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Memória Roda Viva

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Gilberto Gil

18/11/1996

Nesta entrevista, o compositor Gilberto Gil fala do seu livro Todas as letras, explica o seu processo criativo e expõe suas idéias sobre o racismo e a polêmica sobre os direitos autorais

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Matinas Suzuki: Boa Noite! No centro, do Roda Viva desta noite está um compositor baiano com todas as suas letras: Gilberto Gil. Boa Noite, Gil!

Gilberto Gil: Boa noite, Matinas.

Matinas Suzuki: Gil, eu gostaria de pedir licença a você para lembrar aqui a morte do Jorge Escosteguy, enterrado hoje, em São Paulo. Escosteguy, como os nossos telespectadores se lembram muito bem, foi mediador do Roda Viva. E era ele que estava aqui, por coincidência, conduzindo esse programa, na última vez em que Gilberto Gil foi entrevistado no Roda Viva, em 18 de fevereiro de 1991.

[Trecho do programa
Roda Viva de 18 de fevereiro de 1991]:

Jorge Escosteguy: ...Cultura de São Paulo. O nosso entrevistado de hoje é cantor, compositor, vereador, militante do movimento ecológico e presidente do movimento Onda Azul. O convidado desta noite é Gilberto Gil.

[Seguem-se flashes de outros programas Roda Viva com Jorge Escosteguy como apresentador, enquanto fala, em off, a voz de Matinas Suzuki]: Scot, como a gente chamava o Jorge Escosteguy, foi diretor de jornalismo da TV Cultura. Mas foi aqui no Roda Viva que ele tornou mais marcante sua passagem por esta emissora. Durante mais de três anos, esteve à frente deste nosso programa. Há três semanas atrás, Scot estava aqui com outros jornalistas participando das comemorações dos dez anos do Roda Viva e entrevistando a escritora Lygia Fagundes Telles. Foi nossa última imagem gravada do amigo Jorge Escosteguy, o Scot. [O vídeo congela por alguns segundos na última imagem gravada de Jorge Escosteguy.]

[Volta o programa Roda Viva de 1996]

Matinas Suzuki: Bem, o Brasil perde um grande jornalista. Nós voltamos então agora, com o Roda Viva ao vivo, aqui da TV Cultura, fazendo a entrevista com Gilberto Gil, que está lançando o livro Gil todas as letras [mostrando para a câmera a capa do livro].

[Três pequenos trechos de apresentações e gravações de Gilberto Gil, com as músicas "Realce", "Aquele abraço" e novamente "Realce", todas de sua autoria]

Valéria Grillo: [em off, enquanto passam trechos de apresentações musicais de Gilberto Gil] Gilberto Gil em livro. Caberá nas páginas tanto movimento? Todas as letras, organizado por Carlos Rennó, traz mais de quatrocentos trabalhos. Só o ventilar das folhas espalha no ar a intenção do perfeito. [Gilberto Gil canta "Parabolicamará", de sua autoria.] Há versos repletos de uma unidade de misterioso entendimento. A fé e as variáveis flutuações da indignação, do pesar e do amor. [Gil canta "Tenho sede", de Dominguinhos e Anastácia.] O menino Gil de acordeon no peito cresceu e animou muitos forrós na Bahia. Mas a bossa de um outro Gilberto, João, deu novo compasso à vida do filho de dona Claudinha. O administrador de empresas foi vencido pelo violão. [Trecho do programa Festival MPB 7, da rede Record, de 1967, com Gilberto Gil e Os Mutantes cantando "Domingo no parque", de autoria de Gil.] A brincadeira de vestir ritmos, equilibrando eletricidade e contemplação, encontrou na Tropicália [Tropicalismo] e nos Doces Bárbaros [grupo formado nos anos 1970 por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia] peças para criar uma nova cena brasileira. [Gil canta, com Caetano Veloso, "Chuck Barry fields forever", de autoria de Gil.] O tempo vem brincando com a geografia desse sorriso. O exílio em Londres, três casamentos, sete filhos, a dor de perder Pedro Gil [filho de Gil, falecido em 1990 em um acidente de carro], e em todos os segundos que renascem nas "Refavelas", "Refazendas", na religiosidade. [Gil canta "Serafim", de sua autoria.] Para tentar ligar os pontos entre "Lua e estrela" e o cotidiano, o filho de Gandhi ousou uma incursão na vida pública. Foi vereador e secretário de Cultura de Salvador. A cor afro-magnética das frases funks e do pulso carnavalesco funcionam como ímã para a imaginação. Cacá Diegues assinou embaixo ao transpor para o cinema a música "Drão". [Gil canta "Drão", de sua autoria.] Gilberto Gil é um satélite que ascende sementes, mantras, átomos e paz. Podemos botar o livro pra tocar. [Gil canta "Esotérico", de sua autoria.]

Matinas Suzuki: Bem, para entrevistar o Gilberto Gil esta noite, nós convidamos o Tárik de Souza, que é crítico musical do Jornal do Brasil; o Carlinhos Rennó, que é organizador de Todas as letras, esse livro que está sendo lançado por Gilberto Gil; a Maria Amélia Rocha Lopes, editora do programa Vitrine, da Rede Cultura; o Celso Masson, sub-editor de artes e espetáculos da revista Veja; e o Carlos Calado, que é crítico da Folha de S. Paulo. Houve uma inversão; agora sim, está certo; [eis] a imagem do Carlos Calado [é que Carlos Calado havia sido mostrado enquanto Suzuki começava a apresentar Celso Masson]. O Roda Viva é transmitido em rede nacional, com 150 outras emissoras de 21 estados brasileiros. Você também pode participar deste programa enviando suas perguntas para o Gil, pelo telefone: 252-6525. 252-6525. Se você preferir o fax, use o número: 874-3454. 874-3454. Gil, como que é a história do livro? Dá para contar quatrocentas letras? Como é que foi, como é que foi achar essas letras? Deve ter sido um trabalhão danado!

Gilberto Gil: A idéia mesmo veio do Rennó, Carlos Rennó, o coordenador do livro, que está aqui presente. Ele, cerca de três anos atrás, me propôs... Ele me mostrou um livro do Ira Gershwin, dos irmãos Gershwin [George Gershwin (1898-1937), compositor, e Ira Gershwin (1896-1983), letrista, ambos estadunidenses, autores da ópera "Porgy and Bess"], com um trabalho parecido: uma coletânea de canções deles, comentadas pelo Ira, que foi parceiro do irmão. Era letrista do George. E ele, muito entusiasmado com esse livro, me mostrou esse livro e me mostrou também um livro do... Cole Porter [(1891-1964), compositor estadunidense], não é?

Carlos Rennó: É! Com as letras todas!

Gilberto Gil: Com as letras todas do Cole Porter... Enfim, e me disse assim: "Eu tinha vontade de fazer uma coisa assim, com alguns compositores brasileiros, você inclusive", e tal. Eu disse: "Vamos, quando você quiser!" Pouco depois, o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, também me propôs um projeto paralelo, similar, parecido, que seria fazendo um livro com todas as letras, nos moldes do que ele havia feito com Chico Buarque. E eu disse: "Bom, vou juntar os dois, vou mandar os dois conversarem para ver se eles compatibilizam a mesma idéia em um projeto só." Foi exatamente o que aconteceu. O Luiz e o Carlos se encontraram e surgiu a idéia de fazer então Todas as letras e comentar parte delas, o que acabou acontecendo. Oitenta delas, noventa delas são comentadas no livro. E aí, enfim, a saga de realizar o projeto, não é?

Matinas Suzuki: Agora você... É um dado, interessante: são mais de quatrocentas letras e você diz que tem oitenta comentadas. Mas você lembra das circunstâncias de composição da maior... todas, não, mas da maior parte? Você anota, como é que você faz para se lembrar?

Gilberto Gil: Não, a composição em si, quer dizer... a não ser em raríssimas ocasiões em que a coisa pode ser demasiadamente prosaica ou simplória, em geral a composição de uma canção tem uma gestação, quando não tão longa ou tão dramática ou tão intensa, pelo menos um parto [risos] bem nítido, bem claro. Quer dizer, você sabe; a música chega por caminhos dela, as canções chegam por caminhos próprios e o criador é aquela disponibilidade total, aquela reverência absoluta diante da deusa da música, a musa única, a deusa Música e todos esses nomes pelos quais a gente chama essa coisa que é a inspiração, essa coisa que é o escrever a canção, gostar disso, fazer isso. Então, vem...

Matinas Suzuki: Agora me diga uma coisa. O que chama a atenção no livro - evidentemente, além das letras, essa coisa toda -, no capítulo "Curiosidade", você anota [que] você faz [as letras] em uma folha de caderno... Você escreve a letra com uma letra quase que de colegial ainda, uma letra muito clara, muito bonita. As letras, à medida que você vai compondo, você sempre compõe ela no papel? Como é que você...

Gilberto Gil: É assim até hoje! Eu não me recordo, pode até ter havido, deve ter havido um caso ou dois casos, três, alguns, em que eu, por exemplo, tenha feito uma canção à máquina de escrever ou por outro meio. Mas eu não me lembro. Basicamente, todas as canções minhas foram manuscritas. Eu sempre peguei uma folha de papel, ou de um caderno, ou de uma capa de revista, ou qualquer coisa...

Matinas Suzuki: E você está...

Gilberto Gil: Até de um guardanapinho de avião. O "Aquele abraço", por exemplo, foi assim, não é? Um guardanapo de avião....

Maria Amélia Rocha Lopes: Mas agora está apaixonado por internet, por computador, não está? Ainda não nasceu nada num computador?

Gilberto Gil: Datilografia, quer dizer, aquela coisa de...

Tárik de Souza: "Pela internet", já nasceu um "Pela internet" [canção de autoria de Gil]...

Maria Amélia Rocha Lopes: [rindo] "Pela internet"...

Gilberto Gil: "Pela internet" foi mista: ela começou no papel manuscrito e acabou no écran do visor...

Tárik de Souza: E vai ser lançada pela internet, essa música?

Gilberto Gil: É o que dizem, não é? O pessoal parece que está se organizando para isso. ["Pela internet" foi, de fato, lançada pela rede em 14 de dezembro de 1996; na mesma data, a apresentação de Gil na sede da Embratel, no Rio de Janeiro, foi o primeiro show ao vivo de um artista brasileiro transmitido em tempo real pela internet.]

Tárik de Souza: Seria uma resposta ao "Pelo telefone" do Donga...

Gilberto Gil: É... Uma resposta, mais uma comunicação telefônica, uma telecomunicação com ele [rindo], com aquele momento lá, não é? Uma transposição no tempo daquela mesma qualidade, daquele mesmo propósito, daquele mesmo encantamento. Quer dizer, eu imagino que o encantamento que nós temos hoje com a internet é da mesma natureza. E, provavelmente, da mesma medida, da mesma intensidade que o deles naquele momento...

Tárik de Souza: Exatamente 80 anos depois, né?

Gilberto Gil: São 80 anos depois? Eu nem tinha essa idéia.

Tárik de Souza: Comemoração de oitenta anos da música "Pelo telefone"!

Gilberto Gil: Pois é... Então, beleza...! Me dá orgulho...!

Carlos Rennó: Principalmente, agora em novembro, quando a música foi registrada na Biblioteca Nacional do Rio.

Matinas Suzuki: [inaudível, pois havia pessoas falando simultaneamente]

Carlos Rennó: [rindo] É a história do samba, Matinas!

Tárik de Souza: Um dos casos mais emblemáticos aqui do livro foi uma música que causou uma grande polêmica e [sobre a qual] você praticamente faz uma tese aqui [no livro], que é a música "Realce". Eu me lembro que o Caetano [Caetano Veloso, compositor baiano, parceiro e grande amigo de Gil] andou fazendo umas críticas à música, dizendo que havia uma certa facilidade pop na música e você aqui faz uma defesa apaixonada...

Gilberto Gil: Talvez, naquele... Eu não sei se as críticas de Caetano naquele momento se dirigiam especificamente à canção, ou se não era uma crítica geral ao...

Carlos Calado: Ao disco todo.

Gilberto Gil: Ao disco todo e à atitude geral minha diante da...

Carlos Calado: [Crítica] a uma atitude estética...

Gilberto Gil: ...[diante] do fazer, do fazer musical...

Carlos Calado: Renegar um pouco o experimentalismo, de certo modo...

Gilberto Gil: Exatamente. Tenho a impressão que era mais isso do que especificamente a canção. Mas eu via ataques à canção em outros lugares, enfim...

Tárik de Souza: Agora como é que você.... Como é que é essa relação sua com Caetano? Quer dizer, vocês praticamente são irmãos siameses musicais. De vez em quando vocês se desentendem? Como é que é?

Gilberto Gil: Só podia ser assim... Desde... Lembro de alguns episódios; um marcante, por exemplo, era o dia daquele evento da Tropicália, daquele evento tropicalista naquele... [hesita]

Carlos Calado: Som de Cristal?

Gilberto Gil: O Som de Cristal! No dia da morte do Vicente Celestino. Naquele dia, gente teve um "pega" difícil, porque Caetano, leonino afirmativo como ele é, quer dizer, o enfrentar obstáculos e etc, para ele, é uma coisa automática. Ele não tem esse problema da vulnerabilidade ou qualquer coisa desse tipo. Como leonino que é, a inexpugnabilidade nessa coisa de "blá!!!" [levantando os braços subitamente] é natural dele. Então, ele vai enfrentando...  E eu, naquele dia, amofinei [risos], no dia do negócio no Som de Cristal. Primeiro pela própria... o momento, o ensaio da tarde, a própria indignação do Vicente, do saudoso Vicente, naquele momento do ensaio, às quatro, cinco horas da tarde, onde ele fez aquela defesa...

Tárik de Souza: Veemente...

Gilberto Gil: ...veemente da intocabilidade do valor cristão, do mito religioso, para ele. Da idéia do Cristo, por causa da condição da qualidade apócrifa e meio, enfim, daquela ceia montada ali pelos "excelsos", Caetano, por todos nós... E, enfim, eu tinha ficado muito abalado com aquilo, aquele velho maravilhoso, não é?, aquele decano, aquela figura respeitabilíssima, e tal, me passando o "carango" assim! [apontando o dedo] Eu tinha ficado chocado com aquilo...

Tárik de Souza: O que ele falou exatamente, você lembra?

Gilberto Gil: Ele tinha dito: [representando indignação] "Um negro, um Cristo preto, eu ainda admito; mas as bananas na ceia, eu acho um desrespeito!!!"[risos] Uma coisa assim. E...

[...]: ...Chocado.

Gilberto Gil: Chocado.

Celso Masson: Ô Gil, mais do que o Caetano é, provavelmente mais do que outros artistas brasileiros, outros artistas da sua geração, você tem uma certa desenvoltura para aderir a pautas da vida brasileira. Recentemente, por exemplo, você participou da campanha do Ministério da Educação em favor do Provão, do Exame Nacional de Cursos, você emprestou o seu prestígio para isso. Mas eu queria que você comentasse duas coisas. A primeira é: o que te leva a aderir a uma causa dessa natureza? Quer dizer, qual a importância que você vê nisso como artista, como cidadão? E também, como que você viu a reação da UNE [União Nacional dos Estudantes] ao Provão? Como que é essa tentativa de abordar...

Gilberto Gil: Primeiro, minha "facilidade" de aderir a coisas desse tipo vem de um vício de cidadania. Talvez, se quiserem, um desvio de cidadania, ou uma hipertrofia de desejo de vontade de cidadão. Enfim, eu acho isso, acho que a gente tem que estar... Gosto de estar à disposição, disponível para causas, para, enfim, mobilizações, para "vamos ali!", aquela coisa do "avante!", com aquela bandeira na mão e tal. Gosto disso, a...

Carlos Masson: Nesse caso, particularmente, a sua postura entrou em choque com a de uma organização institucional da União Nacional dos Estudantes. Como é que você vê isso?

Gilberto Gil: Aí, esse outro lado, quer dizer, a posição da UNE no caso... Eu vi até o menino outro dia o...

Maria Amélia Rocha Lopes: Lindberg [Lindberg Farias, presidente da União Nacional dos Estudantes de 1992 a 1993].

Gilberto Gil: O Lindberg. É... Defendendo a posição da UNE e tal, e eu ainda não vi os argumentos convincentes, da UNE nem de ninguém, contra o Provão. Porque, quer dizer, essa mania de fugir, esse medo de fugir ao escrutínio, ao teste, enfim, à avaliação...

Matinas Suzuki: Ô Gil...

Gilberto Gil: ...eu não vejo... Não me convenceram ainda. Eu acho que, se você quer qualificar... se há esforço da comunidade e do governo, por um lado, com tanto sacrifício, com tanta dificuldade... Se há um esforço de qualificar um pouco mais o sistema de seleção, o sistema de acesso, se a coisa, enfim, se a gente considera que o mundo inteiro... Quer dizer, a queda dos padrões do ensino e a queda dos padrões do aprendizado, tudo isso são coisas tão evidentes, eu fico meio "assim". Aliás, eu gostei muito da reação de uma boa parte da comunidade estudantil, dizendo: "Não, vem, vamos embora, vamos!" Quase que dizendo assim: "Nós estamos sentido falta de uma melhor avaliação, de melhor qualidade de avaliação!" É quase como se eles dissessem assim: "A gente está aproveitando menos, por que está sendo sub-avaliado!"

Matinas Suzuki: Agora, Gil...

Gilberto Gil: Eu, enfim... E foi essa a minha posição. Eu não concordo com a posição da UNE, não, nesse caso. Acho o contrário. Não estou dizendo que o projeto esteja acima de qualquer crítica! Não! Acho que pode ser criticado, pode ser até combatido!

Celso Masson: Mas não simplesmente boicotado.

Gilberto Gil: Não simplesmente boicotado, sem que se ofereça... [boicotado] no seu valor intrínseco, na sua essência, no seu propósito, quer dizer, o que está se tentando fazer com um projeto daquele. Isso, eu não acho que se deva... Aliás, eu gostei muito da posição de muitos estudantes dizendo: "Não! A gente quer mesmo ser avaliado!"...

Matinas Suzuki: E, já que a gente entrou um pouco por esse caminho...

Gilberto Gil: ...das letras! [risos]

Matinas Suzuki: Não... É!!! Você... [pequeno trecho ininteligível, pois há conversas simultâneas] Você me perdoe se estiver errado, mas acho que quarta-feira agora é Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil.

Gilberto Gil: Vinte de novembro, é.

Matinas Suzuki: Dia 20, exato!

Gilberto Gil: [cantando] "Dia 20 de novembro..." [trecho da música "Me abraça e me beija", de Jimmy Cliff, Gileno Félix e Lazzo Matumbi.]

Matinas Suzuki: Que balanço você faz, quer dizer, você acha que há uma maior presença do negro na sociedade brasileira? Essas conquistas são visíveis, são consistentes? Ou ainda há muito que fazer? Como é que você?...

Gilberto Gil: Olha, há muito que fazer sempre! Não é assim que você vai... Não é de um dia para o outro, como em um passe de mágica que você vai erradicar, passar a borracha em uma dificuldade histórica, numa dívida histórica para com os negros no Brasil, um calvário de longa data... Como qualquer coisa... Agora, sem dúvida alguma, a própria democratização da palavra, do discurso no Brasil, das idéias, enfim, do processo social todo, político-social e tal, deu margem para que essas várias questões fossem discutidas e que se admitisse, pelo menos - porque era uma coisa até pouco tempo inadmissível para a sociedade brasileira, para o discurso oficial da sociedade brasileira, que houvesse discriminação, que houvesse racismo, que o tratamento dado aos negros fosse claramente e negativamente diferenciado do tratamento dado a outros conjuntos étnicos e tal. Então, acho que, nesse sentido, eu tenho impressão que vem se avançando.

Tárik de Souza: Gil, como é que você vê esse caso do Tiririca [Francisco Everardo Oliveira Silva, compositor e humorista], por exemplo, que foi colocado como emblemático de uma discriminação racial, a partir da letra que ele fez, falando que a "negra fede" e tal; e que uma entidade de defesa dos negros se levantou contra isso e acabou conseguindo a proibição da música [trata-se da música "Veja os cabelos dela", lançada em 1996; os CDs que a continham foram apreendidos, a execução das canções foi proibida nas rádios e Tiririca foi processado por racismo, mas depois absolvido]. Como é que você vê esse caso?

Gilberto Gil: Eu acho que é interessante! Quer dizer, que já haja condições no país, que essa facilidade no discurso pejorativo, na chacota com o negro, já seja combatida. E que o combate a essa facilidade já seja uma coisa que tem resposta, que tem respaldo em setores da sociedade brasileira. Eu acho isso importante porque, até bem pouco tempo atrás, além de poder chicotear - até o tempo da escravidão, até algumas décadas atrás, além de poder chicotear, matar, discriminar de todos os modos, era ainda tranqüilo que você pudesse ter o discurso da rejeição...

Maria Amélia Rocha Lopes: Gil...

Gilberto Gil: ...da secundarização do negro. Em termos de dignidade humana, em termos de papel, de lugar na sociedade, etc e etc... Então, eu acho que tem seu sentido importante essa coisa de dizer: "Olha, tudo bem, mas a liberdade de expressão, o discurso; mas, veja bem, não caia nessa facilidade, nesse vício do pelourinho, entendeu?" De achar que “nego, quando não caga na entrada, caga na saída". E fazer essa... Ao mesmo tempo, há que levantar-se a questão da liberdade de expressão e etc. Da mesma maneira que não se censurou e não se condenou o Gabriel o Pensador quando ele chamou a loira de burra. [risos] [Trata-se da música "Lôraburra", de Gabriel o Pensador, gravada em 1993.] Então, não se pode também censurar o Tiririca nesse sentido. Mas eu achei é exemplar o qüiproquó, o episódio, para ensinar os dois lados, para ensinar que precisa haver compreensão maior, para exigir aprofundamento da questão. Para exigir que depois que vocês entenderem bem que há uma sociedade racista, que há uma sociedade discriminatória, que há uma sociedade historicamente negligente com a questão do papel do negro na vida; para que vocês tomem consciência disso, é preciso que haja essa discussão. E para vocês saberem também que aqui há um espaço que pode exigir cada vez mais democracia com moralidade do discurso, palavra concedida a todos, idéias abertamente transadas na sociedade. Os dois lados... Acho que esses confrontos que esse episódio provocou são confrontos interessantes, didáticos e importantes que haja.

Maria Amélia Rocha Lopes: Ô Gil, você se lembra de...

Gilberto Gil: E a gente toma para possibilitar discursos inclusive desse tipo, que a gente fale tomando as dores de um lado, tomando as dores de outro, tentando fazer justificar as várias posições dos vários atores nessa questão.

Tárik de Souza: Nessa questão aí, do fato...

Maria Amélia Rocha Lopes: Só para completar, é dentro da questão. Você se lembra da tese de um professor chamado Fred Góes [Frederico Augusto Liberalli de Góes, teórico literário e autor de Gilberto Gil, da coleção Literatura Comentada, de 1982, e da tese de doutorado "Gil engendra em Gil rouxinol, a letra da canção em Gilberto Gil", defendida em 1991 na Universidade Federal do Rio de Janeiro], para o qual você teria despertado tarde para essa questão racial da negritude? Você concorda com isso?

Gilberto Gil: Lembro. Concordo um pouco. Porque eu vinha... eu já me referi a isso em outros momentos: eu fui criado em uma família cujo projeto era um projeto de branqueamento, não é? A negritude na minha família apareceu comigo, praticamente. [risos] Nesse sentido político-ideológico, apareceu comigo. O meu pai, minha mãe, não trabalhavam para esse projeto, ao contrário...

Maria Amélia Rocha Lopes: Não era um assunto caseiro?...

Gilberto Gil: Não. De certa forma, para eles, a adoção tranqüila foi do projeto do branqueador. Quer dizer, "a terra de branco mulato, a terra de preto doutor" [trecho da música "São Salvador", de Dorival Caymmi]. Um projeto mais baiano, nesse sentido, um projeto mais conciliatório, onde a emancipação negra foi sendo feita aos poucos... ali... com passagens graduais... da senzala para batentes... para os degraus da casa grande... depois para, enfim, para as ante-salas e etc. etc., como foi, mesmo, a história da relação negros-brancos do Brasil. Então, eu era um pouco esse projeto, eu pertencia um pouco a esse projeto de branqueamento.

Matinas Suzuki: A propósito desse assunto, Nelson Carvalho, nosso telespectador aqui do Tremembé, que é geólogo, pergunta: "Como você avalia a vitória de Celso Pitta [prefeito de São Paulo de 1997 a 2000] pelo fato de ser o primeiro prefeito negro." Aliás, é o primeiro prefeito negro eleito, houve um outro prefeito nomeado [Paulo Lauro, prefeito de São Paulo entre 1947 e 1948].

Gilberto Gil: No tempo do Ademar... [Ademar de Barros (1901-1969), governador de São Paulo de 1947 a 1951 e de 1963 a 1966.]

Matinas Suzuki: No tempo do Ademar. "Será que ele [Celso Pitta] contribuiria para a luta do negro no Brasil?" Essa é a pergunta do Nelson Carvalho.

Gilberto Gil: Eu espero que sim. Quer dizer, emblematicamente, pelo fato de ele ser uma figura negra, um homem de classe média que, enfim, já é um símbolo... Quer dizer, a formação da classe média negra no Brasil é uma questão historicamente importante. Se você considera que até cinqüenta, sessenta anos atrás não havia classe média negra no Brasil, pois estava restrita a alguns poucos "capatazes", digamos assim, que estavam ao lado da casa grande, etc... Então acho que isso é importante e interessante. Ao mesmo tempo, é...

Tárik de Souza: [interrompendo] Mesmo ele vindo de uma ala conservadora?

Gilberto Gil: Eu falo nesse sentido [que abordei]. Agora, as avaliações das outras dimensões políticas do Pitta, isso é outra...

Maria Amélia Rocha Lopes: É, porque, por enquanto, parece que é o "negro doutor"...

Gilberto Gil: Parece que isso [ser negro] não é suficiente, não o qualifica como homem público, o fato de ele ser negro. O fato de ser negro não qualifica ninguém, como homem público, muito menos o fato de ser branco. [risos] Agora, sem dúvida alguma, simbolicamente, é importante que você vá tendo aos poucos a possibilidade de que massas de eleitores brancos, amarelos e de todas as cores, votem em um negro. É sinal de um suave descondicionamento que vai se fazendo, um descondicionamento histórico...

Tárik de Souza: Inclusive, no caso dele, é um voto de elite branca!

Gilberto Gil: É que, de repente, diz assim... Isso tem vários sentidos afirmativos, ele é um homem formado, um burocrata, um tecnocrata formado, qualificado. Vi fotos dele jovem passeando pelas ruas da Europa, meio hippie, de calças...

Matinas Suzuki: Boca-de-sino...

Gilberto Gil: ...boca-de-sino, coisas desse tipo. Enfim, eu tenho uma simpatia por esse lado. Agora, vamos esperar... o governo, é outra coisa: O que ele vem fazer, estamos aí; como cidadãos, estamos todos em um mesmo nível. Aí, não tem branco nem preto nem coisa nenhuma: a cidadania é arco-íris, são todas as cores e nenhuma delas...

Carlos Calado: Agora, Gil, no seu caso particular, na sua carreira política lá na Bahia, quanto o racismo pesou? Quanto que pode se dizer que pesou lá?

Gilberto Gil: Eu não sei, não...

Carlos Calado: Será que o Pitta se elegeria na Bahia?

Gilberto Gil: Eu acho que sim. Depende. Já houve casos lá na Bahia de políticos negros. Há muitos casos majoritários... Tivemos um prefeito que foi nomeado, o Brito, na ocasião. [Edvaldo Pereira de Brito, prefeito de Salvador de 1978 a 1979.] Mas é bacana que tenha partido de São Paulo, isso é um bom start para o resto do Brasil.

Carlos Calado: Então, no máximo, você está caracterizando como um avanço, assim, de algum modo...?

Gilberto Gil: Nesse sentido específico, nesse enfoque que nós estamos dando aqui, o enfoque racial, étnico, foi importante. Não houve mal-estar nenhum, em nenhum momento a população paulista, o conjunto da sociedade paulista, manifestou nenhum mal-estar, que era uma coisa que seria... ainda tinha um pouco, antes mesmo que um negro fossse qualificado...

Carlos Calado: Você sentiu isso, não é? Você chegou a sentir isso.

Gilberto Gil: Eu tive. Quando eu cheguei em São Paulo... huh!!!...

Carlos Calado: Não, digo na sua campanha.

Gilberto Gil: Lá na Bahia?

Carlos Calado: Foi mais pesado na sua campanha, assim, em termos de rejeição?

Gilberto Gil: De rejeição, nesse aspecto racial... Olha, em algum momento, cheguei a ser meio tentado, talvez ilusoriamente, a achar que isso havia, que essa dimensão tinha pesado na balança. Mas hoje em dia, não! Eu acho que aquilo era meio excesso de ânimo meu, não é? No sentido de buscar justificativas, de buscar alguma coisa... Eu não acredito muito nisso, não. A Bahia tem uma tradição de presença...

Carlos Calado: E a maioria é negra.

Gilberto Gil: ...de negros na vida pública... Hoje em dia, eu sou tentado a achar que isso não era um fator preponderante ali na Bahia, naquele momento. No meu caso pessoal.

Matinas Suzuki: Gil, começou a chegar muitas perguntas para você... [mostrando o livro]

Gilberto Gil: Vamos ao livro, também! [rindo]

Matinas Suzuki: Vamos ao livro, vamos ao livro. Por exemplo, com relação ao livro, o Nelson Damasceno, que é de Franca, talvez o Carlinhos possa ajudar também nessa resposta, diz o seguinte: "No livro Todas as letras, na música "Cesta cheia sexta" não aparece o crédito do Paulo Leminski." Faltou um crédito do Paulo Leminski aqui e o Nelson está...

Gilberto Gil: Olha, que eu me lembre, não sei se eu teria me baseado em algum escrito do Paulo para fazer essa música.

Carlos Rennó: Mas será que ele quer dizer que o Paulo...

Gilberto Gil: Que o Paulo era co-autor?

Carlos Rennó: ...teria sido co-autor? Eu entendi isso.

Gilberto Gil: Eu acho que não... [Pegando o livro no chão]

Carlos Rennó: Nesse caso...

Gilberto Gil: Eu não me lembro. Pode ter sido uma grave omissão minha não lembrar, porque o Leminski foi [inaudível] comigo! [risos]

Matinas Suzuki: Pois é, o Nelson Damasceno está levantando uma lebre, aqui...!

Gilberto Gil: Pode ser. Se ele tiver indícios de que o Paulo participou comigo nessa letra, por favor, me traga imediatamente, para eu corrigir esse grave equívoco! Minha memória não é nada confiável. [risos] Estou num estágio da minha vida em que eu já não confio mais na minha memória. Vocês, por beneplácito, podem continuar confiando! [risos] Mas eu, não!

Matinas Suzuki: O nosso produtor, Gil Lopes, lá no Rio, pergunta o seguinte: "Gostaria que você falasse sobre essa questão da Lei da Música, da Lei do Direito Autoral... [Esta lei - a Lei 9610, publicada em fevereiro de 1998 - estava, na época da entrevista, sendo debatida por uma comissão de trabalho da qual fazia parte Gilberto Gil.]

Gilberto Gil: É, aliás...

Matinas Suzuki: Mas, antes, eu gostaria de apresentar: está chegando aqui o nosso convidado Haroldo Macedo, que é editor da revista Raça...

Gilberto Gil: [cumprimenta Haroldo]

Haroldo Macedo: [sorrindo] Desculpa...!

Matinas Suzuki: Chegou no finalzinho da conversa sobre a consciência negra...

Haroldo Macedo: Peguei o bonde andando...!

Matinas Suzuki: ...mas provavelmente o assunto voltará. [Expressão inaudível]


Gilberto Gil: E a Lei da Música, bom... O Gil [Lopes] me mandou outro dia um e-mail. Ele andou discutindo um pouco a questão com o [Luis] Nassif, o jornalista, que chegou a escrever coisas a respeito e tal.

Matinas Suzuki: Jornalista e músico. Chorinho...

Gilberto Gil: E músico! Bandolinista!

Matinas Suzuki: Bandolinista!

Gilberto Gil: Bandolinista, o Nassif. E, olha, acho interessante a lebre que o Weffort [Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)], talvez até inadvertidamente ou não propositadamente, levantou. Eu acho importante discutir essa questão agora. A questão das reservas, a idéia do protecionismo, a história da denúncia de abandono, de falta de cuidado, de desinteresse do poder público pela questão corporativa da música, pela questão institucional da música no Brasil. Enfim, eu acho que é uma lebre interessante. Aliás, eu vi depois uma entrevista do Weffort, logo dois dias ou três dias depois da celeuma toda, da polêmica toda, dizendo exatamente isso: "Mas o que eu estou querendo... eu não estou impondo nada, não estou dizendo que deve ser assim, nem deve ser assado. Estou querendo que vocês discutam! Que a sociedade discuta essa questão. Eu, como ministro... A mim têm sido trazidas várias questões relativas a tudo isso." Enfim: "Vocês querem discutir isso?" Acho que ele lançou uma discussão interessante, saudável. Aliás, eu até fui ouvido por alguns órgãos jornalísticos a respeito e não vi muita coisa que eu tivesse dito reproduzida nos jornais. Eu falei que eu acho que o protecionismo está na moda, está de volta, não é assim, esse neoliberalismo decantado e tal, de que está tudo aberto, o mercado toma conta de tudo, o governo não tem papel, o minimalismo...

Matinas Suzuki: Por exemplo, se você vai tocar no exterior, você tem que cumprir algumas coisas. Parece que, para gravar um disco no exterior, você tem que ter uma cota de músicos nos Estados Unidos, você tem que ter uma cota de música americana. Isso é verdade?

Tárik de Souza: Para fazer concerto, também...

Gilberto Gil: Os sindicatos americanos são muito rígidos nesse sentido. É evidente; para você receber um permit [documento oficial que dá direitos a alguém para fazer algo, especialmente para ir a algum lugar] para você tocar em vários países, tem que provar que aquilo ali não está tirando emprego de ninguém, que aquilo ali não está bloqueando o fluxo mercadológico nenhuma da área importante de produção cultural deles; enfim, coisas desse tipo. Então, há protecionismo por todo canto. O fato de que o governo, tão acusado durante tantos anos de não dar bola para nada, de não ter uma política, de não ter uma noção a respeito do que deve ser feito pelas artes, pela cultura, no Brasil... No momento em que ele busca alguma coisa, vêm logo quatro ou cinco pedras. Quer dizer, esse neo..., essa facilidade neoliberalista assim é muito grande. E eu acho que a gente deve prestar atenção, deve se discutir, sim! Quando os franceses vão à rua para fazer suas reservas de mercado para os seus vinhos, seus queijos e etc e etc e etc, a sociedade francesa pára para ouvir. Pode não concordar, mas ouve, respeita e tal. Eu acho que é um pouco isso que está sendo proposto por essa discussão, por essa provocação do ministro Weffort. Acho que a gente deve discutir.

Tárik de Souza: Gil, quando você estava exilado em Londres [de 1969 a 1972, por causa das perseguições da ditadura militar (1964-1985)] e você começou uma certa carreira lá, você gravou um disco e tudo, você chegou a sentir algum problema, alguma restrição pelo fato de você ser brasileiro?

Gilberto Gil: Olha, eu não diria que eu senti restrições corporativas ou intercorporativas, no sentido de que essa rejeição e essa dificuldade surgisse pelo fato de que era música, de que eu era um compositor, um cantor etc, de que eu iria competir com ingleses nessa área e tal. Mas, evidentemente, o foreign service [órgão do governo dedicado a assuntos internacionais] lá na Inglaterra colocava muitos problemas para me dar um permit, a mim, ao Caetano [Caetano Veloso, que também esteve exilado em Londres na mesma época], para abrir as portas e criar facilidades de trabalho lá. Não necessariamente por um protecionismo ao setor musical inglês, não, mas um protecionismo geral a toda a área trabalhadora. Era uma política trabalhista, digamos assim, da Inglaterra...

Tárik de Souza: É porque, em geral, esses artistas estrangeiros que vêm ao Brasil, eles registram um cachê mínimo, não é? Artistas de grande gabarito em termos comerciais, [têm] o registro do sindicato de quem recebeu uns cem dólares, duzentos dólares e tal, e fica por isso mesmo.

Gilberto Gil: Para...

Tárik de Souza: Para se apresentarem no Brasil.

Gilberto Gil: Para finalidades de [pausadamente, em tom irônico] burla [risos] ao fisco, coisas desse tipo.

Tárik de Souza: Sendo que, na Inglaterra, seria impossível você não...

Gilberto Gil: Ah, é; não! Enfrentava uma certa dificuldade... E, de lá pra cá, o protecionismo em vários setores de produção material ou cultural foi uma coisa que cresceu muito no mundo. Eu até disse em uma das minhas conversas com um desses jornais a respeito do problema com o Ministério da Cultura, do Weffort; eu disse: "O protecionismo está na moda, voltou e voltou forte!" Voltou como um contraponto necessário a esse discurso do mercado auto-regular o tempo todo, o mercado que regula tudo pela sua própria fluidez e etc etc. Não é bem assim, os interesses são terríveis, o Gatt [Acordo Geral de Tarifas e Comércio, tratado internacional assinado em 1945, inclusive pelo Brasil, cujo objetivo é a redução das barreiras do comércio internacional] é uma coisa visivelmente manipulada. As tentativas de manipulação do Gatt pelos países fortes, pelo Grupo dos Sete [fórum econômico formado pelas sete nações mais industrializadas do mundo: Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Alemanha, França, Itália e Canadá] e etc, é uma coisa muito nítida. A tentativa de imposição e etc. Está hoje aí, ainda, o ministro Weffort se queixando do problema do protecionismo lá fora...

Celso Masson: Gil, no caso do mercado musical brasileiro, que tem uma participação muito grande da produção local, quer dizer, a produção de música brasileira é bastante consumida aqui...

Tárik de Souza: Nesse momento.

Celso Masson: Nesse momento. Você acredita que é necessário que haja uma interferência do Estado, quer dizer, isso não pode acarretar algum tipo de direcionamento estético ou, sei lá... Priorizar o folclore, alguma coisa meio paternalista com relação a isso?

Gilberto Gil: Eu não acho que seja necessariamente... Que a gente corra esse risco, automaticamente corra esse risco, na medida em que a gente confie no diálogo e que esse diálogo entre poder público, instituições públicas e sociedade se faça o mais aberto e o mais amplamente possível. Quer dizer, na medida em que ficar garantido, que esses canais de discussão ficarem garantidos e que a contestação, a posição e a palavra do ministro ficarem garantidas e que a palavra do ministro também for garantida e etc e todo mundo falar, na medida em que todo mundo falar e a imprensa também, igualmente...

Celso Masson: Você acha que pode acontecer por exemplo, uma outra coisa, assim...

Gilberto Gil: ...tendo a palavra de todo mundo, eu acho que pode ser interessante, acho que é preciso discutir mesmo isso. E aí vem outras discussões embutidas: a questão do direito autoral...

Celso Masson: É. Exatamente, era um ponto que eu ia tocar. Você acha que a...

Matinas Suzuki: [interrompendo] Celso. Nós podemos falar sobre o direito autoral, mas nós estamos chegando ao fim desse primeiro tempo do Roda Viva, que está hoje entrevistando o compositor e cantor Gilberto Gil. E a gente volta daqui a pouquinho para a segunda parte do Roda Viva, até já!

[intervalo]

Matinas Suzuki: Bem, nós voltamos com o Roda Viva, que está entrevistando essa noite o cantor e compositor Gilberto Gil, que está lançando o livro Todas as letras, este livro [mostrando-o], com mais de quatrocentas letras compostas por Gil. Em mais de trinta anos de carreira?

Gilberto Gil: É, as primeiras canções aí datam de 62. Não é isso Rennó?

Carlos Rennó: 62.

Gilberto Gil: É, 62...

Carlos Rennó: Janeiro de 62.

Gilberto Gil: ...para 96, 34...

Matinas Suzuki: 34 anos! O livro, organizado pelo Carlinhos Rennó, e lançado pela Companhia das Letras, que está completando agora em novembro, dez anos. Então, fica registrado aqui também o aniversário da Companhia das Letras. E eu lembro que você tem uma chance hoje de conversar com Gilberto Gil enviando as suas perguntas pelo telefone: 252-6525. Repetir para você: 252-6525, ou pelo fax: 874-3454. 874-3454. Gil, eu adorei uma coisa no livro, que era uma grande dúvida minha durante anos, que era a seguinte: por que é que o Roberto Carlos não gravou as duas músicas que você fez para ele? O episódio que está narrado aqui no livro...

Gilberto Gil: De uma delas. A primeira eu não sei exatamente...

Matinas Suzuki: "Nova era" [Na verdade, "Era nova"]...

Gilberto Gil: "Nova era", eu não sei exatamente, eu não tive, assim, notícias...

Matinas Suzuki: Porque eu não conheço nada mais "Roberto Carlos", nem o próprio Roberto Carlos é tão "Roberto Carlos" quanto essas duas canções, em ritmo, em harmonia, em letra, essa coisa toda.

Gilberto Gil: É, em letra... Agora, a questão do [palavra inaudível]...

Matinas Suzuki: Não, ele não acha que ele ia [palavra inaudível], entendeu, [expressão inaudível, vários falando simultaneamente]...

Gilberto Gil: "Se eu quiser falar com Deus", tem ali uma pitada de agnosticismo, não é? De niilismo, budismo, um lado... não cristão. A letra tem três estágios: um bem cristão... ela termina com um "nada budista" bem assim, vazio, bem budista e tal [a música termina com a palavra "nada" sendo repetida várias vezes]. Quer dizer, difícil para a gente - eu me incluo também nesse rol, das pessoas que foram catequizadas. O catecismo, foi a coisa... e a crença no Pai, no Filho, no Espírito Santo e em todas as figuras, a antropomorfização da divindade, Deus-homem, homem-Deus, todas essas categorias que foram ensinadas à gente. Então, é muito difícil dar esse passo no vazio, no abismo. O nada, assim, "nada, nada", quer dizer, essa negação... Eu entendo o Roberto claramente. Eu tenho a impressão que partilho com ele esse sentimento de "pé atrás" com relação a uma colocação como aquela. Muita gente no Brasil e no mundo, os cristãos... É isso que eu acho. Não tenho... Quando eu digo essas coisas, quando eu "entrego" o Roberto, vamos dizer assim [risos], em relação a essa "tirada" do que ele tem em relação à música, eu faço isso no sentido mais carinhoso e positivo possível. No sentido de dizer: "Olha aí o representante dessa ortodoxia profunda, do fundamentalismo cristão e tal." No sentido mais benigno possível. Eu não tenho, nunca tive, nunca chacoto: "Ah, aí o Roberto, não quis gravar!" Não é isso, não; ao contrário: Roberto é um guardião desse orgulho respeitoso que se tem pelos cânones. É um cristão canônico, assim; enfim, é absolutamente respeitável, num mundo em que as coisas se diluem com tanta facilidade, não é? E que as coisas vão perdendo o significado, que as árvores velhas são cortadas sem nenhum pudor... Quer dizer, essa coisa de querer ser um tronco fincado na tradição religiosa, assim como ele quer, como ele transparece querer ter através de uma atitude como essa, de rejeitar uma música como essa, é uma coisa, por um lado, admirável. Eu, pelo menos, na minha tolerância budista toda [risos], tenho que achar que o Roberto está certo do ponto de vista dele, ou pelo menos eu tenho que respeitar esse ponto de vista dele. Eu não posso chegar dizendo: "Ah, que é isso, o Roberto devia gravar." Não...! Ele está certo.

Celso Masson: E depois a Elis [Elis Regina (1945-1982), cantora popular] gravou...

Gilberto Gil: Aliás, ele fez até um... hum?

Celso Masson: "Se eu quiser falar com Deus", depois a Elis gravou.

Gilberto Gil: A Elis gravou. Mas a Elis é... diferente... [risos]
 
Celso Masson: Mas a música acabou servindo para outra intérprete; talvez fosse uma intenção sua, também...

Gilberto Gil: Não, eu tinha feito para ele, mesmo, eu tinha feito para ele. Porque ele tinha me pedido a primeira vez, eu tinha feito a "Era nova", que ele não tinha gravado, e um dia ele me lembrou de novo a possibilidade de uma música. E eu fiz uma segunda que foi "Se eu quiser falar com Deus". Mas eu compreendo muito bem o Roberto, quer dizer, tenho absoluta tolerância pela posição dele. Como eu tenho certeza que ele teve pela minha [risos].

Maria Amélia Rocha Lopes: Gil, eu fico observando você falar, você tem uma forma de se expressar bastante peculiar, bastante pensada. Cada palavra que você emite, você pensa antes de dizer. Te incomoda que um programa de humor crie um personagem que fala, da forma mais barroca, assim, brincando com o seu jeito de falar?

Matinas Suzuki: Só para... Tem aqui umas cinco ou seis perguntas sobre essa mesma...

Gilberto Gil: Vá a elas!

Matinas Suzuki: É o Chico Anysio, não é? A imitação do Chico Anysio.

Gilberto Gil: É.

Matinas Suzuki: Então. Desculpa, eu não vou ler os nomes, aqui pelo... [palavra inaudível]

Gilberto Gil: Outro dia o Borjalo [Mauro Borja Lopes (1925-2004), desenhista e cartunista mineiro] me perguntou num programa de televisão, semana passada, no Rio: "O que você acha daquilo ali? Daquela caricatura que o Chico faz de você?" Eu disse, em resumo - disse muitas coisas, mas resumindo, eu disse a ele: "Olha, Borjalo, eu me vejo muito ali, mas sinto muita falta de mim. [risos] Aquilo é uma caricatura e, como toda caricatura, ela esconde traços importantes e escolhe para enfatizar outros traços, em geral menos importantes, não é?

Maria Amélia Rocha Lopes: Quer dizer, você acha que existe alguma forma "carinhosa", digamos, nessa, "homenagem", que vem entre aspas, ou você vê só como uma coisa pejorativa?

Gilberto Gil: Não, eu não ousaria colocar sobre o Chico essa carga toda de desprezo sobre nós. Ele não é uma pessoa... Chico tem muito respeito, muito carinho pessoal e corporativo também, com seus colegas.

Carlos Calado: Apesar de que na época na sua candidatura, eu lembro de você mais irritado...

Gilberto Gil: Eu não gostava!

Carlos Calado: Naquela época, aquilo te irritava muito.

Gilberto Gil: Mas, aí...

Carlos Calado: Você achava inclusive que aquilo era uma forma de ironia para denegrir a tua...

Gilberto Gil: Eu nem...

Carlos Calado: Quer dizer, uma forma de te atacar politicamente, não é? De te rebaixar politicamente.

Gilberto Gil: Eu nem diria que eu estaria certo pensando que assim fosse, mas eu sentia dessa maneira. Eu sentia; naquele momento em que a minha candidatura, vindo da música, enfim, por não pertencer... Todas as dificuldades que ela já tinha, não necessariamente... Quer dizer, você ter ainda a ajuda desestabilizante, vamos dizer assim, negativa, de uma alta força de comunicação, como era o programa dele, a pessoa, a personalidade artística dele e tudo mais, era uma coisa que... aquilo me desanimava um pouco, aquilo me dava... Quer dizer, puxa vida, eu não pude nem transitar pelo campo da seriedade junto ao eleitorado, junto ao público; ainda não pude nem colocar minha proposta nesse patamar da seriedade, da legitimidade e etc, etc e já vem uma coisa chutando ela para cima, botando na peteca e já jogando. Então era isso um pouco, era uma certa decepção que eu sentia com o fato. A inoportunidade, pelo menos do meu ponto de vista, que era a presença daquele personagem naquele momento da campanha. Mas humor é isso! Eu estava dizendo ao Borjales exatamente isso: o humor é isso. O humor é cruel; uma das tarefas do humor é isso. O humor é igual uma criança, o humor é infantil, ele trata qualquer coisa como a criança trata. É tudo meio amoral, ela não tem ainda o sentimento; a perversidade - não é "perversidade" para criança, não é? Mas o humor é infantil por natureza, o humor são as vestes infantis sempre, ele veste sempre as vestes infantis. O problema é isso, é o que está por trás da manipulação da instância infantil pelos adultos, esse é que é o problema que estamos colocando aqui. O Chico na berlinda, nesse momento, é exatamente por isso. Quer dizer, e aí? Teria ele o direito do humor? De fazer essas coisas? Mas é assim, o humor é... [gritando] "Capitão Gaaay!!!". [risos] [Menção ao quadro de Jô Soares no programa "Viva o Gordo", da TV Globo]

Haroldo Macedo: Gil, eu tenho uma questão - quer dizer, eu estou pegando o bonde andando, estou pongando - pongando, não, "pongando" é sair do bonde, não é? ["Pongando o bonde" é uma expressão usada por Gilberto Gil na música "Tradição", de sua autoria.]

Gilberto Gil: "Pongar" é...

Haroldo Macedo: É pegar o bonde?

Gilberto Gil: É pegar! Você não está despongando; "despongar" é que é sair.

Haroldo Macedo: Exato, estou pongando o bonde! Gil, eu tenho uma pergunta para você. Eu fui a Salvador há pouco tempo e eu fiquei um pouco chocado com que eu vi. Porque existem duas faces, não é? A face que é aquela face exportada e tal, de Salvador, e uma face que é a do cotidiano. Então, eu senti que os negros ficam um pouco sitiados em Salvador. Até a palavra "negro" se torna um pouco ofensiva. Eu vi coisas assim: um negro ofender o outro é chamar ele de negro! Ele se sente ofendido. Então fiquei meio surpreso com tudo isso e eu queria saber de você, até politicamente, por...

Gilberto Gil: Isso é um... Você está dando um dado interessante...

Haroldo Macedo: É fantástico...

Gilberto Gil: Um negro de chamar um outro de negro...

Haroldo Macedo: É ofensivo!

Gilberto Gil: Mas é claro! Foi assim que ele foi ensinado a ser. Essa é uma das terríveis, perversas heranças...

Carlos Rennó: Que talvez o Tiririca tenha aprendido.

Gilberto Gil: ...da colonização, do colonialismo.

Haroldo Macedo: Mas tendo aquela cultura toda negra fortalecida?

Gilberto Gil: É isso, quando um negro chama um outro de negro, para ofender, é isso, ele assume completamente...

Carlos Rennó: Introjeta.

Gilberto Gil: Introjeta o branco.

Haroldo Maecdo: E por que esse problema existe em Salvador?

Carlos Calado: [inaudível] ...tem esse sentido, é um xingamento.

Gilberto Gil: É um xingamento, é um afastamento, é um distanciamento! É como ele dizer: "Eu não sou, eu não quero, não me misturo com você! Nesse momento, eu sou um branco, falo pela voz do branco!"

Haroldo Macedo: E como isso se resolveria, por exemplo, com o poder em Salvador, ou seja, politicamente? Porque, por exemplo, o Vovô do Ilê Ayê [Antônio Carlos dos Santos, fundador do grupo cultural Ilê Ayê, de Salvador], que tem um bloco encravado nesses seiscentos mil negros, quinhentos mil negros, que é o bairro da Liberdade [em Salvador], e não conseguiu se eleger, por exemplo, vereador, que precisaria alguns votos, alguns milhares de votos.

Gilberto Gil: [pensativo] Alguns milhares de votos... Vovô deve ter sido...

Haroldo Macedo: E [palavra inaudível] explicar esse processo, que eu não entendi direito.

Gilberto Gil: Vovô deve ter sido candidato na mesma ocasião que eu, tenho a impressão. Isso é complicado demais... E, às vezes é difícil falar por que o negro não vota em negro. É uma herança histórica... de mente colonizada... sub-modernização... Desvalorização, depreciação, condicionamento sistemático... De encontrar o valor no oposto a ele: no branco, enfim. Foi uma história longa de subalternização, que é de difícil reversão. Você não reverte de uma hora para outra. Mas, ao mesmo tempo, você encontra várias coisas positivas, não é? Vários sintomas de nova qualidade, de um novo orgulho. De um novo sentimento de dignidade, de restauração da negritude na sua essência, várias vias. Na Bahia, há muito pelo candomblé, pela música popular, pelos próprios espaços, pela ocupação gradual que os negros foram fazendo de espaços omitidos e concedidos nesse diálogo, as lutas, os malês [referência à Revolta dos Malês, a principal revolta de escravos no Brasil, ocorrida em 1835, em Salvador] e etc. Também as senzalas, a contigüidade da casa grande com a senzala, quer dizer, tem várias coisas, é uma coisa para muitas gerações. Assim como a escravidão e todo o processo de colonização e de, enfim, subalternização, foi uma coisa a longo de muitos anos - claro que, hoje, tudo é mais veloz, mas ainda vai durar muito tempo até que você tenha o estatuto da igualdade de raças e etc, como uma coisa tranqüila na sociedade brasileira e na sociedade mundial.

Celso Masson: Gil, voltando...

Gilberto Gil: É difícil!

Celso Masson: Voltando um pouquinho para música.

Gilberto Gil: Sim.

Celso Masson: Você se reconhece assim na música brasileira, nessa "nova música brasileira", vamos dizer assim, de Chico Science [Francisco de Assis França (1966-1997), músico popular pernambucano, um dos principais expoentes do movimento manguebeat] a Chico César? Você ouve ecos de "Gil" nessa música?

Gilberto Gil: Ah, sim! Muito de tudo. É que tudo, a figura de Chico Science, por exemplo, a maneira de se enfeitar, a maneira de masca... [com ênfase] desmascarar, que ele faz, e tudo, tem muito do tropicalismo naquilo tudo, na maneira tranqüila e desenvolta de vestir máscaras...

Carlos Rennó: De compor também, não é?

Gilberto Gil: Hein?

Carlos Rennó: De compor.

Gilberto Gil: De compor! E, quando estou dizendo isso, não é, só... estou dizendo da própria personalidade dele, da posição, da escolha dos temas, da facilidade do trânsito pelo metafórico, delirante, desvairado, enfim, são todos... Carlinhos Brown é outro exemplo também de tropicalismo nesse campo, e tantos outros. Todos esses meninos e meninas novas... também, se pegar uma menina como...

Maria Amélia Lopes Rocha: Gil, eu queria voltar um pouquinho para o livro. Quando você viu tudo isso, juntou todo o seu trabalho de tantos anos, coisas que você fez lá no começo dos anos 60, tudo isso, você ficou tentado de alguma maneira em mexer numa ou noutra coisinha, ou você acha que as obras estão acabadas, que a obra está pronta e não merece retoques?

Gilberto Gil: Não, eu vivo mexendo, não é...?

Carlos Rennó: Em algumas letras ele mexeu. Mas não em coisas já gravadas e em como foram gravadas. Mas, algumas coisas, ele refez. Coisas inéditas, coisas que não...

Gilberto Gil: Eu cheguei a mexer em música gravada, eu mexi no "Serafim"!

Carlos Rennó: No "Serafim", é! Que não tinha sido... Você já tinha corrigido...

Gilberto Gil: Eu fiz uma correção...

Maria Amélia Rocha Lopes: [pergunta inaudível, vários falando ao mesmo tempo]

Carlos Rennó: [inaudível] ...uma correção oficial.

Gilberto Gil: [inaudível] ...estado pela área do pessoal do candomblé.

Tárik de Souza: Agora, você se sentiu tentado a gravar algumas dessas inéditas [expressão inaudível]?

Gilberto Gil: Ah, muitas! Eu vou gravar, já estou gravando. Agora, nesse disco que eu estou fazendo, eu vou gravar...

Carlos Rennó: Em que pé está esse disco agora?

Gilberto Gil: O disco? [inaudível; fala junto com Carlos Rennó]

Carlos Rennó: Sim, eu queria perguntar, a minha pergunta iria ser justamente sobre o disco! Nesse período todo em que a gente ficou trabalhando junto e conversando sobre como você teve as motivações suas para compor uma série de canções sobre as quais a gente falou...

Gilberto Gil: Conversou muito, não é?...

Carlos Rennó: É. Uma das observações que eu fiz, uma das constatações, mesmo, que eu fiz e que me surpreendeu de certo modo foi a observação e a constatação de um "cerebralismo" incidindo sobre o ato de compor em você, com relação a várias canções. Eu não digo que esse cerebralismo, lógico - [rindo] "lógico"... - seja prevalecente. De todo o modo, ele aparece em um grau que eu não julgava aparecer.

Gilberto Gil: Que pudesse haver...

Carlos Rennó: É, que ele estivesse subjacente à criação de determinadas canções. Claro que ele aparece naquelas canções, com relação àquelas canções que você fez para determinados discos...

Gilberto Gil: Os projetos temáticos, não é?

Carlos Rennó: ...para o qual você compôs seguindo certos parâmetros conceituais...

Gilberto Gil: As músicas temáticas, que deram título aos discos etc.

Carlos Rennó: É! No ano passado, você começou a trabalhar, a gravar o seu disco novo...

Gilberto Gil: Quanta.

Carlos Rennó: Pois é, Quanta. Dentro de um conceito que você queria explorar, pelo menos em parte, do repertório [a física quântica]. E, durante o período de feitura, você chegou até a me dizer que você tinha algumas discussões com você mesmo quanto ao desenvolvimento...

Gilberto Gil: Daquele tema...

Carlos Rennó: ...daquele tema, da exploração desse tema. E você parou de gravar o disco, deu um tempo e retomou agora, esse ano. Deve ter terminado...

Gilberto Gil: Ainda não terminei.

Carlos Rennó: Você ainda não terminou.

Gilberto Gil: Estou terminando.

Carlos Rennó: Está por terminar. O que aconteceu? [sorri de leve]

Maria Amélia Rocha Lopes: [riso]

Gilberto Gil: [após hesitação] O que aconteceu?

Carlos Rennó: É.

Gilberto Gil: Crises. Ainda hoje à tarde, vocês me mandaram aqui do...

Matinas Suzuki: Uma pesquisa linda [sobre reportagens e entrevistas de Gil na imprensa, feita pelo Departamento de Pesquisa da Fundação Padre Anchieta e entregue a Gil e aos entrevistadores pela produção do Roda Viva].

Gilberto Gil: Uma pesquisa, não foi? Quatro...

Matinas Suzuki: Pesquisa do Jayme... [Jayme Martins, produtor, editor e depois editor-chefe do programa Roda Viva, nos anos 1990]

Gilberto Gil: Aliás, agradeço muito...

Matinas Suzuki: ...um dos orgulhos deste programa...

Gilberto Gil: ...é uma coisa valiosíssima aquilo. Porque é um apanhado da minha presença...

Matinas Suzuki: Na imprensa.

Gilberto Gil: ...na imprensa desde 1972, se não me engano.

Matinas Suzuki: Por aí.

Carlos Rennó: 70.

Gilberto Gil: Desde de 1970 até hoje. E você vai ver lá, que enfim, que eu... [hesita]

Carlos Rennó: Teve outros momentos similares...

Gilberto Gil: Já, muitas crises, eu estava comentando com Flora [Flora Gil, esposa de Gil] hoje, um fastio, "fastio" é palavra que, ela estava vendo, apareceu pelo menos em três períodos diferentes. "Estou enfastiado!" [risos] "Não consigo! Estou", enfim, "não agüento mais! Acho tudo isso uma porcaria!" e tal. Isso acontece com muita freqüência no meu trabalho. Uma coisa de canceriano, sei lá o quê. E aí [palavra inaudível] foi isso de novo. Aquele ímpeto... Você se lembra quando comecei, há dois anos atrás, a fazer, desenvolver os temas, Arnaldo Antunes [músico popular e poeta paulista], lá na Bahia? E eu entusiasmado, escrevi o "Pop Wu Wei", escrevi o "Quanta", escrevi aquelas canções todas, "A dança de Shiva" e tal [são todas músicas do disco Quanta], e aquele... De repente, assim... eu saio correndo atrás de alguma coisa... [risos] e, de repente me sinto cansado, fatigado, aquela coisa, acho que aquelas coisas não têm sentido. Sou muito exigente, tenho muito medo do vazio. Acho que é isso... Fico achando que as coisas podem estar vazias, podem ser sacos vazios, que ficam colocando em pé assim com um certo empenho, que se eu largar, aquilo cai, não é nada... Eu acho que é um pouco por isso... Então, eu tenho muita crise. Dessa vez foi mais... Foi isso de novo, fiquei achando que aquilo não valia nada, que era tudo uma bobagem.

Carlos Rennó: Uma crise seria como a "lata" do poeta? [Referência à música "Metáfora", de Gil, que diz: "Uma lata existe para conter algo / Mas quando o poeta diz: 'lata' / Pode estar querendo dizer o incontível // Uma meta existe para ser um alvo / Mas quando o poeta diz: 'meta' / Pode estar querendo dizer o inatingível // Por isso, não se meta a exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata / Na lata do poeta tudonada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha caber / O incabível // Deixe a meta do poeta, não discuta / Deixe a sua meta fora da disputa / Meta dentro e fora, lata absoluta / Deixe-a simplesmente metáfora"]

Gilberto Gil: É! É isso! Eu sou... Eu sou uma figura de retórica. [risos] "Eu sou uma frase de um discurso de paraninfia..."

Carlos Rennó: Essa é outra inédita!

Gilberto Gil: "...da turma de bacharelandos da Universidade da Bahia" [trecho da música "Figura de retórica", de Gil]. Então eu...

Maria Amélia Rocha Lopes: Gil, você submete a sua composição a alguém?

Gilberto Gil: Hein?

Maria Amélia Rocha Lopes: Quando você acaba de compor e está inédito, ainda bonitinho, ali, prontinho, você submete essa música? Alguém ouve, alguém vê, alguém dá palpite?

Gilberto Gil: Às vezes sim, às vezes não. Nesse caso, por exemplo, dessa última safra relativa a esse disco, eu tive algumas pessoas. O Rennó ouviu muita coisa, Arnaldo [provavelmente Arnaldo Antunes] ouviu e outras pessoas. O Caetano [Veloso] não ouviu nada. E, em outras ocasiões anteriores, ele ouvia. O Chico [Buarque], por exemplo, quando eu fiz o Parabolicamará, o Chico foi, assim, uma espécie de controle de qualidade [risos] no período todo de criação, um período que eu estava muito com ele e visitava muito, estávamos sempre juntos e tal. Eu ia lá, compunha uma música, ia lá e mostrava para ele. Fazia um arranjo, mostrava para ele, dizia... Enfim, o Chico acompanhou muito a realização. Tanto é que eu acabei dando a ele escrever o texto de apresentação desse meu trabalho Parabolicamará. Mas agora... Este trabalho [Quanta] foi mais solitário, fiquei mais... Depois, inclusive, da fase de entusiasmo inicial, que foi aquele da Bahia e tal, naquele verão lá, você e outras pessoas apreciaram, no início das composições, dali eu me recolhi, fiquei todo recolhido, com medo, todo cheio de dúvidas, cheio de dedos com relação...

Carlos Rennó: Ele nem tocava no assunto mais com você...

Gilberto Gil: Pois é, você veja... Mas agora já voltei ao estúdio e aí a Flora pergunta: "Mas como é, já está reconciliado [risos] com o trabalho, já está achando bom de novo?" Eu disse a ela: "Olha, eu... estou... à distância. Eu não quero... Estou distanciado, estou 'brecheando' em relação ao trabalho. Não quero saber se está bom, se está ruim, vou fazer profissionalmente. Estou fazendo para cumprir agenda etc, e etc. Não quero muito entrar nesse mérito."

Matinas Suzuki: Você falou no Chico: o Celso Rosa, aqui do bairro Cerqueira Cézar, aqui em São Paulo, pergunta: "Como é que foi", já que estamos falando das letras, "como é que foi o processo de criação do "Copo vazio" [música de Gil gravada por Chico Buarque em 1974]? E tem uma outra pergunta aqui também sobre "Cálice" [composição de Gilberto Gil e Chico Buarque].

Gilberto Gil: Está tudo explicado. Ambas... [folheando o livro]

Matinas Suzuki: Então, "Copo vazio" e "Cálice" estão aqui, pois é, mas os telespectadores não vêem...

Gilberto Gil: Deixa eu ler aqui para ele ficar sabendo como é que isso está no livro, deixa eu ver aqui. Primeiro vou consultar o índice... Me ajudem, aí!

Carlos Rennó: Índice remissivo...

Gilberto Gil: "Copo Vazio". Índice remissivo... [procurando no índice do livro]

Carlos Rennó: 157.

Gilberto Gil: Página 157! [procurando a página] 190... 157! Aqui está! Aqui diz [lendo]: "Chico Buarque estava sendo híper-censurado [pela ditadura militar] naquele momento e quis responder a isso fazendo um disco só com músicas de colegas [trata-se do disco Sinal fechado, lançado por Chico Buarque em 1974]. Por isso, pediu ao Paulinho da Viola, a Caetano [Veloso], a mim e a outros que compusessem para ele. Eu estava em casa, sentado no sofá, já de madrugada,...", aí eu já tomando o processo da criação: "...tinha tomado um copo de vinho no jantar e o copo tinha ficado na mesa. Pensando no que é que eu ia fazer para o Chico, eu, de repente, vi o copo vazio e concentrei o olhar nele para dali extrair emanações de imagens e significados. A princípio, como se para nada obter, mas logo constatando: 'O copo está vazio, mas tem ar dentro!' Disso, me vieram idéias acerca das camadas de solidificação e rarefação que vão se sucedendo nas coisas. E, disso, a música. A letra faz uma viagem ao mundo das coisas sutis, transcendentes. Mas suas primeiras frases são muito significativas nos termos do que estava acontecendo: regime de repressão, censura, o Chico privado de sua liberdade artística plena, etc. Embora não fosse essa a intenção principal, as dificuldades da situação contingencial estavam necessariamente metaforizadas e qualquer crítica à canção, em termos de fuga da realidade, esbarraria no fato de que, ao contrário, a letra parte da realidade e não foge dela. Foge com ela, se for o caso." [risos]

Matinas Suzuki: E o "Cálice"?

Gilberto Gil: E o "Cálice"?...

Carlos Rennó: É longa a descrição.

Gilberto Gil: É longa a descrição. Deixa eu abreviar, resumindo. O Chico... A Polygram-Phonogram, naquela ocasião, que era nossa gravadora comum, nós pertencíamos a ela, estava fazendo um grande festival, em 73...

Tárik de Souza: Phono 73...

Gilberto Gil: Phono 73, com todo o seu casting, não é?

Tárik de Souza: Uma demonstração de força! Todos estavam lá.

Gilberto Gil: Todos estavam lá! A MPB toda estava ali na Polygram! Então fizeram esse festival e fizeram vários jogos de colaborações de duplas. O Caetano foi fazer aquela...

Tárik de Souza: Odair José...

Gilberto Gil: ...com Odair José, aquela parceria. E eu fiquei para fazer com Chico uma coisa. "Então, vamos fazer, vamos fazer - vamos fazer o quê? Vamos fazer uma música juntos" e tal. Aí, passou-se o tempo, a gente não fazia... Na Semana Santa daquele ano, lá, eu estava fazendo um show no Teatro do Rio e o Chico foi assistir ao show na sexta-feira, se não me engano, na própria Sexta-Feira da Paixão, ou na quinta-feira, mas naquela Semana Santa. E ele foi com a Marieta [Marieta Severo, atriz, então mulher de Chico Buarque] assistir o show. E um pouco porque ele queria ir ao show e um pouco porque a gente queria combinar para fazer a tal da letra da música. No sábado, na sexta-feira, em casa, na tarde, já no Sábado de Aleluia, se não me engano, fiquei um pouco meditando sobre aquilo: "Tenho que fazer uma música com o Chico, juntos. E enfim, esse período difícil aqui, de censura, e tudo o mais..." Fiquei meditando sobre os episódios da semana, o símbolo daquela coisa,  e me veio a idéia do Gólgota [nome da colina em que Jesus Cristo foi crucificado], do martírio de Jesus e todo aquele negócio. E, no dia, a palavra "cálice", a idéia... Na biblioteca, eu estava sentado num tatame, na época eu era muito do tatame, macrobiótica, tudo aquilo. Eu fiquei ali, meio meditando, e veio muito aquela coisa suspensa do cálice reproduzindo um pouco a idéia das missas...

Maria Amélia Rocha Lopes: Do sagrado...

Gilberto Gil: ...o momento da Eucaristia, aquelas coisas todas. E me veio a idéia do "cálice": "Cálice", "afasta de mim esse cálice", "afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue." [Trecho da letra da música; as primeiras palavras são da Bíblia (Marcos 14, 36)] No sábado, no dia seguinte, eu fui na casa do Chico, que morava ali na Lagoa, dali de onde vem o "monstro", vai emergir o Monstro da Lagoa [inaudível] na música... Então, fui lá e propus a ele nós fazermos aquela música. E, para mim, a idéia era do cálice, a idéia do Cálice Sagrado. E ele descobriu o cálice da censura [Chico usou a homofonia entre "cálice" e "cale-se!"]. Esse outro lado foi ele que colocou na música. E nós fizemos, mesmo, assim, a "quatro mãos", como se diz. Eu fiz duas estrofes, ele fez duas estrofes, eu fiz uma parte da música, ele fez uma outra parte da música, então, é uma música bem de parceria, mesmo. Uma música bem... os dois, ali juntos, fazendo...

Tárik de Souza: Só que, no dia da apresentação, os microfones foram desligados!

Gilberto Gil: Os microfones foram desligados na Phono 73, e ela [a música] ficou censurada durante mais seis anos.

Matinas Suzuki: Você cantou...

Tárik de Souza: "Cale-se!" Alguém disse: "Cale-se!" [no show, quando os microfones foram desligados.]

Gilberto Gil: Alguém disse: "Cale-se!"

Matinas Suzuki: E você cantou ["Cálice"] no show na FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], se não me engano, aqui na USP [Universidade de São Paulo]. E havia uma gravação pirata pelos anos 70...

Gilberto Gil: Que circulava...

Matinas Suzuki: ...que circulava, onde as pessoas podiam conhecer "Cálice".

Gilberto Gil: Até que o Milton [Nascimento], depois que a música foi liberada, gravou, acho que já quase seis ou sete anos depois que ela passou censurada [Milton Nascimento gravou-a com Chico Buarque num disco de Chico em 1978]. E, na verdade, nesse caso drástico de censura completa a uma canção minha, foi a única censura, nunca me perseguiu muito.

Matinas Suzuki: Ô Gil, já que entramos... Cléa Amorim, de Teresina, olha aí, diz que ela e o filho...

Gilberto Gil: [cantando] "Peguei o trem em Teresina / Pra São Luiz do Maranhão. / Atravessei o Parnaíba, / Ai, ai que dor no coração." [Trecho da música "De Teresina a São Luís", de Helena Gonzaga e João do Vale] João do Vale, meu "véio"!!!

Matinas Suzuki: Ela diz que estava ao lado do filho Marcelo James, de 19 anos, e pede então para você explicar a música "Super-Homem". Por que você fez a música...

Gilberto Gil: Ah, vamos aqui... [folheando o livro] Eu estou fazendo promoção para mim e para meu livro...! [risos]

Matinas Suzuki: Os telespectadores estão [inaudível].

Gilberto Gil: Então deixa eu ver o livro... Agora eu tenho o livro! Passei horas e horas dando esses depoimentos para o... Veja aí a página...! [risos]

Matinas Suzuki: [risos] O Carlinhos já podia ficar ali preparado para o índice remissivo...

Carlos Rennó: É! Já estou indo aqui!

Gilberto Gil: Índice remissivo... Qual é a página? "Super-Homem", abri nela aqui.

Carlos Rennó: [olhando o índice] É 324.

Gilberto Gil: É, abri sem querer! "Eu estava de passagem pelo Rio, indo para os Estados Unidos fazer excursão do lançamento do Nightingale, um disco gravado lá, com produção do Sérgio Mendes, entre março e abril de 79. E ia gravar também o disco Realce, no final da excursão. Na ocasião, eu estava morando na Bahia e não tinha casa no Rio; por isso, estava hospedado na casa do Caetano [Veloso]. Como eu tinha que viajar logo cedo, na véspera da viagem, eu me recolhi em um quarto lá da casa, por volta de uma hora da manhã. De repente, eu vi uma zoada: era o Caetano chegando da rua, falando muito entusiasmado. Tinha assistido ao filme Super-Homem." Ele, o Caetano. "Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé", Dedé Veloso, mulher de Caetano na época. "Eu fiquei curioso e me juntei ao grupo." Saí, desci do quarto, era no primeiro andar e fui pra sala. Fiquei com ele. "Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Super-Homem morre em um acidente de trem [foi, na verdade, quando seu carro foi engolido por uma fenda na terra causada por um terremoto] e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo e salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar o filme com todos os seus detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do que vendo o filme. [risos] Então eu 'vi' o filme. Conversa vai, conversa vem, e aí fomos dormir. Mas eu não dormi, estava impregnado da imagem do Super-Homem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa idéia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno e comecei. Uma hora depois, a canção estava lá, completa. No dia seguinte, mostrei ao Caetano. Ele ficou contente e disse: 'Que linda!'. Eu viajei para os Estados Unidos fiz a excursão toda, só quando cheguei a Los Angeles, um mês então depois para gravar o disco, foi que eu vi o filme." Uma amiga minha americana de Los Angeles me levou pra ver o filme. "Durante a gravação, uma amiga americana" -  essa, mesma -, "que morava em Los Angeles na ocasião, me levou para ver. A canção foi feita, portanto, com base na narrativa do Caetano. Como era Super-Homem - o filme, ficou "Super-Homem - a canção". Eu não tinha certeza se iria manter esse título para publicá-la, mas mantive."

Celso Masson: Eu gostaria de retomar uma questão que foi interrompida aqui no final do primeiro bloco, que é... Não tem nada a ver com isso que a gente está falando agora, mas tinha a ver naquele momento: a questão de direitos autorais. Teve um momento em que você entrou em atrito com um antigo empresário seu, Guilherme Araújo, a respeito dos direitos de algumas músicas do inicio da sua carreira. Que ele tinha uma parte desses direitos, alguma coisa assim.

Gilberto Gil: Ele era editor.

Celso Masson: Ela era editor.

Gilberto Gil: Através de contratos, enfim, que na ocasião eram contratos draconianos, com cláusulas absolutamente, enfim... E era tudo isso que eu estava questionando, nunca questionei o Guilherme pessoalmente, nem nada.

Celso Masson: Tá, não, não, não: não é nem esse o motivo. O que eu queria que você falasse é se você acredita que a legislação dos direitos autorais no Brasil e a maneira como esses direitos são arrecadados, se isso prejudica o artista, o compositor, principalmente.

Gilberto Gil: Eu não sei... Estamos muito atrasados... A legislação... Você vê: contratos de até bem pouco tempo atrás eram contratos de cessão de direitos. Contratos que davam tudo ao detentor do contrato - em geral, entidades, editoras, entidades editoriais - e quase nada ou muito pouco ao artista. Com relação a direitos futuros, nada. Todos os direitos eram reservados ao detentor do copyright. Quer dizer, essa foi a grande questão no meu questionamento judicial a essa propriedade por parte da editora do Guilherme. O que eu tentei foi restaurar uma situação de detenção de patrimônio.

Celso Masson: Isso foi revertido, teve alguma sentença judicial...?

Gilberto Gil: Nós ganhamos na primeira instância de julgamento, a coisa agora está parece que no Tribunal Superior em Brasília, para julgamento, mas, enfim, o direito nosso vem sendo juridicamente reconhecido. E era isso que eu queria, não era nada pessoal contra o Guilherme, nem nada. Eu queria a restauração de um direito, uma revisão histórica necessária, de uma política editorial que era gravosa para o artista, até desrespeitosa com o sentimento, com o sentido autoral.

Celso Masson: O que você pensa do ECAD [Escritório Central de Arrecadação e Distribuição]? Da maneira de atuar...

Gilberto Gil: O ECAD foi um órgão feito para reunir as entidades arrecadadoras em um determinado momento. Unificar a arrecadação, sistematizá-la, racionalizá-la um pouco mais, enfim. País muito grande, com problemas seríssimos de arrecadar, e tal. Então, é um escritório central de arrecadação, que era financiado e gerido por todas as editoras para fazer o serviço para elas. Era uma terceirização, um órgão centralizador de terceirização outorgada pelas editoras. Mas, como tudo no Brasil um pouco, meio ao longo dos anos, aquilo nunca chegou a funcionar direito. Fiquei me lembrando do Maracanã, nunca foi terminado. [risos] Aquela coisa que nunca se faz direito, enfim, e acabou olhando para o próprio umbigo, acabou sendo uma instituição muito poderosa, muito auto-referente, começou a servir, aí é uma discussão longa, a servir a interesses laterais e coisas desse tipo, enfim, meio descaracterizada da sua...

Matinas Suzuki: Ô Gil...

Gilberto Gil: E, principalmente, em uma fase difícil, que foi a fase do regime de exceção, a fase da ditadura, onde, enfim, não se podia abertamente, democraticamente, questionar mesmo essas questões mais pragmáticas do funcionalismo, funcionalidade e eficiência funcional de instituições de órgãos e etc. Porque estava todo mundo ali meio querendo se livrar daquela confusão toda. Então nunca se questionou isso, só recentemente é que o ECAD passou a ser uma coisa mais questionada. E aí vem toda a discussão mais atual sobre direito autoral e etc. Quer dizer, esse estágio mais contemporâneo da discussão que eu acho que já está mais elevado, já está mais...

Carlos Rennó: Gil, me parece que, nessa questão de direitos autorais, há uma coisa de que pouca gente fala nos jornais e que me parece ser a questão central. Eu acredito que talvez você pense de forma similar. Que é a televisão.

Gilberto Gil: O que é que tem?

[...]: Paga pouco.

Carlos Rennó: O que se paga, o que a televisão paga...

Gilberto Gil: E ridículo, irrisório, o que se paga no Brasil, comparativamente ao que se paga nos Estados Unidos, ao que se paga na Europa; quer dizer, o nível...

Carlos Rennó: Não nos Estados Unidos e Europa: Terceiro Mundo!

Gilberto Gil: Sim! Sim!

Carlos Rennó: Terceiro Mundo.

Gilberto Gil: Mesmo assim, [outros] campos, outros países, quer dizer, na Europa, a média chega de 16% a 18% para os autores. No Brasil, acho que não chega nem a 2%, 3%.

Carlos Rennó: É, é uma porcentagem da receita.

Gilberto Gil: Irrisória, ridícula...

Carlos Rennó: Ridícula.

Gilberto Gil: ...mas é o tal negócio, foram os vários lobbies corporativos em geral, defendendo interesses das corporações mais fortes do país, fazendo prevalecer os interesses das corporações mais fortes: as empresas de comunicação, as empresas jornalísticas e etc. etc., que são muito mais fortes do que os pobres dos compositores.

Tárik de Souza: No Brasil, quem paga direito autoral é festinha do interior.

Gilberto Gil: É, exatamente! Você vai ver uma televisão, que faz uso intensivo de música o tempo todo, nas novelas, nos programas e etc. etc., paga...

Carlos Rennó: É irrisório!

Gilberto Gil: É quase irrisório! Esse é um dos grandes problemas que precisam ser corrigidos no Brasil. Quem usa com vantagens comerciais e econômicas mais intensa e intensivamente a música é quem deve pagar mais. Mas as televisões são um exemplo. Mas os lobbies, com deputados "idôneos"...

Carlos Rennó: Fica difícil esperar que a imprensa abra isso, também...

Gilberto Gil: ...dos diários, donos de FM interessados neles diretamente, na questão do produto artístico e musical, têm dificultado muito essa questão da justeza, do ajustamento da questão autoral no Brasil.

Matinas Suzuki: Gil, mudando um pouco de assunto - não que eu ache que essa discussão não seja pertinente, mas...[risos] Tenho aqui um assunto. Dois telespectadores estão interessados, que são o Celso Roxo, daqui de Cerqueira Cézar, e o Hildo Rogério Alves, do bairro Bela Vista, de São Paulo.

Gilberto Gil: São Paulo.

Matinas Suzuki: É sobre o Paulinho da Viola.

Gilberto Gil: Hm.

Matinas Suzuki: O Celso Roxo pergunta: "Como está a sua relação com Paulinho da Viola?" E o Hildo Rogério Alves pergunta: "O que teria levado você a dizer que o Paulinho da Viola era canalha?"

Gilberto Gil: Talvez fosse, principalmente, um arroubo de um fogo naquela época, aquela discussão toda, aquela troca de... Aquele tiroteio, não é? Em que a gente se meteu de lado a lado. Mas, basicamente, foi o fato da distorção, quer dizer, da verdade e dos fatos a que Paulinho foi induzido por questões pessoais dele, compromissos, coisas desse tipo. Foi isso, basicamente. O fato de que Paulinho sabia que eu não tinha dolo, não havia nada de doloso na minha atitude, não havia nada condenável na minha atitude. Ele acompanhou tudo que eu fiz, todo o cuidado que eu tive em defendê-lo no momento em que [houve] os primeiros ataques [contra ele], as primeiras sensações de desconfiança com relação à atitude doméstica, todo o conjunto de atitudes, que vinha dali do reduto dele. Naquele momento, eu fui um dos primeiros a me manifestar, no sentido de: "Espera aí, vamos tomar cuidado com o Paulinho, vamos dar o benefício da dúvida e etc." Coisas desse tipo, para ele sair com quatro pedras em cima de mim do jeito que saiu. Aliás, não foi nem coisa dele, aquilo não era coisa dele, ele era soldado mandado, aquela história toda... Enfim, uma bobagem, um episódio... Mas eu compreendo; do ponto de vista da humanidade, eu compreendo, eu sei por que Paulinho teve que defender ali o seu reduto doméstico contra o fogo da publicidade, o fogo do mundo, o fogo da notícia, enfim, é compreensível, até. Agora, também eu tinha que me defender, não é? Aquela coisa do cunhado dele ter ido ao jornal e dizer isso, dizer aquilo, dizer que eu... imagina, eu tinha sido da maior correção, todos os meus colegas do meu círculo íntimo onde as coisas se passaram, todos sabem muito bem da correção, do cuidado que eu tive em preservar o Paulinho, em defendê-lo e etc. daquilo tudo, mas ele, enfim, ele estava comprometido em... Ele se sentiu levado a desculpar um ato falho da mulher dele, coisas desse tipo, enfim, eu compreendo. Aí, tem que colocar toda nossa amizade, nosso compromisso, o nosso relacionamento em jogo e ele preferiu, optou por isso. Muita gente há de dar a razão a ele. [risos] Eu não...!

Celso Masson: Na época, você sugeriu que ele compusesse um samba que você devolveria...

Gilberto Gil: Ah, eu brinquei. No final, levei para o plano na brincadeira, fiz aquele repto de... Ao gosto, aos moldes das velhas gerações dos sambistas, vamos reeditar a briga do Wilson [Wilson Batista (1913-1968), compositor carioca] com o Noel [Noel Rosa (1910-1937), um dos maiores compositores populares da história da música brasileira] [referência a uma famosa discussão entre os dois músicos durante a década de 1930, feita em letras de canções nas quais um respondia ao outro, e que produziu seis grandes sambas], vamos falar disso, vamos, manda de lá seu samba que eu mando de cá o meu! Quer dizer, esse tipo de coisa. Até para amenizar um pouco a discussão, para tirar aquele cunho pesado, rançoso que ficou, como se a gente tivesse diferenças pessoais e coisas desse tipo... Eu nunca tive, nem tenho! Eu admiro e continuo um grande admirador do Paulinho. Eu serei sempre um grande admirador dele, enfim! [risos] Agora, essas coisas, na hora que chegam no plano das imagens que você quer projetar, ou que querem projetar de você, o que você tem que projetar dos outros... Na hora que chega o confronto e o confronto se estabeleceu, era irremediável, era irreversível; aí, eu tive que dizer o que eu achava e contar a verdade, não é? Eu não pude me omitir e, enfim, eu não quero, enfim...! Paulinho é um grande artista... [risos]

Matinas Suzuki: Gil,se você pudesse falar rapidamente...

Gilberto Gil: Paulinho é um grande artista, eu também sou artista e, enfim, deixa isso para lá...

Matinas Suzuki: Rapidamente, se você pudesse falar três canções, pois nós estamos chegando no final... A Carla e o Camilo vão voltar ao livro. Se você pudesse ser mais rápido, é sobre a "Lente do Amor", que foi um tema da Globo [da série Amizade colorida].

Gilberto Gil: [cantando] "Pela lente do amor"... Não tem comentada, não é? Nós não fizemos comentários sobre ela, não! Eu fiz essa música pensando em quê? De óculos? [brincando com seus óculos] Pensando na...

Matinas Suzuki: Olhando pela lente do amor...

Gilberto Gil: Olhando pela lente do amor... quer dizer, "poetar" fácil, vamos poetar, vamos jogar, delirar com as metáforas, delirar com as palavras.

Matinas Suzuki: Por falar em metáforas, o Ivanildo Soares pergunta então: "Metáfora".

Gilberto Gil: Essa daí demorou um tempo. Eu comecei a escrever, anotei coisas; aí, um ano depois, quase, eu voltei a ela. Ali é uma... Essa está comentada aqui, não está?

[...]: Está, com certeza.

Gilberto Gil: Posso ler?

Matinas Suzuki: Se for rápido!

Gilberto Gil: Será?...

Matinas Suzuki: Que nós estamos bem no... Se você puder... Dá uma lida, dá uma olhada.

Gilberto Gil: Dar uma lidinha rápida. Diga aí a página... Diga lá...

Matinas Suzuki: Escolhe uma frase... [risos]

Gilberto Gil: Diga lá, diga lá, diga lá... onde é que está...? Página...?

[Todos ficam alguns segundos em silêncio.]

Gilberto Gil: [Olhando para Carlos Rennó] Ô, rapaz!...

Carlos Rennó: Pode perguntar outra!

Gilberto Gil: Vamos lá, Carlinhos...!

Carlos Rennó: Pode perguntar outra aí...

Matinas Suzuki: Então, vai! O Luís Guedes pergunta - que é o publicitário da Bela Vista -, pergunta: "Sítio do Pica-Pau Amarelo".

Gilberto Gil: Essa eu fiz de encomenda, para o programa [Sítio do Pica-Pau Amarelo, baseado na obra homônima de Monteiro Lobato]. O programa iria ser lançado inicialmente na TV Globo. Ou na TV Cultura? Não lembro qual foi aqui a que veiculou primeiro...

Matinas Suzuki: Alguém sabe?

Gilberto Gil: Durante muito tempo as duas...

Matinas Suzuki: Globo! Primeiro Globo.

Gilberto Gil: Dori Caymmi, que era responsável pelo departamento de criação de trilhas e tal, na Globo, na ocasião foi lá na minha casa e disse assim: "Estou fazendo, estou distribuindo, vamos fazer o Sítio do Pica-Pau Amarelo, estou fazendo a Emília [uma das personagens], não sem quem vai escrever blá blá blá... Quem que você quer escrever? Eu gostaria que você fizesse alguém, adotasse alguém do Sítio para fazer uma música." Eu disse assim: "Eu posso fazer no geral, assim, não, sobre o Sítio todo? Como se fosse assim um jingle do Sítio?" Aí, ele disse: "Pode!" Aí eu fiz o jingle do Sítio inteiro, quer dizer, ali, é o Sítio todo retratado.

[Vários ao mesmo tempo pedem a Gil para falar sobre a música "Metáfora".]

Carlos Rennó: Sobre "Metáfora", Gil, na página 249, talvez você pudesse escolher o último parágrafo.

Gilberto Gil: É mesmo? 249... [folheando o livro]

Matinas Suzuki: Boa, Carlinhos! [risos]

Gilberto Gil: O último parágrafo vai ser rápido...!

Carlos Rennó: 249. "A patrulha ideológica".

Gilberto Gil: [lendo] "Eu queria responder às cobranças que nos eram feitas na época de conteúdos mais dirigidamente político-sociais e falar da independência do poeta, do fato de a poesia e a arte em geral pertencerem ao mundo da indeterminação, da incerteza, da imprevisibilidade, da liberdade, do paradoxo. O poeta Haroldo de Campos se identificou com a canção que, de fato, é sobre e para todos nós. Eles, os concretistas, que foram atacados pelos conteudistas e nós, os baianos, que abraçamos a causa deles [vários poetas concretistas, como Haroldo de Campos, participaram do movimento tropicalista; os "baianos" eram, em geral, os músicos populares do movimento, como o próprio Gilberto Gil]." Para dar só um dos aspectos...

Matinas Suzuki: Gil, estamos estourando! Mas tem alguma letra que você, no livro, quando viu, achou que ela particularmente cresceu ou que ela... ou a letra que você considera mais importante escrita fora da música?

Gilberto Gil: Ê, sei lá...! [risos] Qual que eu gosto... Tem uma música aqui, também inédita ainda, que eu gostei muito de ler, viu?

Carlos Rennó: "Quarto Mundo"?

Gilberto Gil: "Quarto Mundo", Pode ser.

Matinas Suzuki: Onde está "Quarto Mundo"? Eu queria pedir para a gente encerrar com você lendo então, o "Quarto Mundo", que é inédito.

Gilberto Gil: Diga a página!

Carlos Rennó: Opa!

[Risos]

Carlos Rennó: Ah, não sou computador...! Vamos lá... 320!

Gilberto Gil: Página 320... [folheando o livro] 311, trezentos e...

Carlos Rennó: É uma inédita.

Gilberto Gil: É inédita, essa.

Carlos Rennó: De 1987.

Gilberto Gil: [lendo] "Eu bem que queria saber da magia contida no som tropical / Escassa ambição e excessiva euforia mescladas na dose fatal / Transporte da vida pra morte, da morte pro esquecimento total / A lágrima de encontro ao riso já sem paraíso ou juízo final // Quisera entender meu som tropical / Saber decifrar meu som tropical / Mistério de amor, meu som tropical / Viver e morrer meu som tropical // A carne verde da luxúria estendida ao sol / Assada à brasa dessa vida debaixo do sol / Curtida a pele percutida transmutada em som / Cadência e decadência na batida do tantã // Meu som tropical lembra imagens da aprendizagem da desilusão / Paisagem da cana depois da colheita, da fome após a refeição / O luxo transformado em lixo depois do capricho da satisfação / A calma da alma penada, da ânsia ancorada na resignação // Um Primeiro Mundo, depois um Segundo, um Segundo depois um Terceiro / Investe-se, vestem-se os índios, invertem-se os vértices, mundo ligeiro / E o meu poliedro vai se lapidando, arredondando-se por inteiro / E o som tropical tributando o mistério profundo do ser verdadeiro // Quisera entender meu som tropical / Saber decifrar meu som tropical / Mistério de amor, meu som tropical / Viver e morrer meu som tropical // Quisera entender meu som tropical / Meu Quarto Mundo."

Matinas Suzuki: Bem, com o "Quarto Mundo", inédito de Gilberto Gil, nós encerramos mais um Roda Viva. Agradeço muito a presença dos nossos entrevistadores, a sua atenção e a sua participação e eu lembro a você que Roda Viva volta na próxima segunda-feira, sempre às dez e meia da noite. Até lá! Uma boa semana para todos e uma boa noite!

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