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Memória Roda Viva

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Eduardo Duhalde

20/2/2006

Presidente da Argentina num dos períodos mais conturbados e difíceis da história do país, Duhalde fala do Mercosul e da importância da integração regional

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Paulo Markun: Boa noite. Ele governou a Argentina num dos períodos mais conturbados e difíceis do país dos últimos anos. Desemprego alto, retenção de depósitos bancários, estado de sítio, panelaço e conflitos violentos nas ruas. Uma situação de anarquia social e política que representou uma prova de fogo para a democracia na Argentina. Foi nesse quadro de convulsão que Eduardo Duhalde, o convidado desta noite no Roda Viva, assumiu a presidência da República em janeiro de 2002. O ex-presidente argentino, Eduardo Duhalde, até dezembro presidiu a comissão de representantes permanentes no Mercosul. Veio a São Paulo para a série de palestras que o Memorial da América Latina organizou com ex-presidentes latino-americanos em fevereiro, um ciclo de conferências para promover reflexões em torno do desafio democrático que vive o continente. Tema que também entra na programação do Roda Viva, onde teremos proximamente a participação de outros presidentes latino-americanos.

[Comentarista]: Militante peronista [peronismo] desde os primeiros passos na política, Eduardo Duhalde foi vereador, prefeito, deputado, senador, vice-presidente, governador de Buenos Aires e presidente da Argentina. Sua carreira política foi marcada por vários embates com o comando peronista. O principal deles com o ex-presidente Carlos Menem [(1930) presidente da Argentina entre 1989 e 1999 pelo Partido Justicialista (Peronista)],  a quem ajudou a eleger e reeleger. Mas, nas eleições de 1999, quando Menem pretendia alterar mais uma vez a Constituição para garantir um terceiro mandato, Duhalde foi contra. A antiga aliança se desfez. Duhalde se candidatou à Presidência, mas acabou derrotado por Fernando de la Rúa [(1937) presidente da Argentina entre dezembro de 1999 e dezembro de 2001 pela aliança de centro esquerda UCR (União Cívica Radical) e Alianza (Aliança para o Trabalho Justiça e União). Foi durante seu governo que a Argentina passou por uma grave crise economica, marcada por um alto desemprego, inflação e dívida externa acentuada] nas eleições de 1999. Voltou à cena política dois anos depois, quando conquistou uma cadeira no Senado. De la Rúa enfrentava uma grave crise política e econômica e renunciou. Duhalde foi, então, eleito pelo Congresso para presidir o país de janeiro de 2002 a dezembro de 2003. Ao final do mandato tampão, ajudou a eleger Néstor Kirchner [presidente da Argentina de  2003 a 2007] mas, a exemplo do que já havia ocorrido com Menem, Duhalde rompeu com Kirchner por conta das disputas internas do Partido Justicialista. E terá por isso dificuldades novas se quiser disputar com o atual presidente uma indicação do partido nas eleições de 2007.

Paulo Markun: Para entrevistar o ex-presidente da Argentina, Eduardo Duhalde, nós convidamos Marcelo Cavallari, editor de internacional da Revista Época; Cláudio Camargo, editor de internacional da revista Isto É, Carolina Vila-Nova, repórter do Jornal Folha de S. Paulo e ex-correspondente em Buenos Aires; Reinaldo Azevedo, diretor de redação da revista e do site Primeira Leitura; José Paulo Kupfer, chefe de redação da TV Cultura; e Roberto Lameirinhas, repórter da editoria internacional do jornal O Estado de S. Paulo. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso registrando em seus desenhos os momentos e  os flagrantes do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional de TV para todo o Brasil mas, hoje, por se tratar de um programa gravado, não é possível a participação dos telespectadores enviando perguntas ao entrevistado.  Boa noite, presidente. 

Eduardo Duhalde:  Boa noite.

Paulo Markun: Eu cresci - e já estou crescido há muito tempo - e venho assistindo há cinqüenta e tantos anos embates entre o Brasil e a Argentina. Embates nos campos de futebol, nas declarações de presidentes, muitas vezes até, no tempo do regime militar, teóricos embates que poderiam desembocar numa guerra. O senhor acha que isso aí já passou definitivamente? Temos uma perspectiva de ação conjunta ou falta muito para que o Mercosul [Mercado Comum do Sul. Formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai] vire fato real?

Eduardo Duhalde: Na verdade, o que você descreve vem da época da nossa independência. A América Espanhola e a Portuguesa tiveram seus processos de independência na mesma época, mas foram diferentes. Quando os países hispânicos começaram a se unir, no Brasil já havia certa desconfiança. Por que essa união? Enxergavam a América Espanhola como um potencial adversário no futuro. Ou seja, isso começou com a nossa própria história. Mais tarde, foi se consolidando essa desconfiança, não somente entre a América Portuguesa e a Espanhola, mas também entre os grandes países que eram colônias espanholas. Tínhamos, com relação aos nossos vizinhos, hipóteses de guerra. Nossos exércitos se preparavam e viam os vizinhos como adversários de guerra em potencial, bélicos. Ou seja, é a nossa história desde o princípio. Houve em todos os nossos países pessoas visionárias. Pessoas que sentiram, desde os primórdios da independência, a necessidade de atuar em conjunto, tanto nos vice-reinados espanhóis quanto, no Brasil, no Império do Brasil. Entre eles, o que mais se destacou talvez foi um brasileiro que nasceu pouco depois do século XIX e atua até o início do século XX, o Barão de Rio Branco [(1845-1912) professor, político, jornalista, diplomata e historiador. Figura importante nas relações internacionais, em especial na América do Sul. Através de negociações obteve, nos anos 1870, parte do Amapá, o Acre e outros territórios que foram incorporados ao Brasil]. Ele foi o primeiro a apontar claramente a necessidade de se constituir uma zona de paz. Ele falava do ABC, Argentina, Brasil e Chile. Mas como uma idéia avançada, que pretendia abarcar o Paraguai e a Bolívia. Ele imaginava todo o continente, inclusive os Estados Unidos, integrado. Quer dizer, houve na nossa história, no início do século XX, pessoas que se adiantaram aos tempos. Depois ocorreram muitas convulsões em nossos países. E a grande calamidade das ditaduras militares. Praticamente todos os nossos países sofreram com as ditaduras. O que acontecia com os militares? Os militares, por sua formação, imaginam guerras, fazem jogos de guerra. Então, o que percebemos agora, inclusive quando falamos de regionalização, quando falamos do Mercosul, devemos ter clara consciência de que o Mercosul é filho da democracia que se recupera depois dos anos 1980.  

Reinaldo Azevedo: Mas, presidente, não obstante isso, o Mercosul, por enquanto, é uma falácia, ele não existe. A prova de que ele não existe são as medidas que o Brasil acertou com a Argentina, as barreiras que estão impostas, as salva-guardas, como têm sido chamadas. E aí, a gente tem uma realidade, uma guerra muito atual. Não entram militares, entram civis. Dois países hoje são democracias. O Brasil teve uma relação comercial com a Argentina deficitária durante dez anos, a balança comercial nos foi desfavorável e favorável à Argentina. Bastaram dois anos de balança comercial favorável ao Brasil para que os argentinos exigissem as salva-guardas. Eu digo a pergunta, então. É possível, existe o Mercosul? Existe uma integração regional de fato ou isso está na retórica que interessa tanto ao governo argentino quanto ao brasileiro. Mas que, na verdade, não existe? 

Eduardo Duhalde: Na verdade...Desculpe por eu rir. Não ri de você e nem de sua pergunta. Mas me lembrei do que se passou na Espanha nos anos 1980, quando com argumentos muito similares, não só na Espanha, mas também nos países da Escandinávia, se criticava a Comunidade Européia. Porque se confunde o processo de integração com o processo de comércio. E não é o mesmo. Costuma-se dizer que um exemplo esclarece as coisas. E eu pergunto: o Naftna [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio] é um processo de integração? Não é um processo de integração. Se fosse um processo de integração os Estados Unidos não estariam pensando em fazer uma muralha para se separar do México. Ele é um processo comercial de associação. O Mercosul é outra coisa, tem como espelho, tem como modelo a União Européia. Ou seja, o aspecto comercial é só um dos aspectos. Mas não é o mais importante.

Paulo Markun: Mas já estamos a anos luz da realidade da União Européia, onde as guerras foram muitos maiores, as desavenças.

Eduardo Duhalde: Claro. Quando Felipe González [presidente da Espanha entre 1982 e 1996] esteve na Argentina, ele disse que o que custou à Europa cinquenta anos, à América do Sul custaria trinta.

Reinaldo Azevedo: Mas como se faz uma integração? Insisto. Como se faz uma integração entre países impondo barreiras em vez de eliminá-las?

Eduardo Duhalde: Eu explico. Você insiste em falar do Mercosul como se fosse uma associação de livre comércio. Eu quero explicar que integração é outra coisa. A integração começa com uma integração física. O presidente [Fernando Henrique] Cardoso foi quem impulsionou, no ano 2000, a integração física. Neste preciso momento, hoje, para decidir quais eram as obras desta integração física, dividiu-se a América do Sul em oito zonas. Hoje, então, se fazem integrações físicas por nove bilhões de dólares. Já se iniciaram as obras. As obras foram iniciadas em Santiago, no Chile, em dezembro de 2004. Quais seriam as obras? As primeiras, de integração física; as segundas seriam de uma integração muito importante, a cultural e da comunicação. Não se pode haver integração se não houver integração cultural e, principalmente, de comunicação. Hoje, conversando com algumas pessoas no consulado argentino, nos perguntamos como podíamos não conhecer esta cidade maravilhosa [refere-se à capital paulista]. E não conhecemos. Se perguntarmos a alguém do Paraguai, da Colômbia ou da Argentina, sobre a maior capital da América do Sul,  não saberiam dizer que é um centro cultural ou industrial, não sabem porque não conhecem. A integração cultural e da comunicação. A integração financeira que está em andamento. Do que trata a integração financeira? Sobre a Corporação Andina de Fomento que, como bem sabem, teve muito sucesso. Neste momento, toda a América do Sul pretende se associar a essa corporação, que será a corporação financeira sul-americana. Outra coisa é o anel energético. Como vamos falar em integração se há países que não podem se desenvolver, porque não têm gás, eletricidade e nem petróleo? Tudo isso é um processo de integração. Se vocês querem falar sobre o processo de integração econômica, eu lhes diria que é difícil. Sabem quando os empresários estão de acordo? Sabem quando? Quando eles estão bem. Então, em toda decisão tomada nesse sentido haverá setores que estarão de acordo e outros que não estarão. Aqueles que estão de acordo ficarão de boca fechada, e os outros gritarão. Os que discordam ficam bravos. Os outros ficam calados. É um processo lento, é um processo de convergência macroeconômica que levará um tempo, um tempo que não é necessariamente o tempo das urgências, das necessidades de nossos empresários. O que quero lhes dizer é que considerem em quê estamos avançando, o que estamos preparando na América do Sul? É nem mais nem menos o maior espaço integrado do planeta. O maior de todos, 17 milhões e 300 mil quilômetros quadrados. Não há no mundo três bacias hídricas como as que existem em Orinoco, no Brasil e na Argentina. São as três maiores bacias hídricas de água doce no universo. Teremos gás e petróleo por cem anos. Dois mares imensos, uma cordilheira que possui minerais inexplorados. Temos uma grande potencialidade, mas temos que saber também que nesse processo de integração é preciso muita tranqüilidade e muita paciência. Não são processos rápidos, não são processos que podem ser medidos em meses, anos, principalmente quando ainda existem desequilíbrios macroeconômicos muito importantes e existem assimetrias muito fortes, como no Paraguai e Uruguai.

Cláudio Camargo: Mas presidente, existe por acaso o temor dos argentinos de que o Brasil, até pelo tamanho da sua economia, queira jogar um papel mais protagonista ou até hegemônico nessa solução do Mercosul? Por exemplo, essa aliança que se diz aí da Argentina com a Venezuela, seria uma maneira de contrapor o peso do Brasil no Mercosul?

Eduardo Duhalde: Não existe possibilidade nenhuma de se falar em integração se, no processo, o Brasil não ocupa o lugar central. Por uma razão elementar: o Brasil faz fronteira com dez países da comunidade sul-americana. Com exceção do Equador e do Chile, faz fronteira com todos. Tem uma geografia imensa e tamanha potencialidade produtiva que não há processo de integração sem o Brasil. O resto depende da simpatia que pode haver entre o presidente de um país com o presidente de outro, dos bons relacionamentos nos negócios. Mas o processo de integração é um processo no qual, naturalmente, o Brasil está na liderança por tudo o que representa. Falamos em assimetrias, mas essa assimetria não se pode modificar. O Brasil sempre será o maior de todos os países, aquele que tem maior quantidade de habitantes. Mas o que será criado é o terceiro país mais populoso, o terceiro espaço integrado no mundo, 400 milhões de habitantes. É muito importante, e os problemas são muitos. Por isso mesmo, os dirigentes têm de mostrar capacidade para superar esses problemas, que logicamente são superáveis. Todos os problemas que teve a União Européia foram resolvidos e eram muito mais graves. Idiomas diferentes, religiões distintas, guerras entre eles e, apesar disso, puseram-se de acordo e deram um exemplo ao mundo do que é um verdadeiro processo de integração. Desejo e gostaria que nos espelhássemos sempre na União Européia, como o exemplo de onde temos que chegar.

Fabiano Maisonnave: Presidente, esse processo de integração, ele é compatível  com uma área de livre comércio como a que o Washington propõe hoje?

Eduardo Duhalde: Nenhuma incompatibilidade. É um absurdo pensar que haja incompatibilidade. Por que é um absurdo? Porque são coisas diferentes. Nós podemos fazer um acordo com a Índia. Na verdade, já fizemos com 600 produtos da Índia, mas isso não quer dizer que estejamos integrados à Índia. Amanhã podemos fazer um acordo de livre-comércio com os países árabes e isso não quer dizer que estejamos integrados com os países árabes. Uma coisa é um processo de integração, que tem a ver no futuro, com uma moeda comum, um parlamento comum, uma Justiça comum. Outra coisa é o comércio. A Alca [Área de Livre Comércio das Américas] é comércio. Um comércio para se decidir se há união ou não, se convém ou não convém. Se convier com a União Européia, será com a União Européia. Se convier com o Nafta, será com o Nafta. Se convier com os países árabes será com eles. Mas não há nenhum tipo de incompatibilidade. Acontece que se coloca a ideologia na frente, no comércio não há ideologia. Se houvesse, Chávez não venderia tanto petróleo aos Estados Unidos.

[Vídeo comentarista]: Para além das críticas, os analistas encontraram um mérito, pelo menos, no governo de Eduardo Duhalde: a capacidade de apagar um incêndio social que conturbou o país e ameaçou a democracia argentina naquele momento. Fernando de la Rúa tinha renunciado em dezembro de 2001 em meio a um caos social, político e econômico. Os panelaços se multiplicavam pelas ruas e resultavam em conflitos graves. Era a revolta contra a hiperinflação, contra o "curralito", como foi chamado o bloqueio dos depósitos bancários. E contra os políticos em geral, apontados como responsáveis por tudo que deu errado no país desde o retorno da democracia, em 1983. Eleito indiretamente pelo Congresso para administrar o que restava do mandato de Fernando de la Rúa entre 2002 e 2003, Eduardo Duhalde deu início ao processo de retomada do controle político, econômico e social da Argentina. Convocou eleições  antecipadas que resultaram na eleição do atual presidente Néstor Kirchner e, desde então, Eduardo vem se dedicando ao Mercosul e ao processo de integração dos países da região.

Paulo Markun: Presidente, o senhor comandou, como a gente disse aí no início do programa, a Argentina numa época absolutamente caótica. De lá para cá a Argentina fez o contrário do que fez  o Brasil. E a gente, que vê à distância, tem às vezes a impressão que se deu melhor que o Brasil. À medida que, saindo de uma situação catastrófica, teve um crescimento econômico significativo e modificações na sua economia muito rapidamente. O que provou isso, o senhor acha que não existe modelo? Cada caso é um caso? Ou, digamos, a Argentina não tinha outra saída?

Eduardo Duhalde: Bem, como você disse, meu país viveu no final de 2001 a situação mais dramática de toda a sua história. Cinco presidentes em dez dias. As pessoas nas ruas, o sistema bancário falido, os bancos não funcionavam, o dinheiro das pessoas nos bancos foi confiscado e a população pedia nas ruas que o governo se retirasse. E você me pergunta sobre a recuperação. É preciso ver até onde nós caímos. Quanto mais profundo se cai, mais fácil é se recuperar, até certo ponto. Na verdade, a Argentina era uma ilha de câmbio fixo, em uma região, em uma América de câmbio flutuante. Ficamos por dez anos com a economia ligada ao dólar. O dólar nos Estados Unidos teve inflação de 70% nesses 10 anos. Nós não tínhamos inflação. Foi se formando uma bolha. A Argentina era uma espécie de modelo, impulsionado pelos organismos internacionais, pelo Fundo Monetário Internacional. Era um modelo. Lembro-me de que quando o presidente Menem foi ao Fundo Monetário Internacional, em 1997 ou 1998, com o país já em recessão, entrou com [Bill] Clinton e foi aplaudido de pé pelos empresários e economistas internacionais. Era o modelo. Esse modelo fracassou absolutamente. Como se mantinha o câmbio de 1 a 1 do nosso peso com o dólar? O FMI emprestava dinheiro à Argentina. Depois, vendemos todas as empresas públicas e começou o processo de recessão. No primeiro semestre de 1998 houve um processo recessivo progressivo, que fazia com que a nossa economia fosse cada vez menos competitiva. E se continuava a manter a ficção com os empréstimos do Fundo Monetário Internacional. O calote argentino foi de mais de cem bilhões de dólares, o da Rússia foi de trinta bilhões. Então, vejam a dimensão para um país relativamente pequeno. Caímos tanto que, quando liberamos o tipo de câmbio e trocamos a conversibilidade, rapidamente nossas indústrias primárias se tornaram competitivas. A agricultura primeiro. Depois, todo o setor manufatureiro começou a funcionar e começamos a nos recuperar. Mas, ao contrário do Brasil, nós não temos uma cultura produtiva tão arraigada. A ditadura no Brasil, eu acho, foi uma ditadura nacionalista e que pensava na produção. A ditadura argentina, além de eliminar, assassinar e fazer desaparecer 30 mil argentinos, fez muitos empréstimos, mas não investiu.

José Paulo Kupfer:  Presidente, eu queria ser um pouquinho mais específico nessa questão, na pergunta que o próprio Markun fez. A Argentina renegociou a sua dívida e eu estou sendo gentil com o vizinho, eu não vou dizer que deu um magnífico calote bem aplicado na sua dívida externa. O Brasil, ao contrário, está antecipando o pagamento da sua dívida. Está pagando antes o que vence mais na frente. Quem vai rir por último?  Quem vai ganhar com essa história no final?

Eduardo Duhalde: A Argentina seguiu o Brasil. Uma semana depois que o Brasil antecipou o pagamento da sua dívida... Creio que no caso do Brasil foram US$ 14 bilhões, US$ 15 bilhões. Foram R$ 9 bilhões. Proporcionalmente, foi muito mais a Argentina do que o Brasil. Proporcionalmente. No meu país há uma discussão, como no Brasil, se era conveniente pagar de só uma vez ou se era melhor aguardar os vencimentos. É uma discussão que...

Paulo Markun: O senhor o que opina nessa discussão?

Eduardo Duhalde: Eu acredito que, simbolicamente, no meu país, foi importante fazer isso. Porque meu país tem uma característica, depois de sua grande crise. Há um importante escritor espanhol, diretor do Le Monde Diplomatique [refere-se ao jortnalista Ignácio Ramonet], escreveu que a crise Argentina afetou o neoliberalismo como a queda do Muro de Berlim ao comunismo. Acho que é um exagero. Mas, na verdade, simbolicamente, no nosso país teve muita importância, porque temos consciência de que fomos o aluno do modelo. Porque na realidade, hoje, na minha opinião, nos países fala-se de socialismo, fala-se de países mais ou menos progressistas. Mas, na verdade, todos estão na economia de mercado com pouquíssimas diferenças, diferenças mínimas. Mas nós não. Nós escolhemos o que é chamado de consenso de Washington e exageramos tudo. Fomos até o extremo, ao contrário do que fez o Chile. Pois também, dentro de uma economia de mercado, defendeu seus interesses nacionais permanentes. E fez algo muito importante que no Brasil também sempre foi feito com alguns governos, que é a simbiose entre o político e o privado, comercial e empresarial. 

Reinaldo Azevedo: Agora presidente, o presidente Carlos Menem é do seu partido, portanto, o modelo da conversibilidade foi uma escolha do Partido Justicialista. Eu sei que no Partido Justicialista existe - ou existia - desde a extrema esquerda à extrema direita, tudo abrigado no mesmo guarda-chuva do peronismo, não é? E isto faz com que o próprio justicialismo [ou peronismo] se dividisse em partidos. Mas, na verdade, foi uma escolha do Partido Justicialista, e me parece que uma escolha da própria sociedade argentina num dado momento também, posto que o de la Rúa, do Partido Radical, não conseguiu mudar o modelo de conversibilidade, levou até ao extremo de ser deposto nas ruas. De quem é a culpa? O senhor se sente também culpado por ter contestado o regime de conversibilidade?   

Eduardo Duhalde: Na verdade... Foi muito bem feita sua pergunta. Mas há uma parte anterior. O porquê da conversibilidade. 1993. Peço ajuda ao meu amigo. 1993 ou 1992?

[  ]: 1992.

Eduardo Duhalde: 1992. Por que a conversibilidade? O presidente Alfonsín [Raúl Alfonsín (1927) presidente da Argentina entre 1983 a 1989. Seu governo é conheciddo por ter reestabelcido democracia na Argentina] teve de se retirar. Um presidente do Partido Radical no meu país e parte do patrimônio moral dos argentinos. Teve que se retirar por causa de uma enorme crise, e um processo inflacionário que chegava aos 1000% mensais. Temos que entender essa época. O porquê da conversibilidade. A conversibilidade foi um elemento heterodoxo nos programas de ajustes do Fundo Monetário Internacional. A Argentina se deu muito bem nos primeiros anos. Ou seja, a conversibilidade foi muito importante para que a Argentina pudesse superar esse momento de hiperinflação. Mas depois, quando não havia mais inflação, apareceu outra doença, começava a recessão. E no meu país foram quatro anos de recessão. Do primeiro semestre de 1998, até o ano em que assumi a presidência. Quatro anos de recessão. Se o senhor me perguntasse se o meu partido foi o responsável, lhe diria que foi o principal responsável, porque foi o que mais tempo ficou no governo. Então, a responsabilidade deve ser repartida entre os militares e aqueles que governaram o país.

Carolina Vila-Nova: Presidente, alguns analistas comentam que a situação econômica da Argentina hoje ainda é um processo de caminhar sobre um desfiladeiro estreito. Por quê? Porque há o problema da falta de investimentos, há o risco de descontrole inflacionário, a pressão pelo reajuste de tarifas. Como o senhor vê esse panorama hoje no país? 

Eduardo Duhalde: A Argentina vive um processo de crise grave, do qual está saindo penosamente, com muito esforço. Ou seja, há uma consciência clara na classe política e no governo de que a crise ainda não foi superada. Estamos saindo muito lentamente, e todos esses problemas que você expressa são problemas reais que teremos de superar. Já superamos o mais dramático desta crise. No ano passado crescemos 9%. É um grande crescimento. Mas temos dificuldades a superar. E você acabou de expressá-las muito bem. São os problemas que temos no caminho, e eu estou absolutamente convencido de que, se tivermos paciência, se não nos apressarmos, esses problemas vão ser resolvidos. Quem sabe não cresçamos 9% no ano que vem, mas vamos continuar crescendo em um nível importante. O problema mais grave do meu país, que você não o expressou, está na enorme quantidade de pessoas que foram excluídas das relações econômicas, sociais e culturais, de trabalho, é um grave problema que temos, que também existe no Brasil e em toda a América Latina.

Marcelo Cavallari: Presidente, eu queria falar um pouco de política. O senhor falou nesse histórico da crise Argentina que o seu partido, até por ter ocupado o poder por mais tempo, é o maior responsável. No entanto, também não há beneficiário da crise, desde a queda do Del La Rúa praticamente só há o peronismo no cenário político argentino, facções do peronismo brigando. Mas enfim, parece que acabou o radicalismo, acabaram os demais. Como o senhor vê essa...? 

Eduardo Duhalde: Na verdade, você sabe que, quando o Dr. Alfonsín abandonou o poder, faltavam ainda dois anos do governo da aliança que vencerá as eleições. Mas ninguém queria assumir o poder. Nenhum líder dos partidos que haviam ganhado queria assumir o poder. Nem os militares queriam assumir o poder. E não porque não tivessem força. No governo seguinte, no governo anterior ao de Alfonsín e ao de Menem, houve muitos movimentos militares, mas a situação era tão dramática que, por exemplo, o  principal assessor do presidente Bush dizia que não gostaria de estar no lugar de quem assumisse o cargo. Ou Fidel Castro dizendo que somente um louco iria assumir a situação na Argentina. Então, o senhor me pergunta porque o justicialismo continua tendo tanta força, tanta que se dividiu em três candidatos e praticamente ficou em primeiro, segundo e terceiro. Encontramos a resposta se analisarmos a história. O justicialismo foi o partido político que, em meados do século passado, fez uma Argentina absolutamente igualitária. Metade para o capital e metade para os trabalhadores. Isso era a base do que as pessoas queriam. E isso avançou muito até 1974. Aproximadamente 40% da renda nacional ia para os trabalhadores, e nunca mais isso aconteceu. O problema que o justicialismo enfrenta hoje, e estou convencido de que o governo argentino pretende enfrentá-lo, é como começar a criar mais riqueza para dividi-la melhor.

Reinaldo Azevedo: Presidente, por favor. Durante um tempo na Argentina, nós conversamos aqui, havia a crítica à conversibilidade, mas era impossível de se torná-la pública, porque não havia quem quisesse ouvir. Portanto, estava se cometendo um erro, mas ninguém queria ouvir. Que erro está sendo cometido hoje neste exato momento por Kirchner que os argentinos e eventualmente o resto do mundo não estão percebendo?

Cláudio Camargo: Eu queria pegar dessa pergunta o seguinte: o presidente Kirchner foi, era seu aliado, acredito que ele começou apadrinhado político. E, atualmente, está  em outra posição, vocês têm divergências políticas etc.. Como o senhor analisa o governo Kirchner e que divergências o senhor tem com ele?

Eduardo Duhalde: Primeiro, quero dizer que no dia em que assumi a Presidência, como disse no primeiro parágrafo do meu discurso, eu estava convencido de que para erguer o país era fundamental que o presidente que assumisse o fizesse pela última vez. Ou seja, que ele não competisse em outros turnos eleitorais. A situação era tão difícil que tinha que se dedicar com exclusividade a tirar o país da crise. Após um ano e meio, o país já se erguera, crescemos no mês de março de 2002 e se produziu a mudança. Foi a eleição com maior porcentagem de pessoas votando na Argentina. E nasceu um presidente com muita força, nasceu um presidente com força. Eu estou convencido de que, se o governo continua trabalhando com força, a Argentina em poucos anos...Não será este presidente. Precisamos de três ou quatro mandatos presidenciais no mesmo caminho. A Argentina terá um processo similar ao do Chile. Mas temos de esperar. Não vou fazer nenhuma crítica a um presidente do meu país fora do meu país. Se o fizer, o farei na Argentina.

[Vídeo]

[Comentarista]: Eduardo Duhalde veio a São Paulo participar do ciclo de conferências de ex-presidentes da América Latina, no Memorial da América Latina. A série, aberta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 7 de fevereiro, foi organizada para discutir a evolução do processo democrático no continente latino-americano. A participação de ex-governantes, como Duhalde e outros, visa obter uma visão crítica mais abrangente sobre a realidade latino-americana. São pessoas que vivenciaram o poder, ainda estão presentes na cena política e podem contribuir com o debate em torno do momento político do continente, do Mercosul e dos conflitos e interesses econômicos na região.

Paulo Markun: Presidente, o senhor tem uma visão muito otimista da integração latino-americana. Não sei se é o fato de o senhor ter ficado no comando desse Conselho do Mercosul, ou se é o fato de o senhor ter presidido a Argentina numa situação tão dramática e de alguma forma assistir. Mas o senhor crê realmente que, digamos, em dez anos a gente viva aqui no continente essa possibilidade de integração, que, aliás, foi um dos temas, está sendo um dos temas do seminário promovido pelo Memorial da América Latina? 

Eduardo Duhalde: Olhe, eu não sou otimista. Sou realista. O homem, desde que se levantou da terra e ficou em pé, foi de integrações menores a integrações maiores. O homem isolado, o clã, a tribo, a família, a cidade, o Estado. Não existia a nação. Construía-se uma muralha e nascia uma cidade-Estado. A etapa das nacionalidades começou na Idade Contemporânea. No século XX houve uma explosão de nacionalidades. Existiam quarenta países e hoje temos quase duzentos, ou algo assim, nas Nações Unidas. Mas, na década passada, apareceu um fenômeno, que é o fenômeno da integração. O homem dá um passo a mais. Acaba-se a etapa das nacionalidades, essa etapa termina. E começa a etapa em que o homem continua a se unir, cada vez a integração fica maior. E como é essa integração? Por regiões. Com quem está ao lado. Estados Unidos com Canadá e México. Porque estão ao lado, são vizinhos. E vão se integrando. Há cinquenta anos havia quarenta países na América. Hoje é o Nafta, os centro-americanos que estão unidos, o Mercosul e a Comunidade Andina. Somos quatro. De uma realidade de 36 divididos, estamos dispondo todo um continente em quatro regiões, mas que depois também vão se juntar. E isto, as pessoas comuns não sabem. Em Aladi [Uruguai], protocolamos os acordos de todos os países do Mercosul com os da Comunidade Andina. Para quê? Para que 90% de nossos produtos  tenham livre circulação.

Reinaldo Azevedo: Mas, presidente, a gente não consegue vender geladeiras para os argentinos e fogão sem uma sobretaxa.  

Eduardo Duhalde: Pode ser que exista um caso particular. Por isso eu lhe digo, nesses processos de integração, alguém sempre é beneficiado e outro sempre é prejudicado. Uma atividade lhe convém e outra não. Eu conheço...tenho muitos amigos, fiquei no Brasil várias semanas nos últimos tempos, e conheço empresários que estão contentes. Estão contentes por conseguirem algum tipo de salvaguarda. Porque convém a eles. Ou seja, eles estão contentes. Cada um está contente.

Cláudio Camargo: O senhor falou de assimetrias. Na sua opinião são mais graves as assimetrias de Brasil-Argentina, de um lado, e Uruguai-Paraguai de outro, ou entre Brasil e Argentina dentro do Mercosul?

Eduardo Duhalde: As mais graves são as dos países pequenos. As mais graves, as que temos de cuidar, são as dos menos desenvolvidos.  Temos de ajudar, principalmente o Paraguai. Paraguai e Uruguai. As nossas... as economias argentina e brasileira são, naturalmente... é natural que existam desequilíbrios porque o Brasil é enorme. Por isso o desequilíbrio tem a ver com o tamanho.

Reinaldo Azevedo: Presidente, porque a gente tem a impressão que o Kirchner... tem o senhor hoje... eu não quero que o senhor faça crítica a um presidente do seu país, mas porque na imprensa, lendo a imprensa argentina, a imprensa brasileira, a gente tem impressão que o senhor é o principal adversário do Kirchner? É errada a nossa impressão?  

Eduardo Duhalde:
Olhe, minha última atuação como orador político foi no dia em que lancei a candidatura do Dr. Kirchner. Depois prometi aos argentinos que não participaria mais da política. Eu tinha todos os cargos do meu partido. Era o presidente do Congresso, presidente do partido da minha província, da qual fui duas vezes governador. Tinha todo poder e renunciei aos cargos, porque esse foi o meu compromisso. O mesmo que fez Aznar na Espanha [Aznar foi presidente da Espanha entre 1996 e 2001 pelo Partido Popular, considerado conservador] eu fiz na Argentina, só que em nossos países não se acredita nos políticos como na Espanha. E eu ficava incomodado com isso, porque estava absolutamente decidido que essa seria minha última atividade em cargos executivos. Fui duas vezes governador, como já disse. Fui prefeito duas vezes do meu município. Fui vice-presidente do Dr. Menem, presidi o Senado, a Câmara dos Deputados e fui presidente da República. Depois estive no Mercosul. Que mais posso querer?

Marcelo Cavallari: Presidente, o presidente Kirchner é apontado, no Brasil, junto com o Lula  e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, como uma, um novo pólo de esquerda, como uma espécie de integração da esquerda na América do Sul. Eu queria saber duas coisas: primeiro, o senhor concorda com isso, o Kirchner é um líder de esquerda? Segundo, essa integração vem ao caso? A América do Sul precisa resistir à globalização?

Roberto Lameirinha: Pessoalmente, o senhor se dava melhor com o presidente Lula do que se dá hoje com o Presidente Kirchner?

Eduardo Duhalde: Eu quero lhes contar, mas primeiro vou responder à pergunta. A idéia da esquerda surgiu como uma reação ao neoliberalismo. Então, há uma reação que é mais retórica do que prática. A diferença que há na Espanha hoje, por exemplo, para sair de nosso continente, entre o primeiro-ministro Zapatero e o primeiro-ministro Aznar pode ser sua posição internacional a respeito de Bush. Mas na política econômica concreta, a diferença não existe. E aqui na América, na minha opinião, existe uma reação contra os excessos do neoliberalismo. Na verdade apareceram no meu país como uma corrente neocolonizadora, ou seja, já não são os países que ocupam os territórios, mas são os organismos internacionais com as grandes empresas que ocupam os mercados, que propõem a privatização de tudo, que dizem que são incapazes de governar. No meu país se chegou ao extremo de querer formar uma comissão de notáveis para dirigir a economia em 2001. O que eu percebo é uma reação lógica ante os excessos do neoliberalismo, do que uma esquerda que não se define. Porque, quando houve a queda do muro de Berlim, a grande ilusão que representou para a maioria do mundo foi a de que o socialismo caiu, desapareceu. E o que nasceu não consegue satisfazer...toda essa nova economia de mercado...não serve aos setores mais populares da população. O mercado é naturalmente... Sempre disse que o mercado é para quem tem possibilidades. E o estado tem que se ocupar dos outros. Mas, o mercado não se ocupa dos problemas das pessoas, principalmente dos problemas vinculados aos direitos humanos básicos vida, saúde, alimentação, vestimenta, educação e moradia. Então, tem que se fazer um grande esforço. E esse esforço, do ponto de vista dialético, retórico, é entendido pelos presidentes sul-americanos. Eu acho que o caminho e o modelo é o Chile. Passo a passo, devagar, mas sempre no caminho da melhora.

Carolina Vila-Nova: O senhor acredita que o modelo tradicional de esquerda é inviável hoje?

Eduardo Duhalde: A meu ver não existem modelos que exerçam nesse momento, na América do Sul, a verdadeira esquerda. O presidente do Uruguai é um homem do socialismo, mas suas políticas concretas seguem a lógica da economia de mercado que domina todo o cenário. E não se pode fugir disso. E existem tentativas dialéticas fortes, tentativas dialéticas ou retóricas como as do presidente da Venezuela. Uma coisa é o que pensa, o que diz que se deve fazer e outra coisa é o que realmente pode se fazer nesse momento. Eu acho que o único socialismo que vai sobrar é o da Ilha de Fidel Castro. Mas por enquanto. Até a China, que é o maior país comunista do mundo, entrou na política de mercado e está querendo entrar na OMC. Há uma realidade frente a qual não podemos fechar os olhos e que se manifesta no mundo.

Roberto Lameirinhas: Presidente, este ano que completa sessenta anos da primeira eleição do presidente Perón. Daquele peronismo original de Juan Domingos Perón. O que sobrou hoje do Partido Justicialista?

Eduardo Duhalde: Muito pouco. Muito pouco. São épocas diferentes. O peronismo foi um movimento muito parecido com o de Getúlio Vargas no Brasil.

[...]: E com o fascismo...

Eduardo Duhalde: É... Nessa época, contra o justicialismo nascente, se manifestou o embaixador dos Estados Unidos, [Spruille] Braden, o Partido Comunista também. E chamaram o justicialismo de fascista. Na verdade, o primeiro país no mundo a reconhecer o Estado de Israel foi a Argentina, com o presidente Perón. São épocas muito difíceis de trazer até os dias de hoje. Eu conheço a polêmica no Brasil sobre Vargas e o varguismo, certo? Mas é muito difícil. O mundo mudou demais. Mas para nós, Perón foi um visionário. Foi quem quis reeditar o ABC [Pacto do ABC, Argentina Brasil e Chile. Acordo de não agressão assinado entre os três países em 1915 em resposta à influência estadunidense no período] precisamente com Getulio Vargas e com Ibanez del Campo [presidente do Chile na época] nos anos 1950. Sete anos antes da Comunidade Econômica Européia começar a funcionar. Foi um homem que falava para os tempos vindouros. Foi quem nos alertou que em 2000, se os latino-americanos não estivessem unidos, estariam dominados, que foi o que aconteceu.

[Todos falam ao mesmo tempo]

José Paulo Kupfer: O senhor tem feito analogias com Mercosul, União Européia, e tem falado que é preciso ir com calma no Mercosul. Eu queria saber se o senhor teria uma bola de cristal para nos dar uma idéia de quando se pode esperar, se é em décadas, a integração se completar na região, com uma moeda única? Se é possível uma moeda única, antes das moedas locais serem conversíveis, como eram as da União Européia, antes da União.

Eduardo Duhalde: Como está o cronograma hoje? No final de 2006, começa a funcionar o parlamento do Mercosul. Acho que ficará no Uruguai. O Tribunal está em sua etapa embrionária, mas está funcionando em Assunção, no Paraguai. O tema da moeda única...aliás, houve uma tentativa, como aconteceu na Comunidade Econômica Européia, em que houve uma moeda verde, assim era chamada, para transações, principalmente agropecuárias e de turismo. Aqui se pensava em alguma coisa similar. Ou seja, começar com uma edição limitada de uma moeda que servisse precisamente para troca, para um intercâmbio de produtos entre nossos países. Se me perguntarem quanto tempo irá levar para que a moeda única seja criada, lhes direi que é muito difícil, já que depende de muitos imponderáveis - coisas que não podemos imaginar hoje. Por exemplo: se, no futuro, o Brasil assumir um presidente que seja totalmente contrário ao Mercosul, acaba o Mercosul por muito tempo. Acontece que há, na classe política em geral, uma convicção de que esse processo de integração, não somente aqui, no mundo todo, é um processo que não pode parar e que se deve estimular. Mas depende desses imponderáveis. Se nos países menores sucedesse o mesmo, não teríamos tantos problemas. Mas, se isso acontece nos países que são os motores da integração, é muito difícil avançar. Se a França e a Alemanha tivessem se dividido hoje não haveria Comunidade Econômica Européia. Então, é muito difícil. Mas creio que, se há uma convergência macroeconômica, que é um requisito indispensável para se criar uma moeda única, será uma questão de pelo menos uma década.

Cláudio Camargo: No Brasil, como na Argentina, a questão da impunidade é uma coisa que atravessa décadas. É um problema muito sério. Tanto em relação aos crimes políticos, como em relação aos crimes econômicos. No caso da Argentina, nós temos vários casos de corrupção na época do governo Menem, temos o caso da Amia [Associação Mutual Israelita Argentina], que jamais se soube quem praticou aqueles atentados terríveis [atentado Amia]. Mas a Argentina tem um precedente interessante, julgou os militares, alguns estão presos, foram condenados. Eu queria saber do senhor como o senhor encara essa questão da impunidade em países como a Argentina e o Brasil. O que é preciso ser feito para que, o que foi realizado em relação aos crimes militares, seja realizado as denúncia de corrupção e outras coisas que ocorreram na sociedade?

Eduardo Duhalde: Você sabe que na década de 1980 ocorreu um fenômeno similar na Europa. Tanto na Itália, como na Alemanha, suicídios no Japão. Sempre estamos uma década ou duas atrasados em relação ao que acontece na Europa. Eu acho que devemos distinguir muito claramente entre a impunidade pelos crimes cometidos por governos ditatoriais, que foi muitíssimo mais grave no nosso país do que no resto dos países sul-americanos, e a corrupção de que tanto se fala. Mas cada qual, a meu ver, os Estados não se ocupam. Coube a mim assumir a vice-presidência da Argentina em 1989, e a primeira decisão que tomei foi criar uma comissão especial que trabalhasse sobre a recuperação ética da sociedade e do Estado. Porque também é uma tarefa do Estado que nunca foi abordada. O tema da corrupção é abordado por políticos em campanha, principalmente para tentar denegrir outros políticos. Mas não existe uma atividade inteligente por parte do Estado, que se ocupe em gerar as normas que são indispensáveis para que nossos países possam resolver esse problema. Existe e vai existir sempre, mas tem de diminuir ao mínimo, o mínimo possível. Não posso comparar, não é correto falar de outro país que não seja o meu, certo? No meu país, creio que se continuarmos a progredir, essas coisas também vão melhorar. Já fui professor universitário, e explicava o que acontece com os países em crises graves. E dava como exemplo os Estados Unidos na crise de 1930, a famosa crise de 1930. Era tudo corrupção. Vemos isso nos filmes da época. Nos filmes da época dos Estados Unidos sobre a crise dos anos 1930. Enquanto o filme não terminasse, não se sabia se o chefe da quadrilha era um delegado, um juiz ou um senador. Claro, porque uma grande crise econômica gera esses fenômenos de corrupção. Então, à medida que esses países vão progredindo, recuperando-se economicamente, dando trabalho à sua população, também esses temas vão se resolvendo. Sempre que o  Estado cuida para que haja normas rígidas e que sejam aplicadas caso não se atue de forma correta em todos os lugares.

[Vídeo]

[Comentarista]: Dedicado às questões do Mercosul e à integração regional, Eduardo Duhalde deixou o dia a dia da política argentina, mas o mesmo não ocorreu com a sua mulher, Hilda Duhalde, que vem fazendo carreira no Congresso argentino. Chiche, como é chamada, fez crescer seu espaço político como primeira dama já a partir do dia da posse do marido. Católica fervorosa, Hilda Duhalde montou uma super estrutura de assistência social no momento em que o governo precisava controlar a crescente pobreza, provocada pela crise argentina. Ela tinha experiência no atendimento a populações pobres, desde que Eduardo Duhalde governou a província de Buenos Aires. Um trabalho que teve tanta evidência que Chiche chegou a ser comparada a Evita, e ao mesmo tempo criticada por atrair eleitores com programas sociais, nos moldes de Eva Perón, o que ela sempre negou.

Paulo Markun: O senhor disse que não vai falar mal do Presidente Kirchner no exterior, mas imagino que o senhor possa falar bem da sua esposa no exterior. [Risos] O senhor deixou a política, mas a esposa do senhor é senadora e tem uma atuação política importante lá. Qual é o cenário que o senhor vislumbra para a ação de Hilda na política argentina?

Eduardo Duhalde:  Na verdade, ela foi deputada federal  até pouco tempo atrás. Sua vocação é a vocação social, pelos temas sociais. Ela organizou, na província de Buenos Aires, durante oito anos e no ano e meio em que eu assumi, um macroprograma social para atender aos setores mais castigados pela crise. Em relação à sua vocação, é melhor que eu não fale porque, senão não poderei voltar para casa. Ela diz que eu não tenho que me intrometer nas suas decisões políticas. Ela vai me acompanhar no Memorial, vai estar comigo amanhã, portanto, podem perguntar a ela.

Carolina Vila-Nova: Presidente, por favor. Eu gostaria de voltar à sua relação com o atual presidente Néstor Kirchner. Como nosso colega lembrou aqui, ele entrou na cena como um apadrinhado seu, e hoje provavelmente o "kirchnerismo" é a maior força dentro do Partido Justicialista. E uma expressão disso foram as eleições relativas a outubro passado. O que aconteceu nesse processo? Foi a criatura que fugiu o controle do criador? Como houve essa ascensão?   

Eduardo Duhalde: Não, isso é típico do justicialismo. No justicialismo o presidente é quem conduz. Eu abandonei a condução, renunciei a ela. E, dos que restam, naturalmente, o presidente é quem conduz. Um hipotético fracasso de Kirchner seria o meu próprio fracasso. Porque fui eu quem entendeu que ele era uma figura nova, e que era o que a população reclamava. Os outros candidatos já tinham sido presidentes, tanto o Dr. Menem como o Dr. Adolfo Rodríguez Sá já tinham sido presidentes. Eu apoiei o mais novo, porque a população pedia isso. Portanto, não há nenhum tipo de problema, eu não atuo mais em política.

Marcelo Cavallari:  E não pretende voltar a atuar?

Eduardo Duhalde:  Voltar? Não! Há algo em que eu me baseio muito, é de Ortega y Gasset [(1881-1956) filósofo espanhol]. Ele dizia que existia a geração dos sobreviventes – que eram aqueles que tinham mais de 60 anos – e que muito dificilmente essa geração poderia mudar alguma coisa. As gerações mais jovens, que têm entre 40 e 50, são as que vêm com todo o impulso para mudar e são as que devemos apoiar. Creio que um homem da minha idade pode ajudar, assessorar, colaborar. Mas eu acho que o impulso necessário para governar nesses tempos, que são tempos muitos difíceis, vem de pessoas mais jovens.

Roberto Lameirinhas: O senhor não se sente um dos lideres da facção do peronismo  de hoje?

Eduardo Duhalde: Como?

Roberto Lameirinhas: O senhor não se sente um dos lideres de uma facção do peronismo?

Eduardo Duhalde: Eu abandonei. Eu era um líder e disse aos meus amigos que não queria falar mais em política, porque era a única forma dos demais crescerem. Se um velho líder político continua dando ordens ou conduzindo, ninguém cresce. Para que cresçam outros, alguém tem de abandonar o espaço.

Jose Paulo Kupfer: Presidente, eu vou aproveitar este último bloco para tirar com o senhor uma dúvida que me intriga. Toda vez que eu vou à Argentina... e hoje em dia está até mais fácil para nós brasileiros visitarmos a Argentina, está barato. Mas isso... na minha vida inteira me chamou, nas turbulências, nas ditaduras, em outros momentos, me chamou sempre a atenção o fato dos gramados das praças de Buenos Aires estarem sempre impecáveis, ao contrário do que eu vejo no meu país e mesmo nas suas grandes cidades. [Risos] Qual é a fórmula? O que explica  isso? É a taxa de escolaridade média de nove anos contra quatro anos nossa?

Eduardo Duhalde: A Argentina não é Bueno Aires. A Argentina não é Buenos Aires. Bueno Aires teve uma renda per capita igual à da Alemanha. E as outras províncias tiveram renda per capita dez vezes menor.

José Paulo Kupfer: Mas a renda de Buenos Aires são dois terços de toda a população?

Eduardo Duhalde:  Não, a capital federal Bueno Aires tem somente 3 milhões de habitantes. O que rodeia a Capital Federal, que é a Província de Buenos Aires, da qual eu fui governador, é muito grande, sim, mas nela a renda per capita é cinco vezes menor. Onde as pessoas vão...É a Capital Federal.

José Paulo Kupfer: As praças estão tão sujas e a grama está tão alta quanto aqui?

Eduardo Duhalde: Foi a capital da Província de Buenos Aires por muito tempo. Depois se transladou a capital da Província. Mas, na verdade, temos lugares muito bonitos. Temos lugares também com boa grama, bem ajeitados...em províncias argentinas, eu estou orgulhoso da capital do meu país. Mas a visão que o turista tem não é a de toda a Argentina.

Reinaldo Azevedo: Presidente, o senhor falou, e eu concordo, que não há grande distinção do ponto de vista das escolhas econômicas entre governos que se dizem mais alinhados com a esquerda ou alinhados com a direita. Então, a própria [Michelle] Bachelet, no Chile, certamente vai seguir o modelo capitalista. Embora com uma inflexão mais social, de acordo com a tradição do seu partido. Não obstante, a gente tem o Hugo Chávez, na Venezuela, que fala uma linguagem de esquerda e tem algumas medidas que, se não são de esquerda, pelo menos apelam a uma outra coisa, que é o chamado populismo. Então, com Hugo Chávez, Evo Morales [presidente da Bolívia] agora, e mesmo aqui no Brasil... Se bem analisadas, algumas medidas do presidente Lula, ao lado da ortodoxia econômica, poderiam ser classificadas de populistas. O senhor acha que o populismo, então, e não o esquerdismo pode ser um risco ainda na América Latina?

Eduardo Duhalde: Olhe, em um país como a Venezuela, onde as diferenças sociais são tremendas - deve ser o país com mais diferenças entre os setores que possuem acesso ao bem-estar, à economia, ao consumo e aqueles que não o têm - e que também se sabe que...

Reinaldo Azevedo: Eu ainda acho que o Partido Comunista de Cuba e o resto de Cuba. Mas se o senhor acha que é a Venezuela, eu concordo com o senhor.

Eduardo Duhalde: Então, o problema que temos na Venezuela, que é um país tão rico, é incrível para os que vão governar ver que exista tanta pobreza. Então, é natural que surjam dirigentes que reajam frente a tudo o que aconteceu. Porque a verdade histórica é que a Venezuela sempre esteve dominada pelos Estados Unidos, por causa do petróleo. Esta é a verdade. E as classes dirigentes venezuelanas estiveram sempre ligadas, de tal forma que, ainda hoje, o presidente da Venezuela tem de vender o petróleo 18% mais barato aos Estados Unidos do que a outros países. Infelizmente, à Venezuela parecia que o petróleo iria fazer bem, e só fez mal até agora. Por isso não é raro que apareçam lideranças de conotações populistas. Como não vão aparecer lideranças com conotações populistas se a população pobre desses países atinge 65%? Ou como não vai acontecer o que aconteceu agora, na Bolívia? Que era uma espécie de África do Sul? Onde a maioria dos habitantes não tinha direito, até pouco tempo atrás, de transitar pelos mesmos lugares em que transitavam as pessoas de outros níveis sociais? Se esse desejo, essa vontade de mudar, utiliza as ferramentas adequadas, esse é o grande desafio. Eu, casualmente, participei da reunião em São Domingos, onde também estava o rei da Espanha, quando Chávez sofreu o golpe militar.

[...]: 2002?

Eduardo Duhalde: Sim. Eu era o presidente da Argentina e estava falando, quando nos comunicaram que Chávez havia sido destituído. E um senhor, que era o presidente da Confederação das Indústrias, aparecia como presidente democrático [Pedro Carmona Estanga, em breve período de 47 horas assumiu o governo do país em 2002. Enquanto isso, Chavez era preso. Logo em seguida, o ex-presidente foi libertado e retornou ao antigo cargo]. Mas quem o instalou ali? Eles, os empresários? Não, os Estados Unidos. Esta é a verdade. Sabemos todos, embora não se diga. Os Estados Unidos conseguiram um golpe de Estado na Venezuela, que depois, como todos sabemos, abortou. Como vocês pretendem que reaja esse presidente? Um país que tem interesses que são os do petróleo, não somente lhe deu um golpe de Estado, mas praticamente destruiu a empresa petroleira PDVSA [companhia estatal Petróleos da Venezuela], a empresa principal. E ele reagiu como reagiria qualquer outro presidente que se sentisse absolutamente atacado por um país estrangeiro. Portanto, entendo que o que deveria ser visto, e seria bom não se enganar, é que se deve utilizar os instrumentos que deverá possuir, porque a economia está muito líquida. E o dinheiro que entra, se for bem aplicado, para recuperar essa população, que infelizmente está em uma situação muito difícil.

Paulo Markun: Presidente, nosso tempo está acabando, uma última pergunta. O senhor viveu essa situação na Argentina, que eu imagino que para qualquer político deve ter sido muito difícil, que é enfrentar a população gritando na rua "Que se vaiam todos" [Vão todos embora!]. E nós vivemos no Brasil uma crise política recentemente que, se não fez que acontecesse isso, faz com que grande parte da população, principalmente a juventude, tenha um absoluto desinteresse pela política. O senhor não teme o prosseguimento desse processo, seja na Argentina, seja no Brasil, dos setores mais jovens se desinteressando da política, de tal modo que ela passa a ser feita por uma espécie de legião de pessoas desvinculadas da realidade?

Eduardo Duhalde: Sim, nas últimas pesquisas que foram feitas em todos os países latino-americanos, acontece o mesmo fenômeno, o desinteresse das novas gerações pela política, o descrédito dos parlamentos, da Justiça e dos executivos em geral, é um fenômeno que está acontecendo, infelizmente, em todos os nossos países. Por que acontece isto? Porque a maioria está insatisfeita. Porque não se resolvem os problemas. Qual é  a solução? Eu continuo acreditando que a única solução é a democracia. Mas infelizmente isso motiva – ou é caldo de cultura para isso – que voltem a surgir, em outros países, os salvadores, que voltam com velhas teorias que, em vez de solucionar, agravam os problemas. Eu, se estamos terminando, quero lhes dizer que o importante é viver dentro de uma democracia. E que esses jovens que hoje não se ocupam, talvez comecem a se ocupar quando virem que o país está melhorando. E a América do Sul em geral, embora muitas pessoas se queixem – e existirão [essas pessoas] por muito tempo – está melhorando. Está melhorando lentamente. Estamos crescendo economicamente. Claro que existem queixas, porque a distribuição não é a que corresponde, e essas [queixas] vão continuar. Mas hoje, todos os governos entendem esse problema.  Isto quer dizer que há dez anos não se falava tanto em como se devia repartir a renda... Hoje é um tema comum em todos os partidos políticos. E alguns partidos políticos, que se apresentam como progressistas talvez não o solucionem, e venham outros partidos políticos que apareçam como mais de centro e quem sabe esses partidos vão solucionar o problema. Não se sabe, é um final aberto, como dizemos na Argentina. O certo é que a democracia está se firmando. Eu não vejo possibilidades de, em nossos países, voltar a se repetir a triste história dos militares querendo governar com ditaduras. Isto é o importante. Enquanto isso, continuaremos avançando. E, embora nesse programa, como em todos os programas, existam pessoas que não acreditem na necessidade dos processos de integração, eu estou convencido de que se os libertadores do continente atuavam convencidos de que isso era uma necessidade, nós hoje acreditamos que é mais necessário que nunca. Se não nos fortalecemos, se não nos unirmos, se não conseguirmos ter uma voz comum, não vamos poder nos sentar nunca, nem na segunda fila da mesa em que se decidem os grandes temas do futuro. Hoje, nós praticamente somos os convidados de [...] nos organismos internacionais e temos muito a dizer. Porque nossa região é a principal produtora de alimentos do mundo. Isso é a nossa região, a principal produtora de alimentos do mundo! Se formos capazes de agregar valor a isso, se formos capazes de nos juntar, teremos a enorme possibilidade - que hoje nos é negada - de ter um lugar junto ao grupo das nações mais importantes do planeta.

Paulo Markun: Muito obrigado presidente, muito obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Nós estaremos aqui segunda-feira que vem com mais um Roda Viva. Uma ótima semana e até lá.

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