uma pessoa que gosta de tomar álcool e ela toma whisky, mas também toma vinho, mas também toma pinga. Ela tem essas alternativas. Então, ela pode estar tendo uma flexão, mas o uso de drogas continua importante no Brasil, tem umas variáveis.

Drauzio Varella: Devia então distribuir seringa? Partir do princípio que deve ter muito.

Fábio Mesquita: Eu não tenho a menor dúvida de que deveria ser feito isso. E o argumento em relação ao dinheiro que se alocaria para isso é o mesmo que os que são contra a distribuição de camisinha utilizam para dizer o seguinte: “Não, você está usando o dinheiro para pegar e distribuir camisinha para promover a promiscuidade social.”

Drauzio Varella: Não sou contra, não. Acho que pode ser essa a solução. Deu certo em muitos lugares do mundo, pode ser que aí dê também. Eu fico só um pouco preocupado com a eficiência. Olha, eu já assisti uma rodinha de pessoal se picando, injetando na veia, nós fizemos um vídeo, reunimos o pessoal do Armazém do Butantã. Tem mais de 3 horas gravadas. Todos chegaram com a seringa. Cada um trouxe a sua seringa. E, aí, eles começam um ritual. O ritual é muito engraçado, quer dizer, é trágico, porque eles dissolvem o pó na mesma colher, todos dissolvem na mesma colher, com um copo vazio e um cheio de água. Depois que se picam, eles enchem a seringa em um copo de água e jogam no copo vazio e colocam aquela seringa de lado. E vão assim. Dura segundos. Essa idéia que o pessoal faz, que toma uma injeção e o cara fica voando(...) Mentira, dura segundos. Em pouco tempo, ele já está agitado, toma outra e toma outra. Porque é uma droga que se usa até acabar. Todo o usuário de cocaína não guarda para o dia seguinte, usa até acabar. Bom, aí, quando dá a volta completa, o outro pega e mete a seringa para lavar na mesma água. Já infectou aquela seringa, lógico. No final, quando acaba tudo, que é quando acaba a droga, está o pessoal recolhendo as coisas e eu vejo um rapaz que chega pega aquele copo de água que estava grosso de sangue, das seringas, todas lavadas, e começa a beber a água. Eu gritei, larguei os fios, gritei e saí correndo em cima dele. Ainda peguei o braço dele e ele tomou mais da metade do copo de água. Aquela água era um sangue puro. Eu falei: “Mas, cara você está bebendo água com sangue.” Ele falou: “Ah! Pensei que fosse água.”  Nem percebeu.

Fábio Mesquita: Mas você considera... [é interrompido]

Roldão Arruda: Então, você duvida da eficácia de distribuir? Pelos métodos de distribuição da droga, como ela é vendida mesmo, parece que ela favorece esse uso coletivo? O senhor duvida da eficácia?

Drauzio Varella: Eu acho que pode ter eficácia sim. Mas eu não espero grande impacto por esse tipo de medida. Pode ser eficaz, no mundo inteiro foi eficaz.

Aureliano Biancarelli: Você duvida que o usuário de drogas seja uma pessoa sensível a uma campanha de prevenção?

Drauzio Varella: Não. Acho que é sensível sim. Acho que o simples fato de estar havendo essa mudança de hábitos já é característica dessa sensibilidade. Hoje, você não encontra em uma cidade como São Paulo um usuário de droga injetável que não tenha perdido um amigo, ou que não conheça alguém da rodinha dele, das proximidades dele, que está ou que morreu de aids. E essa é a fórmula melhor de você conscientizar a população.

Aureliano Biancarelli: Ainda assim, o senhor considera que ele não mude de hábito, que ele sabe do risco de corre, mas, na hora, é incapaz de tomar uma atitude?

Drauzio Varella: Olha, eu não posso ser tão radical assim de dizer que ele é incapaz de tomar essa atitude. Alguns, provavelmente, serão capazes de se defender. Mas eu acho que essa é uma população muito vulnerável. O desespero da droga cega completamente as pessoas.

Mário Cheffer: Mas nós temos que experimentar. O Ministério tem sido omisso em termos governamentais, não tem encarado de frente a questão.

Drauzio Varella: Talvez seja melhor fazer alguma coisa do que nada, porque não se faz nada para recuperar quem toma droga. A gente parte do princípio de que quem toma droga não presta e acabou, tem que ser colocado de lado.

Heródoto Barbeiro: Tem várias perguntas de telespectadores. O senhor começou a falar da questão da camisinha, inclusive falou a respeito das seringas também. A dona Andréia Sonviere, de Campinas, o senhor Isac, de Osasco, a senhora Dorana Beatriz, de São Paulo, senhor Nelson Luis Magno, de Santana, Narci Brandão, do Tatuapé (...) Todos eles perguntam a respeito da segurança da camisinha, como sendo, então, para impedir as pessoas de se contaminarem com a aids. Tem um aqui que diz o seguinte: doutor Malcom Polti, americano que está vendo o programa, foi citado aqui no caso [explica-se], dizendo que se alguma gravidez indesejável ocorre por problema da camisinha e se isso não é a mesma coisa que provoca a transmissão da aids. Há segurança total, em outras palavras? É isso que resume todas as perguntas.

Drauzio Varella: Segurança total o que é?  Qual é a segurança total com [é interrompido]

Heródoto Barbeiro: Aquele que se o vírus pode passar pela parede da camisinha.

Drauzio Varella: Segurança total, nada dá. Não existe um automóvel que te dê segurança total, absoluta, não. Agora, a camisinha é segura, ponto, não tem discussão. Quem usa camisinha não pega aids. Tem um estudo italiano que saiu ainda há pouco, há 2 meses, com casais heterossexuais, um infectado e outro não infectado. Eles pegaram os casais que tiveram relação sexual com camisinha e foram 18 mil, 16 mil. Eu não lembro. Eles fizeram o cálculo. Estimaram quantas relações eles tiveram nesse período. Zero. Ninguém pegou o vírus da aids. A camisinha protege, acabou.

Heródoto Barbeiro: E essas pessoas que dizem que ela rompe durante o ato sexual. O que acontece?

Drauzio Varella: Rompe, em geral, por uso inadequado.

Conceição Lemes: Inclusive, uma pesquisa que a Playboy fez, publicada no começo do ano, mostrou que apenas 7% dos brasileiros sabiam usar a camisinha corretamente. Inclusive, sobre esse estudo italiano, há um estudo em andamento no Brasil, conduzido pelo doutor Eusébio Castin, que está mostrando também que entre os parceiros que usam o preservativo e quando o homem, no caso, é HIV positivo, ele não passa o vírus para parceira. Quer dizer, é um estudo que vem na mesma linha do estudo italiano.

Roldão Arruda: Doutor Drauzio, algum tempo atrás esteve aqui, sentado onde você está, um outro médico, David Uip [médico, um dos maiores especialista em aids no Brasil], que criou uma polêmica muito grande, aqui no Brasil, quando disse que é muito difícil um homem heterossexual pegar aids fazendo sexo só com mulheres. Você já tem uma opinião definida sobre isso?

Drauzio Varella: Tenho.

Roldão Arruda: Você acha que corre um risco?

Drauzio Varella: Acho que é difícil, ainda é um pouco difícil, mas vai ser cada vez mais freqüente, cada vez mais fácil. Por que é um pouco mais difícil? A aids, no Brasil, começou com os homossexuais, aqueles que viajaram para o exterior, e o vírus veio com eles. Bom, aí os usuários de drogas apareceram. Usuário de droga não viaja para o exterior, usuário de droga não tem tênis, eles vendem tudo para comprar a droga. A não ser um ou outro artista, roqueiro e tal, mas é raro. Então, a doença veio com homossexuais e usuários de drogas injetáveis. Na segunda onda, que veio depois disso, quem é que começa a se infectar? São as mulheres. Hoje, nós estamos vendo cada vez mais mulheres infectadas. Cada vez, muito mais mulheres infectadas. Bom, o que vai acontecer? A população de homossexuais e de usuários de drogas injetáveis é restrita. Existiu vai sempre existir, mas é uma minoria. Há uma minoria de adolescentes que tomam droga na veia, uma minoria em relação ao total. Agora, no caso das mulheres, já não é minoria. A medida em que os homens vão tendo relações com essas mulheres, elas vão se infectar. Quanto mais mulheres infectadas, mais homens serão infectados. E tem mais um detalhe importante: todos os trabalhos científicos mostram que você é tanto mais infectante para o seu parceiro, quanto mais próximo da aids você estiver. Se eu peguei esse vírus da aids há três meses, a chance da minha mulher se infectar comigo é pequena. Agora, se eu peguei esse vírus da aids há doze anos, já começo a ter sintomas, a chance de ela se infectar é grande.

Mário Cheffer: Então, a possibilidade de o homem passar o HIV para a mulher é maior do que o contrário?

Drauzio Varella: Olha, eu não assisti esse programa, mas eu nunca ouvi ele dizendo (...) Não, espera um pouquinho, estou me confundindo. Eu nunca ouvi ele dizendo que o homem não pega aids de mulher. Isso eu nunca ouvi ele falar. Agora, se há chances de a mulher passar para o homem e o homem passar para a mulher (...) Como é que é isso aí? Isso é o seguinte: esses estudos são complicados, pois você pega um número de casais. Você pega os homens, todos infectados. Vamos ver agora quantas mulheres esses homens infectaram? Aí, vamos ver as companheiras deles e 30% estão infectadas. Então, o homem transmite para a mulher 30% das vezes? Como é que você garante que essa mulher que está infectada, não foi quem passou para ele? Esses estudos são difíceis de analisar. O estudo que a gente quer, do jeito que os médicos gostam, pega os casais e acompanha daqui por diante. Tudo controlado, seriamente, e mostra que o número de mulheres que infecta homens e o número de homens que infecta mulheres é o mesmo. O que se estuda na comunidade européia (...) Há outros estudos que mostram que os homens infectam mais facilmente as mulheres. Pode ser. As mulheres têm realmente uma superfície de contato maior para o vírus. O contato do homem com os líquidos seminais femininos restringem-se ao momento do ato sexual, o da mulher não. O esperma, o sêmen, fica muito tempo em contato com a vagina. É razoável esperar que a mulher se infecte com mais facilidade. Tudo bem. Mas o que fico pensando é o cara que fica pensando: “Ah não! Mulher pega mais fácil, então, eu tenho menos chance" é um idiota, pois, que diferença faz se você pegou e a sua chance era duas vezes maior ou duas vezes menor? Isso vai fazer diferença para quem controla, para quem vai definir a política de aids, que quer saber quantas mulheres vão ser infectadas e quantos homens. Para aquela pessoa, em particular, interessa é que aids passa da mulher para o homem.

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, uma participação aqui da doutora Marinella.

Marinella Della Negra: Eu gostaria de voltar para a seringa, pois, na realidade, é o que eu acredito que seja importante. E é isso que eu queria que você desse uma opinião. É que nesses países, onde se distribui seringa, existe um trabalho ao lado disso. Não é só o simples fato de distribuir seringa. Através da distribuição de seringa, você tem contato com esses usuários de drogas e tem alguma coisa a oferecer a esse usuário. Por exemplo, no serviço da Holanda, que você conhece tão bem, quando o paciente chega lá, o usuário de droga chega para trocar. Lá, toma-se mais heroína do que cocaína. E oferece-se, para esse usuário de droga endovenosa, condições de trocar a droga. Então, na realidade, tem duas coisas importantes na distribuição de seringa, que é a própria seringa, sem dúvida nenhuma. Porque, se eu, através de distribuição de seringa, conseguir diminuir 1%, para mim é lucro, certo? Mas, também é a possibilidade de estar conversando com esses usuários de droga e estar dizendo: “Olha, você tem chance, se você quiser, você tem tal e tal serviço para socorrer. Se você quiser largar e tudo.” Agora, tem outro problema. Quer dizer, no meio disso tudo, tem o grande problema. O número de usuários de drogas é grande e o número de locais de atendimento desses usuários de droga, caso eles queiram largar a droga, é muito pequeno. Então, na realidade, eu acredito que talvez ...[não chega a concluir]

Drauzio Varella: Nós não temos serviço para isso. Mas vamos ter que ter, pois é um problema mundial. Droga não vai acabar no Brasil, vai só aumentar, para cada vez mais gente. Nós temos que criar esses serviços.

Fábio Mesquita: Dois comentários que eu gostaria de fazer sobre isso que a Marinella falou. O primeiro, é o seguinte: a experiência do mundo em recuperação de dependentes, da pessoa que realmente é dependente de droga, se você considerar a recuperação, a abstinência, o cara que entra para o tratamento voluntariamente e vai para a abstinência, nos melhores serviços do mundo é de 30%. O que significa que os outros 70%, independentemente de você oferecer tratamento, vão continuar utilizando a droga. E o segundo comentário: você esteve na conferência do Japão, a conferência é uma coisa muito grande, cada um de nós acabou cobrindo a sua área de maior interesse. Eu cobri muito essa área de drogas. E vários estudos demonstram que é muito mais simples que a pessoa modifique o comportamento em relação ao uso seguro de drogas do que em relação ao sexo seguro. É muito mais simples você modificar o comportamento em relação ao uso de drogas do que em relação ao uso da camisinha. Isso é um fenômeno geral, em nível internacional.

Mário Cheffer: Eu queria voltar na questão da camisinha. Como a gente vai popularizar e massificar a camisinha com grandes opositores? Como, no caso da Igreja e outros ainda maiores. Por exemplo, o Aureliano [Biancarelli] esteve na coletiva com o presidente da OMS [Organização Mundial da Saúde], quando ele esteve aqui no Brasil, e a gente veio conversando. Ele [o presidente da OMS] disse que a fidelidade e a monogamia eram mais seguros que a camisinha na luta contra a aids. Aí, é a igreja e a Organização Mundial da Saúde contra a camisinha e nós a favor. Então, como você vê essa batalha?

Drauzio Varella: Acho que a Igreja tem a fórmula mágica para acabar com a aids. É só não ter sexo antes do casamento e nem fora dele que os que estão infectados, estão, e os outros não vão mais se infectar. Acho que se todo mundo obedecesse a Igreja não ia mais haver o problema da aids. Nós vamos ter que tratar desses que já se infectaram. O problema é que muita gente não obedece. Muita gente tem sexo antes, durante e depois do casamento. Esse é o problema. Então, para esses que tem sexo no casamento, que casaram virgens, tem gente que é assim e que vive bem desse jeito. A gente tem uma tendência hoje, no mundo de hoje, de dizer que essas pessoas são idiotas. Não, ao contrário, tem gente que vive bem, tem gente que casa virgem, só conhece aquela pessoa, ama aquela pessoa, vive a vida inteira e não sente necessidade de ter ninguém fora dessa relação. Mas esses privilegiados são poucos, a maioria se desencontra e esses que se desencontram têm que se proteger de uma doença que é sexualmente transmissível.

Maria Lins: Pois é, mais, aí, é aquela velha história. Assim, muita gente fala: “Ah! Eu não corro risco porque eu só transo com quem eu conheço.” Ou então: “Eu tenho a mesma parceira há muito tempo.” Quem é confiável atualmente? Dá para confiar assim nas pessoas?

Carla Gullo: As mulheres estão sendo infectadas também, pois muitos parceiros têm comportamento bissexual. Isso é fato. Acontece isso. Mesmo em um casamento, você não está totalmente seguro. A monogamia não é segurança de nada.

Drauzio Varella: Olha, a minha experiência pessoal com as mulheres infectadas, se tivesse que definir um traço de personalidade comum à essas mulheres, eu diria que esse traço é a ingenuidade. Ao contrário do que a sociedade pensa, que as meninas que se infectam com o vírus da aids são as mais malandrinhas, que saem com todo mundo e tal, as que se infectam com o vírus da aids são infectadas com a traição. É mulher casada, que nunca teve outro homem na vida. É a menininha, que saí com o rapaz 2, 3, 4 vezes e se apaixona. E mulher quando se apaixona não usa mais camisinha. Essa é a minha experiência prática. E mulher se apaixona. Incrível! É duas, três vezes que sai com o rapaz: “Ele é legal e não sei o quê.” Pronto. Está apaixonada.

Fábio Mesquita: Mas o homem também se apaixona.

Drauzio Varella: Mulher é muito. É demais. É mais que o homem e é rápido, em um instantinho.

Maria Lins: No caso, a campanha tem que ser mais dirigida às mulheres exatamente por isso?

Drauzio Varella: Você tem que falar com as meninas cedo, antes de elas terem a primeira relação sexual. Isso é uma coisa que(...) “Mas minha filha ainda é muito criança para conversar”. Você espera seu filho atravessar a rua 10 vezes para depois você ensinar ele a atravessar a rua? Você não pega pela mão e diz: “Olha, vem aqui, olha para lá, vem carro, olha para cá, não vem.” Faz 10 vezes. Na hora em que você estiver um pouquinho confiante de que ele aprendeu você solta e ainda fica olhando, não é? E a questão da aids? Seus filhos entram na vida sexual e você fica quieto? Espera eles ficarem maduros para poderem ter uma conversa e correr risco?

Heródoto Barbeiro: Agora, doutor Drauzio, tem umas perguntas aqui sobre essa parte didática. As pessoas que estão acompanhando a sua explanação. O seu Paulo Ribeiro, que é de Pindamonhangaba, interior de São Paulo, fala aqui em febre. A febre amarela e a malária são transmitidas por mosquitos? Ele quer saber o seguinte: “Se mosquito também é responsável por contaminação por aids.”

Drauzio Varella: Vamos fazer uma coisa (...) É o seguinte, seu entrar nessa, daí nós vamos ficar falando dessas formas fantasiosas de infecção da aids. Então, vou tentar responder.

Heródoto Barbeiro: Diretamente.

Drauzio Varella: Essa e todas as outras. Nem mosquito, nem mosca, nem muriçoca, nem gafanhoto, nenhum tipo de inseto passa aids. Porque o vírus da aids não vive dentro do inseto. Não vive nem dentro de macaco e vai viver dentro de inseto? Então esquece. Não existe qualquer possibilidade de transmissão do vírus da aids desse jeito.

Maria Lins: Mas, voltando àquela questão, o que seria confiável, pois, hoje, não pode ter aquela história: “Ai! Eu confio nessa pessoa.”

Drauzio Varella: Não pode.

Maria Lins: Nem aquela pessoa que já está casada há muitos anos. Quer dizer, e a relação de confiança que existe entre duas pessoas, que é à base de um relacionamento verdadeiro? Quer dizer, isso não vale mais? Você tem que está sempre desconfiando?

Drauzio Varella: Eu acho que vale. Eu acho que quando as pessoas têm um relacionamento estável, qualquer relacionamento estável, é perigoso por definição, não é? São muitos os perigos que envolvem um relacionamento estável. Então, em um relacionamento estável não tem defesa. Esse que é o crime, porque não há outra palavra. Isso que é o crime do comportamento irresponsável. O cara pega: “Sou homem. Saio com a secretária. Saio com não sei quem. Saio com a colega de escritório. Saio com empregada da mesma repartição que eu. E volto para casa e não uso camisinha. Volto para casa, transo com a mulher e não uso camisinha.” Isso é crime. É crime, pois ele está arriscando fora, está trazendo isso para dentro de casa. Eu não estou discutindo o direito do cara de sair. Saia com quem ele quiser. O problema é dele, ninguém tem nada com isso. Mas ele tem que usar camisinha. Agora, ele trazer o vírus para casa dele, porque não usou camisinha é crime.

Heródoto Barbeiro: Só para complementar as perguntas (...) Estou perguntando, pois as pessoas têm esse tipo de dúvida. Francislene Vieira, de São Paulo, quer saber se o beijo transmite aids?

Drauzio Varella: Beijo não transmite aids. O beijo não transmite aids. Ponto final. Beijo na boca, aí falam: “Ah, mas e seu eu estiver com uma feridinha na boca, com a boca sangrando?” Primeiro, que ninguém vai beijar com a boca sangrando. Já é errado, não é? Mas, até onde se sabe, nunca ninguém pegou aids. Nós já temos 17 milhões infectados no mundo e não há descrição de um caso de alguém que pegou aids pelo beijo. Então, chega não é? Para mim acabou.

Conceição Lemes: Doutor Drauzio, a pesquisa na revista Playboy mostrou que aproximadamente 50% dos homens brasileiros acham que a camisinha diminui o prazer, que é "chupar bala com papel" e que tira o tesão. Só que quase 50% dos homens que pensam assim nunca experimentaram camisinha uma vez na vida. Como vencer essa barreira cultural?

Drauzio Varella: Eu acho que só tem um jeito: são as mulheres se negando a relacionarem sexualmente com os homens que não usam camisinha. Isso é uma arma que as mulheres têm fortíssima. A mulher fala: “Olha, sem camisinha, não.” Pronto. Ou o cara põe a camisinha, ou não. Então, o trabalho tem que ser em cima das mulheres. Você vai ser submissa? Para ser honesto de verdade, o médico gosta de dizer: “Não, com camisinha é muito melhor, é a mesma coisa.” É mentira, não é? Sexo sem camisinha é mais gostoso do que sexo com camisinha. Acho que ninguém aqui discorda disso. É mais gostoso. Agora, nós estamos vivendo em uma época de epidemia de uma doença sexualmente transmissível. Isso já é uma ameaça suficientemente séria para dizer: “Todo mundo para de ter relações sexuais.” Felizmente, existe a camisinha. E com a camisinha dá para a gente ter vida sexual e se proteger. Não pegar o vírus. Para a mulher, a camisinha não faz muita diferença sexualmente. É verdade. É raro uma mulher que se queixe que a camisinha atrapalha muito. Para a mulher atrapalha menos. A mulher transa sem camisinha em um ato de submissão ao homem que ela não confia. Nesse momento, ela está sendo submissa, está se entregando a uma pessoa que poderá, eventualmente, infectá-la, pois ela não sabe defender-se para proteger o pouquinho a mais de prazer que o outro vai ter.

Carla Gullo: E as prostitutas, por exemplo. Muitos homens não aceitam. Então, elas, entre morrer de fome e correr o risco de ser infectadas, ficam com a segunda opção. Existe algum estudo que fale da contaminação entre as prostitutas? Se os homens que transam com elas estão se prevenindo melhor?

Drauzio Varella: Eu não conheço bem. Tem muitos estudos desses, tem dezenas feitos até aqui, em várias cidades brasileiras. Existem diferenças de comportamento, porque a prostituição é uma coisa muito vasta, a prostituição nas cidades modernas (...) Lá no interior, antigo, você tinha uma zona de prostituição e a prostituição estava restrita a essa zona. Na cidade moderna, a prostituição está misturada com a vida da cidade. Você tem prostitutas que cobram muito pouco, mais baixo nível, e etc. Quanto mais barato a prostituta cobra, mais chance de infecção ela tem. Isso todos os estudos mostram.

Maria Lins: Drauzio, quem está começando a vida sexual agora, começou há pouco tempo, nesses tempos de aids, essas pessoas têm mais facilidade em como usar camisinha? É mais fácil?

Drauzio Varella: Eu acho que tem.

Maria Lins: Que não experimentaram um início sem camisinha?

Drauzio Varella: Eu acho que tem. Acho que tem porque alguns deles (...) Você pegar essa garotada que está entrando agora, pois a aids não vai acabar. Nossos filhos vão viver em um mundo cheio de aids. Nossos netos vão ter doentes de aids entre eles. Então, nós temos que preparar essa nova geração, para que eles comecem a vida sexual aceitando que sexo se faz com homossexual e com camisinha protegendo. Não tem outro jeito.

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, nós vamos fazer um intervalo, mas antes eu queria que o senhor respondesse rapidamente o SoliDrauzio Silveira, do Recife, que pergunta ao senhor o seguinte: “Se é possível também a pessoa se contagiar com aids pelo sexo oral.”

Drauzio Varella: Sexo oral é uma confusão. Médico nenhum responde sobre o sexo oral. Com toda a razão. Pois você, para fazer um estudo sobre o sexo oral (...) Não dá para responder essa pergunta muito rapidinho. Você, para fazer qualquer estudo com o sexo oral, teria que fazer o quê? Pegar uma população que só praticasse sexo oral. Acontece que o sexo oral é parte do repertório sexual. Então, esse estudo nunca vai existir. Eu, pessoalmente, acredito no seguinte, baseado nas coisas que eu li, mas pode ser que eu esteja errado, admito que uma pessoa infectada pondo a boca no sexo da outra não infectada... [não conclui] Que dizer: eu estou infectado, a outra não está infectada. Eu levar o vírus da aids pela minha boca pro sexo do outro? Eu acho altamente improvável.

Heródoto Barbeiro: Muito bem. Nós vamos fazer um intervalo e voltamos daqui a pouco. Hoje, no Roda Viva, nós estamos entrevistando o médico cancerologista Drauzio Varella. A gente volta já.

[Intervalo]


Heródoto Barbeiro: Nós voltamos, aqui, com o Roda Viva. Nós estamos entrevistando o médico, doutor Drauzio Varella. Doutor Drauzio, vamos falar um pouquinho agora a respeito do futuro, não é? E das possibilidades, da saída, desse tipo de doença. Que pesquisa existe nessa direção? Existe a possibilidade de surgir um remédio, em longo prazo, ou até, diria o seguinte: o que a engenharia genética tem a ver com a possibilidade de aparecer um remédio que venha a curar uma doença trágica como essa, a aids.

Drauzio Varella: Você fala em termos de vacina?

Heródoto Barbeiro: Não, vamos falar em termos de pessoas que já estão doentes e precisam de um remédio para estender sua vida ou até poder se curar disso.

Drauzio Varella: Eu acho que neste ano que passou, houve dois grandes avanços nessa área, dois grandes avanços mesmo. Primeiro, foi o estudo da imunidade in vivo, a imunidade que alguns desenvolvem contra o vírus da aids. Até em 88, na Conferência de Estocolmo [na Suécia], não se sabia se o organismo humano era capaz de desenvolver imunidade contra o vírus. Alguns admitiam que não. Hoje, você já sabe que algumas pessoas até entram em contato com o vírus e não pegam o vírus por desenvolverem uma resposta imunológica muito forte. Talvez, esses que não pegam o vírus, não é porque não entram em contato com ele. Mas é porque eles são capazes de desenvolver uma resposta imunológica que os livra do vírus, uma vez, duas, três. Também pode ter um limite isso, não é? Então, esse tipo de imunidade (...) Quais são as células que estão envolvidas aí?Quais os mediadores químicos, as substâncias que essas células liberam para fazer mandar o sinal de umas para as outras? Isso está sendo muito bem conhecido e cada vez mais estudado. Podem surgir subsídios para que a gente possa um dia fazer uma intervenção no sistema imunológico. Fazer com que o sistema imunológico reaja melhor na vigência do vírus, para controlar a presença do vírus e, eventualmente, essa pessoa nunca vir a desenvolver aids. Se você pega o vírus e não tem aids, qual é o problema? O problema é só transmitir para os outros. Mas você mesmo vai carregar a vida inteira e... [é interrompido].

Heródoto Barbeiro: E o outro lado da questão, que seria a vacina para impedir que as pessoas, ainda que em contato com o vírus da aids, venham a adquirir a doença?

Drauzio Varella: Isso nós estamos longe. Infelizmente, mais longe do que a gente imaginava.

Marinella Della Negra: Qual o maior empecilho para se chegar na vacina?

Drauzio Varella: É muito complicado. Precisa de muito dinheiro. Muito, muito dinheiro. Como tem que ser testado em gente, o que você precisa fazer: toda a vacina candidata a ser usada no ser humano tem que, antes, passar por uma fase, que você vai ver a toxidade. Precisa saber se injeta, o que acontece, se a pessoa fica doente, se tem febre, se faz reação no local, enfim. E o que acontece do ponto de vista imunológico. Se a vacina está produzindo uma resposta imunológica. Agora, o fato de produzir uma resposta imunológica, não garante que essa pessoa não vá pegar o vírus, mesmo tendo a resposta imunológica ativada, entendeu? Então, tem que ser estudos com grandes amostras populacionais. E quem tem que fazer isso? Isso, espera-se que as empresas multinacionais se associem e tragam para esse campo um grande volume de recursos, pois é uma questão de dinheiro. Ninguém vai descobrir a vacina da aids. Você vai acordar de manhã, abrir o jornal e ler: “Foi descoberta a vacina da aids.” Não vai acontecer nunca isso, porque, ainda que ela esteja sendo descoberta nesse momento, essa pessoa vai ter que provar que essa vacina, primeiro, é segura e, segundo, que realmente imuniza. E uma doença dessas, que você pega o vírus hoje e vai ter a doença daqui há dez anos, doze anos, esses estudos vão exigir um longo intervalo de tempo.

Roldão Arruda: Falta dinheiro para as pesquisas sobre a aids?

Drauzio Varella: Falta. Falta muito dinheiro. Por exemplo, com essa questão da vacina. Você pega esses grandes laboratórios, a gente sempre analisa os laboratórios como sendo os vilões da história, mas um laboratório não pode falir por causa de uma vacina, está certo? Não pode falir. Ele tem que ter recursos para aplicar e isso é uma coisa limitada, por maior potencial financeiro que tenha essas grandes multinacionais da indústria farmacêutica. Tem um limite esses recursos.

Conceição Lemos: Doutor Drauzio, dá para dizer que os tratamentos hoje disponíveis conseguem prolongar a vida do paciente mais do que há dois ou três anos? E isso se deve graças a quê?

Drauzio Varella: Olha, eu acho que quando a gente fala em prolongar a vida do paciente com aids, nós já, de cara, temos que dividir isso em duas populações. Se o paciente tem acesso a uma medicina mínima, que permite fazer os diagnósticos dessas infecções oportunistas rapidamente. Rapidamente é o seguinte: começa com uma falta de ar muito grande e você tem que fazer uma endoscopia. Tem que enfiar um aparelho lá dentro do pulmão para tirar um pedaço e analisar. Não é um exame complicado, mas também exige um pouco de experiência. Então, se você tem esses recursos básicos é uma coisa, se você não tem os recursos básicos, esquece. Quem não tem acesso ao sistema de saúde, morre de aids, hoje, na cidade de São Paulo, no mesmo tempo que morria há 8 ou 10 anos.

Fábio Mesquita: Doutor Drauzio, nesse sentido, tem uma matéria do Jornal do Brasil, que é de setembro de 1994, em que o Programa Nacional de DST/aids, na pessoa da coordenadora, doutora Lair Guerra , afirma que a aids está sob controle no Brasil. Ou seja, praticamente, que a aids parou de crescer no país pela primeira vez nos últimos 10 anos. Você concorda com essa avaliação?

Drauzio Varella: Eu não tenho os dados. O Ministério da Saúde tem esses dados. Eu acho que é um pouco ilógico, porque no mundo inteiro os casos de aids continuam crescendo. Você, às vezes, pega certas comunidades onde existe um determinado controle. Então, vai, entre os homossexuais de São Francisco [Estados Unidos]. Tudo bem. Entre o pessoal que participa do programa de seringa na Escócia. Tudo bem. Agora, até onde eu conheço, nem no Japão está estabilizado.

Roldão Arruda: Mas o que nós estamos assistindo? Nós estamos vendo o resultado de alguma coisa que aconteceu há uns anos, ou você acha que, apesar de todas as campanhas que já foram feitas, de tudo que já se fez, as pessoas não se conscientizaram e continuam a transmissão nos mesmos níveis de antigamente? Por exemplo, há pesquisas feitas na Inglaterra que dizem que os adolescentes, os jovens, já usam [camisinha] na primeira transa numa proporção muito mais elevada do que se usava antigamente. A gente não pode supor que ela já tenha entrado em um nível [muda o raciocínio]. Nós estamos fotografando ainda um passado e que hoje ela [a aids] já possa ter entrado em um nível de decréscimo de infecção?

Drauzio Varella: Não aconteceu em lugar nenhum até agora. Nenhum lugar do mundo aconteceu isso. Eu acho que tudo que nós fizemos aqui no Brasil, e foi pouco, tudo que nós fizemos, é possível que algum resultado tenha tido. Também não é possível que nada. Você não encontra no Brasil ninguém que, por exemplo, não saiba que aids mata. aids mata, todo mundo sabe, o país inteiro. Então, acho que isso tem que ter tido algum impacto.

Aureliano Biancarelli: Você acha que o governo está fazendo, cumprindo com seu papel?

Drauzio Varella: Não, não, de jeito nenhum. De jeito nenhum.

Heródoto Barbeiro: Drauzio, tem uma pergunta aqui de telespectador... [é interrompido].

Drauzio Varella: Eu acho que o governo e nós. Nenhum de nós está cumprindo com o nosso papel. Não é só governo, não. Nenhum de nós.

Maria Lins: Mas como o governo deveria agir então?

Drauzio Varella: Eu acho que o governo tem que agir em vários níveis. Eu acho que o primeiro nível é esse da camisinha. Se você tem um país como o nosso, que gasta 4,5 milhões a 5 milhões de camisinhas por mês, se é que o número está certo, você vem falar em prevenção em aids? Que é isso? Ninguém está usando camisinha. E o menino pobre, que é a maioria da população? Falo menino porque é a fase dos 15, 25, 30 anos, que faz a maior atividade sexual. E a aids vai toda na direção da adolescência. Toda nessa direção. Agora, o menino da periferia vai comprar uma camisinha? Três camisinhas custam o que? Um real e meio? Três camisinhas ele gasta em uma noite nessa fase da vida não é?

Aureliano Biancarelli: E quem pode comprar está comprando?

Drauzio Varella: Eu não sei.

Aureliano Biancarelli: A julgar por esse número?

Drauzio Varella: Nem quem pode comprar está comprando.

Aureliano Biancarelli: Você tem feito inúmeras campanhas dirigidas aos jovens. O que acontece que esse ato simples de ir até a farmácia, comprar e desenrolar uma camisinha não está se materializando?

Drauzio Varella: Entre os jovens? Eu acho que está se materializando mais significativamente. Hoje, é muito comum, não muito comum, mas você encontra jovens que só tem sexo com camisinha, sempre, 100% das vezes. Você encontra isso com uma certa freqüência. Há uns anos, era zero essa freqüência. Então, acho que os jovens são muito sensíveis nessa fase, porque eles estão na briga ainda, lutando, começando a aprender a viver e tal. E uma fase que os hormônios estão no teto, não é? E esses hormônios levam os jovens a uma vida sexual ativa, o sonho dele é ter uma vida sexual ativa, bastante ativa. Agora, você põe a camisinha em um preço como esse você limita. Você imagina um real e meio por três camisinhas para um menino desses, que transe duas vezes por semana, sai duas vezes por semana. São três reais por semana. Põe aí 4 semanas e meia. Ele vai gastar o que? Treze reais e meio por mês. Treze reais e meio por mês para um menino é muito dinheiro, é muito dinheiro.

Heródoto Barbeiro: Tem várias perguntas aqui dos telespectadores a respeito da preocupação com a qualidade do sangue e se há possibilidade ou não da transmissão do vírus da aids pelo sangue. Há casos, inclusive, de pessoas que necessitam dessa transfusão com mais frequência, como a existência de pessoas hemofílicas. Nessa linha de raciocínio, a Cristina Terra faz uma pergunta para o senhor. E mais, o Jornal da Tarde publicou uma reportagem chamada Proteção Contra a aids, dizendo o seguinte: “Nos Estados Unidos, 1 a cada 10 mil pessoas são contaminadas por transfusão de sangue e que, no Brasil, seria 1 por mil.” São dados publicados pelo Jornal da Tarde. Se quiser, posso mostrar aqui.

Drauzio Varella: Eu não conheço esses números. Eu sei que sangue, até onde eu sei, o sangue que nós estamos usando hoje é um sangue seguro. [Todos falam ao mesmo tempo]. Aqui no estado de São Paulo é seguro.

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, a fonte é do diretor do hospital Albert Einstein, doutor Nelson Hamerschlak, médico do serviço de hemoterapia do hospital. Ele diz o seguinte: “Nos Estados Unidos, cerca de 13 milhões de pessoas fazem transfusão por ano. Entre 70 a 200 acabam pegando aids, mesmo sendo sangue testado. Relação de 1 para 10 mil. No Brasil, a relação é de 1 contaminado para mil pessoas que sofrem transfusões. Ou seja, 10 vezes maior.”

Drauzio Varella: Tem que perguntar para o Nelson. Isso eu não sei, realmente. Não sei nem analisar isso.

Heródoto Barbeiro: O senhor acha alta essa proporção de 1 para 1000?

Drauzio Varella: Acho altíssima.

Heródoto Barbeiro: Um risco enorme para as pessoas ...[é interrompido].

Drauzio Varella: Estou achando alta essa porcentagem nos Estados Unidos, pois, até onde conheci, esses números eram de 1 para 40 mil, nos Estados Unidos. Em cada 40 mil transfusões, 1 acontecia. Agora, esse número para mim é altíssimo, mesmo lá.

Heródoto Barbeiro: Doutor é possível ter zero e vírgula nessa transfusão?

Drauzio Varella: Zero, zero, zero, zero? Sei lá, acho que vai ser possível.

Heródoto Barbeiro: O risco é a pessoa que está contaminada e não se manifestou ainda ir lá, doar o sangue, fazer o exame, não é detectado o vírus e esse sangue é passado para outra pessoa. Não é isso?

Drauzio Varella: Esse é um risco teórico. Você, quando pega o vírus, o teste da aids detecta o quê? O que ele faz? O teste da aids não prova se você está com o vírus dentro da circulação, o teste da aids detecta a presença de anticorpos no sangue. Se você tem anticorpos contra o vírus é evidente que você entrou em contato com o vírus. Senão, você não teria como fazer esses anticorpos. Então, o teste da aids é um teste de anticorpos. Nós levamos um tempo para fabricar anticorpos. Eu me infecto hoje. Amanhã não estou fabricando anticorpos ainda. O sistema imunológico precisa de um tempo para se organizar e conhecer o agressor, etc. Esse tempo varia. Chega a 4, 8, 12 semanas. Teoricamente, alguém nessa fase, que ainda não chegou a desenvolver o primeiro sintoma, não desenvolveu a primeira produção de anticorpos, esse vem com teste negativo, e ele já tem vírus circulante. O vírus da aids entra no corpo rapidinho e circula de uma vez. Você pega o vírus da aids, hoje, isso em estudo, põe em um tubo de ensaio o vírus da aids com a célula CD4, que é um tipo de glóbulo branco que ele infecta. Em horas ele penetra nessa célula e joga os gens dele para dentro dos gens da célula e, a partir daí, está em uma situação que é inexpugnável. Acho que essa é a palavra certa.

Heródoto Barbeiro: Dona Luisa Barros, de Curitiba, pergunta o seguinte: “Qual é a duração do vírus fora do organismo? Quanto tempo ele vive?”

Drauzio Varella: Eu não sei. Eu sei que dura muito pouco tempo. Dura muito pouco tempo fora do organismo. Especialmente se tiver em um ambiente seco. Morre em horas, provavelmente. O que há, são algumas experiências feitas em seringas com sangue dentro. Seringa conserva aquela umidade dentro. Há experiências mostrando que ele é capaz de sobreviver 24 horas ou até mais nesse tipo de ambiente fechado.

Mário Cheffer: Hoje, a gente vive uma heterossexualização da aids. Cada vez mais, a aids está atingindo os heterossexuais. Só que a gente esquece que ainda há cerca de 30% dos casos entre homens que fazem sexo com homens e também bissexuais. E o que a gente percebe? Tem uma séria pesquisa do Richard Park, que é um antropólogo do Rio, que o homossexual está novamente se afastando da prevenção. Então, assim, eu te pergunto: qual que é a estratégia para a gente conseguir atingir todas as populações potencialmente expostas ao risco? De a gente correr o perigo de abandonar um determinado público e estar preferindo um outro e acontecer isso? Daqui há 5,10 anos a gente ver, de novo, uma homossexualização da aids.

Drauzio Varella: Olha, isso aí não é problema nosso só não. Em São Francisco está acontecendo isso. Pode? Em São Francisco [diz com ar de surpresa]. Não há cidade que respondeu mais prontamente ao desafio da aids do que São Francisco. As organizações gays e um mundo de gente dando dinheiro e organizando pessoas, com campanhas educativas e tudo. Nada como São Francisco. Eu vi um estudo agora, há pouco tempo, publicado em São Francisco, com os jovens gays, jovens de 14 a 24 anos. Eles testaram um grupo desses jovens e 50% não voltaram, sequer, para buscar o resultado do teste. Não foram saber se deu positivo ou negativo. Metade. Em São Francisco. Isso é um problema mundial. Aqui no Brasil, o que está acontecendo é seguinte: os homossexuais mais velhos, que perderam amigos com aids, perderam pessoas queridas dos círculos de amizade deles. Esses, estão muito conscientes do que se passou. É uma geração que você pode dizer que (...) Os homossexuais mais velhos, nas grandes cidades brasileiras, cidades como São Paulo e Rio, os que estão bem, são sobreviventes.

Mário Cheffer: Mas não falta um trabalho dirigido? Pois, hoje, tem 5 programas voltados para homens que fazem sexo com homens no Brasil inteiro, programas bancados pelas ONGs. Alguns financiados pelo Ministério. Mas acho que falta uma iniciativa governamental, justamente de estar multiplicando os programas voltados para todas as populações que são: o jovem gay, o adolescente, a prostituta, o michê, não é? Eu acho que falta a gente discutir e encarar mais de frente.

Drauzio Varella: Eu acho que essa questão dos homossexuais, essa falta de trabalho junto aos homossexuais, é a expressão clara do preconceito contra os homossexuais que existe na sociedade brasileira. Nós ainda tratamos os homossexuais, aqui no Brasil, de forma medieval. Medieval. O menino pequenininho sai andando na rua. Se ele anda um pouquinho com jeito de mulher os outros batem nele, abusam, judiam, ele apanha em casa do pai, o tio xinga. Nós ainda partimos do princípio que a homossexualidade é uma opção de alguns desavergonhados. É ignorância pensar assim, pois, assim como existe uma grande massa de homens que nascem heterossexuais, existe uma pequena minoria que é homossexual no comportamento. Eles são homossexuais, não tem jeito. Não adianta dizer: “Vamos querer mudar.” A medicina já fez isso, já foi tentado de tudo que é jeito. Com alguns homossexuais, a primeira vez que sentem aquela sensação esquisita, que dá aquele rubor sexual (...) Às vezes acontece na criança pequena, com 6, 7 anos. Às vezes acontece isso. Em geral, o menino tem pela menina e a menina pelo menino. Mas existe uma pequena porcentagem de meninas que sentem isso por outra menina e garotinhos que sentem por outros garotos também. Esses vão ser homossexuais. E nós partimos do princípio que eles têm que ser uma coisa errada na sociedade. Qual a conseqüência disso? O que acontece com isso? Acontecem coisas como a aids, pois se você reprime, o que você vai fazer? Você vai fazer eles se agruparem em guetos. São Paulo tem um gueto homossexual enorme. Quando você agrupa, o Paulo transa com João, o João com Pedro e Pedro com Paulo. Essas relações ficam fechadas, um infectado, infecta o bando e assim vai indo embora.

Conceição Lemes: Doutor Drauzio, você não trata apenas de aids. Você trata também bastante de câncer. E como cidadão e cancerologista você é um ferrenho inimigo do fumo. Ver tanta gente morrer devido ao cigarro é o que motiva a lutar tanto contra o fumo?

Drauzio Varella: Olha, eu fui fumante, fui dependente de nicotina, fumei dos 17 aos 36 anos. Eu parei há 15 anos de fumar. Há uns 15 dias, eu sonhei que estava fumando. Faz 15 anos que eu parei e sonhei que estava fumando. A nicotina é uma droga muito poderosa, muito poderosa. E a gente permite que as companhias de cigarro deitem e rolem no Brasil. Pois, qual é a estratégia do cigarro no Brasil? A estratégia é você fazer uma publicidade para as crianças. Por quê? Porque há estudos da Organização Mundial da Saúde que dizem que apenas 5% dos fumantes começam depois dos 25 anos. 95% de quem fuma começou abaixo de 25 anos. Então, deixamos por na televisão e põe uma tarjinha que fumar é prejudicial à saúde, o que não representa muito.

Maria Lins: Nos Estados Unidos, diz que fumar dá câncer. Quer dizer, é muito mais sério.

Drauzio Varella: Lógico.  É melhor.

Maria Lins: Aqui, só diz que faz mal a saúde.

Drauzio Varella: É prejudicial à saúde. Nós deixamos eles fazerem isso. Deixamos eles fazerem o Free Jazz Festival, o Hollywood Rock, por Marlboro no carro do Ayrton Senna, não é? E eles vão viciando as crianças. O vício da nicotina é uma coisa tão potente, que o cara não agüenta ficar horas sem fumar. A nicotina vicia demais. Uma hora sem fumar e o cara já começa a ficar desesperado. Eu, quando fumava, chegava a escovar os dentes e deitar na cama, já de pijama, lembrar que eu estava sem cigarro. Eu não ia fumar, mas eu lembrava que eu estava sem cigarro e punha a roupa outra vez, pegava o carro e ia comprar um maço de cigarros. Você pega doenças que o cigarro provoca. Tem uma doença, que é até um nome bonito, chama [sua fala é confusa, mas refere-se a um tipo de trombose], que vai fazendo o quê? Vai pegando, da periferia para o centro, vai entupindo as artérias. Só dá em fumantes. Cem por cento são fumantes. Aí, começa a entupir as artérias da ponta do dedo do pé. O dedo vai ficando preto, você corta o dedo do pé e fala para o cara: “Pare de fumar, que você pode perder o pé.” E ele continua fumando. Você corta o pé dele, ele continua fumando. Você corta a canela... Conversem com os médicos. Todos eles já viram casos desses na vida. Eu trabalhei 20 anos no Hospital do Câncer e em volta do Hospital do Câncer ficava aquele pessoal com câncer de laringe, que tem que tirar a laringe fora. Daí, você tem que expor a traquéia por um buraquinho com uma toalhinha em volta. Eu cansei de ver gente levantando a toalhinha e fumando dentro da traqueotomia. É uma droga muito poderosa. Agora, essas pessoas vão desenvolver câncer quando? Vinte, trinta anos depois de vício, de dependência. O que acontece nessa hora? Eles vão ter câncer. Mas quantos vão ter câncer? Em cada 3,1. Em cada 3 casos de câncer, 1 é provocado pelo cigarro. As companhias de cigarro dizem que não, que as coisas não são bem assim. Lógico, o que eles podem dizer, não é? Mas a demonstração científica é cabal, ninguém mais discute no mundo isso: 1 em cada 3. [alguém tenta interromper] Só um instantinho, me deixa só terminar.  Nessa hora, o que acontece? Quem é que vai tratar o câncer de pulmão? É a seguridade social? Quem tem infarto? Quatro vezes mais, quem fuma, tem infarto? Em cada 100 que tem infarto, 80 são fumantes. Derrame cerebral são 75% fumantes. E nós vamos ficar com o cara que teve infarto, com o outro que teve um derrame e está se arrastando, etc. As companhias de cigarro não têm responsabilidade nisso? Lógico que têm. Eles tinham que pagar. Pagar como? Um terço da conta de câncer do país vai para as companhias de cigarro. Infarto do miocárdio: 80% da conta do tratamento de todos os infartos vai para as companhias de cigarro. [Fala confusa. Diz o nome de uma doença] 100%, pois não tem quem não seja fumante. Aí você diz: “Bom, mas aí vai quebrar as companhias de cigarro.” Não, não vai quebrar não. O regime capitalista é ótimo para essas coisas. Eles que peguem em cada maço de cigarros vendido e já façam o cálculo de quanto vai custar o tratamento desses doentes. Depois, já cobre no maço de cigarros. Aí você diz: “Não, mas o maço de cigarros vai ficar mais caro” E daí? Cigarro não tem que ser barato. Por que cigarro tem que ser barato? Cigarro muito barato faz os pobres fumarem. Porque os que têm dinheiro ainda se informam, os pobres não sabem nem que faz mal. Quanto mais barato o cigarro mais gente fuma. Então, isso é um tipo de solução que dá para fazer. Que pode ser discutida aqui. Não foi feito em nenhum lugar do mundo, mas nós temos que ficar imitando os outros agora? Não pode ser o Brasil o primeiro a dar esse exemplo? Compra o maço de cigarros, recolhe o imposto, que vai para companhia de seguro administrar isso. A companhia administra ou compra seguro de um banco, eu não sei. Mas esse doente, depois, é ela que vai tratar, não é a sociedade não.

Heródoto Barbeiro: Nós temos que fazer outras perguntas aqui de telespectadores. Ainda sobre a questão da aids, tem vários profissionais também, dentre eles médicos, como o doutor José Vicente Felix, de São Paulo, e até pessoas que são profissionais, que são barbeiros, manicures, pedicures, etc. Que tipo de segurança, que tipo de precaução, a pessoa deve tomar ao ir, por exemplo, fazer as unhas, cortar o cabelo ou até, diz aqui: “Sou médico, ortopedista e fico até preocupado em tratar as pessoas, achando que posso me ferir e adquirir a doença.” Que tipo de  precauções as pessoas devem tomar. Vamos falar, primeiro, para o paciente e, depois, para o profissional.

Drauzio Varella: Felizmente, a aids é uma doença que não passa por esses pequenos acidentes. Não passa mesmo. Não há relato na literatura de alguém que tenha apanhado aids cortando cutícula, ou penteando o cabelo, ou fazendo a barba. Não há nenhum relato. Zero casos assim. Ela não passa desse jeito. Mesmo quando acontece um acidente grave, como por exemplo: você pega a veia de um doente com aids, colhe o sangue, despeja o sangue. Aí, você está com aquela seringa que você usou e que tem aids mesmo, não tem discussão. Então, você, distraidamente, mete a seringa na mão. Às vezes acontece isso, por mais cuidado que você tenha, às vezes você distrai e se pica. Menos de 0,5% pega aids assim. A não ser que seja um acidente grave, ter uma penetração mais profunda da seringa ou um corte mais profundo. Mas aids não passa desse jeito, felizmente.

Maria Lins: Uma pessoa que seja portadora do vírus, mas ainda não desenvolveu a doença, se ela deixar de fumar, deixar de beber, fazer macrobiótica, isso pode aumentar o tempo de ela chegar a desenvolver a doença? Porque tem muita gente que faz esse tipo de opção acreditando que isso vá melhorar sua qualidade de vida, até o tempo que ela vai desenvolver a aids mesmo, não é?

Drauzio Varella: Eu não sei a resposta. Acho que cada um tem uma posição pessoal a respeito dessas coisas. Eu acho que, com certeza, a maioria dos doentes com aids morre de problemas pulmonares. O fumante não precisa estar nem com aids. Todo o fumante que fica gripado, a gripe dele dura mais, ele tosse mais tempo que o não fumante. Isso, qualquer um sabe, não é? Então, eu sou contra por essa razão. Acho que o fumante tem que largar de fumar, especialmente quem está com aids. Pelo amor de Deus, não tem nem o que discutir. Agora, em relação às dietas e etc, não existe nada provado até hoje, que algum tipo de dieta prolongue a vida de quem está infectado.

Maria Lins: Ou que leve mais tempo para a aids se manifestar?

Drauzio Varella: Não existe nenhum estudo até hoje.

Heródoto Barbeiro: Então, o que prolonga, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: O que prolonga a vida? Por que um pega e desenvolve 5 anos depois e outro pega e desenvolve 15 anos depois? Ninguém sabe. Provavelmente, essa pessoa tem uma imunidade contra o vírus que é mais eficiente, mais eficaz, ou o vírus que ela recebeu é um vírus menos agressivo, ou as duas coisas também.

Roldão Arruda: Se você tem o vírus, você recomenda alguma coisa para se fazer? Ter uma vida mais controlada, com menos estresse?

Drauzio Varella: Controlar estresse, fazer exercício físico, que é fundamental, pois o doente com aids, emagrece, mas ele mantém gordura. Ele perde músculo. Então, você vê gente com aids, um cara gordo ainda, que vai andar, levantar da cama e chegar no banheiro. É um sofrimento. E você diz: Mas como, o cara está gordo, forte? Mas ele não tem mais músculos. Então, é muito importante que os infectados pratiquem exercícios físicos para manter a massa muscular.

Aureliano Biancarelli: Doutor, quem deve fazer o teste?

Drauzio Varella: Eu acho que todo mundo deve fazer o teste. Eu acho que qualquer pessoa que pense assim: “Olha, pode ser que eu tive a chance de pegar o vírus, pode ter sido. Teoricamente, eu acho que não, mas pode ter acontecido.” Deve fazer o teste.

Aureliano Biancarelli: É bom saber ou não é bom saber?

Drauzio Varella: É ótimo saber. É fundamental saber. Pois se você não sabe a doença te pega na traição, na traição total. Você está bem, em um dia trabalhando, lá no jornal, batendo à máquina. De repente, você começa com uma tosse e, quando vê, está com 37,5 graus de temperatura. Uma semana depois, está com 39 graus de temperatura. Você não aguenta subir três degraus de escada, de tanta falta de ar.

Aureliano Biancarelli: Mas a pessoa tem que esperar 10 anos para saber disso. Se eu souber no meu terceiro ano, que eu sou portador do vírus, eu posso ficar deprimido e facilitar o surgimento da doença?

Drauzio Varella: Aí já tem um mau caráter evidente na sua posição, não é? Quer dizer, para eu não ficar preocupado, os outros que se estrepem. Quem chegar perto de mim o azar é dele. É um mau caratismo evidente. E depois, quando você fica sabendo que você está infectado e acompanhando, você pode prevenir essas infecções. Por exemplo, você sabe que quando o nível de linfócitos CD4, que é um tipo de teste que a gente faz, cai para baixo de 200, a chance dessa pessoa desenvolver pneumonia, que é a que dá essa falta de ar horrível, é de 70%. Se você der três comprimidinhos de Bactrin para essa pessoa por semana, um, dois, três, segunda, quarta e sexta, comprimido de Bactrin F, ela não vai ter pneumonia. Quer dizer, é muito mais difícil ter.

Fábio Mesquita: Sua experiência é basicamente com o trabalho, como você disse aqui, inicialmente, com o trabalho no setor privado. Você acha que o Brasil, no serviço público, tem condições de fazer diagnóstico de todo mundo que fizer teste, tem condição de acompanhar clinicamente todo mundo que for soro positivo?

Drauzio Varella: Nós vamos ter que criar essas condições. Não tem essas condições. Sabe por quê? Porque sai mais barato. Criar as condições sai mais barato do que, depois, enfrentar as consequências do que vai acontecer. Ontem, eu estava falando com o doutor Adauto Castelo, da Escola Paulista de Medicina, e ele vinha com um doutor de um congresso da Escócia, que dizia que a Tailândia vai gastar no ano 2000, exclusivamente com o tratamento hospitalar da aids, 11 bilhões de dólares. Só para tratar os doentes com aids. O doente com aids é diferente do doente com câncer avançado. É diferente do doente com infarto fulminante. O doente com aids tem saúde um tempo boa. Ele fica doente e aí é tratado dessa infecção que ele teve, se cura dessa infecção, e fica bom, trabalha mais um pouco e volta, fica doente de novo. Isso exige gastos públicos nesse setor. Agora, como você vai resolver isso? Hospital é uma coisa caríssima. Isso que a gente tem hoje aí, os hospitais públicos no Brasil, eu acho que está na hora de já parar, mudar de sistema. Não dá para querer aproveitar isso que está aí. Eu quando vejo um político que aparece na televisão e fala: “Por que nós vamos melhorar os hospitais públicos.” Eu penso comigo mesmo que ele é ingênuo ou é malandro. Pois não tem como melhorar. Eu trabalhei dois anos no hospital de INPS [Instituto Nacional de Previdência Social], dirigindo um serviço, e, olha, juro por Deus, não tem como acertar. Não tem. Não existe jeito de você por ordem naquilo. Você não pode demitir ninguém, uma pessoa rouba dentro do hospital e você não tem como demitir. Tem que ficar respondendo processo, etc. Aí você diz o quê? Então, você propõe que feche, que tranque os hospitais públicos? Não. Pois dentro desse mundo, que é o funcionalismo público na área da saúde, tem uma meia dúzia, tem uma porcentagem pequena, de gente que trabalha seriamente e ganha uma miséria. São uns loucos. São uns loucos. Pois se matam de trabalhar, ficam ali, atendendo os doentes, e as custas disso esse sistema ainda sobrevive um pouquinho. Você não pode fechar de uma hora para outra. Mas nós temos que, rapidamente, pegar o que está funcionado e desviar o interesse para lá. Pegar esse sistema que acabou, que está destruído e tentar aproveitar em um outro sistema. Por exemplo as Santas Casas de Misericórdia, estão aí no Brasil, a primeira foi de Brás Cubas, foi Brás Cubas que montou em 1.540, alguma coisa assim, a primeira Santa Casa no Brasil. Hoje, você vai a qualquer cidadezinha do interior e tem uma Santa Casa. Tem um provedor, que é um homem da cidade, rico, fazendeiro, industrial, que vai lá e ajuda Santa Casa. O governo faz tudo quanto é tipo de cafajestice. Paga dois reais por uma consulta médica e ainda paga três meses depois, sem correção monetária, com 50% de inflação, e a Santa Casa não quebra. São resistentes. Há outros hospitais de colônias. Você vê em São Paulo os melhores hospitais quais são? É o Sírio Libanês, é o Einstein, da colônia judaica, o alemão que é o Oswaldo Cruz, é a Beneficência Portuguesa. Esses hospitais de colônia conseguem ser hospitais muito eficientes. Eu sou contra um hospital ter um dono privado, pois você perde o controle. O dono do hospital pode pensar assim: “Eu vou ter um lucro rápido nesse negócio aqui e vou comprar um apartamento em Miami e dar um jetski para o meu filho.” E os hospitais, hoje, exigem que você invista todos os recursos, que é para você poder acompanhar a tecnologia, você sabe disso, não é? Então, essas fundações filantrópicas, a sociedade é que tem que assumir o controle da saúde pública. Não dá para a gente admitir que uma pessoa saia da periferia da cidade de São Paulo e pegue três ônibus para parar em uma fila, em que ela vai levar 4, 5 horas em pé. A gente, com saúde, com 10 minutos na fila do banco, já fica irritado. E a pessoa com dor, com febre, com diarréia, sem ter banheiro, para usar. Nós vamos aceitar? Isso sempre poderá piorar. O ano que vem vai estar pior. No outro ano vai estar pior ainda. Nós temos que achar uma alternativa rapidinha para isso.

Aureliano Biancarelli: Qual o cenário que você vê para a aids em 10 anos no Brasil?

Drauzio Varella: Vai ser grave. Já é grave hoje. Hoje, você vai nos hospitais públicos, quando é que você consegue internar um doente com aids? Onde é que você consegue? Você chega lá e tem vaga? O doente chega no Emílio Ribas com insuficiência respiratória grave, Marinella, tem sempre vaga para ele ser internado? [Dirige a pergunta à Marinella Della Negra]

Marinella Della Negra: Olha, o Emílio Ribas é uma coisa meio especial. Não tem vaga para ele subir para o andar, mas ele fica sempre no pronto socorro. Ele não é mandado embora.

Drauzio Varella: Pois é. Mas a vaga você não tem?

Marinella Della Negra: Não. Fica lá no pronto socorro até que tenha alguma vaga. Eu queria te fazer uma pergunta: o que você acha que vai acontecer? Nós vamos descobrir alguma coisa ou teremos uma doença crônica?

Roldão Arruda: Complementando isso. Dentro disso que vai acontecer, você não acha que pode acontecer de a classe média para cima esclarecer-se suficientemente a respeito de aids? Não  infectar-se mais e ela [a aids] tornar-se, no Brasil, uma dessas muitas doenças endêmicas que não interessam à mídia, não interessam ao governo e continuam matando um monte de gente que não tem importância nesse cenário, que considera-se que não tenha importância? Por exemplo, a cólera continua matando um monte de gente, desde que não afetou mais a nossa Caxemira, continuou matando um monte de gente lá do Nordeste e por aí. Pode acontecer isso com a aids?

Fábio Mesquita: Esse fenômeno já está acontecendo nos países de primeiro mundo.

Drauzio Varella: É verdade, isso está acontecendo em alguns lugares mesmo. Nos Estados Unidos, nitidamente, isso é o que está ocorrendo. Vai acontecer, mas a aids é muito traiçoeira. Nunca haverá a condição de uma família rica dizer: “Na minha família não vai ter aids.” Isso nunca vai existir. Porque sempre vai acontecer a possibilidade de seu filho pegar aids. Independentemente de você ser milionário ou classe média. Sempre vai ocorrer essa possibilidade, essa chance. É impossível em uma sociedade moderna, você manter uma epidemia com essas características, de uma doença sexualmente transmissível, exclusivamente restrita a uma determinada população. Não dá para fazer isso. Nem que você levantasse um paredão e isolasse total.

Heródoto Barbeiro: Um colega seu fez a seguinte afirmação: “Se ele fizesse exame no paciente e esse paciente fosse aidético, portador do vírus da aids, ele chamaria o companheiro desse paciente e contaria a ele que o seu companheiro está com o vírus de aids.” O senhor faria a mesma coisa?

[Drauzio fica pensativo e não responde]

Maria Lins: Isso se ele não quisesse contar, claro.

Drauzio Varella: Se ele não quisesse?

Heródoto Barbeiro: O que o senhor faria em uma questão dessa? É uma questão ética ou é questão de sobrevivência do ser humano? Como é que ficaria isso?

Drauzio Varella: É complicado isso para os médicos.

Mário Cheffer: Existe uma resolução do CFM [Conselho Federal de Medicina], que exige o sigilo profissional, que não pode ser quebrado.

Marinella Della Negra: Mas existe também uma lei que diz que se o parceiro dele contaminar-se, ele nos processa como homicídio culposo. [Risos] Então, na realidade, a coisa não é bem assim. A gente tem que achar algum caminho e a gente tem alguns, certo? Mas isso é obrigatório porque, na realidade, o sigilo médico existe até o ponto que esse individuo não oferece risco de vida para outros.

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, gostaria de ouvir a sua resposta.

Drauzio Varella: A minha resposta é a seguinte: tem que dar um jeito de ele saber. De qualquer maneira, tem que tentar convencer a pessoa de todas as formas que forem possíveis, dizendo: “Olha, você tem que contar. Tem que contar, pois não está certo isso.” Tem que constranger até para contar. Porque não pode o outro não saber e continuar correndo o risco.

Aureliano Biancarelli: E o médico da empresa, deve dizer ao patrão?

Drauzio Varella: Não. Na empresa não. Na empresa não. Pois na empresa o que acontece? Se você faz isso, quem corre o risco de estar infectado e pode ser surpreendido com um teste como esse, eventualmente, e pode perder o emprego, já não faz mais o teste de jeito nenhum. Eles acham um jeito de escapar do teste.

Mário Cheffer: Pessoas com aids continuam sendo demitidas do emprego, por causa da sorologia. Os planos de saúde continuam excluindo quem é soro positivo do atendimento. Quando é que, na sua opinião, que a gente vai ter assegurado os direitos de cidadania do soro positivo do doente de aids?

Drauzio Varella: Está difícil. Está difícil realmente. Os planos de saúde fogem disso como o diabo da cruz e eles estão errados. Eles dizem: “Ah, mas o tratamento da aids é muito caro.”Não é verdade. Não é verdade. Você pega o vírus, hoje, faz o teste, gasta um dinheirinho para fazer o teste, nem é tão caro assim, mas faz o teste, depois disso você fica bom. Anos e anos e anos. Você não precisa de cuidados médicos. Você não gasta nem um tostão. Periodicamente, que se faz uma contagem de glóbulos, a cada seis meses. Isso é o quê? É nada de gasto. Vai haver gasto no final, porque, do jeito que nós estamos estruturados aqui, o doente começa a passar mal, você tem que jogar no hospital. Está errado isso. Tem que ter clínicas na periferia, em todos os lugares, ambulatórios, pois com ambulatório você não precisa internar o doente. Você trata do doente no ambulatório, toma um sorinho, vai para casa, volta amanhã, toma outro soro. Mas não precisa internar. Hospital é caríssimo, cada vez mais caro. Aquela fase dos hospitais de caridade, que as pessoas iam para o hospital para morrer, chegavam lá e as freiras davam uma sopinha, acabou. Hospital, hoje, é tecnologia.

Maria Lins: O que você acha de alguns médicos que fazem um pacto, mais ou menos, com os seus clientes, para quando eles tiverem em uma fase terminal da doença e tiverem com muito sofrimento, praticarem a eutanásia? Como é que você vê isso? Inclusive, o Betinho [sociólogo, idealizador da campanha Fome Zero, falecido em 1997], diz que tem um trato com o médico dele.

Drauzio Varella: Vocês estão vindo para cima de mim mesmo [risos]. Olha, eu acho que essa palavra, eutanásia, para quem não trabalha com doentes graves, tem um significado que é diferente do significado que tem para as pessoas que trabalham com doentes graves.  A imagem clássica da eutanásia para o grande público é o aparelho que está ligado, não é? O doente está na dependência do aparelho de oxigênio e você vai lá e desliga o aparelho. Esse ato de desligar o aparelho, eu acho que é a imagem suprema da eutanásia. Mas tem muitas formas de você praticar eutanásia. Por exemplo, você pega o doente com dores muito fortes, todo mundo diz: “Ninguém pode ser contra tirar a dor de uma pessoa. Alguém pode ser contra? Não, tem que tirar a dor.” Então, você dá um analgésico. Não passa. Você dá algo mais forte. Não passa. Você dá outro mais forte. Não passa. Você começa a ter uns analgésicos que se você dá e a pessoa fica meio sonolenta. Esses analgésicos todos têm efeitos colaterais, todos eles. E aí você dá e a pessoa fica meio sonolenta, já não come direito. Se passar o efeito um pouquinho, ele volta a gritar de dor, você dá outro. Você vai dando conforme a necessidade. Essa é a orientação moderna, orientação da própria Organização Mundial da Saúde. Não deixar ter dor e dar analgésico. O melhor de todos é a morfina. Disparado. Até hoje, não inventaram um analgésico melhor que a morfina. Então, você vai dando analgésico, vai dando, vai dando, e chega uma hora que o paciente está dormindo o dia inteiro, pois a toda hora ele está tomando remédio. Isso terá implicações na duração da vida dele? Vai, ter implicações sim. É eutanásia isso aí? Eu não sei.

Fábio Mesquita: Nessa questão do poder que o médico tem diante das doenças, a aids checou um pouco esse poder, como nós aprendemos na escola. Como é que você vê essa coisa da participação da sociedade civil nesse processo de aids e de organizações não governamentais, que é bastante diferente de outras doenças. Como é que você (...)

Drauzio Varella: Eu acho muito interessante. Você vê os congressos internacionais de aids. São os únicos congressos da medicina onde você vai discutir. Os médicos se reúnem, os profissionais da área se reúnem, para discutir técnicas e você tem sentado ali os doentes, os infectados. Quer dizer, aqueles que deverão ser o objeto do resultado da aplicação daquelas técnicas. É o único que você vê isso. E essa coisa da sociedade começar a se organizar para combater um determinado mal, eu acho do maior interesse. Acho que a medicina do futuro vai ser assim, com a própria sociedade se organizando e dizendo: “Qual o nosso problema nesse momento? É prótese de fêmur? Nós estamos cheios de gente aí precisando. Quanto custa? Vamos ver de onde é que nós vamos tirar esse dinheiro.” Eu acho que tem que ser assim. Não dá mais para ficar naquela fase de esperar o governo resolver os problemas para nós. Isso não tem sentido!

Heródoto Barbeiro: Doutor Drauzio, nós estamos praticamente encerrando o programa Roda Viva de hoje. Apenas um último comentário do senhor. Qual é a expectativa para o futuro? A expectativa é prevenção total ou existe uma expectativa melhor de se sair dessa doença através de pesquisa, através da ciência?

Drauzio Varella: Acho que a vacina vai demorar muito. Vai surgir um dia, inevitavelmente, mas vai demorar o suficiente para o impacto da aids já se fazer sentir sobre as gerações futuras. Eu não acredito que nós tenhamos um remédio capaz de curar a aids, nunca. Mas hoje, com o conhecimento da engenharia genética, da biologia molecular(...) É uma garotada! Você vai nesses laboratórios internacionais, eles usam meninos que parecem seu sobrinho. Eles estão lá: uns desmontam o gen X do vírus, o outro está com uma proteína que esse gen manda fabricar. Quer dizer, o conhecimento nesses processos permite, hoje, com a tecnologia que existe, a você preparar drogas que tem um design. Isso é preparado por um designer mesmo. As drogas têm um formato, um design, para encaixar naquele momento, naquela reação e impedir que aquela reação prossiga. Só que o vírus é esperto. Quando você começa a envenenar muito uma reação que ele precisa, ele cria caminhos alternativos. Então, você, provavelmente, com as drogas que tem hoje, e com as drogas que vão surgir, vai conseguir tornar a aids, cada vez mais, uma doença crônica. É a resposta final. Acho que o futuro vai ser assim.

Heródoto Barbeiro: Ok. Doutor Drauzio Varella, obrigado pela gentileza e pela sua participação aqui no Roda Viva. Quero agradecer também a sua participação por fax e também por telefone, agradecer os jornalistas que participaram dessa entrevista. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às 10 e meia da noite. Boa noite, muito obrigado e até lá!

 

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