Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.
Programa gravado
Pat O´Hare: O princípio da redução é que, em vez de nos concentrarmos no uso de drogas, em vez de tentar evitar que as pessoas usem drogas, como objetivo principal, nos concentrarmos nos danos causados pelo uso de drogas. E o objetivo principal é reduzir esses danos, minimizar os danos. Não descartamos o objetivo de reduzir o número de pessoas que usam drogas. Fazemos as duas coisas. Na verdade, descobrimos uma coisa quando começamos isso. Ao nos concentrarmos nos danos, na saúde das pessoas, no crime - os usuários eram presos com freqüência - ao nos concentrarmos nisso e ao tratar disso, ao estabilizar a vida das pessoas, alguns, não todos, mas alguns dizem: "Quero parar com isso". Assim estávamos em uma situação em que eles eram nossos. Lidávamos com problemas que eles tinham e dávamos a eles o que queriam. Dávamos metadona, por exemplo, se fossem viciados em heroína. Assim, estavam conosco e podíamos interagir com eles. E quando diziam que queriam parar, podíamos mostrar-lhes um caminho. Basicamente é uma aceitação da realidade do uso de drogas na sociedade. As drogas existiram até agora e sempre existirão. Nunca nos livraremos delas. Desde o momento em que alguém tirou uma planta do solo e sentiu algum efeito elas são usadas. E sempre serão. Por isso aceitamos essa realidade. Mas sabemos que não é uma situação ideal para muita gente, pois causa problemas. Assim tentamos lidar com os problemas, tendo feito isso, tendo estabilizado os problemas, então falamos sobre deixar de usar drogas.
Paulo Markun: Mas isso não vai na contramão do raciocínio médio, vamos usar uma comparação grosseira: em relação aos acidentes de automóveis, aos acidentes de trânsito, nas estradas e nas cidades, que matam muita gente, a política do governo, de qualquer governo, é reduzir o número de acidentes, não tratar apenas e tão somente os acidentados para que eles sobrevivam aos acidentes ou tenham menos danos, quer dizer, o principal objetivo, no caso de trânsito, é esse. Então eu penso que para a média da opinião pública, é difícil entender por que na questão da droga isso é diferente, por que a gente não tem que atacar o que seria o cerne do problema, que é o fato de que é errado, faz mal à saúde, ou é proibido, ou é ilegal, ou não é aceito usar drogas?
Roberta Jansen: Muitos críticos dessa forma de redução de danos falam que a seringa é muito mais barata que a droga. Por que a pessoa iria passar a aceitar a seringa que é dada por vocês e por que ela mesma não compraria essa seringa? Quer dizer, se ela teria dinheiro para comprar droga, em tese, ela poderia comprar a seringa. E supõe-se que hoje, pelo menos grande parte das pessoas saiba que existe um risco de compartilhar seringa. Qual é a posição de vocês sobre isso?
Pat O´Hare: A primeira questão, porque não comprariam, eles compram. Na verdade, no meu mundo ideal quem pudesse comprar, compraria. E elas estariam à venda em farmácias. No meu mundo ideal, com a situação normalizada, as pessoas não iriam a lugares especiais. Elas iriam a lojas, farmácias e supermercados para comprar seringas. Na Itália, por exemplo, é possível comprar seringas em qualquer supermercado. Não sei qual é a situação no Brasil. As pessoas de fato, às vezes, as compram; mas, às vezes, se a farmácia estiver fechada, ou se a máquina de seringas não funcionar, eles irão a um posto de trocas para conseguir seringas. Essa é uma questão. E esqueci a segunda parte de sua pergunta, terá de perguntar de novo, desculpe.
Roberta Jansen: Os críticos dessa forma de redução de danos dizem que ela não adiantaria, ela não serviria para nada, porque afinal de contas, a pessoa poderia simplesmente comprar a sua seringa, ela não precisaria ter o governo, ou uma ONG, ou alguém fornecendo a seringa. Como é que o senhor avalia isso?
Pat O´Hare: Os críticos estão errados, infelizmente estão errados, porque a realidade é outra. Recordo agora a segunda parte da pergunta. O fato de as pessoas saberem que partilhar seringas faz mal, isso também não é verdade. E muita gente, agora mais pessoas sabem disso, mas ainda há pessoas dispostas a correr o risco. Porque nem toda injeção irá transmitir o vírus. As pessoas estão dispostas a correr esse risco. Mas sabemos que usuários de drogas, se forem dados a eles meios e oportunidade para mudarem o comportamento, ou seja, de usar agulhas e seringas limpas e não partilhar, eles aceitam, porque eles não querem morrer, não querem contrair hepatite ou aids, não querem... Usuários de drogas, se tiverem a oportunidade, respondem do mesmo modo que qualquer outro, pois são iguais a qualquer outra pessoa.
Eduardo Nunomura: Qual tem sido a relação dos programas de redução de dano com a Igreja Católica? Vale lembrar que o Vaticano condena a prevenção da aids via preservativo. Quero saber se vocês encontram alguma objeção parecida com outros grupos religiosos de uma maneira geral?
Pat O´Hare: Na minha experiência, nos países que conheço melhor - e moro na Itália, em Roma, muito perto do Vaticano - políticos e governantes não dão muita atenção a isso. O impacto desse tipo de coisas, de a Igreja Católica ter dito recentemente que o uso de preservativos espalha o HIV porque o vírus "vaza", foi o que disseram, que ele "vaza", esse tipo de coisa não gera problema entre os governantes, pois nenhum governante irá acreditar nisso, é entre o público em geral que o dano ocorre, na opinião pública, porque em vários países, no meu país, eu sou irlandês, no meu país a fé católica é uma fé muito simples, e as pessoas acreditam no que os padres dizem, e certamente no que o Papa diz. Isso colocaria dúvidas na mente das pessoas em relação aos preservativos, e não há como saber, o comportamento pode mudar porque as pessoas podem pensar que não devem usar, mesmo que por alguns dias, deixam de usar preservativos, por exemplo, e talvez depois voltem a usar. Há um período em que assumem um risco. Talvez eu esteja exagerando aqui, não sei. Mas, recentemente, na Holanda, ou na Bélgica, não me lembro onde, o principal representante da Igreja Católica, o cardeal, disse que para evitar o HIV, a aids, as pessoas deveriam usar preservativos ao fazer sexo. Ele de fato disse isso. Assim, também há um lado sensato na Igreja Católica. Na Itália já foi importante, mas não agora. Acho que não.
Antônio Carlos Prado: Há uma série de conceitos que cercam o conceito maior da redução de danos, e a própria mídia, quando aborda esse assunto, geralmente aborda de forma também só conceitual. Eu queria descer um pouco mais à parte química, a parte médica, entre aspas ou sem aspas, que é o seguinte. Sempre que se pega exemplo de substituição, de redução, isso faz muito tempo, a metadona e heroína, certo? Hoje, em quadro de alcoolismo, se trabalha, mas não é uma característica da redução de danos. São mundialmente aceitos alguns benzodiazepínicos, sobretudo o diazepam. Eu queria saber o seguinte: quais são outros exemplos concretos químicos que existem de substituição de drogas e alguns números disso?
Pat O´Hare: Meu ponto fraco é minha memória para pesquisas. Eu não sou pesquisador e por isso não consigo me lembrar facilmente de números. Mas, quanto a exemplos, um mau exemplo é usar diazepam em casos de alcoolismo. Não que seu exemplo seja ruim, mas a prática, na minha opinião, é ruim, prescrever diazepam às pessoas. O uso de diazepam a longo prazo é problemático. Não sou médico, é a opinião de um leigo. Mas acho que a forma mais pura de substituição é trocar heroína das ruas por heroína quimicamente pura. Isso é feito em alguns países. É feito no Reino Unido desde 1927, 28, 29, desde o Rolleston Report a heroína é prescrita. Na Holanda, na Suíça, na Alemanha, no Canadá e em outros países existem testes com a prescrição de heroína. E são muito bem sucedidos.
Antônio Carlos Prado: Eu gostaria de saber de outras substâncias que, por exemplo, mesmo a substituição da cocaína em forma de crack por THC [iniciais da substância ativa da maconha, Tetrahidrocanabinol] ainda não é uma coisa que cientificamente esteja comprovada que funciona, certo? E esse exemplo da metadona é clássico, até pelas dores - se eu estiver errado aqui, a doutora me corrige - pelas dores físicas, musculares causadas pela heroína. O que nunca surge em novidade na redução de danos é uma parte mais química mesmo. Com o que se pode entrar quimicamente no indivíduo para reduzir o dano [alguém pergunta: “Você está falando da cocaína ou da maconha”?] de alguma droga... Eu estou falando da dependência em geral, ou seja, o que quimicamente pode agir nos neurotransmissores diminuindo o dano do uso da droga, fora a metadona, que é o exemplo que sempre se dá, e acho que a redução de danos parou um pouco aí. Não se discutem outros aspectos.
Aureliano Biancarelli: Em relação à cocaína, não se pode falar, eu acho que não há nada, no momento, a não ser essa experiência com a maconha, não há nada de novo.
Antônio Carlos Prado: Mas que não teve nem comprovação científica. A própria Escola Paulista de Medicina, hoje federal, ela mesmo coloca muito claramente que não valida aquela experiência dado o tamanho do grupo...
Pat O´Hare: Permita-me dizer uma coisa: se Louis Pasteur [(1822-1895), um dos mais importantes cientistas da história da humanidade, descobriu, dentre outras coisas, o princípio de funcionamento da vacina, criando a anti-rábica; deve-se a ele também o método da pasteurização] tivesse esperado testes clínicos da penicilina, não teríamos penicilina. Por que esperar? Trata-se de saúde pública. Por que esperar até termos uma prova absoluta de que essas coisas funcionam? Há bons resultados nesse estudo em São Paulo com o uso de maconha no lugar de crack e cocaína. Bons resultados. Não são comprovados. Como provar? Esse é um dos maiores problemas: pelo fato de muitas dessas drogas serem ilegais, não podemos fazer testes. O ecstasy, por exemplo, não podemos fazer testes com ele por ser ilegal. Nunca descobriremos.
Aureliano Biancarelli: Justamente, os testes, os ensaios, são feitos em universidades, se a droga é proibida e a universidade é um órgão do Estado, logo você não tem como trabalhar essa experiência. É o que vem acontecendo no Brasil. Não há investimentos, entre aspas, nessa questão de uma substituição.
Sandra Batista: Existe um trabalho muito forte de estudo na Bolívia de substituição de uso de cocaína pela folha mascada. Este é um trabalho que tem sido desenvolvido junto à universidade da Bolívia, é um grupo de psiquiatras, junto à Escola de Psiquiatria Boliviana. Mas também, como disse o Pat, em andamento.
Pat O´Hare: Sim. Esta é a posição aqui. Em algumas partes do mundo não é assim. Nos Estados Unidos há quem faça testes com MDMA [iniciais da substância metilenodioximetanfetamina, princípio ativo do ecstasy] e várias drogas do gênero. E é possível comprá-las do Estado. No Brasil ocorre o mesmo, eu entendo. No entanto sua pergunta sobre a cocaína em particular é uma pergunta muito boa. Porque esse é nosso calcanhar de Aquiles no momento. Acho que sabemos razoavelmente como lidar com a heroína e sabemos como lidar com os riscos do uso da heroína no que se refere às infecções sangüíneas. Mas somos fracos em cocaína, para ser franco, e você tem razão. Esse projeto em São Paulo com a maconha é em pequena escala, o projeto do qual Sandra falou é de pequena escala. Precisamos continuar fazendo os testes e produzindo os dados. O grande problema é que, embora viciados em ópio e heroína pareçam aceitar um substituto, drogas estimulantes, por algum motivo, são mais demonizadas de que heroína. Cocaína e crack são drogas demoníacas. Heroína está fora de moda, é usada por uma população mais velha na Europa. "Vamos dar metadona e com o tempo vão abandoná-la". Cocaína e crack são mal vistas por políticos, por todos os outros e por muitos usuários. A vontade política para dar o grande passo e dizer: "Certo. Achamos que, se prescrevermos maconha, reduziremos o uso de crack. É o que pensamos. Há testes sendo realizados, e os resultados são animadores". Não há vontade política para fazer isso, esse é um dos problemas, não se ampliam os estudos. No Reino Unido, por exemplo, há muitos anos se prescreve metanfetamina para usuários de anfetamina. Metanfetamina farmacêutica, com resultados realmente bons. Isso ocorre há 20 anos. Mas não se espalhou, ocorre em uma pequena parte do país. Mais uma vez existe a acusação de que estamos dando drogas às pessoas e as mantemos dependentes. É possível lidar com isso no caso da heroína, mas é difícil no caso do crack por causa de tudo o que envolve a droga, todo o sexo, a violência e esse tipo de coisas. É falta de vontade política, mas também acho que é, de nossa parte, falta de habilidade para encontrarmos uma solução. Nós, como movimento, não argumentamos muito bem em favor dessa abordagem de cocaína. E nós meio que... Na Europa está ganhando importância, mas não é o mesmo que ocorre aqui e tem ocorrido em outras partes da América Latina. Não é nosso ponto forte, mas não quer dizer que não estejamos pensando nisso ou tentando fazer algo, pois estamos.
Arthur Guerra: Muito prazer em conhecê-lo, bem vindo ao Brasil. O Brasil, como outros países de contrastes, tem um cenário bem definido em relação às drogas. O consumo de drogas tem aumentado, ano a ano. E esse consumo aumenta em todas as populações, mas também em adolescentes e atualmente em crianças. Como é que o senhor entende redução de danos que não prega a abstinência para essa população carente, crianças de 11, 12, 13 anos?
Pat O´Hare: A abstinência é provavelmente o estado desejável. Não há dúvida de que a maioria das pessoas estaria melhor e teria uma vida melhor se não usasse drogas. Nós achamos que é difícil atingir esse estado com muita gente, é difícil chegar lá. E, enquanto dedicarmos tempo e esforço para chegar lá, há muitos danos ocorrendo aqui, conseqüências do fato de as pessoas não estarem em abstinência. Nós acreditamos que esses danos são as coisas nas quais devemos nos concentrar para estabilizar a situação e então poderemos trabalhar na abstinência. Se pensar nisso, se eu injetar heroína em minhas veias neste recinto, ninguém mais será afetado por isso. Não fará mal algum a ninguém neste local, provavelmente não fará mal a mim, se estiver acostumado. Mas esse não é o problema. Por que me preocuparia com alguém que, na privacidade de seu lar, usa heroína, compra, tem um emprego, tem dinheiro, compra heroína e a utiliza? Estou dando um exemplo extremo. Por que me incomodaria com isso quando, nas ruas, pessoas estão morrendo? Porque não a usam adequadamente, porque usam crack, porque usam de modo caótico, porque estão totalmente perdidas, não têm motivo para viver, não têm dinheiro. Esse é um dos problemas do Brasil: a pobreza e na América Latina em geral. Isso torna a situação muito complexa. Tendo a achar que o maior problema na América Latina seja a pobreza. A pobreza e não o uso de drogas porque a forma como as drogas são usadas na América Latina, em geral, tem origem na pobreza. Para resumir a resposta... Não é uma posição polarizada. A minha posição não é polarizada, é uma linha contínua que vai da abstinência ao uso caótico. E precisamos mover as pessoas nessa linha afastando-as do uso caótico em direção à abstinência. E, se não chegarmos lá, com as pessoas estáveis, servindo a sociedade, com empregos, tudo bem, não tem problema. Gostaríamos de chegar lá, mas nunca chegaremos. Para mim, não há conflito. Eu costumava trabalhar diretamente com isso há muitos anos. Quando alguém vinha procurar seringas e metadona e dizia que queria parar, eu jamais dizia: "Não! Nãi pare! Faça isto que é melhor!” Eu dizia: “Ótimo. Vamos ajudar". Para mim e para o movimento que eu represento não há uma posição polarizada.
Arthur Guerra: Ele não respondeu a pergunta. Talvez a minha pergunta não fosse muito clara. Eu queria saber qual a sua posição sobre redução de danos em crianças, não de crianças pobres só, crianças de classe média, crianças ricas também. O cenário que nós temos é que as crianças usam mais drogas, de 10, 11, 12, 13 anos. Ricas, pobres, elas usam mais drogas atualmente. Como que a redução de danos aborda esse assunto?
Pat O´Hare: Eu tive contato direto com crianças que usavam drogas injetáveis e, quando o primeiro posto de trocas foi montado em Liverpool, alguns dos clientes tinham 14, 15 e 16 anos, e estavam injetando anfetaminas e heroína. E o dilema é: quando uma criança dessa idade vem procurar uma seringa limpa, porque não quer partilhar a seringa de outro, não quer correr o risco, o que devemos fazer? A última coisa que faremos é ligar para os pais dela. Isso não ajudaria em nada. Ela poderia fugir, e isso não a faria parar. Nossa opinião era que nosso dever era proteger a vida e a saúde daquele jovem. Assim dávamos as seringas. Isso não ocorria todo dia. Mas dávamos as seringas porque era nossa função. Não estamos lá para repreendê-los por partilhar seringas, serem infectados e talvez morrerem. Estamos lá para protegê-los. Era muito claro o que tínhamos de fazer naquela situação.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, que esta noite discute a política de redução de danos para usuários de drogas. Estamos entrevistando Pat O´Hare, diretor da Associação Internacinal para a Redução de Danos. Pat, eu queria entender o seguinte: vocês defendem a redução de danos como uma política pública, ou seja, que o governo, ou os governos promovam esse tipo de iniciativa junto com organizações não- governamentais. Isso não é ficar no meio do caminho? Não seria mais honesto, mais eficiente, mais radical, no bom sentido da palavra, admitir a liberalização das drogas, e que todo mundo compre a droga que quiser e ponto final?
Pat O´Hare: Sim. Pessoalmente eu acredito que... Não gosto de usar o termo "legalizar" porque vão achar que há drogas por toda parte, todas liberalizadas. Devemos disponibilizá-las de modo controlado. Acredito nisso. É minha opinião pessoal, e minha associação não é uma associação contra a proibição. De fato, há membros que são proibicionistas, eles acreditam que a lei não deve mudar. Há um grande paradoxo aqui. No momento não controlamos nada. Não controlamos a qualidade das drogas, não controlamos a qualidade do que as pessoas usam, não controlamos o preço, não controlamos os locais onde as pessoas as usam... Não há controles, mas nós pensamos, ou a sociedade pensa, que temos controle. Acredito que precisamos ter alguns controles. Não significa que devemos proibir coisas. Podemos disponibilizá-las e sujeitá-las às mesmas restrições que sofrem o álcool e o tabaco. Claro que as pessoas burlam essas leis, sei disso, tenho ciência. Mas, fazendo isso, podemos controlar o preço e a qualidade. E, acima de tudo, daremos informações adequadas e corretas sobre as drogas e sobre as formas de usá-las e as formas de não usá-las. E no momento isso é muito difícil em alguns países. Por exemplo, na França é contra a lei dar conselhos sobre como usar as drogas. É contra a lei, não é permitido. Há pessoas que são ameaçadas de prisão por trabalhar na redução de danos com maconha na França, por exemplo. Na minha visão pessoal a situação é essa. Assim como há danos à saúde e todos os outros danos relacionados, há outros danos provocados pelas leis contra drogas que causam esses problemas, a proibição. A única coisa que a proibição consegue é assegurar que as drogas sejam caras, que os criminosos ganhem muito dinheiro, que a polícia seja corrompida, que as pessoas tenham de ir a lugares onde não deveriam ir para usar drogas e também que seja realmente difícil dar informações corretas às pessoas. Para mim, é uma situação ridícula e concordo com você.
Paulo Markun: Quais países estão mais avançados na direção de adotar esse raciocínio que você defende, e tudo que eu li a respeito das experiências desses países são sempre colocadas em dúvida, no sentido de que não deram bom resultado. E que a hora em que você libera uma praça de Amsterdã, para que as pessoas se droguem, vem gente da Europa inteira para se drogar. Eu estou citando aqui, meio que caricaturalmente Amsterdã, mas digo se você abre uma região como liberada para uso de drogas, você atrai gente que quer se drogar do mundo inteiro para o comércio de drogas, como no Brasil infelizmente acontece em relação à prostituição infantil.
Pat O´Hare: Chamamos de "Síndrome do Pote de Mel", como abelhas em torno de um pote de mel. É verdade que, em certo grau, isso acontece. Passo muito tempo em Amsterdã, pois minha esposa é de lá. Passo muito tempo lá e conheço a Holanda muito bem. E, às vezes, devo ser sincero, quando estou perto da Estação Central, em Amsterdã, acho que aquilo não é uma boa propaganda para o tipo de política de drogas que defendo. Não é uma boa propaganda. Mas esse é o pior lugar. É onde há uma concentração de uso problemático. Em geral, em Amsterdã, os resultados são muito bons. Os resultados não são ruins, e eles são mal apresentados. E são mal apresentados pelo governo americano com muita freqüência. Um ex-czar anti-drogas Barry McCaffrey, apresentava-os de uma forma muito ruim. Por exemplo, o uso de maconha ao longo da vida é menor na Holanda que nos EUA. E não há proibição maior que nos Estados Unidos. A população que usa heroína na Holanda está envelhecendo. Está apenas ficando mais velha. Não há muitos novos usuários da droga. Há um problema com a cocaína. Na verdade, a cocaína está meio ultrapassada agora, mas, por causa do fantástico sistema de saúde que têm, da rede de segurança existente, o uso muito problemático é bem reduzido, de fato. A Holanda não é um paraíso para usuários de drogas mas é o melhor exemplo que posso imaginar. Há usuários de drogas da Alemanha que vão para lá, os holandeses estão lidando com isso, conduzindo-os de volta. E há problemas com turistas que vão a Amsterdã que querem ir às zonas de prostituição e outros às cafeterias. Por mais que seja assim, é apenas um fato da vida. Mas pense por um instante, se toda Europa fosse assim, os alemães não teriam motivos para ir a Amsterdã. Não haveria. Não haveria motivos para espanhóis irem a Amsterdã. Pois essa situação existiria no próprio país. A Holanda tem uma grande política e tem um ótimo sistema de saúde. E não há muita pobreza na Holanda, sabe?
Sandra Batista: Aqui no Brasil, há um programa nacional de aids, é conhecido mundialmente e reconhecido pela sua efetividade. Um grande número de pessoas que vêm a esse serviço por conta dos programas de redução de danos são usuários de drogas. E, historicamente, eles não tiveram acesso à saúde a não ser pelos redutores de danos que vão até lá devido ao medo pela ilegalidade do uso. Como você vê essa questão da regulamentação ou de uma organização na questão do uso de drogas, sendo elas ilícitas ou lícitas, quando comparada, como o doutor Arthur falou, com o uso entre crianças e adolescentes, onde o principal consumo está ligado numa classe média e média-alta ao álcool, e nas classes economicamente mais empobrecidas, ligadas aos inalantes. Qual o benefício de uma política de redução de danos mais humanista e pragmática para essa população?
Pat O´Hare: Se tomarmos a totalidade da população de usuários de drogas, provavelmente poderíamos... Temos apenas drogas agora. Vamos considerar apenas as drogas ilegais, deixemos de lado, por ora, tabaco e álcool. Consideremos a população total, 100%. Provavelmente 90%, provavelmente, 90% da população se envolve em um uso de drogas não problemático. Em alguns países pode ser 70%. Gira em torno desse número. E há os 10% ou 15% que chamamos de população de risco. Risco dos grandes danos: aids, hepatite, etc. Para eles temos políticas, troca de seringas, todos os programas de prevenção de aids. E quanto aos outros 80 ou 90%, o que fazemos com eles? Bem, eles não são problemáticos. Eles estão usando drogas. Não gostamos disso, pois a sociedade não gosta disso, então temos de fazer algo a respeito. Mas o que podemos fazer a respeito? O fato é que as pessoas usam drogas. Sim, elas usam drogas, mas não estão fazendo mal a si mesmas e não estão fazendo muito mal a outras pessoas. Então, o que fazer a respeito? Na minha opinião, devemos informá-las. É o que podemos fazer. Informamos e dizemos a elas as formas seguras e as formas nocivas. Depois, se alguém tiver problemas, teremos redes de segurança no sistema de saúde para ajudar.
Sandra Batista: Mas essa população não é uma população de uso injetável, então ela não está sendo vista sob o aspecto da prevenção de HIV- aids, a população de inalantes, de uso de crack, nós vimos a manifestação do pessoal de São Paulo por não ter um projeto para usuários de crack aprovado recentemente, então como fica, que política de drogas nós podemos abranger essa população que em grande parte faz um uso problemático, esta pelo menos que está nas ruas e que não está protegida, entre aspas, por essa política que trabalha mais com o viés do HIV-aids.
Aureliano Biancarelli: Eu queria completar aqui. Foi realizado nesta semana a Conferência Latino-Americana de Redução de Danos, e nós estamos trabalhando, como ela disse, com uma população de uso de crack e cocaína, diferentemente da que usa a heroína que é de onde o senhor vem, o senhor vem da Europa, então, o senhor vem para isso, aliás. O que se faz em termos de redução de danos considerando esse nosso consumo...
Antônio Carlos Prado: Você falou dos inalantes, o que eu acho que é muito importante, porque o nosso calcanhar de Aquiles e também cada vez mais cedo, em faixas etárias mais baixas, é o álcool, e hoje é o principal problema deste país. Então na pergunta da Sandra, eu só acrescento o álcool ao inalante.
Pat O´Hare: Álcool é o maior problema em muitos países. Na verdade, o maior problema na Europa é o uso de tranqüilizantes, de benzodiazepina. Esse é provavelmente o maior problema na Europa, seguido pelo fumo e pelo álcool. O álcool é um problema enorme, sem dúvida. Vou deixar isso de lado por um instante e voltar à questão de Sandra sobre a lei. Basicamente, uma lei capacitadora, que seja "sensata" - essa é a palavra que posso usar - que permita às pessoas proteger essa população que não é vista como a população de maior risco. Eu vi muitos programas interessantes aqui, fornecendo cachimbos de crack com filtros, essas coisas. Temos que lidar com isso. Precisamos ter uma lei que permita que esse tipo de coisas aconteça, para que possamos ter... O básico é que, se quisermos ter contato com as pessoas e fazer algo por elas e com elas, precisamos estar presentes. E uma boa forma de estar presentes é ter algo para dar a elas, algo que queiram. É um princípio básico. Dê-lhes algo que queiram. Dê-lhes, nesse caso, cachimbo de crack com um filtro que impeça que inalem a fumaça realmente nociva. Dê-lhes isso e estará presente para falar com eles e dar-lhes outras informações. Qualquer lei que diga: "Como você fuma crack, inala ou cheira qualquer substância, não vamos lidar com você, vamos ignorá-lo, vamos deixá-lo passar por tudo sozinho”, deve ser uma lei ruim. É uma lei ruim. Por que essa lei existe é questão de opinião, mas é uma lei ruim. E qualquer lei que diga: "Certo, faça isso. Vamos ajudá-lo a fazer com mais segurança, na esperança de que, um dia, você não queira mais fazer e o ajudaremos a parar". Essa é uma boa lei. E isso nos traz de volta ao problema do Brasil e da América Latina, a pobreza. Uma boa pergunta seria: "O que a redução de danos pode fazer quanto à pobreza?". Não pode fazer nada. De certo modo a redução de danos é como um curativo sobre inúmeros problemas sociais em torno do consumo de drogas. É difícil dizer o que fazer a respeito. Eu não sei. O problema com as crianças de rua daqui, o que a redução de danos pode fazer a respeito? Eu sinceramente não sei. Sua pergunta sobre o que podemos fazer com usuários de crack... Cocaína... Você não fala de astros de cinema que cheiram cocaína. Fala dos uso problemático, do uso caótico por crianças pobres e esse tipo de coisa. É disso que fala?
Aureliano Biancarelli: Porque não temos uma metadona para a nossa cocaína, ou nosso crack.
Pat O´Hare: Sim. E, como já admiti, é nosso calcanhar de Aquiles. Mas há coisas acontecendo. Esse projeto com folhas de coca, acho que há outro projeto com chá de coca, há um projeto com maconha... Precisamos experimentar essas coisas, precisamos ser corajosos e ousados e tentar. E acreditar que as evidências são evidencias parciais no momento. Esse é um dos problemas. Pessoas responsáveis por fazer a política tendem a acreditar no que se diz antes de acreditar nas evidências. Falo de evidências reais, não falo do que achamos ou não achamos. Em muitas intervenções há evidências reais que remontam a anos. Pesquisas que existem há anos mostrando que isso acontece, isso não acontece e este é o resultado. E isso se repete em uma pesquisa após outra. De quantas pesquisas precisamos até que as pessoas que determinam a política digam: "Talvez seja uma boa idéia, não sei."? E a partir do momento em que a idéia é considerada boa, o salto para implementar esse tipo de política requer muita coragem. Requer que os políticos que acreditem no que fazem e que não tenham medo de, ao fazer essas coisas, perder votos. Não tenho respostas fáceis para isso. Nenhuma.
[intervalo]
Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva, esta noite entrevistando Pat O´Hare, dirigente da Associação Internacional de Redução de Danos. Eu queria colocar em jogo uma outra discussão que é a seguinte: na hora em que vocês preconizam políticas públicas de redução de danos que significam, na prática, manutenção de uma parcela significativa do consumo de drogas, porém com a redução de riscos que a pessoa enfrenta, num cenário em que a droga é movimentada por uma enorme indústria do crime, não há um contra-senso nisso? Quer dizer, nós não estamos, de alguma forma, preservando a indústria criminosa, toda essa máquina de crime organizado que movimenta bilhões e bilhões de dólares mundo afora?
Pat O´Hare: Esperamos fazer exatamente o oposto fornecendo drogas puras, farmacológicas por meio do Estado, de ONGs...
Paulo Markun: Desculpe-me, significa então que a política de redução de danos não prevê só fornecer a seringa, ou fornecer só o cachimbo do crack, tem que fornecer também o crack, e a heroína, ou substituto, ou a cocaína ou a maconha? Porque senão você está dando instrumentos para que a droga seja consumida fornecida pelos traficantes e pelo crime organizado.
Pat O´Hare: É uma questão muito interessante. É algo em que as pessoas não pensam. Damos seringas às pessoas, elas voltam às ruas e compram drogas. Isso é ridículo. Por isso damos metadona a viciados em heroína. Eles não precisam fazer isso, e enfraquecemos o mercado ilegal. Voltando a uma de suas perguntas anteriores sobre legalizar ou disponibilizar drogas, acreditamos que vamos reduzir em 90% o mercado ilegal se as pessoas puderem fazer o que fazem por meio do Estado ou seja como for. Não acabaríamos com ele, pois o cigarro é legal, mas há um mercado ilegal de cigarros, sei disso. Mas isso é ridículo. Era o que acontecia em algumas partes do mundo e ainda acontece. Seringas são distribuídas, as pessoas vão às ruas, compram material ruim e acabam tendo problemas com coisas assim.
Eduardo Nunomura: Falando em cigarros, dias atrás uma revista publicou um anúncio da Phillip Morris, em que ela dizia assim: "Não suponha que os cigarros com menos alcatrão e nicotina são mais seguros ou melhores para você". E isso é exatamente o que os grupos de redução de danos defendem para o caso do tabaco. O senhor vê a Phillip Morris, uma das maiores fabricantes de cigarros do mundo como uma aliada, ou, ao contrário, que ela está tentando confundir a cabeça dos fumantes e atrapalhando o trabalho de vocês?
Pat O´Hare: Acho que a Phillip Morris precisa dizer isso. Há uma nova legislação em algumas partes da Europa que obriga a colocar isso nos maços de cigarro e na publicidade. Porque hoje se sabe que o baixo teor de alcatrão não traz benefícios. O benefício vem com o corte total do alcatrão dos cigarros. Na [Associação Internacional] Redução de Danos jamais diremos para fumarem cigarros com baixo teor de alcatrão. É difícil lidar com o tabaco porque... Há métodos de redução de danos para o tabaco, o adesivo de nicotina é uma estratégia de redução de danos. É difícil lidar com o tabaco, e o mundo seria melhor se ninguém fumasse porque não quero a fumaça entrando no meu nariz e não quero todos esses problemas. É muito difícil, mas o tabaco realmente, ao contrário de muitas outras drogas, parece ter melhor resposta à educação, sobre como parar, novas formas de parar. O tabaco tem resposta melhor que qualquer outra droga. Mas o tabaco é um grande problema. É um grande assassino. Anualmente 100 mil pessoas morrem no Reino Unido por causa do tabaco. A heroína mata 200, 250 pessoas. Menos usuários, claro.
Arthur Guerra: Eu sou médico e trato de pessoas que usam drogas. Quando chegou a [Associação Internacional] Redução de Danos, houve uma esperança de podermos cuidar de pessoas que não tinham essa possibilidade antes. Quase todos os médicos pensam da mesma forma, muitos médicos pensam como eu falo. O problema é que em algumas situações, a estratégia de redução de danos é mudada e fica uma ideologia. Como fundador do movimento, como você entende essa mudança de estratégia para ideologia, isso ajuda? Quando um partido político fala: "O nosso modo de enfrentar a questão de drogas é via redução de danos". Para o movimento como um todo isso é melhor ou isso é pior?
Pat O´Hare: A estratégia segue a ideologia, de fato, não o contrário. Se parte de nosso movimento está se tornando ideológico, não deveria. Não é bom para ninguém. É só o que posso dizer a respeito. Não é bom.
Antônio Carlos Prado: Serei objetivo. Na questão do dependente químico, o aspecto legal do dependente, houve projetos que preconizavam a internação compulsória, que quase nunca funciona. Hoje se propõe o contrário, que não haja essa internação. Eu queria saber o seguinte: à medida que muitas vezes a internação funciona como redução de danos, sobretudo, para quadros de transtornos borderline onde entra a droga e a pessoa se auto-lesiona, se auto-agride, como vocês vêem a questão da internação?
Pat O´Hare: Compulsória? Quando devem ficar lá?
Antônio Carlos Prado: Não, não. A internação... Eu só apresentei o quadro que existia mais ou menos no Brasil. Houve um projeto pregando a internação compulsória e hoje não se preconiza mais isso. Então na questão da dependência química, como é que o senhor vê a internação, uma vez que a droga entra muitas vezes em um quadro borderline, de transtorno de personalidade borderline, em que a pessoa se agride muito. Eu queria saber sobre a questão da internação.
Pat O´Hare: Se um viciado ou dependente de heroína quiser parar e, ao falarmos com essa pessoa, percebemos que o melhor para ela é ir a um centro de reabilitação onde ela estará praticamente em um hospital, faremos isso. Diremos: "Achamos que é o melhor para você. O que você acha? Você precisa ir para lá, ficar lá de 6 a 8 semanas. Você consegue”? "Vou tentar." Certo. Sem problema algum. Por que não faríamos? Se houvesse outra forma, se a pessoa dissesse: "Não posso fazer isso, não posso ficar no hospital por esse tempo, preciso ficar em casa". Nós a ajudaríamos em casa. Mas não há conflito nisso. "Hospital é para viciados em drogas". Não parece certo para mim, pois tem uma conotação de doença mental, e não considero vício em drogas ou dependência de drogas uma doença mental. Alguns dependentes também têm problemas mentais, problemas de saúde mental, mas... Não há problemas se esta for a melhor coisa para a pessoa e a pessoa quiser. Por que não? Claro.
Aureliano Biancarelli: O senhor conhece a justiça terapêutica? Já ouviu falar neste termo que é praticado nos Estados Unidos e está sendo adotado aqui em vários estados. Quer dizer, ao invés de mandar o usuário para a prisão, ele vai ser internado, vai cumprir uns meses que o juiz determinar e, se assim o fizer, vai ganhar a liberdade. Como é que o senhor vê essa questão?
Pat O´Hare: Basicamente eu digo que qualquer coisa que mantenha usuários de drogas fora da cadeia deve ser uma boa coisa, ou melhor do que irem para a cadeia. Mas depende de como é feito. E a idéia de um tribunal para drogas e essa idéia de justiça terapêutica não me atraem porque pressionar uma pessoa não é uma boa forma de fazê-la ir. Se dermos uma escolha honesta: "Vou mandá-lo para a prisão mas, se quiser, suspendo a sentença se fizer um tratamento que lhe seja adequado, não para este lugar ou aquele lugar, mas um tratamento que lhe sirva”. Talvez seja uma coisa boa, mas não obrigá-lo a isso. O maior problema é que prendemos pessoas por isso. Esse é o maior problema.
Aureliano Biancarelli: Esse fato transforma a Justiça num médico. A Justiça acaba decidindo pelo médico. É assim que acontece?
Pat O´Hare: Não. Aqueles que lidam com a pessoa em questão são trabalhadores sociais, médicos, enfermeiras. São pessoas competentes, certamente em todos os casos que conheço. Por isso acho que não. Há um problema ético de até onde trabalhadores devem se envolver com um sistema judiciário criminal, mas, de certo modo, é impossível que não se envolvam. É quase impossível que não se envolvam. Pode ser uma boa coisa ou uma coisa ruim, depende de como é feito.
Roberta Jansen: Eu queria falar um pouquinho sobre a questão da aids e da redução dos danos, a gente não falou disso ainda. É meio consenso que onde existe o usuário de droga injetável, onde a droga injetável é bastante usada, a epidemia de aids acaba adquirindo um perfil diferenciado. Isso está acontecendo muito no leste europeu, na Rússia, e, em uma escala muito menor, aqui no sul do Brasil, que tem essa característica também de usuário de droga injetável. De que forma, não sei se isso ficou muito claro para quem está assistindo, de que forma a redução de danos pode ajudar ou não na prevenção dessa disseminação?
Pat O´Hare: Tem razão ao citar a Rússia, por exemplo. A Rússia é a única no mundo nesse aspecto. Lá, mais de 90% das infecções por HIV se devem a seringas partilhadas. É um enorme problema lá. E a [Associação] Redução de Danos lida com isso do modo como lidou na Holanda e em muitos outros países na Europa, ou seja, fornecendo aos usuários meios de não partilhar seringas de outros, meios de usar todas as vezes uma seringa limpa, e depois fornecendo-lhes uma substância alternativa à heroína, principalmente metadona, para que não precisem usar heroína de rua. Isso funciona em outras partes do mundo, as evidências existem. É isso que devemos fazer na Rússia. Se a situação no sul do Brasil for a mesma, é o que deve ser feito no sul do Brasil. Infelizmente na Rússia há troca de seringas, mas o governo resiste à metadona, eles não permitem a metadona. Assim, isso vai aumentar, só vai piorar. É a situação da qual falou. Nós damos seringas e eles vão para as ruas. A situação na Rússia é desesperadora.
Sandra Batista: Pat, eu acho que tem alguns pontos que talvez não tenham ficado claro para mim, talvez para os ouvintes também. Primeiro, que a[Associação] Redução de Danos tem várias estratégias; entre elas uma estratégia é a questão da troca das seringas, que tem efetividade comprovada no enfrentamento da epidemia do HIV-aids, hepatites e outras questões ligadas a doenças de transmissão parenteral. Agora, quando nós falamos em justiça terapêutica, ou outras questões assim, que não estão somente ligadas à aquisição de seringas, que não está tão disponível ou à venda no mercado como nós imaginamos, como é que fica esse entendimento, sob a ótica da redução de danos. Quando uma pessoa é presa por porte de substância ilícita ela sempre é tida como um doente, e aí vem essa opção, por exemplo, da justiça terapêutica entre a prisão ou o tratamento, mesmo que ela esteja entre esses 70 ou 80% que você citava, que são usuários que não têm problemas com o uso dessa substância. Como se pode aplicar alguma questão vinculada à política da redução de danos, não só a estratégia da troca de seringas?
Pat O´Hare: Dentro ou fora dos presídios?
Sandra Batista: Fora dos presídios.
Pat O´Hare: Por exemplo: o uso de ecstasy ou algo do tipo? Esse tipo de coisas? Uso de outras drogas?
Sandra Batista: Como lidar com essa questão quando você está falando em aplicar a justiça terapêutica ou aplicar esse substitutivo de lei, que está sendo discutido no Brasil agora, que torna qualquer usuário de droga, seja qual for o seu nível de uso, como um doente. Ou seja, ele vai ter uma penalidade alternativa, ele vai ter um encaminhamento, talvez para tratamento ou não, mas qualquer uso de drogas é um problema. Ou seja, ou você tem um criminoso ou você tem um doente. Você não tem uma pessoa que socialmente conviva tranqüilamente com o seu uso, como muitos de nós convive com o uso de álcool e tabaco.
Pat O´Hare: Isso é negar a realidade porque essa não é a realidade do uso de drogas e não é a realidade de como são os usuários de drogas. Eu sei que algumas das melhores músicas do mundo foram compostas por usuários de drogas, algumas das melhores poesias foram escritas por usuários de drogas. Achar que usuários de drogas são doentes ou criminosos é ter uma visão extremamente limitada. Mas essa parece ser a situação em muitas partes do mundo. E o que podemos fazer é mostrar que não é bem assim. E, em vez de nos concentrarmos no uso da droga, pensar nos problemas gerados pelo uso da droga, na criminalidade. Se um usuário de drogas rouba meu carro, eu não digo: "Entendo que seja usuário, pode levar". Não entendo e chamo a polícia, porque quero o meu carro de volta. E quem rouba um carro precisa ser punido. Entretanto, se ele for um usuário crônico, alguém desesperado, nesse momento ele precisa de ajuda e não defendo a prisão. Não defendo a prisão pelo uso de drogas, por colocar substâncias em seu corpo. É loucura. Se alguém cometer um crime, é o mesmo que qualquer um de nós cometer um crime. Devemos nos submeter à lei local.
Aureliano Biancarelli: O senhor é músico e adora futebol?
Pat O´Hare: Eu fui músico e fui jogador de futebol. Fui músico profissional e só toco em casa agora. Não jogo futebol, mas adoro futebol. Adoro o futebol brasileiro e adoro o rei Pelé.
Aureliano Biancarelli: É porque fizemos uma relação entre o músico criador e o usuário de drogas, e o fato de o senhor ser músico, trabalhar com drogas, ou com usuários de drogas, não há nenhuma relação?
Paulo Markun: Vamos perguntar objetivamente. O senhor usa drogas?
Aureliano Biancarelli: O senhor usou drogas para compor as suas músicas?
[intervalo]
Paulo Markun: Voltamos, então, para o último bloco de entrevistas desta noite do Roda Viva com Pat O’Hare, dirigente da Associação Internacional de Redução de Danos. Aqui no Brasil essa questão da política de redução de danos, no que toca o fornecimento de seringas aos usuários de drogas injetáveis, relacionado com a questão da redução do risco de transmissão da aids, houve uma enorme luta, há muitos anos atrás, na cidade de Santos, quando pela primeira vez um governo municipal adotou essa política, os responsáveis pelo setor de saúde foram processados, porque eram acusados de facilitar o crime, que era o tráfico de drogas. A dúvida que eu tenho é que me parece que o movimento de vocês não defende apenas isso. Ele quer ir além disso, e o ponto final dessa trajetória - e nós já falamos disso - é efetivamente algum tipo de mudança na lei que admita que as pessoas que quiserem usar drogas, usem livremente. A pergunta que eu faço é, eu já fiz um pedaço dela, quando a gente está no meio do caminho, quer dizer, nem temos de um lado a liberalização, ou a descriminalização, ou, enfim, o fornecimento de droga para quem quiser, por parte de instituições de saúde pública, etc, não existe uma zona cinzenta onde fica difícil defender essa tese? Eu digo porque, eu vou citar uma comparação grosseira, quando chegaram os primeiros religiosos no Brasil, eles queriam catequizar os índios, queriam transformar todo índio em um cristão. A sensação que eu tenho é que vocês querem descatequizar os não usuários de drogas, e fazer com que eles aceitem que o índio é diferente. Quer dizer, há pessoas que usam drogas e tudo bem. E isso é o ponto chave, na medida em que você enfrenta um enorme conjunto de interesses que são contrários. Não é um pouco de “Dom Quixote" [referência ao personagem principal do livro El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de 1605, do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), um dos livros mais famosos da história, cujos personagens principais, um cavaleiro andante que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro - Sancho Pança - caminhando à procura de aventuras, defendendo donzelas e atacando inimigos imaginários, "fazem parte da memória da humanidade", como disse Jorge Luis Borges] da parte de vocês, um pouco de ilusão de levantar essa bandeira?
Pat O´Hare: Que moinho de vento [referência a uma das histórias do livro Dom Quixote, na qual o cavaleiro ataca moinhos de vento imaginando serem gigantes inimigos] estou enfrentando? Qual é meu moinho de vento, se sou Dom Quixote?
Paulo Markun: No sentido de que nem vocês defendem radicalmente, dizendo o seguinte: "Ok, nós somos a favor da liberalização do uso de drogas e que cada esquina tenha um posto de saúde, e se eu quero cocaína, eu vou lá e pego cocaína, se quero maconha, vou lá e pego maconha, etc." Isso é um mundo ideal para muita gente. E há um outro mundo ideal que não é o de vocês que é dizer o seguinte: "Ok, toda droga é proibida, não existe droga, ninguém consome droga, e está tudo resolvido". Vocês estão no meio do caminho e defendendo uma tese que contraria a "moral e os bons costumes", a média do pensamento. Não é ser Dom Quixote isso?
Pat O´Hare: Em primeiro lugar, nós - e eu não defendo cocaína em todas as esquinas - não defendemos a liberalização total de drogas. Para a Associação de Redução de Danos é um pouco confuso no momento porque há todo um bloco nessa área cinzenta no qual as pessoas usam muitas drogas e sofrem muitos danos. E do outro lado, há um bloco de pessoas que não usam drogas que não precisam de nós. Nós nos concentramos neste bloco no meio. Na verdade, precisamos delas. Elas não precisam de nós, mas precisamos delas, pois precisamos convencê-las que o que fazemos é certo e o que fazemos é melhor para elas também. Pois muitas dessas pessoas têm filhos e filhas neste bloco do centro. E muitas têm mães e pais neste bloco central. O que conseguimos fazer em Liverpool em meados da década de 1980, foi conquistar muito lentamente a opinião pública. E devo admitir que houve momentos em que parecíamos enfrentar moinhos de vento. Mas, com a ajuda da imprensa... A imprensa é muito importante. A imprensa pode destruir um ano de meu trabalho em um instante. Um artigo sensacionalista pode destruir muito trabalho. Assim, fomos capazes de usar a imprensa, fomos capazes de... O termo não é "manipular", nós falamos com jornalistas, dissemos o que faríamos, por que faríamos, e eles entenderam. Fizemos seminários com jornalistas e conseguimos muitos artigos sensatos. Fomos capazes, com a ajuda da imprensa, de convencer o público em geral de que essas coisas funcionavam. Assim, eles aceitaram. Mas a sociedade deste lado com todos usando drogas não é o que quero.
Antônio Carlos Prado: Vocês e grupos como os Alcoólicos Anônimos, o que vocês acham?
Pat O´Hare: Acho que para algumas pessoas é fantástico. Para alguns é realmente bom. De modo geral é uma abordagem com a qual particularmente não concordo, porque ela torna o uso de drogas patológico, torna os usuários de drogas... Ela toma o controle do usuário de drogas, da pessoa. Ela diz: "Precisa entregar o controle, não consegue fazer sozinho, você é uma pessoa dependente, faz parte dos 10% de dependentes na sociedade, precisa entregar o controle a um poder maior pelo resto de sua vida". Acredito que drogas não usam pessoas, pessoas usam drogas. É bem simples. Drogas são objetos inanimados, pessoas usam drogas e escolhem fazer isso. 99,9% das pessoas que usaram drogas o fizeram por vontade própria. Entretanto, se alguém procura o Alcoólicos Anônimos e sai ao final sem usar drogas, perfeitamente feliz, perfeitamente feliz em entregar o controle a esse poder maior, por que eu criticaria isso? É claro que é bom para algumas pessoas. Claro que é.
Eduardo Nunomura: Será que o mundo já está preparado, maduro o suficiente para desenvolver idéias mais avançadas e partir para a recusa de danos, pelo menos para os grupos de redução de danos? Como proceder para dar esse salto qualitativo que é trocar a tolerância, a aceitação do uso de drogas, para a eliminação desse problema? Ou vocês não pensam em fazer isso lá na frente?
Arthur Guerra: Só para complementar, eu tinha pensado alguma coisa, não é telepatia, mas você deve estar nesse campo, há 25, há 30 anos, trabalhando no campo de drogas, não é?
Pat O´Hare: Vinte.
Arthur Guerra: Vinte. Como que você vê, seguindo o Eduardo, nos próximos 20 anos, não da posição do seu movimento, eu queria ouvir agora a opinião da pessoa, do Pat, nos últimos 20 anos, nós não mudamos tanto. Nenhuma terapêutica fantástica, álcool já era importante, maconha, cocaína há 20 anos atrás. Mas, nos próximos 20 anos, o que nós temos, na qualidade de um líder, de alguém que faz a opinião pública, que faz a opinião de pessoas que trabalham nessa área, como é que você imagina os próximos 20 anos?
Pat O´Hare: Acho que o mundo está maduro o bastante, com certeza. Acho que as pessoas são basicamente racionais, e, desde que eu, ou nós, sejamos habilidosos o bastante para apelar a essa natureza racional, poderemos convencê-las que isso é melhor. Você disse que há 20 anos era assim: uso de heroína por toda parte, pessoas com abscessos nas pernas, com pernas amputadas, com hepatite, endocardite, depois a ameaça do HIV... Veja agora, não exatamente, mas quase 20 anos depois, pessoas ainda usam drogas, relativamente menos, apenas relativamente, pessoas saudáveis, sem abscessos, um índice quase nulo de HIV, tão baixo que não pode ser medido em termos epidêmicos. Isso tudo é melhor. Qual foi o preço que você teve que pagar? As pessoas sabem o que é certo ou que é errado, com certeza na parte do Reino Unido onde trabalhei. Você falou em avanços. Para mim, não foram avanços. Alguém injeta drogas. Ele pega a seringa de alguém infectado, injeta em si, fica infectado... Não acho que seja um avanço pensar: "Dê-lhe uma seringa limpa todas as vezes". Não há avanços nesse tipo de pensamento, ao menos eu penso assim. É o bom senso e irá prevalecer. O bom senso irá prevalecer. Daqui a 20 anos... Não sei se foi Mao [Mao Tsé Tung (1893-1976) fundador da República Popular da China e Chefe de Estado e do Partido Comunista] ou Confúcio [(
Aureliano Biancarelli: Aqui no Brasil o termo “redução de danos” vem se ampliando para um leque mais aberto. Uma das coisas que é bem claro, que as pessoas entendem muito, é a redução de danos e o álcool. "Se você vai beber, não dirija!" Isso as pessoas entendem e isso está sendo colocado em várias outras situações. Eu tenho um relato simples, feito por um bombeiro, que contou durante 8 anos 800 carros que tinham caído dentro do rio Tamanduateí, o rio que corta a cidade. E alguém decidiu colocar um guard-rail [cerca de proteção] no rio e os carros não caíram mais. Quer dizer, houve, no meu ponto de vista, uma forma de reduzir danos. Nos países escandinavos eles chegaram a retirar postes e árvores do lugar porque era nessas árvores e nesses postes que os garotos batiam os carros de madrugada. Você acha que esse conceito pode ser ampliado? Vem sendo ampliado?
Pat O´Hare: Pode ser. É fantástico em países como os escandinavos e países como a Holanda, nos quais as pessoas são muito pragmáticas. "Este é o problema. Quais são as soluções? Esta é a melhor solução. Vamos implantá-la”. Esse tipo de coisa pode acontecer. São ótimos exemplos. É apenas o bom senso. É bom senso.
Roberta Jansen: Voltando um pouco ao que o Markun estava falando, como é que... Teve uma campanha, recentemente aqui no Brasil, que fez um certo sucesso, uma campanha de televisão, que dizia que o usuário de droga acaba financiando a violência. E, enfim, vários especialistas chegaram a dizer, em entrevistas, que essa campanha era muito bem sucedida. Esse tipo de coisa prejudica o trabalho de vocês? É interessante porque abre um debate sobre isso? Como é que o senhor vê esse tipo de discussão, de o usuário ser considerado, de certa forma, responsável pela violência lá da ponta, ligada ao narcotráfico.
Pat O´Hare: Eu não gosto disso. Não gosto nada disso porque culpa usuários de drogas, culpa as vítimas. É basicamente o que são. Usuários de drogas são vítimas desse crime organizado em muitos casos. E não gosto disso. Culpar usuários de drogas... O presidente dos EUA está quase culpando usuários de drogas pelo 11 de Setembro. É um salto de fé gigantesco, não gosto disso. [risos]
Paulo Markun: Pat, nosso tempo está terminando e eu gostaria de fazer uma última pergunta mais especulativa até do que as anteriores, que é a seguinte: o homem, pelo que a gente sabe, sempre buscou alterações de consciência. Se a gente pega os indígenas aqui do Brasil, eles utilizam determinados produtos naturais que alteram a sua consciência de modo radical, só que não eram chamados de "drogas", tinham outros nomes, na maioria das vezes eram utilizados para fins religiosos ou próximo da religião. Na medida em que a sociedade ficou complicada e entrou no meio dessa história o dinheiro, a lei, etc, aí que a coisa ficou mais complicada. A pergunta é: você enxerga no cenário futuro, e aí é pura especulação, outro tipo de droga que não essas que a gente conhece? Não digo as questões químicas, eu penso, de maneira muito preocupada, em relação aos jovens hoje de 14, 15 anos, que têm uma relação com o computador, que envolve horas e horas de absoluta dedicação a uma máquina, que pode ser maravilhosa e eficiente, mas que, às vezes, substitui todo o resto. Ou eu estou delirando completamente?
Pat O´Hare: Não acho que esteja delirando, mas, se tivermos de lidar com isso, enlouqueceremos. Minha crença fundamental é que é direito de todos pôr em seu corpo o que quiser, desde que não prejudique outra pessoa, desde que não se torne um fardo à sociedade. Gostaria que tudo voltasse àqueles dias.
Paulo Markun: Ok, Pat. Eu queria agradecer a sua entrevista, desejar boa sorte nesta empreitada. Eu creio que, de alguma forma, este programa coloca em debate um tema que nem ainda o Brasil discute muito amplamente, justamente, nesse sentido é que a gente acha que é um compromisso da televisão pública abrir um espaço para essa discussão e dizer que nós estamos aqui abertos a outras discussões do gênero. Eu quero agradecer a sua presença aqui e a presença dos nossos entrevistadores.