;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Philippe Perrenoud

19/11/2001

"Preparar para a vida não é preparar para a vida material, mas para a vida social, espiritual, relacional, amorosa. Para todas as dimensões da existência": é a frase que sintetiza o pensamento do entrevistado

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

Heródoto Barbeiro: Olá, boa noite. A educação de crianças e jovens é tida hoje como um grande desafio para qualquer nação do mundo. Para o Brasil, certamente, é o problema mais básico e que mais condiciona nossa perspectiva de futuro. O papel da escola, a relação entre professor e aluno, o que se aprende e como se aprende são questões que alimentam o debate em torno da revolução que se julga importante fazer no ensino. O Roda Viva de hoje é dedicado ao tema mais comentado atualmente no mundo da educação: a busca de um novo jeito de ensinar. Nosso convidado é o sociólogo suíço Philippe Perrenoud, um dos principais teóricos da pedagogia diferenciada. Doutor em sociologia e antropologia, professor da Universidade de Genebra [Suíça], especializado em práticas pedagógicas, ele coloca em seus livros que o desenvolvimento de competências nos alunos é a chave da educação moderna. Parte de sua obra já está publicada em português: Pedagogia diferenciada, Construir as competências desde a escola, Avaliação e Dez novas competências para ensinar. Perrenoud afirma que a escola básica não deve ser uma preparação para estudos longos, deve ser uma preparação para a vida. O conhecimento precisa ser construído e usado como ferramenta para compreender o mundo e agir sobre ele. Assim, o papel mais importante da escola não é transferir conteúdos, mas desenvolver competências. Para entrevistar o educador Philippe Perrenoud, nós convidamos a jornalista Ana Maria Sanches, especializada em educação; Terezinha Rios, doutora em educação, professora da PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo; Iara Glória Areias, secretária de ensino fundamental do Ministério da Educação; o antropólogo Edgard de Assis Carvalho, da PUC de São Paulo; Guiomar Namo de Mello, diretora executiva da Fundação Victor Civita e membro do Conselho Nacional de Educação, e o educador Francisco Cordão, assessor educacional do Senac e presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O programa Roda Viva, como você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os brasileiros e também para Brasília, em suma, para todo o nosso país. A entrevista de hoje foi gravada e, por esta razão, não será possível fazer perguntas como você faz normalmente nas edições no nosso programa Roda Viva. Professor Perrenoud, boa noite.

Philippe Perrenoud:
Boa noite.

Heródoto Barbeiro:
Professor, inicialmente, eu gostaria de perguntar ao senhor o seguinte. Outro dia eu ouvi um professor fazendo uma reclamação, dizendo que não conseguia mais atrair a atenção dos seus alunos na sala de aula. Ele me dizia que, na opinião dele, o grande responsável era exatamente a televisão. Eu pergunto ao senhor se realmente a televisão é responsável por isso?

Philippe Perrenoud:
É um estereótipo comum a todas as sociedades acusar a televisão de distrair as crianças e de lhes ensinar a “zapear”. Na verdade, cria nelas o hábito de não se entediar com um programa ruim. Se a escola tem um programa ruim, lógico, vão “zapear”. 

Heródoto Barbeiro:
Ana Maria, por favor, a sua pergunta.

Ana Maria Sanches:
As suas formulações sobre as competências que o professor precisa construir para tornar-se um bom profissional estão bastante disseminadas entre os que pensam a educação no Brasil e empregam fortemente o espírito das diretrizes nacionais elaboradas pelo Ministério da Educação para formação de professores. Não se põe em dúvida a lucidez dessas propostas. No entanto, as instituições formadoras de professores que temos no Brasil continuam a trabalhar sem levar em conta a prática real dos professores, utilizando-se de modelos de formação voltados para a continuidade e para a reprodução, não para a mudança. Então, eu me pergunto: quais as competências que os formadores precisam ter para formar professores competentes? E qual o tipo de intervenção que os sistemas públicos podem adotar para que esses formadores de professores construam as competências necessárias para se tornarem formadores competentes?

Philippe Perrenoud: Primeiramente, devo dizer que, nessa situação, direi coisas simplificadoras que talvez não se apliquem ao seu país, que não conheço. Mas sua pergunta é pertinente também na Europa. Temos os mesmos debates e as mesmas resistências. Uma parte da resposta talvez seja: as universidades e instituições de formação de professores colocam todo o seu orgulho e identidade na formação de professores eficientes ou é questão de serviço elementar, para ter alunos ou para figurar no mercado? Um dos problemas é que alguns professores querem fazer outra coisa. Querem deixar essa formação profissional, porque, em muitos países, nas universidades, formar profissionais não é bem visto – exceto médicos e engenheiros. Mas, em ciências humanas, se houver opção, formam-se alunos de pós-graduação em pequenos grupos de estudos fundamentais sobre temas bem específicos. Mas professores para classes, isso parece bem menos nobre. Por isso é importante haver um debate interno nas universidades. Sobretudo em relação aos pesquisadores, para entenderem que, ao se formarem profissionais, se compreende melhor a realidade. Isso não é contrário à pesquisa, mas é um meio de fazer pesquisa, um meio para construir teoria, para se aproximar da realidade. A formação dos pesquisadores de hoje dá a impressão de que, quanto mais longe da realidade, no laboratório, cercados de instrumentos especializados, mais puros eles serão e mais capazes de compreender, portanto é um debate epistemológico. Perguntou-me também se, para formar professores, há outras competências, além de dar aulas num auditório. Depende do modelo de formação que adotem. Se for o que chamo de clínica, isso é, com situações específicas, estudos de caso, práticas, o formador deve ter grande capacidade de improvisação, de se adaptar ao que os alunos trazem num sistema de alternância. Portanto, não se pode fazer um planejamento próprio, não se diz: “Bem, hoje vou estudar tal capítulo do desenvolvimento cognitivo. Depois, na semana que vem, o capítulo seguinte...” É preciso improvisar. Isso angustia os professores. Não foram habituados a construir o saber a partir de situações específicas. Há, portanto, um desafio na formação do professor. Talvez o primeiro seja aderir a esse modelo de formação ou vencer resistências a ele. Depois, sentir-se confortável ao praticá-lo. Por exemplo, não estar sempre dizendo: “Isso não sei, é com outro especialista.” Gosto muito de uma cena do filme Bonnie & Clyde - uma rajada de balas [filme de 1967, dirigido por Arthur Penn] em que eles são perseguidos pela polícia e, na fronteira entre estados, a polícia estadual pára porque não pode persegui-los no estado vizinho. Só os federais podem fazê-lo. Talvez no Brasil seja assim. Em suma, os especialistas são como a polícia estadual. Se a questão foge a seu campo, eles dizem: “Não posso prosseguir. Consulte outra pessoa.” Os que trabalham na prática trazem questões complexas, ao mesmo tempo psicológicas, sociológicas e didáticas. Precisam de pessoas que assumam o risco da polivalência, que assumam o risco da complexidade, que não digam: “Espere. Volto daqui um ano. Vou pesquisar e, aí, eu respondo.” Precisam de quem pense junto e vá além da pesquisa. A formação dos universitários prepara-os para o contrário, para serem muito prudentes, protegidos de qualquer erro. Daí o debate sobre a vocação da universidade. Será um lugar de formação ou um lugar de ensino, de transmissão? Não sei se respondi a sua pergunta.

Heródoto Barbeiro:
Professor Edgar, por favor.

Edgard de Assis Carvalho:
Boa noite, professor. É um prazer estar aqui com o senhor. Eu gostaria de fazer uma observação, talvez mais antropológica. Acho que, no fim do século passado, ou seja, no século XX, aconteceu uma série de publicações sobre o que fazer com a educação no futuro. Há o seu livro Dez competências para ensinar e há um livro de Edgar Morin [filósofo, antropólogo e historiador francês - ver entrevista com Morin no Roda Viva] chamado Sete saberes necessários à educação do futuro. Então, nós vemos uma série de elencos: Dez competências, Sete saberes etc. Olhando as suas competências, organizar, administrar, conceder, e olhando os sete saberes propostos pelo professor Morin – seguidos de conhecimento, princípios de conhecimento pertinentes, o ensino da condição humana, identidade terrena, a ética do gênio–... Como o senhor, ele reconhece um projeto que não foi para frente, dada a resistência que houve na França por causa da implantação do projeto. Então, o que eu gostaria de perguntar ao senhor é o seguinte: o senhor acha que entre seu livro e os Sete saberes necessários à educação do futuro, há contradições, complementaridades ou antagonismos?

Philippe Perrenoud:
Não acho que haja contradições. Edgar Morin o fez para a Unesco [Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura]. Nenhum país se comprometeu a aplicar esses sete saberes. Nem tentaram. Não podemos nem dizer que foi um fracasso. Nem se tentou. Mas ele enfatiza e penso que, antes de formar professores, é preciso responder à pergunta: “Que escola queremos?” E, se essa escola deve aplicar os sete saberes em questão, é preciso formar professores capazes de desenvolvê-los, não de ensinar coisas específicas em disciplinas. O debate sobre as propostas de Edgard Morin é, logicamente, filosófico e ideológico. São [propostas] utópicas, no atual sistema, mas necessárias. Em outras palavras, o que Edgar Morin nos diz é que é indispensável voltar a certo número de coisas, pequenas coisas – talvez sete, talvez dez, mas só o essencial –. Escola não é para se acumular saber a perder de vista sem saber por quê. É para ensinar as pessoas a viver, pensar, viver juntas, a compreender o que acontece, a conservar os pés no chão, a fazer história como atores, não como assunto. É muito importante que tenhamos isso em mente o tempo todo e que não nos percamos em programas tão detalhados, em que já nem se saiba por que ir à escola. Mas, ao mesmo tempo, a escola não pode se contentar com sete saberes. Ela deve traduzi-los em muitos objetos de saber, em muitos anos de programa e em muitas disciplinas. Mesmo que Morin nos convide à concisão, à não-dispersão, nenhum professor será capaz de ensinar por muitos anos seguindo a lista dos sete saberes, pois eles requerem uma capacidade de interpretar e transpor que exigiria toda a cultura de Edgar Morin e dos filósofos, sociólogos, psicólogos para saber o que quer dizer, na realidade, essa identidade terrena. Seria preciso ser economista, historiador, antropólogo etc. Então, é preciso, de certo modo, ajudar o professor a se aprofundar no detalhe, pois não se pode trabalhar com coisas tão abstratas, ainda que fundamentais. Meu livro está mais perto da prática concreta de quem ensina. Não é menos utópico, pois tais competências podem ainda não estar presentes, talvez nem sejam assimiladas em 5 ou 50 anos, se é que ainda haverá escola daqui 50 anos. Mas é uma utopia tão necessária quanto a dele no sentido de definir aonde chegar e o que um professor deveria normalmente saber, não para ensinar, mas para fazer aprender. Não para transmitir o saber, mas sim para construir competências e uma identidade, uma relação com o mundo, com o saber. É arriscado reduzi-las a dez ou cinqüenta, pois há muitas outras dimensões. Mas insistimos nessas listas infinitas que é importante voltar ao essencial. Nisso estou próximo de Morin. Conservar a visão do todo, não se perder nos detalhes. Não se vai à escola por cem razões, mas por três ou quatro razões, que são bastante suficientes.

Heródoto Barbeiro: Professora Guiomar.

Guiomar Namo de Mello:
Professor, é uma grande satisfação estar aqui conversando com o senhor, porque os seus livros e as suas reflexões da educação têm sido muito inspiradores para vários educadores e instituições brasileiras. Inclusive, o Conselho Nacional de Educação terminou de aprovar as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores
isso foi feito pelo Conselho e não pelo Ministério –. Durante o processo em que nós estivemos discutindo a proposta de formação de professores, que é muito focada nas competências, em formar professores por meio de um conjunto de competências e não apenas de cursos expositivos na universidade, nós sentimos uma resistência muito grande do setor educacional, sobretudo do setor universitário, em relação ao termo competência. Creio que, talvez, isso se deva ao fato de que no Brasil a palavra competência sempre lembra a palavra skills [habilidade]. Em inglês, ela é associada ao adestramento sem reflexão. E, por mais que se explique, por mais que se diga creio até que seria um privilégio se o senhor pudesse tomar ciência do conteúdo desse documento –, ele é bastante claro ao estabelecer o conceito de competência. Aliás, ele cita literalmente os seus trabalhos. Mas sempre se vê uma resistência, sobretudo das pessoas que se proclamam mais à esquerda, politicamente, que dizem que o conceito de competência é uma imposição norte-americana, que é um conceito que só está voltado para o mercado, que só pensa em termos de adestramento. Acho que é uma boa oportunidade, talvez, para o senhor mesmo, pessoalmente, esclarecer esse equívoco. Nós temos procurado esclarecer isso e muitas vezes não temos sido muito felizes nesse debate.

Philippe Perrenoud: Conheço a crítica, pois é feita em todos os países e tem fundamento. É importante marcar a diferença entre o conceito de competência que a escola quer desenvolver e o uso desse conceito pelas empresas atualmente. É preciso diferenciar. Há um lado negativo da evolução do mercado de trabalho, do mundo econômico em que a noção de “competência” tomou o lugar da noção da “qualificação”, individualizou o tratamento das pessoas, criou desigualdades, criou a precariedade, criou flexibilidade em prejuízo do trabalhador. É a realidade. Pode-se, então, usar o conceito de competência, de gestão de recursos humanos contra as pessoas. Ao mesmo tempo, até no mundo da empresa, o reconhecimento do conceito de competência é o reconhecimento da complexidade do trabalho até nos trabalhos menos qualificados, da inteligência no trabalho de todos os trabalhadores, mesmo dos que controlam portões e estacionamentos, dos que servem na lanchonete. Todos fazem escolhas, todos devem fazer julgamentos, todos constroem algo, todos avaliam situações que não estão nos manuais, não-padronizadas, todos se arriscam a pensar mesmo em algo simples, ao contrário do que se pensa. Portanto devemos reconhecer que a competência no trabalho é uma forma de valorização do sujeito que pensa. Primeiro, não é um savoir-faire (saber-fazer) de baixo nível. A inteligência humana está presente nas competências e a escola segue o mesmo objetivo nisso. Ela não é responsável pelas relações de força que se travam no mundo. A escola não pode mudar o capitalismo e a sociedade. Ela faz parte da sociedade. Não se deve responsabilizá-la, mas não se pode pedir que ela aumente o problema. Daí, é crucial que competências desenvolvidas na escola não sejam habilidades para funções de trabalho ou locais particulares, mas que sejam competências de alto nível. Não concebo competência como uma habilidade específica, mas como a capacidade de analisar uma situação, de compreender de onde vem essa situação, qual é o problema, quais são as soluções, que estratégia adotar, onde há recursos, com quem contar, quais são os riscos, quais são as vantagens. Competência é, portanto, pensar em situações complexas. Pesquisadores têm competências mesmo em situações abstratas. A maioria das pessoas enfrenta situações em que deve decidir, antecipar, assumir riscos. O título de um dos meus livros ainda não traduzidos aqui é Agir em emergências e decidir na certeza. Essa é a realidade do mundo fora de um escritório. É preciso assumir riscos, agir cada vez mais depressa, mesmo sem ter todas as informações. A competência é uma função psicológica superior. Não é o contrário do saber: é usá-lo para tomar decisões. A evolução do mundo do trabalho valoriza também a inteligência, é contra o taylorismo [fracionamento das atividades de trabalho por especializações com o objetivo de atingir maior produtividade. Essa idéia era a base dos pensamentos do engenheiro norte-americano Frederick Taylor, que em 1911 publicou a obra Os princípios da administração científica], contra a fragmentação das tarefas, isto é, a evolução do mundo econômico é muito ambígua. Ela reconhece a importância do indivíduo, de sua criatividade, mas ao mesmo tempo se serve delas para explorar uma parte dos trabalhadores. É uma contradição a ser discutida.

Iara Glória Areias Prado:
Então, dentro dessa linha, poderíamos dizer que a competência não é nem a habilidade nem o saber-fazer? Quer dizer, como que é esse conceito? Para os professores que estão lendo os seus livros, poderia ficar claro? Como poderia ser definido o que é a competência? Ela não é habilidade. Não é saber fazer. Então, ela é o quê para o professor? Agora, o grande problema dos professores é que eles precisam ensinar e desenvolver competências. O que é a competência, de uma forma simples, para um professor que está lendo na sala de aula o seu livro?

Philippe Perrenoud: Deve-se dizer aos professores e responsáveis pela educação que o conceito de competência não é claro e não é simples. Não há um consenso, não apenas ideológico, mas conceitual e teórico. Que não digam: “Todos sabem o que é competência, menos eu”. Na realidade, ninguém sabe exatamente o que é. Cada conversa leva uma pessoa a mudar. Para mim, a competência não é necessariamente sempre de alto nível, ela também pode ser um savoir faire. Há vários... Theodor Herlz [(1860-1904), jornalista austríaco, fundador do sionismo político, movimento que defende a autodeterminação ente judeus e a formulação de um Estado judaico], por exemplo, a divide em três níveis: um, dois e três. E poderíamos dizer cinco, seis e sete. São graus de complexidade de situações a enfrentar. É normal que nenhum autor as defina do mesmo modo. Até o mesmo autor pode variar sua definição de uma página a outra. Em parte, isso é normal, pois é o que se passa. Saber o que é mais difícil, como o espírito humano dita nossas ações, como chegamos a tomar decisões, a pensar a realidade, a fazer escolhas. Depois, guiar e regular essas escolhas. Portanto, é toda a complexidade do espírito humano que está em questão. Uma palavra não basta para descrever tudo isso. Competência é uma palavra muito abrangente para descrever um conjunto de funções cognitivas. As obras de Guy Le Boterf [educador francês] talvez possam ajudá-los mais, são mais claras e acessíveis. Ele diz que a competência tem duas partes. De um lado, ela usa um certo número de capacidades específicas, que são os recursos, mas são recursos internos, e não da internet ou outros. São recursos aprendidos e disponíveis na memória, mas que, sozinhos, não resolvem problema nenhum. É preciso saber utilizá-los. É o que já se chamou de transferência de recursos, hoje é chamado mobilização de recursos cognitivos. De transferência passou para mobilização, que é mais geral. É o conceito de conhecimento para recursos cognitivos, porque também há atitudes, princípios éticos e capacidades particulares. O conjunto das coisas guardadas na memória, a competência de juntá-las, a capacidade de colocá-las em sinergia, de usá-las juntas para resolver um determinado problema. Finalmente, é bem simples de entender. As pessoas fazem isso sempre. Não tenho dinheiro para chegar ao fim do mês. A que renuncio? O que vou fazer? Isto? Aquilo? Penso e decido. Isso é uma competência. A dificuldade não está em imaginar a competência, mas em destrinchar o funcionamento cognitivo. Como professor, não se pode apenas designá-la objetivamente. É preciso trabalhá-la gradualmente, inventariar os recursos necessários e, depois, organizar a mobilização. O problema da escola foi que, durante muito tempo, por dez anos, acreditou-se que se podia acumular recursos, isto é, o saber em história, física, química, biologia e que um dia se aprenderia a mobilizá-los, talvez no trabalho, na vida etc. Hoje, sabemos que não se aprende a mobilizá-los sozinho. Esse é também um objetivo educacional a ser rapidamente introduzido no trabalho escolar diário. Projetos, situações problemáticas, contradições, enigmas, todo tipo de coisa que faça funcionarem as competências, não só acumular recursos, como um esquilo acumula avelãs para o inverno. É, portanto, muito importante associar constantemente esses dois elementos: o saber e o modo de utilizá-lo.

Heródoto Barbeiro: Professora Terezinha Rios.

Terezinha Rios:
Boa noite, professor. Eu acredito, como os outros que antecederam minha fala, que é muitíssimo importante a sua presença e a sua palavra estar sendo confrontada com aquilo que os professores, os educadores, vêm lendo sobre o seu trabalho e no seu trabalho. Eu quero estar pensando mesmo no uso, na utilização dessa expressão, do conceito de competência. Eu tenho utilizado esse conceito no singular, pensando a competência numa prática pedagógica competente, num professor competente, e, portanto, chamando de competência um conjunto de qualidades, de saberes, de fazeres e de valores que seriam exigidos de um professor para ele ter uma prática bem-sucedida e atingir os objetivos. Na verdade, nós começamos a conversa da competência aqui, especialmente com o trabalho da professora Guiomar Namo de Mello – seu livro se chama Ensino, educação de primeiro grau - da competência técnica ao compromisso político–. Ali, a partir desse trabalho, surgiu uma discussão muito grande sobre a questão da competência. Chegávamos até a dizer que, na verdade, o compromisso era uma dimensão do trabalho que se queria competente, portanto havia dimensões na competência. Uma dimensão técnica, uma dimensão política, uma dimensão ética e estética também, todas ela se juntavam. Portanto, eu gostaria de ouvi-lo mais nessa questão, sobre competência ou competências. As competências não seriam – e, às vezes, a gente ouve os professores falarem em substituições para capacidade
  habilidades, saberes etc?

Philippe Perrenoud: Para mim é no plural necessariamente. Pode-se, claro, designar competência no singular como forma de qualificação global. Mas, pelo perfil, pelos professores, nem todos sabem fazer as mesmas coisas. É indispensável analisar e detalhar. Alguns sabem muito bem mobilizar e interessar um grupo, mas são incapazes de corrigir os erros dos alunos. Outros se dão bem com os pais, mas são tediosos em classe. Para mim, dez ou cinqüenta, um número importante, mas não mil. É uma porção, algumas dezenas, que não existem necessariamente aos pares. Alguns possuem e outros não. Cada professor tem um perfil com relação às competências. É muito importante não esquematizar, colocando de um lado os competentes e de outro os incompetentes: todos têm certas competências e a todos faltam certas outras. Mas as competências não bastam para fazer um bom professor. Essa linguagem não pretende ser totalitária pelo fato de que nem tudo deve ser descrito como competência. Ter ética não é uma competência, respeitar as pessoas tampouco, mas são igualmente importantes, ou seja, bem concretamente, no referencial da formação do professor, como em outras profissões e para os alunos, é indispensável que os objetivos da educação não sejam todos escritos na linguagem das competências. Seria muito limitador. Ao se trabalhar o saber, o respeito ao ambiente, o respeito às diferenças... É claro que as competências são necessárias para realizar essas atitudes, mas não são competências em si. São valores, relações com o mundo, relacionamentos. É muito importante não por tudo no mesmo rótulo, pois seria um desvio tecnocrata tanto na escola quanto na formação dos professores sobre valores, de acordo com visões de mundo. Nada se ganha ao chamar, assim, coisas de outra ordem, com filosofia e objetivos ideológicos mais fortes. Mas é importante também não as separar totalmente, pois, por exemplo, é importante respeitar a qualidade ética, respeitar a vida privada das famílias e das crianças, algo que não se faz nas escolas, em nenhum lugar. Isso requer certa habilidade para saber quais são os limites. Quais os limites do segredo profissional? Como saber quando fazer certas perguntas, saber certas coisas para fazer seu trabalho? Quando isso se transforma em fofoca, em maledicência, em algo que prejudica pessoas sem ser útil ao trabalho? Os médicos têm esse problema. Os psicólogos também o têm. Portanto, é importante, para ser ético, ter uma boa capacidade de análise, pois ser ético é sempre um dilema. Se as regras fossem simples, todos as respeitariam. Na maioria das vezes, o ensino é uma violência imposta. É uma obrigação, uma invasão da intimidade das pessoas. É necessário – ou não poderia existir–, mas onde está o limite? A competência é necessária para se exercer dimensão ética, mas não se reduz à competência. É uma ferramenta para se realizarem coisas difíceis. Quanto às capacidades, há um debate teórico a fazer. É difícil. Para mim, a diferença é que uma capacidade, como analisar, não remete a contexto nenhum em particular, talvez não haja... Um médico sabe analisar, um radiologista sabe analisar, um geólogo sabe analisar, um economista, um palhaço, um pintor. É o mesmo trabalho do espírito? Não, é certo. O fato de um verbo estar no dicionário não implica que haja só uma competência por trás desse verbo. Saber observar não é algo idêntico em todas as profissões e áreas. As competências remetem a situações, à famílias delas, à universos de ações concretas. Um dos problemas, atualmente, no que se refere a competências e programas é que se acredita ganhar, em síntese, aumentando o nível de abstração. Nesses programas encontram-se: saber comunicar, adaptar-se, argumentar, escutar... Escutar quem? Saber argumentar para quê? Saber mudar em que contexto, mudar hábitos alimentares ou mudar de sociedade? Não é o mesmo. Portanto, não é útil reunir todas essas situações concretas em palavras abstratas. É um desvio da abordagem por competências. No fundo, é voltar ao que a escola adora: a abstração. É juntar o que, na verdade, não deve estar junto. Os peritos desenvolvem competências especializadas. O bom analista de radiografias pode ser péssimo analista da situação de sua família. Não há transferência automática. É preciso se ligar a um campo de trabalho, a um universo de saber, a parceiros, a uma instituição, e não fugir para alguma palavra que indique ação, pensando que se indicou competência. Mas há capacidades que devem ser trabalhadas dessa forma. A capacidade de dissociar e de sintetizar são coisas interessantes, porém não tratam a fundo as competências.

Heródoto Barbeiro: Professor Perrenoud, eu ouvi muito o senhor falar agora no primeiro tempo, no primeiro bloco, sobre competências e me lembrei que as empresas, quando procuram contratar as pessoas, querem saber quais as competências que elas têm. Eu gostaria de perguntar ao senhor o seguinte: a proposta do senhor é a pedagogia da época da globalização?

Philippe Perrenoud: É possível. Sempre se está na pedagogia de uma época e nem sempre se sabe o que se faz. É bem verdade que existe um risco de conluio entre duas correntes muito independentes. De certo modo, acho importante dizer que a visão da educação como preparação para o trabalho, para a vida e para a resolução de problemas é antiga. Como corrente da escola ativa e da escola aberta, data do século XIX. Não estávamos na globalização. Não estávamos na gestão de competências nas empresas. Pensava-se simplesmente em humanismo. As pessoas deviam ir à escola para entender o mundo, para saber fazer coisas, não só no trabalho. Hoje, fomos pegos, realmente, por uma economia que usa recursos humanos
para produzir lucros e produzir bens. Esse é um conceito muito discutível. Somos bem ambivalentes em relação a isso, pois vivemos dessa economia e, ao mesmo tempo, a denunciamos. Efetivamente, existe o risco de a escola e seus programas se dobrarem à globalização, à crescente flexibilidade dos mercados, portanto aos modos de produção. Talvez não se deva, pois, opor um conceito ao outro. Mas se deve opor duas visões da missão da escola e continuar a batalhar por uma escola que não exista para adaptar gente à economia, mas sim preparar para a vida, o que é bem diferente. Não sei se respondi a sua pergunta.

Heródoto Barbeiro:
Professor Francisco Cordão.

Francisco Cordão: Professor Perrenoud, boa noite. É um prazer muito grande estar debatendo sobre a questão da competência, até porque os seus livros nos ajudaram e muito a entender melhor esse conceito, que o senhor mesmo diz que não é muito claro. Quer dizer, o conceito de competências, ele vem recebendo diferentes significados. No Conselho Nacional da Educação, quando nós estávamos discutindo a estruturação curricular dos cursos de educação profissional, centrado na noção de competência, nós definimos, caracterizamos um conceito para a competência e procuramos entender a competência como a capacidade individual de articular e mobilizar valores, habilidades, conhecimentos e colocá-los em prática para resolver os requerimentos da vida profissional. Nós gostaríamos de que o senhor comentasse um pouco essa definição do Conselho Nacional da Educação de competência à luz das questões relativas à estruturação curricular e também sobre a avaliação dessa aprendizagem, no contexto das escolas profissionais, para desenvolver competências com essa capacidade de articular e mobilizar conhecimentos, valores e habilidades, colocá-los em ação, resolver os desafios de maneira eficiente.

Philippe Perrenoud: Eu compartilho a sua definição. Podemos discutir o vocabulário empregado na sua pergunta, mas, efetivamente, articular, mobilizar, pôr em sinergia, orquestrar, integrar, todos esses termos têm significados próximos e diferentes. E são todos úteis. Todos designam uma alquimia estranha, o conjunto das operações cognitivas com que juntamos o que aprendemos em separado, em momentos diferentes de nossa vida, mas que é útil e pertinente para uma solução aqui e agora. A formação profissional é privilegiada nesse sentido, pois tem referência precisa nas situações de trabalho. Essas são múltiplas, mesmo numa só profissão, e mutáveis. Ainda assim, conhecem-se bem as tarefas e problemas que enfrentam os que trabalham em certa categoria. É possível identificar muito bem um número limitado de situações e construir um referencial. É nesse campo que se encontram menos problemas em questão de competências. Eles existem: não se perder em detalhes, hierarquizar, fazer famílias adequadas... E é muito importante não ir muito depressa. O que impressiona, em certos sistemas educacionais da Europa e da América do Norte, é que há uma certa precipitação em passar de um programa orientado para o conhecimento a um programa orientado para as competências, como se fosse importante mudar de paradigma em dois anos. No entanto, o importante é que todos percorram o caminho intelectual para entender a diferença, porque é preciso reorientar os programas e, até certo ponto, participar da construção de referenciais. Nas escolas profissionais é mais fácil. Fala-se da mesma profissão, pratica-se a mesma profissão, fala-se em nome dos colegas, mas é preciso, ainda que haja condições de troca, de harmonização... Na França, fala-se de conferência de consenso, por exemplo, ou seja, uma espécie de assembléia de profissionais que expõem sua representação da realidade do trabalho hoje e amanhã. Isso não existe em todo lugar, em todas as profissões. É um dispositivo de transposição didática a partir de práticas profissionais que não são simples, mas possíveis dentro de uma profissão. Supõe-se que se dedique algum tempo a observar o trabalho, a analisar as práticas reais e transpô-las em competências. Mais eficiente seria confiar o trabalho a peritos bem pagos, munidos de uma procuração, que voltariam três ou seis meses depois com um texto magnífico que ninguém iria compreender. É muito importante que a análise de competência seja feita por muitos formadores, por muitos profissionais, haver dois anos de debates contraditórios, ideológicos, mas também técnicos e metodológicos. E penso que iremos bem depressa, pois estamos na fase de elaboração do referencial, aquela que cria um sentido, um consenso e que permitirá que se leve a sério esse referencial. Se esse referencial não emanar de peritos, mesmo que seja coerente e bem feito, ninguém o habilitará, nem o compreenderá. O que mais preocupa está na educação fundamental. Qual é o equivalente? Pode-se reunir em conferências eletricistas, engenheiros agrônomos, dentistas e vendedores de carros. Mas que conferência se deveria convocar para as competências da vida? É a sociedade inteira. Isso quer dizer que, antes de se estabilizarem os programas em termos de competências, é importante organizar um debate social sobre as finalidades da escola e sobre as situações da vida, e não somente do trabalho que as pessoas vão enfrentar. Vão ter que mudar de país, mudar de profissão? Muitos dirão: "O que é a participação política hoje?" Todos entendem um programa como o Roda Viva? Que competências isso exige: lingüística, intelectual, competência de abstração, capacidade de concentração, capacidade de se deslocar mentalmente para se interessar por coisas fora da vida cotidiana? Há um enorme trabalho de análise das situações reais nas quais as pessoas são colocadas e me horroriza ver a velocidade com que os sistemas educativos mudam e saltam essa etapa. Como se o essencial fosse criar novos programas. Mas o essencial é a representação do que é importante na escola. E isso não estamos mudando.

Guiomar Namo de Mello:
Gostaria muito de continuar falando em formação de professor, mas existe uma outra questão no Brasil sobre a qual eu gostaria de ouvir os seus comentários. Nós estamos tentando mudar um paradigma curricular neste país, exatamente na direção de ter cabeças bem feitas e não cabeças-feitas. Para utilizar uma expressão muito feliz que o senhor o tem, ou seja, pensando que a escola tem que preparar para a vida, para a convivência, para ter um projeto de vida, para saber gerenciar a sua própria saúde, os recursos naturais etc. No entanto, nós temos uma espécie de espada de Dâmocles na cabeça dos educadores, que se chama exame vestibular, que corresponde ao baccalauréat francês de certa maneira. Corresponderia, eventualmente, aos exames que são feitos na Inglaterra e em outros países da Europa. Trata-se de uma visão bastante quantitativa do conhecimento, em que o conhecimento cobrado é a acumulação de um conjunto de fatos e de conceitos. Pouco se cobra em relação à aplicação. Até hoje, no Brasil, é isso que a universidade tem cobrado dos alunos para admiti-los. Sobretudo, nós vemos que, no Brasil... que o ensino médio, que é o final da escola básica está aumentando intensamente. Cada vez mais jovens estão chegando. São jovens que precisam, eventualmente, de um projeto de vida, de continuar trabalhando para poder fazer a universidade, porque não podem arcar com os custos do ensino superior. Essa é uma questão bastante premente entre os educadores. Toda vez que a gente diz que a escola tem que preparar para a vida, os professores e diretores de escola dizem: “Mas o exame vestibular não quer o aluno preparado para a vida. Exame vestibular quer alunos que saibam exatamente determinadas coisas.” Como é isso na Europa? Como essa visão da escola que prepara para a vida se confronta com exames acadêmicos e com demandas acadêmicas do sistema educacional?

Philippe Perrenoud:
Não é muito diferente [risos]. Vivemos um período de sonhar com uma alternativa, mas ela não se realizou ainda. Em parte por razões históricas, quase todo o sistema educacional é construído a partir de cima. Primeiro, as universidades. Depois, as escolas secundárias e, só no final, a escola primária. Todo o sistema educativo, em toda parte, é uma imensa propedêutica de preparação aos estudos longos. Ainda não saímos dessa lógica. As universidades dizem: “Queremos alunos com isso em lingüística, matemática etc. Do contrário, não conseguimos elaborar um programa de primeiro e segundo ciclos universitários.” As escolas de segundo grau dizem para a escola média: “Queremos quem estudou álgebra, história e gramática.” E a escola média diz para a escola primária: “Queremos alunos que, aos doze anos, saibam...” Essa lógica vem de cima. E esse "de cima" não é a vida, são os estudos superiores. É fácil analisar, se bem que não saibemos o suficiente. É muito difícil combater. O ensino universitário é uma importante alavanca social, que considera mais importante alunos preparados para estudar que preparados para a vida. É preciso equilibrar essas forças centradas em saberes abstratos, em preparo para estudos longos, com outras considerações, outros argumentos. Hoje, talvez, um dos argumentos importantes seja considerar que não é mais inteligente haver uma pequena elite em todas as sociedades. Algo como 20% com longos estudos, na elite, e o resto de pessoas que estudou um mínimo para saber produzir, votar, ser conformista. Hoje precisamos de muitas pessoas bem qualificados em todas as profissões, em todos os campos sociais. Precisamos preparar muitos para situações complexas, não só uma minoria. Alguns sistemas educacionais ainda não entenderam esse fato. Ainda funcionam segundo uma lógica extremamente seletiva. Países que querem ganhar medalhas nos Jogos Olímpicos entenderam há muito que devem ter muitos atletas. Precisam ter milhares, dezenas de milhares, milhões de atletas para ganharem muitas medalhas. Porque dessa grande quantidade sairá, depois, a elite. Em educação fazemos o contrário. Selecionamos o mais depressa possível a elite de amanhã e elaboramos o currículo para esse fim. No entanto, devíamos dizer: "Até 15 anos, formaremos pessoas para a vida. Elas vão entender a sociedade, compreender o trabalho, entender a natureza, fenômenos naturais e humanos. Se quiserem ser médicos, geólogos ou farmacêuticos, aprenderão isso mais tarde com muita facilidade." [Michel de] Montaigne já dizia: “Mais vale uma cabeça bem feita que uma cabeça bem cheia”. É preciso lembrar que ele dizia isso para os professores, não só para os alunos. Mas por que ele dizia isso? Em uma de suas teses, que data de vários séculos, ele argumentava que as pessoas que adquiriam uma cultura geral e uma compreensão do mundo podiam aprender depressa uma porção de coisas. Era indispensável incluir logo no currículo matérias muito difíceis, como frações ou álgebra, que poderiam ser aprendidas mais tarde e mais facilmente. Mas elas são ensinadas cedo para que, na universidade, sequer já tenham sido assimiladas. Poder-se-ia muito bem, por exemplo, abordar as equações diferenciais ou termos matemáticos muito complexos na universidade, mas isso criaria um problema delicado, pois a pedagogia universitária é muito ineficiente. Precisa-se de muitos anos para que as pessoas aprendam, pois não individualiza o ensino, não faz avaliação formativa, trabalha com grupos enormes, interessa-se relativamente pouco pelo trabalho individual do aluno. Conta-se com o sistema educacional para fazer parte do trabalho. Se quiséssemos formar juristas ou químicos em três anos, com programas mais densos, seria possível, mas precisaríamos mudar a universidade.

Ana Maria Sanchez: A Guiomar acaba de falar numa dificuldade, num limite, que é a postura das universidades. Eu vou tocar num outro assunto muito delicado no Brasil, que é a resistência dos professores, pelo menos de boa parte deles. Eu li, há alguns dias, um capítulo que o senhor escreveu de um livro que o Heródoto não mostrou, que se chama Formando professores profissionais: quais estratégias, quais competências. E, nesse capítulo, o senhor faz uma abordagem bem mais psicológica do que nos seus outros trabalhos sobre a mudança de hábitos dos professores. Se a gente levar rigorosamente em conta tudo que está posto ali, acho que podemos ficar até um pouco paralisados com relação às mudanças pretendidas, tantas são as coisas que se deve levar em conta. É delicado o assunto e tal. Por outro lado, o professor é um profissional como qualquer outro, de quem nós deveríamos poder exigir um trabalho bem feito, um trabalho de boa qualidade. Ainda mais em países como o Brasil, em que uma boa parte da população tem na escola a única oportunidade de adquirir as competências necessárias para conseguir trabalhar e viver dignamente. A escola é muito importante. Então, eu lhe pergunto, qual é o limite disso? Quanto é possível admitir o direito de o professor dizer “sou assim mesmo, não posso me refazer”, como está, aliás, lá no seu escrito, diante do direito que a sociedade tem a uma educação de boa qualidade?

Philippe Perrenoud: Talvez eu não faça amigos no Brasil nem entre meus colegas universitários [risos]. Claro, como todas as profissões, a de professor deve dar conta da qualidade de seu trabalho, pois não somos professores por conta própria, nem na escola maternal nem na universidade. Trabalhamos muito a organização, temos um contrato e devemos trabalhar bem, talvez até melhor. Ninguém pode dizer: “Faço o que quero, não presto contas para ninguém. Sou professor...” A menos que abra uma escola, tenha alunos e uma renda. Alguns o fizeram. Os maiores inovadores trabalharam à margem do sistema educativo. Não eram funcionários, não tinham salário garantido no fim do mês. Se somos assalariados, aceitamos as regras do jogo, o que não quer dizer aceitar qualquer coisa. Um problema do serviço público em geral, e do professorado, é prestar contas sem se submeter a absurdos controles burocráticos. Nem a obrigações impossíveis. Todos os sistemas educacionais têm uma grande dificuldade: achar modos de prestar contas que tenham credibilidade, sejam sérios, mas não passíveis de obrigações de procedimentos, nem de obrigações de resultados, obrigações de procedimentos, quer dizer: “Usei bons meios de ensino, bons meios de avaliação, segui o programa, cheguei no horário, não bati em alunos, sou irrepreensível.” Isso não basta. Ao mesmo tempo, as obrigações de resultados consistem em, no fim do ano, todos os alunos saberem ler, fazer subtrações, redigir uma dissertação filosófica. Isso também não é possível, pois depende do público. Então, proponho há alguns anos que se institua um conceito mais complexo,  que me parece mais plausível, que é pedir ao professor uma obrigação de competências. Não para fazer milagres, nem instruir todos os alunos sem condições para tal, mas para conseguir o melhor resultado dentro da situação. Pode ser bem diferente se no campo, na cidade, numa favela ou bairro isso choque. Não se tem o mesmo trabalho. Não se enfrentam os mesmos obstáculos. Não se conseguem, portanto, os mesmos resultados. Mas se pode esperar de cada um, numa determinada situação, que se mobilize toda a sua inteligência profissional, todo o seu saber para fazer o melhor possível. E, de uma certa maneira, para que não caia no fatalismo com esses alunos: “Não dá para fazer nada...” Quer dizer, valores, princípios educativos, uma avaliação, um certo número de competências são necessários para fazer a diferença, para ensinar a alunos que não aprendem sozinhos. Portanto é isto que se deve pedir ao professor: não resultados de fim de ano, notas, avaliações dos alunos, mas disposição para ser avaliado em suas competências. Ele sabe fazer uma avaliação formativa? Sabe planejar um programa? Sabe animar um grupo? Sabe interpretar os erros ou resistências ao saber de certos alunos? Sabe dialogar com as famílias? Tudo isso faz parte dessa profissão e diria, até, com rispidez: se ele não fizer isso, é melhor escolher outra profissão.

Heródoto Barbeiro:
Iara, por favor.

Iara Glória Areias Prado: Boa noite a todos. Eu gostaria de agradecer à TV Cultura por ter tido essa brilhante idéia de convidar o professor Perrenoud para estar aqui conosco. Talvez nem todos saibam, mas o professor Perrenoud hoje é uma bibliografia obrigatória. Não para os alunos que estão sentados na universidade fazendo a sua formação inicial, hoje, o professor Perrenoud é bibliografia necessária e imprescindível e apaixonante dos professores que estão em sala de aula, das equipes pedagógicas, das secretarias de educação que tentam e que estão batalhando na resolução do principal problema do Brasil, neste exato momento, que é a questão da qualidade de ensino. No Ministério da Educação, nós temos uma equipe bastante grande, parcerias inúmeras, quase 250 mil professores que trabalham, pelo Brasil afora, numa rede nacional de formação de professores junto às escolas. Somos todos educadores e temos em comum alguns princípios psicopedagógicos eu diria. Enfim, todos nós buscamos uma escola que propicie que nossos alunos dêem conta do mundo em que eles vivem e viverão, vivem hoje e viverão. Para que eles possam enfrentar as mudanças que são, sem dúvida nenhuma, infinitamente mais rápidas do que eram 10 anos atrás. Portanto, nós temos consciência de que nós trabalhamos com um jovem cidadão que terá que enfrentar o mundo em 2010, 2020. E que mundo será esse? Nós também concebemos esse homem, esse ser, esse homem pequenininho que será o cidadão daqui a 10 anos como um ser histórico, portanto com um poder de transformação de si e do mundo. Entendemos a educação como um processo intencional, diretivo e coletivo de trabalho que visa, ao lado de outros processos, sem dúvida nenhuma, à transformação social. Para sermos coerentes com todos esses princípios que unificam essa equipe do Ministério da Educação do Brasil, nós temos como objetivos educacionais propostos no referêncial curricular – que não é obrigatório para todo país, mas que é um referencial– contribuir para a formação de um ser humano autônomo, criativo, com valores próprios, com uma sólida base de conhecimentos e capaz de participar ativamente de uma sociedade democrática e pluralista. É um objetivo bastante ambicioso e é isso que está presente em todos os referenciais curriculares não-obrigatórios, embora presente em praticamente 80% dos estados brasileiros. Então, a primeira questão, tendo em vista esses objetivos educacionais: qual deve ser – é uma pergunta simples, mas fundamental para quem está em sala de aula–... qual deve ser a nossa tarefa como professor junto aos nossos alunos? Não estou falando de competências, mas qual é a tarefa que pode nos levar a cumprir essa questão, com esses princípios piscopedagógicos com os quais nós trabalhamos? E, pegando um gancho do professor Heródoto, que é professor e que na apresentação levantou a questão dos professores que hoje reclamam da formação, a televisão pode ser um meio de conhecimento para os alunos, talvez mais do que o próprio professor? Eu gostaria de levantar uma questão relativa à formação. Até pouco tempo atrás, todos nós nos sentíamos extremamente confortáveis com a formação que nós recebíamos na universidade, ou seja, se nós tivéssemos o conhecimento dos conceitos, do conteúdo e dos métodos que faziam parte da nossa disciplina, isso era suficiente. Ora, com essas mudanças do mundo, com computador, com a mídia, com a televisão, com o rádio, com a internet, isso não é mais suficiente. E isso cria um desconforto para nós, professores. Muito bem. Nós entramos e fazemos uma formação inicial, digamos, até os 18, 20 poucos anos, nos profissionalizamos por mais 40 anos. Nós sabemos que a nossa função social de professor é uma função de interesse da sociedade. Nós sabemos, portanto, que nós temos que estarmos o tempo inteiro atualizados. Muito bem. A segunda pergunta é: de que forma se faz essa ligação entre a formação inicial – não só mais como transmissão de conhecimentos, porque ela não é suficiente –, e a formação continuada que passa a ser inerente à competências profissionais hoje dos professores? E qual o papel da universidade? No Brasil os sistemas têm assumido a formação continuada, mas será que eles dão conta? A universidade teria um papel na questão da formação inicial. Sem dúvida nenhuma é de responsabilidade dela. Mas e na formação continuada, ao longo dos 30, 35 anos de trabalho que os professores desenvolvem até se aposentarem? Então, são essas duas questões que eu coloco para debate com o professor Perrenoud.

Philippe Perrenoud: Perguntas bem pequenas. Primeiro, gostaria de dizer que estou contente que muitos dos meus livros tenham sido traduzidos e que sirvam ao Ministério e a outros. Mas, ao mesmo tempo, me aterroriza que venham a ser oficiais ou obrigatórios. A democracia é, antes de tudo, contradição e debate e, bem, defendo minhas idéias claramente. Não somos obrigados a estar de acordo. É preciso debater. Essas coisas são complexas, o que autoriza as divergências. Uma das dificuldades é que, às vezes, escondem conservadorismos e a divergência intelectual pode esconder outra coisa. Podemos não concordar sobre as competências, não concordar sobre o modo de formação, pois é assim que se avança. Quero dizer que é uma sorte que não possa impor muita coisa aos estados a partir do governo federal. Isso a obrigaria a convencer, a explicar, a formar e a fazer avançar mais representação que regulamento. Nem todos os ministérios têm essa sorte. Alguns acreditam que com um texto mudam o mundo. A prática e o fracasso de todas as reformas escolares em um século mostram que não é assim. É preciso convencer, dar tempo ao tempo. Quanto à primeira pergunta, se tudo for bem, o professor deve seguir o programa, conhecimento ou competências, trabalhar normalmente, sem tomar iniciativas muito audaciosas, sem se distanciar, mas agindo com inteligência, levando em conta os alunos, a situação, os acontecimentos. Em muitos casos, é preciso fazer escolhas bem mais dramáticas. Não se consegue completar nem metade do programa. Condições de trabalho, nível e número de alunos impedem isso. Talvez se deva voltar aos sete saberes de Edgard Morin. O que me surpreende - e não é bom sinal do nível das competências - é que alguns professores, de boa vontade, de boa fé, ensinam gramática a alunos que não sabem ler. Ensinam subtração e divisão a quem não conhece os números. Fazem coisas absurdas, porque estão aprisionados no trilho do programa e no trilho da diretriz. Em situações diferentes, mais complexas e difíceis, é preciso voltar ao essencial. Por que ensinar a história do século XVII para crianças que não diferenciam entre ontem e amanhã? Entre realidade e hipótese? Eu diria, então, que a tarefa maior do professor - e sempre volto a isso - é aprender a pensar por si, a ser autônomo intelectualmente, a saber compreender o mundo, a se compreender, a esclarecer sua relação com o mundo. Todo o resto virá por acréscimo. Se não houver esse mínimo... É preciso trabalhar esse ponto. A relação com o saber, a relação com o mundo, a capacidade de se identificar como pessoa, de ter projetos, de cooperar e, ao mesmo tempo, manter sua individualidade. Se isso não for adquirido, o resto não serve para nada. Talvez a maior capacidade de um professor seja a de enterrar coisas secundárias quando as essênciais não estiverem adquiridas. Seria óbvio, mas a experiência mostra que não é assim. Penso que os ministérios também têm a responsabilidade de dar o direito de os estados não aplicarem o programa se o julgarem absurdo, não é aplicável às pessoas em processo de alfabetização, em processo de construir sua identidade, de se tornar educadores e alfabetizadores. É uma resposta parcial e discutível, claro. Quanto à formação dos professores, às vezes critico as universidades. Não quero dizer que a formação deva ser feita fora delas. A tentação é, às vezes, voltar à formação profissional não-universitária, com a vantagem de se concentrar mais na profissão e de ser menos atrapalhado pela herança da tradição acadêmica. Mas, se quisermos formar profissionais efetivos, hoje, é indispensável formá-los em um nível acadêmico elevado. Por isso seria preferível mudar a universidade a mandar os alunos para outro lugar. Talvez, na questão da seleção, se possa aplicar esse programa que fazemos em Genebra. Refletimos bastante sobre isso. Se só há lugar para a metade dos candidatos, como escolher? Tradicionalmente se fazem exames, testes de conhecimentos e se privilegiam os mais instruídos. Escolhemos privilegiar os candidatos mais próximos do modelo do profissional reflexivo. Ou seja, os mais capazes de aprender num método de clínica, de aprender com a experiência, verbalizar, indagar, observar, fazer a ponte entre o saber e a experiência. Pode-se perfeitamente adaptar a pedagogia universitária a um tipo de formação e de público lentamente, mas não sem debates e sem estragos. Mas é possível. Não penso que se deva abandonar a universidade. A formação continuada deve ser feita completamente fora? A universidade deve ultrapassar a idéia de que sua função é ensinar e que a vida fará o resto. Penso que a universidade deve participar do resto e é indispensável que o Estado e a municipalidade mantenham parte da formação continuada, que ocorre nas reformas, nas emergências, nas políticas educacionais. Universidades são máquinas que não podem se adaptar a reforma de hoje. Preparam as reformas de 2005. É preciso haver forças de formação mais flexíveis, mais próximas da autoridade escolar, dos sindicatos, dos atores. Mas também se pode implicar nas universidades o dispositivo de formação continuada, estabelecer uma sinergia entre todas as forças, todas as iniciativas, todos os poderes. Tudo deve ser mantido. O pior seria depender de um só, de uma só obra, de um só pensamento, quando há necessidades tão diferentes.

Heródoto Barbeiro:
Eu gostaria de passar então a palavra para o professor Francisco Cordão, para que fizesse a pergunta para o professor Perrenoud.

Francisco Cordão:
Professor Perrenoud, quando nós estávamos discutindo, no Conselho Nacional de Educação, essas novas diretrizes para a educação profissional, nós definimos essas diretrizes centradas no conceito, na noção de competência. Vários críticos, especialmente da universidade, dos meios sindicais - retomando um pouco a questão da resistência falada pela professora Ana Maria -, vários desses críticos consideraram que a abordagem por competência teria uma conotação marcadamente empresarial e utilitarista. Contrária a tradição da escola que entende como sendo a escola o locus [lugar] do conhecimento e não da praxis [prática]. Gostaria de saber, sobre a sua experiência nos países que adotaram o modelo de educação centrado na lógica do desenvolvimento da competência. Como que o senhor tem verificado esses países: há uma tendência mais clara de subordinação às exigências do mercado de trabalho ou é o contrário, constituem uma alternativa de mudança da realidade do mundo do trabalho?

Philippe Perrenoud: No campo da formação profissional não creio que a abordagem por competências seja nova. Talvez o nome tenha ganhado importância, mas sempre se tentou analisar as tarefas e, portanto, os recursos necessários para o trabalho. Não me parece haver aí uma revolução. E, no sentido profissional, ser utilitário é o mínimo. Espera-se que um veterinário saiba curar seu canário. Ele é pago para isso. É sua utilidade. No campo profissional, a utilidade não é vulgar. Não deve ser rejeitada. É um serviço e as profissões prestam serviços a quem paga. Não vejo por que a crítica da utilidade ao profissional. Já no campo da escola, da educação fundamental, o debate é bem mais difícil. Na concepção tradicional, a cultura deve ser gratuita, não deve servir a trabalhos utilitários, instrumentais ou de baixo nível. Mas deve haver um mal entendido sobre o vocabulário. É útil compreender o mundo. É útil saber porque vivemos. É útil saber porque poluição, porque congestionamentos. É um modo de se situar, de se dar um sentido de construir alternativas. O que é útil saber? Entendo que nas escolas se tema um desvio utilitarista. Isso é, saber que só estariam ligados a utilidades bem definidas, muito práticas. Como intelectuais, temos dificuldades em aceitar a idéia de que, na espécie humana, o saber é fundamentalmente pragmático. Aprendemos as coisas para controlar o mundo. Controlar o mundo pode passar por desvios consideráveis. Passa pela filosofia, passa pela álgebra, passa pelo direito, passa por modelos teóricos. Kurt Lewin [(1890-1947), psicólogo alemão] o fundador da psicologia social, dizia que: “Nada é tão útil quanto uma boa teoria.” Ele não era um utilitarista idiota. Entendera que o saber permite dominar o mundo e pode ser útil, não necessariamente amanhã. É tão útil saber ler o editorial do jornal como os classificados de imóveis. É preciso, pois, desprender se da idéia de que o utilitarismo é reservado a tarefas inferiores, como fazer faxina, cozinhar, encomendar algo pela Internet. Não porque não tenham valor. Não se deve desprezá-las, pois, se não pudéssemos fazer coisas práticas todo dia, não seríamos livres para pensar no sentido da existência. Ao mesmo tempo, é útil saber pensar no sentido da vida, no sentido da mudança, no sentido da cidade. Não se deve reservar utilidades a tarefas práticas. Designam nossa relação com o mundo. Há muito pouca gente no mundo capaz de saber por saber. E satisfeito por saber. Esse é um grande problema do fracasso escolar e da profissão de aluno. É difícil quando não se trabalha mais na escola com os herdeiros, aqueles alunos com boa relação com o saber, de família. Devemos explicar aos demais que é importante saber as coisas. E por quê? Para sabê-las. Mas para fazer o que com elas? Nada, só para saber. Bem, esse é um grande equivoco e afasta muita gente da cultura escolar. Mas não significa que é preciso aprender o francês ou uma outra língua só para ser um bom turista. Nem estudar o vocabulário para fazer palavras cruzadas. Mas há sempre uma relação com as práticas sociais. Há sempre uma relação com uma condição humana, com um modo de existir no mundo. Não vejo porque seria menos nobre colocar o saber no mundo e não guardado, como num relicário.

Heródoto Barbeiro:
Professora Terezinha.

Terezinha Rios:
Eu quero caminhar nessa direção da sua resposta. Saber cozinhar, saber ler para quê? O senhor dizia. “para dominar o mundo”, é exatamente a intenção do homem ao se relacionar com o mundo e com os outros. Mas acho que resta, do ponto de vista da filosofia, uma pergunta. Saber para dominar o mundo para quê? Nesse ponto, acho que entra mesmo uma perspectiva ética para ser feliz, para saber mesmo esse sentido da existência. Então, volto à escola. Não está escrito nos objetivos que se colocam na escola esta palavra: felicidade. Dizemos que queremos formar o cidadão, queremos formar o sujeito criativo, mas não dizemos que queremos formar o sujeito feliz. Eu acho que isso tem a ver com a resistência dos professores, às vezes. A competência se diz em relação as condições, não é? Mas, condições para o exercício de uma prática, o que não é apenas requerer competências do professor, mas condições no entorno desse professor. Por isso mesmo gostaria de fazer uma pergunta provocativa, no sentido de que o seu trabalho tem sido chamado de um referêncial. Quase que a gente poderia dizer que está na moda trabalhar com a idéia de competências. Então, voltando à filosofia, o que interessa ao professor não é a novidade. O que está na moda é novidade. É o que é original, Eu acho que a escola é desafiada para voltar às suas origens, E nem são origens da escola, mas da organização e até mesmo do mundo, para os sujeitos poderem conseguir a felicidade. Não romanticamente, "a la Hollywood", mas porque sabem, porque dominam determinados conteúdos, porque podem agir. Então, eu gostaria de ouví-lo sobre o risco da novidade relacionada a essa questão das competências que o senhor traz?

Philippe Perrenoud: Há sempre um risco em se estar na moda. É muito esnobe não estar na moda [risos]. Se a abordagem por competências responde a um problema real, se há um verdadeiro progresso, tudo bem. Se muitos têm falado disso, é porque, no fundo, chega o momento em que se começa a duvidar do sistema educacional que há, pois ele não provou que prepara as pessoas para a vida. Vivemos num planeta devastado por conflitos e guerras civis, poluído, mas que teria meios para fazer todos felizes. No entanto, faz o contrário. É uma sociedade instruída. Se fosse nos séculos XV ou XVII, poderíamos dizer: “São camponeses, não sabem nada. Nem foram à escola.” Hoje, ao menos nos países desenvolvidos, em quase todo lugar, todos vão à escola. E isso não cria um planeta feliz, equilibrado e harmonioso. Portanto, é preciso perguntar o que fizemos na escola. Hesito em atribuir à escola, como sendo uma de suas missões, fazer as pessoas felizes, pois há um livro de ficção científica chamado Uma felicidade insustentável, de Ira Levin [originalmente The perfect day (1970)em português Este mundo perfeito –, livro do autor de O bebê de Rosemary, As mulheres perfeitas (Stepford wives) e Os meninos do Brasil. A exemplo da distopia de Aldous Huxley, Admirável mundo novo, em que a droga soma, contribui para o controle social, Levin cria um mundo apaziguado por três tipos de droga], que mostra que o mundo, com pessoas felizes, será o melhor dos mundos. É só lhes dar drogas para isso, não precisa de escola. Quando se é lúcido, não se pode ser completamente feliz. Em compensação, pode-se ser livre, crítico, um sujeito ativo, fazer projetos. Isso me parece uma definição de felicidade, mas não de felicidade tranqüila, mas, sim, egoísta. Hoje, é muito difícil ser completamente feliz no mundo. Para mim, a missão da escola é ensinar a pensar, a se situar, a escolher entre ser feliz de olhos fechados ou infeliz de olhos abertos. Essa é uma escolha das pessoas. O essêncial é torná-las capazes de escolher. A infelicidade ou a felicidade é assunto delas.

Edgard de Assis Carvalho:
Eu vou retomar um filósofo no qual eu acho que nós compartilhamos a mesma admiração, que é Montaigne. Vou retomar essa frase, que já foi dita pelos colegas, sobre a cabeça bem feita e a cabeça bem cheia. Na sua tradução, inclusive, na cabeça bem feita, o tradutor esqueceu do bien. Há uma diferença entre bien feita e bien cheia. Bem, eu gostaria de saber se nós estamos entendendo da mesma maneira? A cabeça bem cheia é a cabeça do saber acumulado, do saber empilhado e, portanto, o saber da fragmentação. É claro que o Montaigne, como bom humanista, preferia a cabeça bem feita, ou seja, cabeça que, mais do que acumular, religa o saber. Ou seja, ela está naquilo que a gente entende pela palavra complexidade ou complexos. Quer dizer, o religar. Muito bem. Inúmeras ciências estão praticando essas intenções, eu diria: ecologia, ciência da terra, cronobiologia, cosmologia, ciência da complexidade. Muito bem. Isso exige, evidentemente, uma reforma no pensamento, uma reforma que acabe de vez com a distinção entre natureza e cultura, entre as ciências da natureza e as ciências da cultura, entre homem e natureza. Para romper isso, eu suponho até que se precise educar os educadores. A frase não é minha. A frase é uma velha frase do
Marx, que está nas Teses sobre Feuerbach. Ele diz que, para reformar a educação, é preciso antes de mais nada educar os educadores. Então, dentro da sua proposta, o senhor emprega a cabeça bem feita e a cabeça bem cheia. Como o senhor vê essa questão, de um lado, da disciplinalização, que existe do ensino fundamental à universidade e, do outro lado, a visão interdisciplinar, transdisciplinar que aos poucos vem contaminando as instituições de ensino? Acho que até a burocracia estatal entende mal essa questão. E como é que o senhor vê isso dentro da sua proposta de competências? Em resumo, as competências são transdisciplinares ou elas reforçam a fragmentação do conhecimento?

Philippe Perrenoud:
Essa é uma pergunta difícil, porque a maioria das situações mobiliza mais de uma disciplina no sentido de disciplina acadêmica. Até mesmo o professor de filosofia ou de química precisa de competências outras que a de filosofia ou química para dar aula, avaliar, fazer um relatório pedagógico. Nenhuma profissão é puramente disciplinar e nenhuma situação real, nem mesmo a pesquisa... Um diretor de laboratório de pesquisas especializadas faz contratos, negocia, anima uma organização, faz mil coisas diferentes, ainda que o âmago de sua identidade seja a de professor de geologia ou de microbiologia. Portanto, na verdade, o trabalho cruza fronteiras disciplinares. Não quer dizer que se deva suprimi-las. No desenvolvimento do saber há uma divisão de trabalho útil. A formação dos professores apresenta esse problema. Quando se quer formar especialistas de uma disciplina, pode-se formá-los na disciplina, pois vão reproduzi-las. De certo modo, vão se tornar especializados em certa matéria e muito ignorantes sobre o resto do mundo. Isso vale tanto para profissionais de ciências humanas quanto de profissões técnicas. Um engenheiro hoje precisa de ciências humanas. Precisa de muitas disciplinas. Um médico não pode se contentar com a fisiologia e a biologia. Precisa da psicologia, sociologia, até da psicanálise. A cada vez que se formam profissionais é preciso mobilizar várias disciplinas. Não se trata de desprezo pelas disciplinas, nem de dizer “parem de pesquisar em sua área.” Há uma bela expressão de um psicólogo francês, um educador chamado Pierre Gillet [1897-1966], que diz: “Nos programas profissionais é preciso dar as competências o direito de gerência sobre os conhecimentos.” No fundo, significa juntar o necessário para resolver um problema do cotidiano numa profissão. Mas a criação dos conhecimentos pode muito bem continuar a se desenvolver em divisões disciplinares. Não é indispensável se fechar nessas divisões. Portanto, seria interessante efetuar tentativas de pesquisa pluri ou interdisciplinares, mas não orientadas para a formação, e sim para os limites do setor e a recomposição da divisão dos trabalhos científicos.

Heródoto Barbeiro:
Nosso programa está chegando ao fim e eu gostaria de fazer uma pergunta de encerramento para o senhor. O senhor utilizou muitas vezes a palavra “uma escola que prepare para a vida”. A vida hoje está muito direcionada para o consumir, para o comprar, para a acumulação do lucro. Eu perguntaria ao senhor o seguinte: isso não nos leva a uma ameaça do fim da utopia do prazer do conhecimento para uma escola voltada imediatamente para as coisas materiais e próximas?

Philippe Perrenoud: Mas, para mim, a vida não é uma coisa material. Somos uma espécie pensante. Somos uma espécie essencialmente espiritual, até mesmo filosófica. Creio que não há risco real de a espécie humana ser inteiramente materialista. E, de fato, o fim das ideologias é um mito. Continuamos nas ideologias, na espiritualidade, por vezes no “integrismo”. Creio que o materialismo é uma parte e uma fase. Preparar para a vida não é preparar para a vida material, mas para a vida social, espiritual, relacional, amorosa. Para todas as dimensões da existência. Então, efetivamente, reduzir-se essa ambição à preparação para o consumo, para o trabalho ou à tecnologia, empobreceremos o conceito da vida humana. E isso é grave.

Heródoto Barbeiro:
Monsieur Philippe Perrenoud, merci beaucoup. Quero agradecer também a presença dos nossos convidados aqui no programa Roda Viva e, especialmente, ao professor Philippe Perrenoud, que é um educador e sociólogo, como você acompanhou ao longo de todo nosso programa. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às 10h30 da noite, sempre com a sua participação e interatividade nos assuntos abertos ao debate democrático, que é uma característica aqui da Rede Cultura. Boa semana, boa noite e obrigado.

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco