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Paulo Markun: Boa noite. Ela acha que, quanto mais individualista é a sociedade, mais se necessita da paixão. E a paixão, quase sempre, termina mal. Curiosa a respeito do comportamento dos amantes, já escreveu sobre os amores e desamores de 18 casais famosos cujos relacionamentos marcaram a história. Suas escritas também já foram buscar na Idade Média, em biografias e em sua própria vida histórias que falam do mundo atual e de como somos. É o mundo literário de Rosa Montero, uma das escritoras espanholas mais lidas da atualidade, que está hoje no centro do Roda Viva. Rosa Montero é jornalista de profissão e escritora por missão. Vive e trabalha em Madri e veio à Bienal do Livro de São Paulo para lançar a sua terceira publicação no Brasil.
[Comentarista]: Madri, 1951, auge da ditadura do general Francisco Franco. Rosa Montero nasce na capital espanhola, onde vive o franquismo da infância à juventude. Formada em jornalismo, trabalhou em alguns veículos da imprensa de Madri nos últimos 5 anos do regime do general, que morreu em 1975. No ano seguinte, quando a Espanha já fazia a transição democrática, Rosa Montero tornou-se uma grife do principal jornal espanhol, o El País, onde trabalha até hoje. Paralelo ao jornalismo, veio a literatura. Rosa, que mergulhou nos livros dos 5 aos 9 anos por causa de uma tuberculose que a confinava em casa, acabou se tornando um dos principais nomes da literatura contemporânea da Espanha. Tem 26 livros publicados e 3 deles já chegaram ao Brasil. A louca da casa, lançado em 2004, na Festa Internacional Literária de Parati [Flip], Paixões, amores e desamores que mudaram a história, a edição brasileira é de 2005, e A história do rei transparente, que ela veio lançar na 19ª Bienal do Livro, em São Paulo.
Paulo Markun: Para entrevistar a escritora Rosa Montero, nós convidamos: Cassiano Machado, chefe de redação da revista Trip; Marcos Strecker, redator das seções de livros do Caderno Mais e do caderno Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo; Cristiane Costa, editora-chefe da revista Nossa História e do portal Literal; Patrícia Zaidan, editora da revista Cláudia; Luís Antônio Giron, editor de Cultura da revista Época, e Zuenir Ventura, jornalista e escritor. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando com seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. Boa noite, Rosa.
Rosa Montero: Boa noite.
Paulo Markun: Nos três livros que são publicados da sua obra no Brasil, História do rei transparente, fala do século 12; Paixões, fala de personagens que, ao longo da história, viveram atribulados casos de perdição e, finalmente, A louca da casa é uma espécie de autobiografia. Eu queria saber que medida o passado é para você a principal fonte de busca da informação.
Paulo Markun: Você acha que nessa busca do escritor por lutar contra a morte e, ao mesmo tempo, eternizar, portanto, a sua imaginação, tem algo que cresce de importância na sociedade de hoje, que é tão instantânea, em que você entra na internet e uma notícia dura 15 segundos e uma celebridade dura meia hora?
Rosa Montero: Bem, acho que sua pergunta tem duas partes. A primeira é se, ao escrever, procura-se certa eternidade. Eu achei que você estivesse perguntando isso. Devo lhe dizer que descobri que os homens escritores desejam muito mais a eternidade do que as mulheres. É o que eu acho. Não sei por quê.
Paulo Markun: Não é porque a mulher já tem um caminho, não é? Sua descendência, talvez?
Rosa Montero: Bem, talvez essa espécie de ansiedade por perdurar, que todos nós temos, as mulheres dissimulem. Eu pensei nisso, refleti, porque me parece estranha essa diferença entre homens e mulheres. Talvez dissimulemos isso de uma forma animal pela capacidade de ter filhos. Eu, por exemplo, não tenho filhos e não penso em perdurar, em que me leiam daqui a cem anos nas enciclopédias de literatura, o que é uma ambição tola, porque ninguém vai nos ler. E os homens adoram. Os homens, em geral, amigos incríveis, escritores que admiro, amigos que amo, eles têm uma espécie de obsessão por isso, por aparecer após a sua morte nas enciclopédias e isso me choca, não consigo entender. Com relação a eternizar-se nesta sociedade tão instantânea... Sim, parece que a vida está cada vez mais acelerada e isso talvez crie ainda mais a necessidade de tentar parar e de tentar ao menos sentir que estamos vivos. A vida toda sempre fui muito obcecada pela morte. Acho também que os romancistas somos pessoas mais obcecadas pela morte do que a maioria. Isso pode ser bom, porque, ao pensar constantemente que você vai morrer, de repente você pensa também que está vivo, então é uma celebração da vida. Isso é fazer o contrário do que dizia John Lennon, sabe? A frase é: "A vida é algo que acontece enquanto fazemos outra coisa". Fazer o contrário é ter consciência de estar vivo e isso eu acho maravilhoso, é viver com mais plenitude. Assim, talvez essa aceleração, se conseguirmos tirar dela a consciência de estar vivos, talvez seja melhor.
Patrícia Zaidan: Rosa, você falou que não pretende ser eterna e eu tenho lido os seus escritos e você tem uma facilidade muito grande para transitar entre a morte, entre a solidão, temas de difícil percepção. No entanto, você disse uma frase que me deixou bastante impressionada, você disse: "Virgenzita, que me quiede como estoy!" [cita em espanhol uma frase da escritora: "Virgenzinha, que eu fique como estou!]. Você tem medo de morrer, você tem medo de envelhecer? Você lida tão bem com esses assuntos, o que acontece?
Rosa Montero: Não lido nada bem. Quem é que lida bem com isso? O fato de termos de morrer, de termos de envelhecer e decair até o nada é uma coisa que ninguém aceita bem, é uma coisa que não entra em nossa cabeça. A morte, por mais natural que seja, não entra na nossa cabeça. Realmente, acho que o homem construiu tudo, tudo que fizemos, as religiões, os bancos, as guerras, tudo é feito contra a morte, para tentar parar essa espécie de vertigem que leva você ao abismo. Primeiro, acho que ninguém lida bem com isso. Segundo, passei a vida tentando encontrar algum sentido para essa falta de sentido. E meus livros me ajudam, meus livros me ajudam. Na verdade, acho que a pessoa não escreve para responder a perguntas, para criar doutrinas, mas para tentar perguntar e para tentar entender melhor o mistério do que vivemos. Uma das angústias fundamentais do ser humano é o sentido da vida. Você escreve para tentar colocar esses medos. Eu tinha muito mais medo de morrer quando tinha 30 anos do que agora, que tenho 55. Uma coisa linda, se me permitem contar, aconteceu com A história do rei transparente, lançado em setembro na Espanha. É meu livro mais recente. Na semana do lançamento, fui a um chat do jornal El Mundo, que é um jornal de Madri. Um dos leitores me mandou uma carta e dizia coisas lindas sobre o livro, mas dizia uma coisa que me deixou arrepiada e me emocionou. Ele dizia: "Não sei como você conseguiu, mas depois de ler este livro tenho menos medo de morrer." Não é lindo? É para guardar no coração. Na verdade, eu também. Depois de escrever esse livro, tenho um pouco menos de medo de morrer. De alguma forma, escrevo – acho que todos escrevemos– para isso, para tentar adquirir um olhar um pouco mais amplo, um olhar maior, mais sereno e mais harmonioso sobre esse horror que, às vezes, pode ser a vida, sobre essa coisa inexplicável, incompreensível e absolutamente injusta que nos leva à morte.
Zuenir Ventura: Você gosta muito de uma frase do Oscar Wilde, que diz assim: "O pior não é envelhecer, o pior é que não se envelhece". Você poderia explicar melhor?
Rosa Montero: Exatamente, meu querido Zuenir. Exatamente. Ele dizia – Oscar Wilde, que eu adoro, que era um sujeito maravilhoso – que o pior não é envelhecer. É claro que, quando você envelhece, o cabelo vai caindo, os dentes caem, as nádegas caem, mas o pior é que você não envelhece. O que é isso? Por dentro você não envelhece. Acabo de fazer 55 anos e não consigo acreditar. Como eu posso ter 55 anos? É impossível. Essa espécie de abismo que se abre entre a idade real que você tem e sua idade interior, que continua sendo 20 anos – bem, para alguns, continuam sendo sete anos, outros crescem mais–, isso é cada vez mais doloroso, porque você não se acostuma, não consegue admitir, esta é a questão: não admitir. É muito injusto. É injusto nascer com todo um projeto de futuro, de vida, com tantos desejos e ambições e, depois, isso vai embora, se acaba, porque acaba numa velocidade incrível. Vocês... este aqui é muito jovem [aponta para Cassiano Machado], ainda não sabe que a vida passa muito rápido. Você também é bem jovem [aponta para Cristiane Costa]. Os outros já vamos começando... Você também é jovem. Já vamos percebendo como isso se acelera, não é?
Cassiano Machado Machado: Rosa, essa sua obsessão pela coisa da velhice e de não envelhecer por dentro, isso tem alguma relação com a sua obsessão pelos anões, que são aqueles que não crescem em última instância? Por que você é obcecada por anões? Você sempre fala disso em seus livros, sempre aparecem anões...
Cristiane Costa: Você sempre tem um anão em cada livro, mesmo quando diz que não vai entrar um anão.
Rosa Montero: É verdade. Bem, na verdade, os anões são um dos fantasmas do escritor. Os fantasmas do escritor são o quê? São os temas, as imagens, as palavras, as situações que se repetem e se repetem nos livros do escritor sem que ele tenha consciência de que os está usando, porque, como os romances são como sonhos, seriam sonhos recorrentes, que sempre reaparecem. Descobri, depois do meu sexto ou sétimo livro, que tinha uma obsessão pelos anões e que meus livros estavam cheios de anões. De fato, você tem razão. Além disso, sempre me senti muito próxima dos anões. É uma coisa visceral, eu me identifico com eles. Os anões nos meus livros são personagens sábios, não são, de forma nenhuma, grotescos ou ridículos. São pessoas que sabem algo mais, que têm conhecimento. Em minha vida, eu jamais conheci um anão. Nunca convivi com anões nem nada. Agora comecei a conhecê-los, porque em A louca da casa falei da minha obsessão pelos anões, as associações me ligaram e comecei a conhecê-los e a ser amiga deles pessoalmente. Eu acho... não sei, parei para pensar. Quando você descobre um desses fantasmas, você pensa: "Por que me acontece isso?" É difícil saber. Acho que tem a ver com o [aspecto] temporal. Eles estão... O que é o anão? É um personagem que é criança, mas não é criança, é adulto, mas não é adulto de certa forma. Ele está numa fronteira temporal meio estranha. Eu acho que tem mais a ver, posso estar enganada, mas acho que tem a ver com o fato de, na infância, eu não ter sido criança por certas situações pessoais que não vou contar.
Cassiano Machado: Tuberculose...
Rosa Montero: Sim. E outras coisas. Talvez a tuberculose que tive dos cinco aos nove anos tenha sido uma resposta a uma situação. Então não fui criança na minha infância e por isso também não sou adulta agora. É essa indeterminação do tempo.
Cristiane Costa: E o que é consciente e o que é inconsciente no livro? Você já entra com um projeto, você já sabe o que vai escrever? Até se consegue identificar uma linha de obsessões e coisas recorrentes. E o que é que, de repente, aparece? Você projeta antes ou sai escrevendo?
Rosa Montero: O mais alucinante é que quase tudo que é fundamental você não controla. É incrível, porque, por um lado, o romance é um gênero da maturidade e nós, romancistas, somos os operários da literatura, porque trabalhamos muito e tenho orgulho desse aspecto fabril e de ofício. E você aprende. Você aprende a mecânica, a carpintaria, você aprende muita coisa. Mas, à medida que você aprende mais essa carpintaria, à medida que você avança nesse conhecimento formal, você tem cada vez menos controle do fundamental. Nos romances, meu método... Cada um tem o seu, mas no meu método eles nascem de um germe mínimo, que pode ser uma imagem, que pode ser um rosto que passa pela rua, que pode ser uma frase, inclusive. Um romance meu, Bella y oscura [Bela e escura], nasceu de uma frase que me veio à cabeça não sei por quê. Ou de uma cena que você imagina. Chamo isso de ovinho. Realmente, é uma imagem bem pequena e você não a controla, não escolhe os romances que vai escrever; os romances é que escolhem você. São sonhos diurnos. Assim como você não controla os sonhos durante a noite, você não controla essa imagem que surge na sua cabeça e o deslumbra, ou o deixa angustiado. De certa forma, é como uma revelação que você não sabe muito bem o que revela e além disso, causa desassossego. Você pensa: "Preciso contar isso". É como uma visão. Então, começa a se desenvolver e ela faz isso sozinha. De alguma forma, vão aparecendo os personagens, os personagens vão criando seu mundo. Acho que essa é a linha que separa o autor jovem do autor maduro. O autor jovem, que já fui também – comecei jovem, publiquei meu primeiro romance aos 26 anos ou algo assim–, é um autor muito verborrágico e muito tedioso, que usa seus personagens como bonecos para que falem das coisas de que o autor quer falar. Conforme você vai amadurecendo e avançando, começa a falar... O autor jovem sempre fala do que sabe, mas conforme ele amadurece, começa a falar do que não sabe que sabe. Começa a sair do seu inconsciente e ele não tem consciência dessas coisas e não as controla. Por que meu último romance se passa no século 12? Não faço idéia. Talvez por eu estar lendo muitos livros sobre o século 12, mas eu não escolhi isso. E por que aparecem certas personagens e não outras?
Luís Antônio Giron: É uma pergunta a respeito disso também. Você disse que fica muito irritada quando confundem o narrador com o autor. Você é confundida com o narrador, muitas vezes as pessoas fazem perguntas... Agora, como manter essa distinção entre o narrador e o autor, porque a vida, a experiência do autor é sempre tão importante para o material literário...
Rosa Montero: Pois é. Você, que também é romancista e narrador, deve ter se perguntado isso. A distância se impõe sozinha com o amadurecimento. Essa é a maturidade pela qual o narrador passa para aprender a encontrar essa distância com o narrado, para perder o ruído da própria vida. Julio Ramón Ribeyro dizia – não sei se ele é conhecido aqui no Brasil, mas foi um grande escritor peruano, memorialista, sobretudo–... ele dizia que um romance maduro e bom exige a morte do autor. É uma barbaridade quando dito assim, mas ele quer dizer que o autor precisa apagar a si mesmo. Você não pode escrever verdadeiramente nem para recuperar coisas que perdeu nem para vingar-se de coisas. Esse ruído da vida precisa ser apagado para poder alcançar esse lugar do inconsciente tão profundo em você, que chega a ser o inconsciente coletivo, porque bem lá dentro de nós, todos somos iguais. Aí você começa a ser fiel à sua época, a ser fiel ao seu grupo, a ser fiel ao seu mundo e começam a criar – os grandes autores, claro– esses símbolos que explicam todo mundo e que são os romances mais universais, que todos podemos ler e entender. Isso é essencial. Distanciar-se, não escrever a partir do que você é, isso é absolutamente essencial... do que você é conscientemente. Você sempre escreve a partir do que é, claro, por isso surgem os fantasmas e tal, mas não deve escrever a partir do que você é conscientemente.
[Comentarista]: “Sou mulher e escrevo. Sou plebéia e sei ler. Nasci serva e sou livre.” Rosa Montero no início do livro parece falar de si mesma quando narra, na primeira pessoa, a aventura de Leola, uma camponesa que veste a roupa de um guerreiro morto e sai, em busca de justiça, numa peripécia existencial pela França do século 12. A história do rei transparente surgiu da paixão da autora por temas da Idade Média, período de muitas transformações e que terminou marcado pelo obscurantismo. Rosa Montero disse que a idéia do livro não foi recriar o mundo no século 12, mas mostrar o mundo como ele é ou como ele era. Trata-se de um romance de aventura que fala da aventura de viver.
Paulo Markun: Bom, Rosa, eu queria começar este bloco com uma pergunta feita pelo psicoterapeuta Flávio Gikovate, que também é escritor.
[VT de Flávio Gikovate]: Nos últimos 30 anos, eu venho tentando entender a questão da dificuldade que as pessoas têm para realizar boas relações amorosas. Quer dizer, a tendência é atribuir a impossibilidade aos fatores externos, aos obstáculos objetivos, o fato de as pessoas estarem casadas ou terem filhos pequenos, mas cada vez mais eu me convenço [de] que realmente o maior problema está na alma, na subjetividade das pessoas. Ou seja, que as pessoas têm problema interno, intrapsíquico, relacionado com a realização amorosa. As pessoas querem muito a fusão romântica e têm muito medo dessa fusão, têm medo de perder a individualidade e têm medo, também, da enorme sensação de felicidade que essa fusão, essa aliança amorosa costuma determinar. Como aparece para você essa hipótese de que o impedimento à realização amorosa é, essencialmente, um impedimento psicológico ligado a um fator contrário ao amor que está presente na nossa subjetividade?
Rosa Montero: Acho que o primeiro problema para nos apaixonar, e fazer isso com sucesso, somos nós mesmos. Somos nós, mas somos nós porque estamos muito confusos com relação ao que é o amor. Eu dividiria o amor entre o amor-paixão e o amor quotidiano, de fato, que também chamo de amor heróico, porque é muito difícil e dá muito trabalho, não é? Mas o amor-paixão, em que normalmente pensamos quando falamos de amor, é uma invenção, é imaginação, é um verdadeiro... É uma ficção absoluta, uma miragem. É um sonho. Por outro lado, é maravilhoso, porque nós somos acima de tudo nossos sonhos e o amor passional é um grande sonho da humanidade, mas ele não existe. Na verdade, como dizia Santo Agostinho, o que amamos quando amamos apaixonadamente é o amor, ou seja, amamos não o outro ou a outra, amamos o jeito como ficamos quando estamos apaixonados. Amamos essa sensação que é como uma droga, é como se você se aplicasse uma dose, porque você fica agitado, fica emocionadíssimo, animadíssimo, vê o mundo cheio de cores, mas para isso, pouco importa o outro. Não vemos o outro. Arremessamos a capacidade, a necessidade de nos apaixonar sobre o primeiro que passa. Vocês já não se perguntaram alguma vez sobre isso? Que casualidade! Suponhamos que haja uma aldeia perdida no meio do sertão e ao longo de 800 km não há outra aldeia. Nessa aldeia, há apenas um rapaz e uma moça com mais ou menos 20 anos, os outros são mais velhos. Eles se apaixonam. Casualmente, apaixonam-se, porque eles precisam se apaixonar, naturalmente. Eles precisam se apaixonar, precisam sentir isso, essa sensação de transcendência, de sair de nós mesmos. E, claro, as pessoas que são muito apaixonadas... Eu, por exemplo, sou. Isso é uma desgraça, porque quem é muito apaixonado tem muita dificuldade para passar dessa situação, que é de vício, de vício pesado, como se você tivesse usado heroína, é muito difícil passar disso ao amor quotidiano, que é ver o outro, que consiste em ver o outro e amá-lo apesar das diferenças. É construir uma coisa lentamente, trabalhando muito, resistindo muito, concedendo muito. Quanto mais apaixonado você for, menos vai fazer isso. É o que acontece com os apaixonados. Aconteceu comigo, estou tentando aprender a viver de outro jeito, mas o que acontece quando alguém se apaixona demais é que se repete sempre o mesmo ciclo. Você se apaixona, é aquele amor para sempre e esse amor eterno dura uns dois anos mais ou menos, não dura mais que isso. Termina esse amor eterno depois de dois anos e você sai disparado, vai repetir o mesmo ciclo com outro, outro amor eterno de dois anos e assim por diante. Na verdade, não sei... Dedicar a vida a essa repetição que termina num teatro, eu acho que...
Paulo Markun: Mas escrever um livro não é isso? Escrever um livro é você dedicar-se intensamente a uma obra, terminar a obra e sair desesperado para fazer outra obra que vai lhe tomar tanto tempo e tanta energia como a paixão.
Rosa Montero: Sim, senhor. É a mesma coisa. Eu disse isso muitas vezes e me parece muito bem lembrado da sua parte. Escrever romances foi o que encontrei de mais parecido com a paixão amorosa, com a vantagem de você não precisar do outro. Tem sua vantagem.
Paulo Markun: Não precisa ir para casa, fica na estante...
Marcos Strecker: Rosa, mudando um pouquinho o foco: você se considera feminista? Em que sentido?
Rosa Montero: Sim, claro, eu me considero feminista e uso a palavra feminista, não quero desprezá-la, porque é uma palavra histórica, uma palavra bonita, pela qual lutaram e deram sua vida ao longo da história muitas mulheres e também alguns homens. Então não quero deixar de usar a palavra feminista, ainda que seja mais exata a palavra anti-sexista. Eu me considero anti-sexista, porque a palavra feminista pode ser confundida com o contrário de machismo, o que não é correto. Não é que as feministas queiram a preponderância da mulher sobre o homem, não é isso. Pelo menos para a grande maioria das feministas. Por outro lado, parece-me muito óbvio. Parece-me óbvio que, no início do século 21, todos, homens e mulheres, sejamos anti-sexistas, da mesma forma que me parece óbvio que todos sejamos anti-racistas. É uma escolha moral óbvia, evidente. Se você for uma pessoa minimamente digna e minimamente desenvolvida, você tem de ser anti-racista e anti-sexista. Isso me parece uma coisa evidente. Dito isso, é uma coisa que não tem nada a ver com a narrativa. Acho que as narrativas e os romances não podem ser feministas, nem ecologistas, nem pacifistas, nem animalistas, ainda que você, como cidadã, seja feminista ou animalista. Sou uma grande defensora dos direitos dos animais. Você não pode usar o romance de forma utilitária. O famoso compromisso político-social do romance parece-me uma traição ao que deve ser o romance. Para mim, o sentido do romance é a busca do sentido da existência, é um caminho de conhecimento. É um esforço, como dissemos, para tentar iluminar a escuridão daquilo que somos. E não se pode começar esse caminho de descoberta levando as respostas previamente. Isso é uma traição ao verdadeiro sentido da narrativa. Portanto, os romances saem daquilo que você é, mas não devem ser utilitários.
Zuenir Ventura: Você, em 2004, na Festa Literária de Parati, você protestou, inclusive, sobre o título da mesa [de] que você participou, que [se] chamou "Vozes femininas". Você disse que é contra a literatura de gênero, não é? Você não escreve sobre mulheres, escreve sobre a humanidade. Só que as mulheres são mais de 50% dessa humanidade, né?
Rosa Montero: Sim. Cinqüenta e um por cento. O que eu queria dizer é que, em Parati, tinham colocado três mulheres numa mesa feminista e nós três protestamos, não fui só eu. Acho que mesas desse tipo são uma discriminação, vêm de uma cultura sexista, de uma cultura machista e servem apenas para nos separar. Eu disse que não existe literatura feminina. A pessoa escreve a partir do que ela é, também a partir do fato de ser homem ou mulher, mas somos muito mais do que isso. Você escreve a partir da sua língua, a partir dos livros que leu, da idade, da classe social. Você escreve a partir da sua condição física, porque você não vê o mundo do mesmo jeito se for alto, atlético e forte ou se for baixo, magro e manco. A relação com o mundo é diferente. Então, ser homem ou mulher é mais um ingrediente em meio a milhões e não se pode objetivar uma literatura por isso. O que me incomoda muito – isso a que você se referiu [apontando para Zuenir Ventura]– é que o tema sexista faz com que, quando a mulher escreve um livro cuja protagonista é mulher, as pessoas achem que ela escreve sobre mulheres. Quando um homem escreve um livro cujo protagonista é homem, as pessoas acham que ele escreve sobre o gênero humano. Pois bem, não quero escrever sobre mulheres, quero escrever sobre o gênero humano também, como você disse.
Patrícia Zaidan: Eu queria fazer uma pergunta, não para a feminista, mas para a mulher. Quando você esteve na Bienal do Livro, em São Paulo, você disse que "não lê mais os críticos, porque eles sempre ferem o escritor". E confessou, ali, que quando seu marido lê os seus livros, você chega a chorar, porque ele é um crítico contumaz e a crítica em casa eu acho que é a crítica que mais dói. Como é que você se refaz para escrever a página seguinte depois de uma crítica do marido?
Rosa Montero: Muito bem. Porque, na verdade, entrego a ele de propósito. Cada um tem seu método, mas esse é um método que eu aconselho. Escrevo um primeiro rascunho do romance e o entrego a três ou quatro pessoas muito próximas, que considero bons leitores, que sabem ler e explicar do que gostaram ou não no livro e que são muito severas. Uma dessas pessoas é o meu marido, o meu parceiro. Nós não somos casados, ele é meu parceiro. Eu entrego, de propósito, a ele e a outros três amigos. Entrego de propósito para que me façam a crítica. Acontece que, de fato, entre os quatro, meu parceiro é o melhor. É o melhor leitor, ele é maravilhoso, sabe destrinchar um livro. O mais terrível é que ele os destrincha mesmo. Ele faz isso com muita severidade. Algumas vezes cheguei a chorar, mas sempre foi bom. É um exercício necessário. É preciso deixar o livro descansar e, depois, lendo o primeiro manuscrito, você... é a primeira que vê os defeitos e volta a escrever. Então, isso me ajuda e é algo que eu procuro. Eu gostaria que ele fosse menos feroz, mas esse é um problema dele, de sua relação com o mundo, eu acho.
Cassiano Machado: Você diz no seu livro que você sempre é perguntada sobre a questão se existe uma literatura da mulher, que até é uma coisa que te irrita, que são duas perguntas, essa e outra sobre a mistura de literatura e jornalismo. Mas, dentro dessa sua observação sobre a literatura da mulher, você fala uma coisa que eu achei muito curiosa: você disse que chama atenção para o espaço irrisório que existe para “a menstruação na literatura universal”. E que, se fosse uma coisa que os homens tivessem, isso teria 200 mil metáforas na literatura. Você praticamente conclama as mulheres a escreverem sobre isso. Você já escreveu sobre isso? Você tem interesse?
Rosa Montero: Sim, na verdade, sim. O que eu queria dizer é que, naturalmente, o que nós, mulheres, fazemos e que a maior parte do imaginário homens e mulheres compartilham... Mas há pequenas coisas, pequenos rincões do mundo que só podem ser designados primeiro simbólica e culturalmente como mulheres, mas, designando-as culturalmente, criamos um ícone cultural, que também pode ser assumido pelo homem. Da mesma forma que não sei navegar e tenho enjôo no mar, eu tenho enjôo no vaporetto de Veneza [tradicional transporte fluvial da cidade de Veneza, na Itália], imagine, mas apesar disso, conheço os símbolos do que é o mar graças aos grandes escritores, desde [Herman] Melville [(1819-1891), escritor norte-americano que viveu um breve período de popularidade e só foi reconhecido postumamente pela qualidade literária de seus livros de aventura. Dentre eles, o mais famoso é Moby Dick, que narra o embate de um velho lobo-do-mar com uma baleia branca, interpretada a partir de seus símbolos e referências como uma luta de contornos míticos ou bíblicos] e tal, que me contaram o que pode significar o mar. Nesse sentido, nós, mulheres, temos esse caminho de criar toda uma iconografia cultural ao redor do sangue menstrual, que é tão poderoso. De fato, eu fiz isso.
Paulo Markun: E, curiosamente, no seu livro A história do rei transparente isso é uma frase apenas, não mais do que isso.
Rosa Montero: Sim, acontece... Não é só uma frase, é uma situação. No livro, a protagonista é uma camponesa de 15 anos que, como o mundo está numa situação terrível, para proteger-se, ela entra num campo de batalha, tira a armadura de um cavaleiro e se transforma em cavaleiro, certo? Ela se traveste. Ela se torna um mercenário e, num certo momento, como você disse, Paulo, está servindo como mercenário a uns comerciantes e, de repente, num combate com alguns atacantes, eles vencem e o comerciante diz: "O senhor foi ferido". Ela olha e é a menstruação. Essa é a cena. E ela precisa disfarçar, dizendo: "Não, é uma ferida antiga que se abriu". É esse tipo de coisa. Há um romance maravilhoso de Mary Renault [escritora londrina], Jogos funerários [1994], de sua trilogia sobre Alexandre, o Grande, no qual uma mulher que vai herdar o império, vai conseguir herdar o império de Alexandre, o Grande, quando está no desfile triunfal, começa a menstruar e se torna impura, perde o império. É lindo o romance. É uma imagem maravilhosa do sangue.
Cristiane Costa: Tem várias personagens na literatura mundial que são protagonistas como a sua. Por exemplo, no Brasil você tem Diadorim [personagem de Grande sertão: veredas, romance de Guimarães Rosa, que é mulher, mas se disfarça de jagunço para tentar vingar a morte do pai ajudada pelo grupo a que pertence Riobaldo, que sente por ela um amor contra o qual luta com todas as forças], que é uma heroína travestida de homem. No Japão você tem Mulan [personagem de desenho animado da Disney, de mesmo nome, em que a protagonista se disfarça de soldado e vai à guerra no lugar de seu pai que está doente]... São sempre as heroínas que se vestem de homem e provam que podem vencer no mundo dos homens. Você acha que isso tem paralelo também com a escritora que também trabalha com o instrumental, com ferramentas que são masculinas, de certa forma, e mostra que pode usá-las com a mesma força?
Rosa Montero: Não sei. O que acontece é... De todos os meus livros, só um não tem uma mulher como protagonista. O que se chama Amado Amo tem um protagonista homem, mas essa foi a primeira em que uma mulher se travestiu. Isso responde a uma grande realidade histórica. Muitas mulheres tiveram de se vestir como homens, muitas foram guerreiras e outras se vestiram de homens até recentemente, até agora. No Afeganistão dos talibãs, as mulheres se vestiam de homem para poder sair de casa. É uma realidade tão estendida, que, em Dom Quixote [El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de 1605, do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), um dos livros mais famosos da história, cujos personagens principais, um cavaleiro andante que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro – Sancho Pança – caminhando à procura de aventuras, "fazem parte da memória da humanidade", como colocou Jorge Luis Borges], por exemplo, mencionam-se três mulheres vestidas de homem como uma coisa normal. Por outro lado, para mim, isso apareceu por si só, não fui eu que escolhi, mas no meu livro, na primeira terça parte, Leola, a protagonista, veste-se de homem o tempo todo. Na segunda terça parte, às vezes, se veste de homem, às vezes, de mulher e no final, veste-se de mulher. Esse caminho que ela faz, que na verdade é um caminho da vida, porque dura 25 anos, ela vive 25 anos no livro, o que ela está contando é algo que todos devemos aprender, homens e mulheres, no contato com a existência para amadurecer. Trata-se de encontrar nosso lugar no mundo, o que é dificílimo. É aceitar, saber quem somos, saber mais ou menos quem somos e aceitar isso que somos. É saber mais ou menos o que desejamos. Esse é um dos maiores arcanos, um dos maiores mistérios. Para saber o que você deseja, pode levar a vida toda, porque sua visão é ofuscada, você se equivoca por causa dos desejos herdados, maternos e paternos, que são despejados sobre você. Como somos fracos e queremos ser amados, respondemos aos desejos dos outros, para que nos amem. Esse caminho que ela percorre conta isso. Para mim, conta isso. Não é uma coisa só da mulher. É das mulheres e dos homens, porque todos nos disfarçamos.
Luís Antônio Giron Giron: Em A história do rei transparente tem uma pesquisa sobre o século 12, eu acho que talvez você tenha pensado em [Dom] Quixote , pensado em Joana d'Arc [(1414-1431), heroína francesa que, vestindo-se de guerreiro e com um pequeno exército sob seu comando, ajudou a libertar seu país do domínio inglês], como Guimarães Rosa também pensou em Joana D'arc quando criou a personagem do Diadorim no Grande sertão: veredas. Isso te fascinou de que forma? Você mergulhou nessa pesquisa desse livro, que é tão interessante... Porque ele é, além de um percurso iniciático desta personagem, da Leola, é também uma aventura, uma grande aventura para um mundo que para nós hoje é absolutamente desconhecido.
Rosa Montero: Na verdade, não procurei a documentação para o livro, ela veio antes. Gosto muito de história, leio muitos livros de história por puro prazer pessoal. Uma época que me agrada muito é a greco-latina, mas não escrevi nada sobre isso. Há cerca de dez anos, passei por um momento de paixão por ler sobre a época medieval. Li muitos livros durante dois ou três anos, muitos livros de medievalistas, sobretudo franceses, mas outros também, e alguns textos de escritores medievais, como Chrétien de Troyes [(c. 1135-c. 1191) poeta e trovador francês, que escreveu Lancelot, Romances da távola redonda, dentre outros], Marie de France [considerada a primeira escritora européia de obras de ficção, nasceu na França mas viveu na Grã-Bretanha do século XII. Sua obra principal é o conjunto de doze narrativas que retomam lendas de diversas origens cujo tema comum é o amor], Christine de Pizan [(1364-c. 1434), considerada a mais importante poeta medieval e a primeira e única mulher no Ocidente a conseguir seu sustento com a arte de escrever; escreveu Livre de la cité des dames, um tratado de defesa do gênero feminino, e O espelho de Cristina, dentre outras] e tal. Acho que como eu estava nesse habitat mental, o tal ovinho me ocorreu naquela época, mas eu já tinha lido tudo antes. Comecei a entrar nesse mundo, descobri como foi maravilhoso o século 12. O século 12 foi uma explosão de modernidade. Tudo que somos hoje começou no século 12. Para mim, o verdadeiro renascimento social e cultural foi no século 12, não no Renascimento. Descobri isso, achei fascinante, surgiu o ovinho do romance, comecei a desenvolvê-lo como sempre, em cadernos, ele começou a crescer. Costumo levar três anos para fazer um livro, mas com esse demorei mais, entraram outros livros no meio. Depois de cinco anos, quando eu ia me sentar para escrever, precisei reler todos aqueles livros que tinha lido e dessa vez anotando. Minha primeira leitura tinha sido por puro prazer. Precisei ler dezenas de livros e fazer anotações. Foi um trabalho muito chato, foi realmente tedioso. Por isto eu digo que somos operários da literatura: é um trabalho duro, levei muito tempo.
[Comentarista]: Rosa Montero já conquistou uma parcela de leitores brasileiros com Paixões, lançado no ano passado. O tema nasceu da curiosidade da autora em relação ao comportamento dos amantes. É uma coletânea de textos que ela publicou no jornal El País sobre a vida amorosa de 18 casais famosos. Vai de Marco Antônio e Cleópatra, na Roma Antiga, a casais mais recentes cujos amores e desamores marcaram a história e até a fofoca internacional. O casamento de Jonh Lennon e Yoko Ono, por exemplo, foi uma desilusão para os Beatles e para os fãs de Lennon, e o casal, que passou a vida fazendo amor e pregando a paz, viveu quase o tempo todo em clima de guerra. Richard Burton e Liz Taylor tiveram um relacionamento nos limites da razão; foram amantes no cinema e fora da tela, um enredo real de paixão conturbada, onde eles não conseguiam ficar juntos e muito menos separados. Paixão, com marcas de idolatria, foi o caso de Juan e Evita Perón; ele deu a ela mais lugar na história do que amor, não houve romance, foi um casamento de interesses, uma relação marcada por dinheiro, poder e idolatria. Rosa concluiu que, mesmo sem final feliz, são histórias emocionantes e que deixaram suas marcas públicas.
Paulo Markun: Rosa, no seu livro Paixões em que você faz essa avaliação de vários casais – não só casais, no sentido convencional da palavra–, que de alguma forma viveram paixões alucinadas, a sua fonte principal foram biografias de outros autores. Eu pergunto: até que ponto é possível confiar num biógrafo para que você, por exemplo, defina as pessoas que você relata, porque, de alguns desses personagens, eu não li sequer a biografia, eu li o seu trabalho sobre a biografia de alguém. Até que ponto é possível confiar nessa fonte para se produzir um livro desse tipo, que não é ficção?
Rosa Montero: Bem, sempre é difícil. Todos os documentos aparentemente mais pesquisados podem ter também uma certa manipulação. Realmente sempre minha versão desses personagens é pessoal. Mas é verdade que se tenta cruzar biografias, tenta-se, por exemplo, dispensar aqueles dados que aparecem apenas em uma biografia e são contestados por outras, e tenta prender-se a dados concretos, documentados nas biografias, baseados em papéis, cartas. E há coisas que não se usam. Estão em livros que você leu, mas você não usa, porque elas não parecem confiáveis. Há coisas que parecem duvidosas e que eu digo, ao escrever, qual foi a fonte, mas que me parecem duvidosas. O que tentei fazer... Adoro ler biografias, principalmente de artistas. O que tentei fazer em Paixões, com esses ensaios biográficos, é a mesma coisa que faço nos meus romances. Nos seus romances, você entra na cabeça dos personagens, você vive dentro dos personagens. Tentei fazer essa aproximação com a biografia, mas os personagens de romance eu invento, a vida deles vai surgindo, mas aqui você deve se embrenhar nessa espécie de mapa de dados, os mais confiáveis possíveis. Escolho primeiro essa constelação de dados confiáveis e me coloco dentro dela, como se fosse uma roupa, na roupa dessa vida e procuro entender como se vive, como se sente a vida lá dentro. Isso dá uma certa coerência ao personagem, porque se você faz esse esforço para adentrar essas coisas que o personagem fez, de forma mais ou menos documentada, você começa a entender certas coisas que, vistas de fora, não seriam entendidas. Encarei essas biografias dessa forma e acho que isso também é uma forma de verificar dados, porque há uma coerência do personagem que faz você acreditar mais em algumas coisas e menos em outras.
Zuenir Ventura: Das 18 histórias, 18 casais, se não me engano, quais foram os que mais a impressionaram em termos de desvario e perdição?
Rosa Montero: Bem, na verdade, as mais fascinantes em geral são as mais perversas. Nesse esforço de adentrar, as que levam você mais longe, às fronteiras da vida, antípodas de onde você está. Uma fascinante é a de Rimbaud e Verlaine [conhecidos como “poetas malditos”]. É incrível, eles eram muito maus, acho que eram veneno puro, eram impressionantes. O amor que eles sentiram não era amor, mas a paixão deles era realmente autodestrutiva. De repente, Verlaine dizia a Rimbaud: "Ponha a mão sobre a mesinha de café". Ele punha e Verlaine ia com a faca sobre a mão dele. Então Verlaine – desculpem, quem fazia isso era Rimbaud–... Verlaine voltava para casa, ele era casado, e tentava fazer isso com sua mulher. Era uma coisa extrema, eles bebiam muito, drogavam-se muito, bebiam muito absinto, que é alucinógeno, ficaram muito mal, isso quase os levou à destruição. É uma história fascinante. Outra história que me comove muito, porque adoro Oscar Wilde, é a história totalmente destrutiva de Oscar Wilde com Alfred Douglas, que era um imbecil, um infeliz. Esse menino pisoteou o amor de Oscar Wilde, ele o desprezou e o usou quando Oscar Wilde [que escreveu sobre todo esse processo na comovente carta "De profundis", escrita nos anos de cárcere]... Além de tudo, era um burguês. Oscar Wilde era inocente, era um grande inocente. Isso me comove muito, causa-me dó. É uma história que me faz sentir muito dó. Não sei... Eu gosto de todas, senão não as teria usado. Há uma que me desagrada muito. Essa foi um custo para eu usar. É a de [Amedeo Clemente] Modigliani [(1884-1920), pintor italiano] e sua mulher, Jeanne Hébuterne [era uma estudante de arte de 19 anos quando conheceu Modigliani e passaram a viver juntos; ela se suicidou dois dias depois da morte do pintor em consequência de uma hemorragia pulmonar]. Jeanne Hébuterne era uma mulher tão passiva, tão passiva, tão contrária ao meu mundo, tão letalmente passiva, era como a debilidade letal! Sabe a tirania do fraco? Esse fraco que acaba sendo o que acaba com todos? É uma história incrível. Ela, grávida de nove meses, jogou-se pela janela. Um horror. Foi duro essa mulher entrar na minha cabeça, porque me parece um modo asqueroso de viver.
Zuenir Ventura: Estranha também é a de Elizabeth Taylor e Richard Burton, não?
Rosa Montero: Sim, bem... Isso é só um número. Só pode ser um número. "Nem com você nem sem você" é o título do capítulo, porque eles se casaram várias vezes, casavam-se, separavam-se, casavam-se, separavam-se e também foi um desastre. Acho que interfere muito no desastre...
Paulo Markun: Estavam escrevendo sempre o mesmo livro...
Rosa Montero: Exato.
Patrícia Zaidan: Rosa, ao longo de sua carreira, você pôde conhecer muito bem a alma humana, porque entrevistou mais de 2 mil pessoas, cobriu conflitos, viu cair o muro de Berlim, o fim da União Soviética, no entanto, você diz que o jornalismo escraviza. Você, de uma certa maneira, renega o jornalismo?
Rosa Montero: Eu não renego o jornalismo. Sou muito grata ao jornalismo, Patrícia, porque é um trabalho. Para mim, sempre foi um trabalho. O romance é minha paixão, meu jeito de viver e me sentir viva; o jornalismo é um trabalho, mas que trabalho maravilhoso! Comecei a trabalhar com 18 anos, enquanto estudava e, como repórter, pude conhecer outros mundos, que não são apenas os geográficos, mas os físicos. Consegui entrevistar, por exemplo, um ex-terrorista do Grapo, um grupo terrorista urbano da Espanha. Ele, aos 18 anos, matou três pessoas, assassinou três pessoas. Em duas semanas, foi preso. Depois de 15 anos, fez uma análise, abandonou esse fanatismo, analisou o que havia feito e escreveu o livro El tazón de hierro, no qual falava do fanatismo que leva alguém a matar. Fui entrevistá-lo na cadeia, conversamos por três horas, e lembro que me senti privilegiada, pensando: "Que viagem! Que viagem é esta, poder fazer uma viagem ao coração do mal que todos temos dentro de nós! Esse mal, esse dogmatismo que mata, o fanatismo que mata, esse mal todos nós temos. E pude fazer uma viagem ao coração do mal, com um guia que tinha vivido isso e tinha saído. Ele contava que, depois de matar o primeiro, comprou bolo e champanhe para comemorar. Esse tipo de coisa só o jornalismo oferece. Aqui há vários jornalistas. Sabemos que só o jornalismo faz isso. O fato é que sou jornalista há 30 e tantos anos e isso cansa, porque é um trabalho que absorve muito, que exige muito, é muito estressante, dá adrenalina demais também. Agora estou me distanciando um pouco, mas agradeço ao jornalismo.
Luís Antônio Giron: O seu estilo de escrever é influenciado pelo jornalismo diretamente, porque é um estilo direto, não é? Diferentemente de boa parte da tradição hispano-americana literária, você tem um estilo muito direto e isso talvez venha um pouco dessa convivência jornalística, com as fontes, direto com a experiência comunicativa. É diferente de muitos escritores espanhóis ou latino-americanos, esses enciclopedistas e tal... Você, apesar de ter essa grande cultura literária e tudo, você vai mais direto ao assunto.
Marcos Strecker: E você tem influência de Truman Capote [(1925-1984), escritor americano, considerado “pai do romance de não-ficção"], que é uma pessoa que a influenciou muito também...
Rosa Montero: Sim, mas... claro. E muitos outros. Borges, com certeza, e muitos outros. Eu não concordo com isso. Para mim, o estilo literário não precisa ser sempre barroco. Há muitos autores que nunca foram jornalistas e que não têm estilo barroco, mas um estilo muito limpo. Além disso, essa é a minha ambição. Estilisticamente, quero fazer um texto no qual não sobre uma só palavra, um texto lapidado, de ourivesaria. Escrever literatura – e eu digo isso de forma um pouco pejorativa–... aqueles que escrevem e acham que devem fazer parágrafos enormes, subordinadas e tudo mais, esse é um dos estilos da literatura. Por outro lado, acho que o jornalismo – esse que fazemos– é um gênero literário. O jornalismo de jornais, não de televisão, é um gênero literário como qualquer outro. É como a ficção, a poesia. Como você disse, Marcos, você pode ter um nível literário nesse gênero, como Truman Capote. A sangue frio é uma reportagem e é um livro maravilhoso, mas claro que é um gênero muito diferente da ficção. Se você escreve ficção como escreve jornalismo, vai fazer ficção ruim, porque vai ser superficial. E se você escrever jornalismo como escreve ficção, vai fazer jornalismo ruim, porque será confuso. O jornalismo e a narrativa são tão contrários, que acho que estão em lugares totalmente opostos. Por exemplo, no jornalismo, a clareza é um valor. Quanto mais claro e menos ambíguo for o texto, melhor. No romance, a ambigüidade é um valor. Quanto mais leituras o livro permitir, inclusive contraditórias, melhor ele será. Então realmente não acho que meu estilo nos livros seja jornalístico. Acho que tenho um estilo nos romances e outro no jornalismo. Acontece que escrever literatura nem sempre é escrever como [Gabriel] García Márquez, pelo amor de Deus!
Cassiano Machado: No [livro] A louca da casa, falando em gênero literário, você faz uma mescla interessante entre elementos biográficos ou entre ficção ou entre ensaio e boa parte da melhor ficção, produzida nos últimos 20 anos. Falo, aí, de coisas como O papagaio de Flaubert [história cujo enredo se desenrola com a busca, por um médico britânico, do verdadeiro papagaio que teria sido emprestado a Gustave Flaubert (1821-1880) enquanto o escritor francês criava o livro Um coração singelo. Por meio da obra de Flaubert, o médico busca construir o sentido de sua própria existência eo livro é pleno de referências e mistura diversos gêneros, como a crítica literátia, o romance e a biografia para refletir sobre a fronteira entre realidade e fantasia na experiência literária do escritor que persegue um leitor e sobre a qualidade mística do encontro entre leitor e escritor. Foi premiado na França e na Grã-Bretanha], do Julian Barnes [(1946-), escritor britânico], Cláudio Magris [(1939-), premiado escritor e jornalista italiano, colaborador regular do jornal Corriere della Sera], vários autores têm feito uma mescla muito interessante de ensaio, romance, e tal. Eu queria saber, na sua opinião, o que esse cruzamento de gêneros nos fala sobre o nosso tempo, se isso é um sinal do nosso tempo ou se é um sinal de decadência do romance ou um renascimento do romance, qual que é a sua interpretação desse cruzamento de gêneros?
Marcos Strecker: Só acrescentando uma coisa: a sua literatura também é muito baseada na própria literatura. Você o tempo todo está se referindo a outros autores e a outros livros, outras obras...
Rosa Montero: Em A louca da casa, basicamente. Realmente, sim. Essa é uma das características da literatura das últimas décadas, do final do século XX, começo do século XXI. Além disso, o século XX foi o século da demolição das certezas, ou seja, perdemos a fé na continuidade do mundo, perdemos a fé... Até mesmo o tempo e o espaço alguém disse que eram curvos [esse alguém foi o físico Albert Einstein, que formulou a teoria da relatividade geral e afirmou que a matéria existente no universo faz o espaço-tempo ser curvo. Einstein com isso substitui a idéia da gravidade como uma força por um conceito geométrico de curvatura no espaço-tempo]. Não se pode acreditar em nada. No século XIX, nos grandes livros, tudo era ordenado e partia de uma solidez do mundo. No século XX e, cada vez mais, até o XXI, chegamos a não poder confiar nem sequer no eu, na nossa própria individualidade. Nem o eu é confiável. Somos sempre os mesmos? Não somos. O que vemos e lembramos é verdade ou é invenção? Eu acho que é invenção. Contamos nossa vida, nossa memória é uma história. Essa é uma percepção que, talvez, não seja explicada, assim, pelo primeiro que passar pela rua, porque ele não tem essa verbalização, essa intelectualização do processo, mas ele sente que o mundo não é firme, sente que há descontinuidade na realidade, sente que nada é seguro. Essa foi uma sensação do mundo, que vem sempre crescendo, cada vez mais. Esses livros híbridos fazem parte disso, fazem parte desse caos, dessa espécie de coisa relativa, dessa mistura na qual... São livros em que o eu do escritor entra, mas é um eu fictício que passa pelo real. É porque temos essa sensação, eu tenho essa sensação. Em A louca da casa, que é um livro que começa... É um jogo. Ele começa parecendo uma autobiografia. O leitor acha que tudo que está lendo é verdade. Verdade notarial, da qual um tabelião dá fé. Chega uma hora em que há um truque e o leitor pensa: "Desgraçada! Essa mulher está mentindo. Se ela mentiu aqui, no que mais terá mentido? Em muitas coisas ela mentiu". O livro é dedicado a uma irmã minha, mas não tenho irmã nenhuma. É uma irmã que é importante no livro, mas não tenho nenhuma irmã. Bem, essa é a percepção profunda que tenho do mundo. É essa espécie de sensação escorregadia. Não temos todos essa sensação de que o mundo é escorregadio? É como se vivêssemos numa superfície gelatinosa, que pode se quebrar a qualquer momento e pode acontecer qualquer tipo de coisa. Vocês se lembram da antiga Iugoslávia, não é? Era um país supostamente civilizado, no qual todos viviam como nós e onde, de repente, os vizinhos começaram a crucificar uns aos outros, começaram a violentar as filhas dos vizinhos, que eles tinham visto crescer. A realidade não é firme, não é segura. Vivemos nessa coisa... Esses livros contam isso, tentam tratar disso.
Paulo Markun: Por mais que a sua obra autobiográfica não seja tão autobiográfica assim e pelo pouco que a gente tem aqui, no Brasil, a possibilidade de conhecer do seu trabalho que é publicado em português, a impressão que eu tenho é que, até pelo que você já falou aqui, neste programa, é que a paixão, no sentido dessa coisa um pouco entusiasmada, que é um pouco também do [povo] espanhol, evidentemente, é um fio condutor do seu trabalho? Você não escreve um livro blasé [indiferente, apático], um livro que [diz]: "ok, eu estou observando isso como um mero observador à distância". Você põe sangue na coisa.
Rosa Montero: Sim, você tem razão. Essa é uma questão de caráter. Não sei até que ponto é um caráter espanhol, mas é o meu caráter. Eu já disse que fui muito apaixonada. No amor fui. E digo no passado, porque estou tentando mudar...
Paulo Markun: Até tem um personagem – desculpe interromper– que, no seu livro, A história do rei transparente, fala tudo com pontos de exclamação. E a sensação que eu tenho é que você fala assim, não é?
Rosa Montero: Eu falo assim. Que horror! O personagem é um imbecil. [risos] Sou muito veemente, muito apaixonada por tudo, adoro a vida. Isso me faz tão bem que... Por exemplo, não sou nada depressiva, mas tenho tendência a me angustiar, como todos os veementes. Tive um namorado há muitos anos que me chamava de Maria Angústias, não sei se dá para traduzir isso. [risos] Eu vivia angustiada. Na verdade, é curioso, porque, veja, acabo de descobrir uma coisa fundamental na minha literatura. Vocês sabem que outra coisa que se diz da literatura dos séculos XX e XXI é que é uma literatura de perdedores. É uma coisa óbvia. Não são personagens heróicos, são perdedores, o herói é o anti-herói. Eu sempre achei que fizesse literatura de perdedores, a vida toda. De repente, agora, divulgando A história do rei transparente na Espanha, num ato público, perguntaram-me se eu já estava escrevendo outra coisa. Eu disse que sim, que estava preparando e me perguntaram o que era. É uma história contemporânea, que acontece numa cidade grande e eu disse: "Mais uma vez, é uma história de sobrevivência". Ao dizer isso, percebi que não escrevo romances sobre perdedores, mas sobre sobreviventes. Sempre. A diferença é enorme. Isso tem a ver com a paixão, como você lembrou. Qual é a diferença entre o sobrevivente e o perdedor? Ele não se rende, é só isso. Você não se rende por isto: por essa paixão que faz você amar a vida e lutar. Sim, acho que é uma questão de caráter.
Marcos Strecker: Você começou sua carreira numa época muito rica da Espanha, que foi a época da Movida Madrileña, junto com [Pedro] Almodóvar [(1951-), um dos mais importantes cineastas espanhóis]. Parece até que você fala no livro, não sei se é verdade ou não, que você comemorou quando o Franco morreu... Aquela época de transgressão, de que forma isso influenciou na sua carreira ou nas suas opções?
Rosa Montero: Não sei. Isso faz parte do que eu sou. Todos somos tudo aquilo que somos, então, evidentemente... Por exemplo, eu cresci, minha adolescência foi no governo de Franco. Acontece que tive a grande sorte de serem os últimos anos de Franco, de forma que isso não me impediu de viver da mesma forma que os adolescentes do resto da Europa. Fui hippie, uma hippie terrível, claro. Sei lá... participava da onda do amor livre, comprava pílula clandestinamente, porque era proibida na Espanha, mas era possível. E todas essas coisas. Isso me faz ver o mundo de um jeito muito diferente do meu irmão, que é cinco anos mais velho. Com esses cinco anos de diferença, ele ainda viveu uma Espanha totalmente repressiva. A visão que ele tem da vida é muito diferente. Isso quer dizer que tudo influi, tudo molda você. Para mim é natural esse meu desenvolvimento, porque é a minha vida, é o que eu vivi e estou feliz, acho que fui... Acho que tenho uma sorte incrível, porque vivi a juventude naquela loucura dos anos 70, quando se praticava o amor livre, quando ainda não existia a aids, quando o mundo era um presente que íamos inventar e abrir. O mundo se oferecia para nós. Acho que naquela época o mundo era uma espécie de presente embalado em celofane e que nossa geração ia abrir. Viver isso aos 20 anos é maravilhoso. Então, aos 30 e tantos ou 40, que é quando você começa a se acomodar com suas idéias, você se senta e se transforma num sapo, houve a queda do Muro de Berlim, não dava para sentar. Era preciso reinventar tudo. Acho que tive a sorte de viver cada situação mundial no momento exato. Estou esperando o que vai acontecer aos 60.
Paulo Markun: Vamos acompanhar, agora, a pergunta feita pela professora titular de filosofia e política da Universidade de São Paulo, Olgária Matos, vamos ver.
[VT de Olgária Matos]: Rosa Montero, é um prazer estar hoje, aqui, com você para falar da paixão de maneira tão apaixonada, como no seu livro. Você escolheu personagens de cinema, personagens políticas, escritores famosos. Eu gostaria de saber se isso motivou você, o fato de eles serem emblemas de uma grande paixão ou se foi a experiência da paixão vivida que levou você até seus personagens? Eu penso numa afirmação de [François] Truffaut [(1932-1984), cineasta francês criador da teoria autoral, pilar do movimento Nouvelle Vague, segundo a qual o diretor é quem tem a única responsabilidade sobre o filme e sua visão pessoal da sociedade pode ser observada na obra], que era um grande conhecedor da paixão e da paixão amorosa, quando ele dizia: "Não existe história de amor banal, porque toda história de amor daria grandes filmes". O que você acha disso?
Rosa Montero: Acho que é muito otimista. Muitas histórias de amor são banais, absurdas e repetitivas. As histórias de amor sempre tendem a se repetir. Escolhi os 18 personagens porque eu já os conhecia... Como eu disse, gosto muito de biografias, leio muitas e já conhecia alguma coisa dessas histórias e elas haviam me chocado, me causado curiosidade, me interessado e inquietado. Das histórias curiosas que eu havia lido, escolhi algumas na tentativa de que não se repetissem, que não fossem... Há histórias heterossexuais, homossexuais, há o amor pedófilo de Lewis Carroll [pseudônimo de Charles Lutwidge Dodson (1832-1898), matemático e escritor britânico] – autor de Alice no país das maravilhas– pela menina, por sua Alice. E dependia também... Como são pessoas famosas, as histórias são documentadas. Volto a dizer que fiz o livro a partir de biografias já feitas. Imagino que todos aqui sejamos jornalistas e comecei a fazer entrevistas muito jovem. Como disse Patrícia, fiz mais de duas mil. Acho que os jornalistas são pouco mitômanos, nesse sentido, porque o conhecimento próximo das pessoas nos faz tirar muitos mitos da cabeça. Devo dizer, sinceramente, que as pessoas mais conhecidas, as pessoas mais admiráveis e interessantes que conheci são pessoas anônimas. Totalmente. Conheci muitas pessoas muito famosas, mas, na minha lembrança, ocupam lugar de destaque pessoas anônimas maravilhosas.
[Comentarista]: Por onde passa, Rosa Montero é chamada para falar de literatura, mas também sobre jornalismo, profissão na qual se formou no início dos anos 70. Trabalhou em várias publicações até 76, quando foi contratada pelo El País, o principal jornal da Espanha, e um dos mais importantes da Europa. Como repórter, Rosa Montero percorreu o mundo cobrindo conflitos, e também fez entrevistas marcantes que lhe valeram prêmios. Em sua coluna, no El País, que assina até hoje, escreve sobre assuntos diversos, de cultura e literatura à realidade do mundo atual. Mundo que, como o jornalismo, já não é mais o mesmo de quando ela começou a carreira.
Paulo Markun: Rosa, eu sei que você não tem já a atividade cotidiana jornalística, mas como é que você enxerga o jornalismo nesse começo de século XXI, que não é exatamente igual àquele do início dos anos 70?
Rosa Montero: Não, principalmente na Espanha. Na Espanha, mudou muito. Agora estou muito preocupada. Como dissemos antes, eu vivi a fase de transição na Espanha, que foi maravilhosa, um momento de glória da sociedade espanhola, no qual todos os atores sociais, realmente, com uma generosidade incrível, entramos em acordo para construir um futuro habitável e parar de nos matar uns aos outros, coisa que vínhamos fazendo havia 200 anos. Foi um momento de glória. A imprensa teve um papel realmente maravilhoso. Foi um espelho da sociedade e ajudou a democratizá-la. E desse momento de glória, passamos agora a um momento de lama total, de barro. Aconteceu na Espanha uma coisa muito perigosa, uma união, um concubinato, uma espécie de relação perversa e muito próxima entre grupos de poder, partidos e jornais. O que acontece com isso? Eles criaram, na vida política, um jogo de poder entre os partidos e os jornais, cada um em seu grupo. E eles travam uma luta diária. Está crescendo um tremendo sectarismo na sociedade e ele não é real. Nós não somos assim, não somos como nossos políticos, nem como nossos jornais fazem refletir a vida. São muitos os interesses e acho que isso empobrece a nossa realidade. Nós conseguimos tanta coisa! Não sei se é medo da felicidade. Talvez seja isso. Tudo vai muito bem, vamos atrapalhar. Eu não entendo, mas é um momento perigoso, preocupante e, entre outras coisas, porque a imprensa se meteu demais no campo de batalha. A imprensa não deve estar nesse campo de batalha.
Zuenir Ventura: Rosa, essa é a terceira vez que você vem ao Brasil e esse é o seu terceiro livro, quer dizer, precisamente: o Brasil a adotou. Você eu acho que é a nossa espanhola favorita. O Brasil realmente se encantou com os seus livros, com você. O que, do Brasil, embora você conheça pouco, mais a encanta?
Rosa Montero: Olhe, o que mais me agrada... Isso pode parecer uma adulação, mas eu já disse a todos. Acho que vocês não têm noção do tanto que são carinhosos, afetuosos, veementes e quentes, amorosos. Vocês são um povo fantástico, que fica no coração da gente. Não estou dizendo pessoalmente, como no seu caso, Zuenir. É um homem maravilhoso, que conheci em Parati há dois anos e que escreveu um livro incrível, Minhas histórias dos outros, e me citou no livro. Um encanto, uma coisa generosa. É sério, é uma coisa muito generosa. É essa generosidade. Vocês são generosos, vocês se entregam ao outro. Não são só as pessoas que se conhecem, são as pessoas nas ruas, os taxistas, nas lojas. Isso não é normal. Vocês não percebem, porque vivem aqui, mas não é normal. Tomara que vocês nunca percam isso, porque é um dom que se pode perder e é preciso cultivá-lo.
Cristiane Costa: Rosa, você disse que é tímida, mas não parece. E que perdeu a timidez por causa da literatura. E que também odeia lançamento de livro, essas turnês e tudo, e já veio três vezes ao Brasil. Até que ponto a literatura... Isso reflete o fato de que a literatura também virou uma arte performática, uma coisa de celebridade, de espetáculo...
Rosa Montero: Totalmente. Os escritores somos como roqueiros agora. Lancei meu primeiro romance há 28 anos. Na época, você escrevia o livro, lançava e ponto final. Ele tinha sua vida. Uma vida lenta, ele ficava um ano nas livrarias, os leitores o encontravam, um comentava com outro, saíam críticas e artigos e pronto. Agora, no mundo todo, isso mudou. Aplicam-se técnicas agressivas, como as das vendas de refrigerantes, ao mercado dos livros. Agora já não basta escrever um romance. Você precisa ser... Escrever o livro é a metade ou é 30% do trabalho. Você precisa ser um showman ou uma show-woman e aparecer bem na televisão ou aparecer mal, mas, de alguma forma, ser memorável. Ser muito simpática ou muito antipática, não sei, para que as pessoas se lembrem de você. Você matou sua mãe, vai a um programa de TV, conta isso, alguém passa por uma livraria e lembra: "É o livro da moça que matou a mãe, eu vi na TV". [risos] Esse tipo de coisa. Acaba sendo um circo. Na Espanha, temos o Prêmio Nadal, que é bem antigo, tem 50 anos. Uma moça ganhou o prêmio e apareceu nua numa reportagem de uma revista. Ou seja, é um circo. Nós, escritores, estamos no meio do caminho entre os leões e os palhaços. Sou muito tímida, é verdade. Eu juro. Sou tão tímida... Eu acho que nós, romancistas, nos dedicamos a escrever porque não gostamos de falar. Isso é evidente, pelo menos em público. E o fato é que você aprende. Eu era gaga quando era pequena, nunca consegui falar em público. Fui universitária durante o franquismo, [estive em] grandes assembléias... e nunca me levantei para dizer nada. Eu tinha coisas a dizer, mas não, porque eu gaguejava, ficava vermelha, meus joelhos tremiam, a voz também. Quando apresentei meu primeiro romance, aos 26 anos, aconteceu isso e foi ridículo, claro. Então eu disse “vou ter de aprender a falar”. Expondo-se ao risco, você aprende, mas é muito agressivo para mim. Tomei um calmante antes do programa, um comprimido, senão minhas mãos ficam trêmulas.
Cassiano Machado: Você disse que o seu conselho aos jovens escritores é que eles não queiram viver só dos romances, que isso acaba atrapalhando. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso. Por que você acha que a ficção não serve como profissão?
Cristiane Costa: Você até diz que prefere trabalhar no jornal e ganhar o seu dinheiro ali a ganhar dinheiro com a literatura, ao contrário de quase todos os escritores e jornalistas que eu conheço. Mas não é uma posição meio romântica, também, assim, da arte pela arte?
Rosa Montero: Pelo contrário. Não é romântica, é prática. Tem um sentido prático absoluto, que vou lhe explicar claramente. O romance deveria ser um espaço de liberdade, porque para que os sonhos possam fluir e para que o inconsciente saia, você precisa... Como dissemos antes, o autor tem que passar pela morte do autor. Você precisa desaparecer e deixar que isso flua. Precisa ser um espaço de liberdade. Então, você já tem, como dissemos, o ruído do mercado, a pressão de aparecer na lista dos mais vendidos, dos best-sellers, de ser vendido e visto. É uma pressão muito forte e é difícil opor-se a ela. É preciso fazer uma espécie de ginástica mental e moral para que isso não influa sobre você. Se, além disso, você ainda acrescentar a hipoteca de sua casa, ter que pagar sua comida com a venda do livro, não dá. Não acredito que você consiga escrever livremente. Se eu demoro, em média, três anos para escrever um livro, se preciso do livro para pagar minhas contas, é melhor então que eu lance uma porcaria em um ano e meio para que me dêem o adiantamento, porque preciso desse dinheiro. Se eu sei que minha vida depende desse livro, talvez eu me pergunte, enquanto escrevo, se o livro vai vender ou não. Devo escrever algo que venda. Isso é inevitável, porque somos humanos, isso é humano. Para evitar isso, é preciso viver de outra coisa. Eu pessoalmente vi como vários bons autores espanhóis se acabaram, se afundaram porque começaram a trabalhar com uma editora que ia pagando, eles iam entregando um livro por ano e fazendo porcarias. Acho que escrever o que você não precisa escrever rouba a sua alma e isso se vê. Esses autores são três casos concretos e se acabaram. Eram autores interessantíssimos aos 25, 26, 27, 30 anos. Vinte anos depois, acabaram-se.
Luís Antônio Giron: Você acha que o dinheiro acabou com esses autores? A busca pelo dinheiro foi fatal e degenerou a literatura deles?
Rosa Montero: A situação de fraqueza literária em que isso os coloca. Porque justamente eles precisam escrever um livro por ano, querendo ou não, ficando bom ou não. A editora exige o lançamento. Além de tudo, isso pode bloquear você. Depois do meu terceiro livro, eu me bloqueei e fiquei quatro anos, quase cinco sem conseguir escrever. Precisei passar por esse deserto, digamos. Se eu vivesse disso, teria feito o quê? Teria escrito um livro asqueroso, horrível, espantoso. E acredite, isso lhe rouba a alma. Acho que você deixa de escrever como antes quando faz essas coisas.
Luís Antônio Giron: É cada vez mais comum isso. Esse processo consumista da literatura tem ficado cada vez mais comum, mais disseminado...
Rosa Montero: É um perigo, realmente. A história da literatura está repleta de livros que foram escritos às cinco da manhã na mesa da cozinha. Às cinco, porque às sete o escritor vai trabalhar. E na mesa da cozinha, porque ele não tem um escritório. Assim se escreveram obras maravilhosas. É preciso reservar esse lugar para escrever.
Paulo Markun: Rosa, nosso tempo está acabando e eu tenho uma última pergunta que, na verdade, me remete a uma frase de um livro de Ernesto Sábato, escritor argentino, que fala que "toda donzela tem dentro de si um dragão". E, neste nosso programa, a gente conviveu, aí, com um personagem que eu queria que você explicasse o que é. Eu não sei se é um dragão, me parece uma salamandra, que é a sua tatuagem...
Rosa Montero: Salamandra.
Paulo Markun: Por quê?
Rosa Montero: Na verdade, vivi os anos 70, que sempre me encantaram. Nos anos 70, todo mundo se tatuava e eu adoro tatuagens, mas também sou muito claustrofóbica e, nos anos 70, aos 20 anos, eu achava que uma tatuagem seria para a vida toda e seria um horror, então não me tatuei. Quando estava para fazer 50 anos, eu pensei "agora, por mais que eu viva, não vou me cansar da tatuagem. Não dá tempo". Então fiz uma salamandra. Gosto de todos os animais, mas os lagartos eu acho maravilhosos, porque são versões domésticas dos dragões dos contos. Além disso, a salamandra é um animal mítico, assim como a fênix. É um símbolo de regeneração. Acredita-se que...
Paulo Markun: Se perde a cauda [ela se regenera]...
Rosa Montero: Acredita-se que ela caia no fogo e não se queime. Então ela é uma sobrevivente.
Paulo Markun: Muito obrigado, Rosa, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. E nós voltaremos na próxima segunda feira, com mais um Roda Viva.