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Memória Roda Viva

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Patricia Edgar

19/7/2004

A presidente da Fundação de Cúpulas Mundiais para Crianças e Adolescentes conseguiu ampliar, a partir de seu país, um movimento que visa tornar a TV mais educativa e responsável

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Programa gravado

Paulo Markun: Boa noite. Ela provocou uma virada na televisão da Austrália ao interferir no mercado e conseguir uma política que levou as emissoras a produzir programas infantis de melhor qualidade. Agora comanda uma ação internacional para estender a outros países a experiência que tornou a programação infantil da TV australiana mais educativa e mais responsável. O Roda Viva entrevista esta noite Patricia Edgar, presidente da Fundação de Cúpulas Mundiais para Crianças e Adolescentes, que realizou no Rio de Janeiro a Cúpula Mundial para discutir a programação infanto-juvenil na mídia.

[Comentarista Valéria Grillo]: Patricia Edgar idealizou e coordenou o primeiro encontro internacional sobre mídia para crianças e adolescentes na Austrália em 1995. Depois veio a Cúpula da Inglaterra em 98 e a da Grécia em 2001. Agora, em abril de 2004, veio a do Rio de Janeiro, primeira iniciativa na América Latina destinada a discutir a mídia para crianças e adolescentes. Durou cinco dias e reuniu 3 mil pessoas de 60 países. Produtores, educadores, artistas, profissionais da mídia e organismos de cooperação puderam discutir e trocar experiências principalmente sobre a produção de programas de TV com melhores conteúdos e maior responsabilidade social. Pesquisadores e educadores se preocupam com o fato da programação infantil e juvenil da TV estar submetida aos interesses da propaganda, da mercadologia e do consumo, e com o fato da disputa pela audiência incorrer muitas vezes em descuidos e abuso, oferecendo conteúdos na contramão de uma programação que poderia tratar de questões relacionadas à vida humana, ao processo de crescimento e ao auto- conhecimento das crianças e dos jovens. A 4ª. Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes foi encerrada com a divulgação da Carta do Rio de Janeiro e da Carta dos Adolescentes, dois documentos que serão encaminhados a governos propondo ações para produção de mídia de qualidade e mostrando que há iniciativas viáveis para divulgar solidariedade e valores humanos na produção áudio-visual e que os meios de comunicação precisam ter mais respeito pela juventude.

Paulo Markun: Para entrevistar a pesquisadora Patricia Edgar, nós convidamos Ana Olmos, psicanalista de crianças e adolescentes e presidente da ONG TV; Beth Carmona, presidente da TVE, Rede Brasil e do Centro Brasileiro de Mídia para crianças e adolescentes; o jornalista Nelson Hoineff, presidente do Instituto de Estudos de Televisão; o escritor e jornalista Ivan Angelo, cronista da revista Veja São Paulo; Ana Bock, presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, professora da PUC de São Paulo e membro da Coordenação do Banco Social de Serviços de Psicologia e Tereza Otondo, das relações internacionais da TV Cultura. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e para Brasília também. Boa noite.

Patricia Edgar: Boa noite.

Paulo Markun: Nós estamos fazendo um programa sobre qualidade de programação infantil e para adolescentes numa emissora que tem isso como meta, como objetivo. Nem sempre pode alcançar todos os objetivos a que se coloca, mas é esta a meta. No entanto, recentemente, saiu uma pesquisa que demonstra quais são os programas mais assistidos pelas crianças de 0 a 9 anos e de 10 a 17 anos aqui no Brasil, e nenhum dos programas da TV Cultura ou de qualquer outra TV Educativa ou pública brasileira está na lista dos programas mais assistidos. Pior ainda, são alguns programas jornalísticos de boa qualidade, mas muitos programas são novelas com temas adultos ou programas que não têm nada a ver com a questão infantil. E os raros programas infantis que existem não têm nenhum parâmetro dos que foram estabelecidos pela cúpula que debateu essa questão. A pergunta é: a senhora acredita que é possível, na realidade do mercado, de países onde a televisão virou apenas um negócio, ter espaço para a programação infantil e adolescente de qualidade realmente?

Patricia Edgar: Com certeza. Leva-se tempo para formar uma audiência, leva-se tempo para as crianças entenderem que há horários e programas especialmente criados para elas. Leva-se tempo para os produtores adquirirem a experiência que é importante para criar programas que não apenas entretenham as crianças, mas também auxiliem no desenvolvimento, o que é o mais importante. Um dos grandes mitos na mídia mundial é o de que crianças não gostam de programas que pessoas como Beth [Carmona, uma das entrevistadores] ou eu gostaríamos de produzir. Mas foi provado que isso não é verdade, certamente na Austrália, certamente no Reino Unido, onde a BBC domina o mercado. É interessante para as emissoras de televisão alegar que as crianças não querem ver esses programas. Mas não é possível pôr um programa no ar e esperar que haja uma imensa audiência de crianças. Há muitas coisas envolvidas.

Paulo Markun: E quando a senhora diz que é necessário tempo, significa que é necessário dinheiro também. Porque na televisão, tempo, regularidade, costume, hábito significam investimento.

Patricia Edgar: É preciso tempo, dinheiro e pessoas capazes para produzir esses programas. Mas essa é apenas metade da luta. Depois é preciso horários regulares, compromisso para promover; é preciso pôr esses programas em horários nos quais as crianças e o público estejam disponíveis para assistir. Outro truque sempre usado na Austrália é que as emissoras podem fazer um programa que é exigido e então o veiculam às 6 da manhã, quando ninguém está assistindo, ou às 16 horas, quando ainda não voltaram da escola e ninguém assiste. É preciso um esforço conjunto e cooperação de todas as partes interessadas para que isso funcione.

Beth Carmona: Patricia, já que a Austrália, assim como muito outros países, inclusive o Brasil, convive bastante também com a TV comercial e também tem ali o seu grupo poderoso de televisão, [Rupert] Murdock [dono dos estúdios 20th Century Fox, dos jornais Times e New York Post e da rede de TV Fox, entre outros empreendimentos] é um dos grandes magnatas da comunicação. Como é que foi possível essa mudança, por onde você começou o seu trabalho?

Patricia Edgar: É uma longa história e, certamente, não ocorreu em pouco tempo. Sempre há motivos políticos para uma mudança. Na Austrália houve uma mudança de governo. Um governo conservador assumiu o poder e as emissoras comerciais imaginaram que era um bom momento para ter uma auto-regulação. Elas pressionaram o governo e este, embora simpático à idéia, não quis fazer isso sem uma pesquisa. Para conduzir a pesquisa foi escolhido um executivo de emissora comercial que havia trabalhado o tempo todo no setor. Mas esse homem era meio independente e, quando chegaram as avaliações - e na Austrália tivemos mais de 500 avaliações, um número bem alto para nossa população - 500 avaliações significativas chegaram afirmando que não havia programas australianos de qualidade. A maior parte de nossa programação vinha do exterior. Produzíamos pouca coisa no país. E esse homem ouviu e concluiu que as emissoras comerciais deviam assumir a responsabilidade naquele momento de fazer isso. E ele cometeu o erro de me convidar para presidir o Comitê de Diretrizes de Programação. O Comitê era composto de sete pessoas. Três delas vinham da indústria televisiva e quatro eram pessoas do público, inclusive eu. Era um comitê equilibrado de forma que, se concordássemos em alguma coisa, então aquilo seria seguro implementar. Trabalhamos e discutimos durante vários meses e chegamos a uma série de normas. Isso foi em 1978. As normas existem até hoje. Elas exigem que emissoras comerciais transmitam diariamente um programa pré-escolar que seja livre de publicidade, um programa para crianças de 6 a 12 anos, com duração de uma hora, após a aula, e também um seriado, uma produção inédita de um seriado australiano, pois esse é o tipo de programa que mais atrai as crianças. Mas o importante em relação à regulamentação era que esses programas deviam ser pré-aprovados. Eles não iam simplesmente ao ar, as emissoras não decidiam quais eram seus programas infantis. “Vamos passar 6 horas dos Simpsons, esse será nosso programa infantil”. Elas não podiam fazer isso. Era preciso passar pelo Conselho Regulador e devia ser aprovado. Houve uma revolta geral da indústria. Diziam que era censura, que era o pior tipo de interferência nas emissoras comerciais. Mas, no final, aprenderam a conviver com isso. Ainda não gostam, mas aceitam. É uma condição para se obter a licença, elas devem cumprir essas normas.

Ivan Angelo: A senhora falou que era depois das aulas que esses programas teriam que ser exibidos, mas a que horas? No horário que a gente chama aqui de horário nobre, quer dizer, entre 7 da noite, 9 da noite, passaria alguma dessa programação de qualidade para criança?

Patricia Edgar: Eles iam ao ar após o horário escolar. Então iam ao ar entre 17h e 18h ou entre 16h30 e 17h30, quando as crianças estavam em casa e podiam assistir. Não iam ao ar em horário nobre, embora alguns dos seriados aprovados passassem em horário nobre, em horário para a família no início da noite. Os seriados eram vistos por um público maior, mas a programação vespertina, que abrangia programas dos mais variados, era exibida no início da manhã. Mas não gostávamos muito desse horário.

Nelson Hoineff: Patricia, eu gostaria de tentar estabelecer uma pequena relação com o caso brasileiro. A senhora certamente está bastante familiarizada com o trabalho teórico de Ien Ang que leciona possivelmente perto, não muito longe de onde a senhora mora, na Universidade de Murdock, na Austrália. Ien Ang, como a senhora sabe, é uma das maiores especialistas do mundo em estudos de respostas de audiência em televisão. Num dos livros mais conhecidos dela, o Desperately seeking the audience, ela diz literalmente que o hábito de ver televisão deve ser entendido como um processo cultural, complexo e dinâmico, completamente integrado nas contingências do dia-a-dia, e sempre específico no seu significado e no seu impacto. Essa reflexão leva naturalmente à conclusão de que o impacto da televisão sobre as crianças é tão maior quanto, é tão mais diverso quanto mais diversas forem as circunstâncias sociais, quanto mais diferentes forem as circunstâncias sociais a que essas crianças estiverem submetidas. Eu queria que a senhora dissesse como vê o resultado desse processo num país como o Brasil, onde, por um lado, existe uma das audiências mais massificadas do mundo em televisão e, por outro lado, uma das maiores diferenças sociais entre as crianças que assistem à televisão?

Patricia Edgar: Sim. O senhor levantou questões importantes que envolvem crianças e a mídia, e a educação das crianças. É preciso ser muito estratégico na maneira de abordar essas questões. Mas o que sabemos, seja uma criança no Brasil ou em outro lugar qualquer, sabemos que os primeiros 5, 7 anos de vida são absolutamente fundamentais para seu desenvolvimento, para o desenvolvimento do cérebro, para a forma como vão aprender ao longo da vida. E se, ao longo desse período da vida, elas forem privadas de educação, forem privadas de estímulos e do aprendizado, então sabemos que vão crescer e se tornar adultos marginalizados por causa da desvantagem desde o início. Assim, esses primeiros anos são fundamentais. Em países nos quais há tantas crianças... Nossa população infantil está diminuindo, é de cerca de 20%, aqui imagino que os jovens sejam dois terços da população. Vocês têm uma oportunidade com a televisão, de usá-la como um recurso que será uma ferramenta importante para o desenvolvimento delas. Há um intervalo até ter o sistema educacional ajustado para essas crianças. E a televisão é uma forma de chegar a elas. Sei que ela está presente na maioria dos lares brasileiros. A TV não é uma experiência passiva, como alguns dizem, mas, como já sabe, o impacto da TV é muito diverso, depende de uma série de fatores na formação da criança. Assim, como tudo, deve começar com o primeiro passo e construir a partir de então. E a análise de seu sistema educacional, das necessidades da educação e a forma pela qual isso pode funcionar com o sistema televisivo são muito críticas para o futuro do Brasil, para o futuro de todo o mundo em desenvolvimento. E, se algo não for feito a respeito, esse futuro será desperdiçado. E não há muito tempo. Há uma oportunidade que deve ser aproveitada e os governos devem reconhecer isso como uma verdadeira prioridade, e o setor privado deve reconhecer isso como prioridade. Não basta ajeitar um pouco as coisas e dizer: “Estamos fazendo nossa parte aqui”. É fundamental, muito trabalho deve ser feito.

Ana Olmos: Patricia, esse resultado apresentado pelo Markun sobre o que é mais visto pela infância e adolescência aqui no Brasil, reflete também um gosto imaginário produzido socialmente a partir daquilo que é oferecido para as crianças escolherem. Não entrou nessa oferta um biscoito fino, como o Mundo da Lua [seriado para o público infantil, exibido pela TV Cultura, no período de 1991 a 1993] que foi feito pela Beth Carmona, que depois de ter passado em TV educativa foi até para outros lugares de TV comercial. Então como eu acho que a questão da qualidade de mídia é muito mais um problema de oferta, uma questão de oferta do que de demanda, se não se ofertar mídia de boa qualidade para as crianças, elas sem provarem algo bom, para se formarem com algo bom, transformarem o gosto, vão continuar reproduzindo aquilo que elas tiveram de alimento. Eu vou lhe perguntar algo bem estratégico da sua opinião sobre a nossa situação brasileira. Nós temos produtos muito bons de gente como a Beth Carmona que fez e que tem arquivo como mídia ativa da Beth, que tem arquivos maravilhosos de bons produtos de mídia de qualidade e não temos como distribuir todo esse arquivo, ainda que a gente saiba que uma parte é comprada, quer dizer, poderia ser comprada aqui, uma parte vem de fora, podia ser usada tanta coisa boa aqui. A pergunta é: como você acha que poderia ser uma estratégia nossa em relação às TVs comerciais, porque foi dentro da TV pública que a Beth pode produzir, por exemplo, esse Mundo da Lua, que eu acho que é uma pérola para a infância e adolescência. Que idéias de estratégia para conseguir um espaço dentro da TV comercial para que, pelo menos, comece a passar algo que poderá formar uma outra audiência?

Patricia Edgar: Para começar, Beth deve receber muito mais dinheiro e muito mais recursos do que recebe, porque ela faz uma parte pequena do trabalho, pode fazer muito mais se tiver os recursos. Em relação às redes comerciais, assim como no Brasil, na Austrália e em outros lugares, uma licença comercial não é uma licença perpétua. As redes comerciais devem participar de uma audiência para renovação da licença e devem apresentar argumentos para ter a licença renovada. Devem demonstrar o que fizeram, como contribuíram para a comunidade. Não estão fazendo um favor à comunidade. Não recebem uma licença mágica para ganhar muito dinheiro. Elas têm responsabilidades com a audiência, não se trata apenas de retorno aos acionistas, mas de uma contribuição à audiência. No Brasil, a Rede Globo tem uma enorme audiência. E a Globo deve ser cobrada para cumprir com a responsabilidade em relação à audiência infantil no Brasil por meio de programas que sejam adequados a essas crianças. Sei que assistem às telenovelas, que elas são muito populares e as famílias as assistem reunidas. Não tem problema. Na verdade, mensagens sociais muito boas podem ser transmitidas por meio dessas histórias. Mas por si só, não são programas suficientemente diversificados para crianças. Por isso digo que o Brasil deve ser mais duro com suas emissoras comerciais. É preciso fazer exigências. São pessoas muito poderosas que elegem e derrubam governos. E os governantes nem sempre têm coragem ao lidar com aqueles na mídia que os elegem e os derrubam. Mas é preciso ter pessoas corajosas no poder legislativo, e elas devem ser educadas para entender que estão lidando com o futuro do país. E, se não fizerem isso, se agirem apenas no interesse daqueles que querem ganhar dinheiro então, com o tempo, o Brasil terá problemas muito maiores. Veja bem, o Ocidente tem problemas significativos por motivos similares. E o argumento é que há diversidade, teremos plataformas digitais de banda larga, não será preciso regulamentar, não será preciso ter algo específico para crianças, pois terão inúmeros canais à disposição. Mas sabemos que não é esse o caso. Elas terão mais do mesmo, não mais programas diversificados.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo, voltamos daqui instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva que esta noite entrevista Patricia Edgar. Ela preside a Fundação de Cúpulas Mundiais para Crianças e Adolescentes que promovem uma ação internacional em busca da melhoria da qualidade, principalmente dos programas de televisão destinados ao público infanto-juvenil. Como o programa está sendo gravado, ele não permite a participação do telespectador. Patricia, eu tenho duas netinhas de um ano e meio, elas são fanáticas telespectadoras de um programa sobre o qual eu queria a opinião da senhora, e queria perguntar também qual é a responsabilidade, que na visão da senhora, os pais têm sobre deixar os filhos assistir ou não, porque com um ano e meio de idade, não há criança que tenha condição de discernir. O programa em questão é Teletubbies. Como é que a senhora encara essa experiência?

Patricia Edgar: Não é um dos meus programas favoritos. Tenho objeções à idéia de fazer programas de televisão para bebês.  Crianças são atraídas pela cor, pelo movimento, a aparência interessante dos personagens. Acho que o modo como eles falam é regressivo. Não sei se, quando traduzido, o que falam em português corresponde ao idioma, mas, em inglês, certamente não é o mesmo idioma. Não que eu ache que vá fazer algum grande mal. Eu diria que muito dinheiro e muita pesquisa foram dedicados ao programa, uma quantidade enorme. Lamento que não tenha sido usado para melhor propósito. Teletubbies tem um enorme braço comercial. Há inúmeros produtos com Teletubbies. Você mostra aos bebês, a crianças muito pequenas, que tudo ao seu redor é coberto de Teletubbies. Elas sentam em cadeiras de Teletubbies, bebem em uma mamadeira de Teletubbies e assim por diante. É uma iniciação ao mundo do consumo. Tenho muitos problemas com esse mundo e pessoas envolvidas no movimento de Cúpula também têm. Mas acho que suas netas não serão terrivelmente afetadas pelos Teletubbies. Elas equilibrarão suas vidas, mas há enormes...

Paulo Markun: Eu também!

Patricia Edgar: Meus netos não assistem ao Teletubbies. Os pais deles não permitem.

Paulo Markun: E o papel dos pais, que tipo de restrição a senhora acha - se é que se deve fazer algum tipo de restrição - os pais devem estabelecer em relação a programação que as crianças assistem?

Patricia Edgar: Com certeza os pais devem fazer restrições. Para crianças pequenas é muito importante. O mundo televisivo ao qual estão expostos é, sob muitos aspectos, um mundo muito violento. Seja nas notícias, nos esportes, na ficção, etc. Deve-se ser muito seletivo em relação aos programas aos quais os jovens assistem. Na Austrália é relativamente fácil fazer isso. A maioria dos australianos têm videocassetes, não sei qual é a realidade aqui, mas com eles é possível escolher os programas e colocar para as crianças assistirem. E o bom é que crianças, diante de bons programas, irão vê-los repetidamente. Não é como adulto diante da televisão, que assiste a algo e não quer mais ver durante anos. Com crianças, esses programas têm vida longa e um ótimo valor como reprises. Os pais devem supervisionar as crianças, mas também precisam discutir com elas outras coisas a que devem assistir. Mas isso não exime a emissora de sua responsabilidade. Outro argumento comum é que os pais têm o controle remoto e podem desligar o aparelho se não gostarem do que estão vendo, vão fazer outra coisa. Mas a vida não funciona assim. E as crianças, nesse caso em particular, são um forte argumento, pois formam grande parte da audiência total e devem ser atendidas.

Ana Bock: Patricia, sem desvalorizar todo empenho necessário que todos nós temos feito para qualificar o conteúdo da televisão para as crianças e para os jovens, eu queria refletir um pouquinho com você sobre o seguinte: acho que nós temos discutido muito pouco o meio, o instrumento, a ferramenta. Na verdade nós ensinamos os nossos filhos a usar todas as ferramentas culturais, a tesoura, a gente ensina, pega na mão, ensina a cortar, o lápis, a caneta, o pincel, o copo; a gente ensina os nossos filhos a utilizar todas as ferramentas, menos a televisão. Ela foi naturalizada no nosso meio, na nossa casa; a gente não ensina as crianças quando ligar, quando desligar a televisão, a gente tem como usar, como utilizar a televisão, nem nós adultos sabemos disso, nem nós temos nos preocupado com essa questão. Então me preocupa que a gente limite a nossa discussão de uma política pública apenas à qualidade do programa de televisão e não discuta o instrumento, a ferramenta cultural em si. Eu acho que uma das questões importantes é que quando a gente tem uma rede social, relações sociais muito fragilizadas, o meio televisão escraviza as pessoas. O único jeito da televisão deixar de ser este instrumento desqualificado seria encontrar do outro lado uma rede social, uma malha social bastante fortalecida. Exemplo, a mesa do bar é um lugar onde a gente pode trocar opinião sobre o programa, a novela, o Big Brother. Eu acho que a escola é outro lugar que tem se omitido de discutir as questões veiculadas pela televisão. O grupo de amigos, a vizinhança, tudo isso tem sido muito frágil no Brasil, e aí não há possibilidade de termos um meio televisivo adequado, porque ele nunca encontrará do outro lado alguém que seja capaz, que tenha aprendido a digerir, a se relacionar. Ele sempre encontrará do outro lado alguém fragilizado que vai absorver sem crítica. Então a minha pergunta a você é se nós, aos nos preocuparmos tanto com a qualidade dos programas, não estaríamos nos dedicando apenas a uma política de redução de danos, ao invés de pensarmos efetivamente numa transformação dos meios de comunicação?

Patricia Edgar: Você tem toda razão no que afirma. A estrutura da sociedade está no âmago de qualquer tipo de benefício social. Pais e professores têm grande influência na vida das crianças. A família é a maior influência, claro. A televisão não pode fazer nada por si só sem o apoio, em especial, do sistema educacional. E nada irá substituir a experiência de ser ensinado por um bom professor. Essa será a maior influência na vida. Em relação ao sistema de comunicação, a forma como opera e a forma como o analisamos, acho que nos concentramos em questões pequenas sem nos atermos ao mais importante. E o que aconteceu com a TV aconteceu com as máquinas na forma como mudaram os empregos, o carro, que transformou nossas vidas e todas as cidades. A TV tornou toda casa uma unidade de consumo. Há uma relação direta entre quem vende e quem compra. E este é o grande monopólio da televisão que deve ser questionado. O valor daquilo que está sendo retratado não pode sobreviver. O modelo ocidental de consumo, o modelo americano que adotamos com tanto entusiasmo no Ocidente é baseado na idéia segundo a qual compramos sem parar, e a compra de bens traz alguma forma de satisfação as nossas vidas. Um sentimento de que estamos indo a lugares, estamos realizando, somos bem-sucedidos, que nossa felicidade é baseada nessas coisas. Duas coisas: em primeiro lugar, nossa felicidade não se baseia nisso. Há muita gente infeliz que tem muitas coisas. Outra coisa é que não há como, neste planeta finito, sustentarmos essa idéia de crescimento. Não há como todos terem todas as coisas que são oferecidas. Isso cria uma enorme divisão social. Há poucas pessoas que têm todas essas coisas, e há muitas pessoas que não as têm, e é pouco provável que venham a ter. Nesse sentido, a televisão cria descontentamento, cria tensão social. É um gatilho para as pessoas que sabem que não terão essas coisas sentirem ressentimento e raiva por um mundo que lhes é negado. A televisão pode fazer coisas maravilhosas, mas está fazendo coisas muito graves das quais nem falamos.

Beth Carmona: Patricia, voltando um pouco à questão da TV de interesse mais educativo, da TV de interesse mais público. A gente sabe, que no Brasil, na América Latina a gente tem um histórico de TV pública, TV educativa com muita dificuldade, quase inexistente, com altos e baixos. E por um outro lado, a gente sabe que, enfim, nos Estados Unidos existe um sistema de TV pública que também existe há bastante tempo, mas também está sofrendo lá o seu processo de esvaziamento, assim como dentro da própria Europa, hoje, a própria existência da TV pública, da maneira como ela está constituída, também está sendo um pouco questionada, a ponto de uma produção como Teletubbies, que foi aqui citada, ser produzida pela BBC, é uma produção financiada pela BBC, e, no entanto faz um merchandising violento de todos os produtos para poder ter uma sustentabilidade, talvez essa própria produção. Apesar de eu ser uma otimista e estar sempre lutando em relação a essa causa, a gente sabe que a situação mundialmente falando é uma situação onde todos estão um pouco meio que encostados na parede por uma situação muito maior que vai avançando. Você é otimista? Como você vê?

Patricia Edgar: É preciso ser otimista. Ou então é melhor fazer as malas e ficar numa praia ou sob uma árvore e se afastar de tudo. É importante continuar se envolvendo. Você tem toda razão, as emissoras públicas em muitos lugares estão sendo esvaziadas, isso nunca foi tão forte nos Estados Unidos porque sempre dependeram muito do apoio privado e não do governo. Mas na Austrália... Houve um grande ataque contra a BBC e a ABC na Austrália, quase uma guerra. Os governos não gostam que emissoras independentes fiquem lá criticando o que fazem, questionando suas ações, revelando as manipulações. As emissoras públicas são atacadas por esse motivo. E essas emissoras públicas são a força por trás da programação infantil. Na Austrália, a Australian Broadcasting Corporation, totalmente financiada pelo governo, é certamente a principal emissora para crianças e tem a maior parte da audiência infantil. Mas o governo está atacando a emissora por motivos que acredito serem políticos, mas claro que afeta tudo o que fazem. A única forma de combater isso é através da reação pública. Os pais devem objetar, professores devem objetar, precisam unir as forças. É muito difícil fazer as coisas individualmente. Embora vocês tenham demonstrado no Brasil que, como indivíduo, é possível fazer muita coisa. Indivíduos que pensam da mesma forma devem se unir. Conhecemos os políticos, não dizemos que os políticos devem ser corajosos e regular. Sabemos que não farão isso a menos que estejam em uma posição em que acreditem que possam perder os mandatos, pois os eleitores não votarão neles se não fizerem o que é de interesse do povo. E é disso que trata a Cúpula Mundial. Já tem 9 anos, desde a primeira Cúpula em Melbourne. Eu tinha uma motivação muito política nos meus planos para a Cúpula Mundial. Visava pressionar o governo, assegurar verbas para os programas, encontrar pessoas afins do mundo todo que pudessem se erguer e trabalhar juntas. Acho que é uma coisa muito poderosa e isso tem se confirmado. O encontro realizado no Rio de Janeiro, em abril, com quase 3 mil pessoas é um marco. É um começo, o início de uma mudança fundamental para um grupo social. É preciso ser otimista. Ou você estará fugindo da vida.

Teresa Otondo: Patricia, eu gostaria de aprofundar um pouquinho mais na história da Cúpula do Movimento Mundial. É extraordinário que da Austrália surge esse movimento que hoje em dia está andando pelo mundo inteiro. E a partir da sua percepção desses nove anos, Austrália, Londres, Grécia, Brasil e na próxima Cúpula, na África do Sul, quais foram as três grandes conquistas que poderíamos dizer que o movimento obteve até agora? Eu acho extraordinário que na Austrália se tenha uma política pública de responsabilização da televisão pública, mas ao mesmo tempo hoje estão ocorrendo aqueles problemas que a senhora acaba de comentar aqui com a televisão pública. Enfim, os problemas todos aqui levantados e na Cúpula são enormes, qual é o norte e as três grandes conquistas que a senhora vê que teve nesse movimento?

Patricia Edgar: Digamos que eu considero o movimento de Cúpula Mundial um processo. No sentido de que existe uma Cúpula e então pensamos: “Alcançamos isto e aquilo, avançamos e conseguimos isto”. Nada é garantido para sempre. É um processo constante de debate, discussão e pressão. Assim que conseguir algo, com certeza alguém tentará tirar aquilo de você. Seja o governo, as emissoras ou pessoas que, em tese, não acreditam nas coisas que fazemos. E há pessoas que não acreditam. O maior feito do Movimento de Cúpula Mundial, ao meu  ver, é que agora há uma rede de pessoas engajadas no diálogo, que se apóiam mutuamente e que se inspiram mutuamente para agir individualmente nos próprios países. Isso não existia antes do Movimento de Cúpula. As pessoas se reuniam em festivais para a exibição de programas, em feiras para a venda de programas, mas não se reuniam em um palco mundial para falar sobre as questões que afetavam a todos de diversas formas. Aquilo que me dá maior satisfação... Quando realizei a primeira Cúpula, não fazia idéia se alguém viria. Foi uma aposta, e pessoas de 72 países foram à Austrália. Ficou claro que isso significava algo, que tocou em um ponto importante, e essas pessoas foram inspiradas a voltarem para casa e realizarem todo o tipo de coisas. Acho que muita coisa que acontece no Brasil também teve origem nesse movimento. E eu, pessoalmente, tenho enorme satisfação ao ouvir as histórias, quando as pessoas me contam o que estão fazendo na Colômbia, na Malásia, na China, em todos os lugares. Não aconteceu apenas por causa do Movimento de Cúpula, mas ele teve grande influência. É um processo contínuo, nunca podemos relaxar e dizer “veja o que fizemos”, porque sempre haverá o que fazer e devemos dar prosseguimento ao Movimento. Mas cada vez mais pessoas estão participando.

Paulo Markun: Patricia nós vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos daqui instantes. Até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva que esta noite entrevista Patricia Edgar, presidente da Fundação de Cúpulas Mundiais para Crianças e Adolescentes.  Patricia, um dos grandes problemas da questão da televisão é que paradoxalmente, o telespectador, que é, enfim, o grande personagem dessa história tem nas mãos o equipamento mais competente para tomar a decisão e modificar todo panorama, e não utiliza esse equipamento de maneira coletiva, porque trata-se de um interesse difuso, ou seja, não há organizações que reúnam telespectadores. Existem até organizações não-governamentais, aqui no Brasil, há diversas delas, mas não é como quando se discute o salário do trabalhador, que há um sindicato, uma confederação de sindicatos que representa os trabalhadores e defende os seus interesses. Como é que se organiza esse interesse difuso, como que é possível fazer com que o telespectador, se é que a senhora acredita nisso, possa utilizar o controle remoto como instrumento para melhorar a qualidade da programação?

Patricia Edgar: É muito difícil pedir a alguém que nunca teve muita coisa na vida para desligar a televisão porque alguém algum dia poderia lhe fornecer programas melhores. A televisão funciona de diversas formas com as pessoas. A pessoa chega em casa exausta após o trabalho, e é um método de relaxamento. As informações passam por você. Basicamente você assiste por três ou quatro horas, levanta e não faz idéia do que assistiu. Se foi, não foi significativo, mas preencheu o tempo. Ela também é uma excelente babá para que pais que precisam deixar o filho, ter alguma paz para preparar o jantar ou fazer outra coisa qualquer. É uma mídia incrivelmente sedutora. Como a maioria das reformas sociais em qualquer sociedade, o pensamento virá das pessoas instruídas, das pessoas que enxergam as necessidades sociais. É de onde deve vir. E há um grande trabalho para mobilizar essas pessoas. Mas ao exigir que as crianças freqüentem escolas, exige-se, ou deveria exigir-se, que se dê atenção à saúde e à nutrição delas. É preciso pensar na importância do cérebro, da mente delas, e isso vale para as pessoas em geral. É uma forma de anular as pessoas, apenas entretê-las e preencher seu tempo. Os cidadãos hoje devem se engajar mais socialmente. O mundo enfrenta inúmeros problemas, em todo lugar e, certamente, no Brasil. Assim o envolvimento do povo brasileiro é muito importante. Só podemos dizer que, para aqueles que entendem esse processo, é importante que isto seja realizado nos lugares certos, no nível correto.

Nelson Hoineff: Eu queria abordar uma questão que, de certa forma, é complementar a isso que a senhora acabou de dizer. Poucas coisas têm sido tão estudadas na televisão como o seu impacto sobre as crianças. Talvez os estudos do impacto sobre as crianças e os estudos da violência na televisão ocupem o topo da lista sobre os temas que têm sido estudados na televisão. Alguns dos estudos chegam a conclusões que acabam sendo até grotescas. É comum a gente ver conclusões de estudos que apontam a televisão, que demonizam a televisão de tal maneira que ela passa a ser responsável até pela maior parte dos distúrbios neurológicos das crianças, por exemplo. Mas já nos anos 60, o Wilbur Schramm, na verdade há 44 anos exatos, ele se perguntava num livro interessantíssimo, que a senhora certamente conhece, chamado A televisão na vida dos nossos filhos, que antes de nós perguntarmos o que a televisão está fazendo com as crianças, nós devemos nos perguntar o que as crianças estão fazendo da televisão. Isso vem ao encontro de uma coisa que a senhora falou no primeiro bloco, que é a relativização da idéia da passividade do expectador sobre as crianças e tem sido abordados por inúmeros estudiosos, como [John] Fiske, como [Horace] Newcomb, que mostram que essa passividade da audiência, em qualquer idade, é uma coisa muito relativa. A pergunta que eu faço em decorrência disso é a seguinte: de que maneira que a senhora acredita que a criança possa atuar objetivamente sobre aquilo que ela está vendo na televisão?

Patricia Edgar: Este é um dos meus temas preferidos. Antes de começar a trabalhar com produção televisiva, eu era professora e acadêmica. Meu doutorado foi sobre a percepção das crianças à violência. Estou muito familiarizada com toda a literatura relativa a crianças e violência. É provavelmente o assunto mais pesquisado e provavelmente o assunto mais mal compreendido. Durante três décadas nos Estados Unidos seguiram um modelo de efeitos no qual observavam que crianças vêem televisão, televisão é violenta por várias coisas que estão lá, então supõem determinados efeitos. E trabalhos no Reino Unido e na Austrália mostraram que essas pesquisas não levam em consideração o contexto e ignoram totalmente a compreensão das crianças quanto ao gênero e a compreensão daquilo que estão vendo. As pesquisas assumem, por exemplo, algumas delas, que os desenhos são muito violentos e muito ruins. Mas as crianças entendem os desenhos muito melhor que a maioria das pesquisas. Muita gente que faz essas pesquisas nem mesmo assistem regularmente aos programas. Eles nem têm certeza do que as crianças assistem. Mas, assim como você, concordo totalmente que as crianças levam muita coisa para a tela da TV. Levam a experiência de vida, levam os sentimentos, se envolvem nos mais diferentes níveis. E o que acontece não pode ser simplesmente suposto. Pode ser que a publicidade provoque mais violência que a maioria dos programas a que assistem. É preciso olhar as questões mais importantes que envolvem a televisão. As pesquisas tornaram-se uma indústria como as outras. As pessoas pensam que podem fazer um estudo e fazer perguntas que têm respostas óbvias e simplistas, mas vão ganhar muito dinheiro fazendo isso. E assim o fazem. A publicação dos trabalhos se tornou uma indústria. Se for publicado 10 vezes, ganhará uma promoção na universidade. E assim por diante. Os acadêmicos não estão livres desses problemas. É muito importante que organizações como essa na qual está envolvido realmente reúnam produtores e pesquisadores para que se entendam e conversem a partir de uma base de entendimento. Em todos os programas que fiz o objetivo é atuar em níveis múltiplos, atuar não apenas em diferentes grupos etários, mas em diferentes níveis de compreensão dentro dos grupos etários. E você sabe que, ao voltarem, eles terão mais e aprenderão outras coisas. É um assunto muito complexo, e não devemos supor que é uma questão simples e direta.

Ana Bock: Você agora se colocou muito como educadora. Então é com essa educadora que eu quero dialogar um pouquinho. Porque eu penso que a televisão é sempre educativa. A gente faz uma distinção de programas educativos, televisão educativa, mas ela é sempre educativa, porque se ela não fosse sempre educativa, nós não tínhamos que nos preocupar, no sentido de que se algum programa ruim não fosse educativo, nós não precisaríamos estar aqui e nem você dedicar a sua vida a essas questões. As nossas questões são exatamente ligadas ao fato de programas ruins serem também educativos. Então eu queria dialogar um pouquinho por aí. Porque eu penso que nós não vamos conseguir jamais ter um controle absoluto dos valores e da qualidade e do que passa na televisão, até porque não seria correto, porque nós estaríamos com um setor dominante da sociedade determinando que educativo é só aquilo que a gente concorda, e tudo que a gente não concorda não é educativo. Então eu penso que a melhor coisa é fortalecer a possibilidade do diálogo, e que eu vejo aí o grande valor do seu trabalho, é que ele traz os jovens, estimula o debate, traz as crianças para discutir televisão. Então eu quero lhe colocar essa questão assim: uma coisa é a televisão ser educativa, diferente disso é utilizar a televisão para a educação. E eu penso que nós deveríamos ter sempre a televisão como uma ferramenta para a educação, isso implica pais que dialoguem. Eu nunca me incomodei que meus filhos assistissem na televisão programas, e os seus netos, né Markun, eu nunca me incomodei que eles assistissem programas que tinham valores transmitidos dos quais eu discordava, porque eu me sentava ao lado deles, eu, meu marido, sentávamos ao lado, para dialogar sobre aquilo. Eu não me incomodo que a novela ponha lá uma cerveja, um refrigerante para eu comprar, desde que eu possa dizer assim: “olha, eles estão pondo ali”. Desde que eu seja capaz de me perceber como alvo daquela mensagem, e isso significa fortalecer a família, o grupo como espaço da educação.

Paulo Markun: O duro é fazer isso depois de trabalhar oito horas, andar três de ônibus e chegar na favela.

Ana Bock: É que não precisa ser todo dia. É este o nosso problema: uma população analfabeta, pouco apropriada da cultura, que faz reflexões, que amplia a compreensão. É nisso que eu quero bater a tecla. Eu tenho medo de fortalecermos a qualidade dos programas e continuarmos tendo as pessoas que chegam cansadas do trabalho, e a televisão não poderá ser aproveitada, mesmo com os seus programas de qualidade ou educativos. Então é um pouco isso que eu queria refletir com você, esse fortalecimento da educação e da televisão como instrumento de educação, porque aí na favela, a escola deveria cumprir esse papel.

Patricia Edgar: A educação também é um processo. Não se trata de aprender um conjunto ou um certo pacote de conhecimento que possa ser definido. Trata-se de ouvir vozes diversas e múltiplas, opiniões múltiplas e ter capacidade de analisá-las e formar a própria opinião. A televisão poderia fazer isso maravilhosamente. E ela realmente dita valores por meio de publicidade. Os pesquisadores dizem que estão ensinando as crianças a serem consumidoras, a fazerem escolhas. Mas apenas as ensinam sobre um estilo de vida, um conjunto de valores de consumo. Não importa se vai comprar esse ou aquele carro, esse ou aquele refrigerante. Essa é a área que mais me incomoda. Mas, sim, concordo plenamente, é uma mídia maravilhosa se usada de modo adequado para os pontos de vista mais diversos. E deveria ser usada para isso, não para pontos de vista singulares.

Ana Olmos: Patricia, eu sou apaixonada por televisão e acho que em termos de estímulo à capacidade de pensar não só das crianças, mas dos adultos, dos idosos, ele é um grande veículo com um bom uso. Creio que em termos de funções cognitivas, que desde pequenininhas as crianças vão treinando e estruturando, como atenção, concentração, atenção como base da memória, raciocínio crítico, visão espacial, tudo isso pode ser estimulado a ponto de se construir na infância e na adolescência, uma percepção que poderá ser mais ou menos crítica, ou mais ou menos conectada com a vida e com a experiência dessa criança. Por isso tão importante uma disciplina, em qualquer escola, chamada educação para os meios, em que se treine a leitura dos meios de comunicação dado o nosso analfabetismo funcional para isso. Agora, apesar de diante de inúmeras possibilidades, com exemplos maravilhosos, Animal Planet [canal de TV fechada, que explora todos os aspectos do mundo animal, mantido pela parceria entre a BBC de Londres e a Discovery Communications], BBC, entrada no corpo humano com toda técnica que nos faz conhecer, física, biologia, tudo. Voltando às netinhas do Markun, eu penso nas crianças que desde pequenininhas entram em contato com algo que estrutura a própria percepção, educando para o consumo e educando, de uma certa maneira, que seda o espírito crítico, não é só que seda, leva para um consumo, pelo menos induz para o consumo. É tão inteligente o pessoal que mexe com marketing hoje, que eles estão utilizando a televisão a partir do estudo do inconsciente, do recalcado, estão bem na frente do que a gente imagina. Estou falando do Teletubbies, porque eu acho que até dois anos dentro do funcionamento sensório-motor, que é o que caracteriza o funcionamento do pensamento dessa idade, segundo [Jean] Piaget [(1896-1980), biólogo francês que se dedicou ao estudo do processo de construção do conhecimento pela criança e criou a teoria da epistemologia genética ou teoria psicogenética] e todos que observaram, a criança dessa idade, as netinhas do Markun têm que andar, mexer, o sensório motor puro, TV desligada, no mínimo até dois anos. Descobrir, estruturar conhecimento, experiência, sem precisar da tela até dois anos no mínimo. Mas logo em seguida entrando no que vem a ser a base do marketing de uma educação para o consumo das TVs comerciais, é estruturado o pensamento dessas crianças para ter, não para ser. O modelo de pertença dessas crianças na sociedade, de fazer parte da sociedade, do seu grupo de adolescentes, do seu grupo de país, do seu grupo de classe social, sua inserção no mundo, está realmente dentro do consumir, do ter. E este modelo, à medida que ele vai se constituindo, estruturando a própria percepção, construindo a percepção, a maneira de captar o mundo e pensar, ele já vai tirando muito da possibilidade de crianças críticas mudarem de canal ou desligarem a televisão. Nos Estados Unidos os adolescentes, segundo uma pesquisa que foi feita em 94, 85% dos adolescentes estudam com a TV ligada, algo que, do ponto de vista de funções cognitivas, atrapalha, você não consegue manter a atenção sustentada em um ou no outro. Então existe, de fato, uma propaganda dirigida a um público alvo extremamente precoce, se isso não é regulamentado isso atinge essas crianças muito mais precocemente do que a gente pode imaginar. E eu acredito que é possível como na legislação da Suécia, dentro de sociedades absolutamente democráticas - não é ditadura, não é censura - você proteger a criança. Por exemplo, sendo as propagandas, até de produtos infantis, boneca, bola, dirigidas ao público alvo pais, responsáveis, a partir das 21 horas, ou seja, não pode entrar dentro do horário infantil de programação e com sanções, porque se for só indicativo, as TVs comerciais fazem o que querem. E me liga à pergunta anterior que eu fiz para a senhora. Dentro dessa estratégia de conseguir tocar um pouco o coração das empresas de comerciais, que conseguiram na hora que fizeram, porque a sua resposta foi “mas há possibilidade de não ter a renovação da concessão, há possibilidade de não dar a concessão”. Há um dado no nosso país que o lobby dessas empresas comerciais conseguiu o seguinte: para não renovar a concessão de uma emissora, cujo critério de TV para criança seja apresentadoras vendendo produtos, eles consideram isso educativo. Tem que haver uma votação nominal dos deputados, portanto, eles têm que dizer “eu enfrento a rede, eu sou contra a renovação”, de dois quintos dos parlamentares, o que há uma situação que tem que ter uma coragem muito grande. Dá para a senhora dar uma idéia um pouco mais profunda que nos ajude na estratégia de conseguir uma regulamentação com essas emissoras comerciais?

Patricia Edgar: Aconteceu na Austrália porque os políticos se convenceram de que a maioria da população queria isso. Portanto o desejo de impressionar os eleitores foi maior que o medo das emissoras. Isso se torna uma condição para a concessão - e acho que ninguém, em nenhum momento, pensaria em revogar uma concessão de pessoas com tanto poder - mas impor condição para a concessão é algo razoável para se fazer, se as pessoas que farão isso souberem que têm apoio geral da comunidade. O que é preciso fazer é captar esse apoio, reunir as pessoas em torno de si, e muitas vezes não é preciso muita gente. Há um problema aqui em que a televisão pertence a quem é dono do jornal. Isso torna mais difícil expor a questão. Se a TV, o rádio e o jornal são das mesmas pessoas, é difícil ter um debate. Mas uma forma de ter esse debate é conseguir que um grupo de mídia o divulgue. O rádio e a imprensa foram muito importantes nessa discussão. Conseguimos algo assim, houve uma cobertura muito boa da Cúpula, pelo que pude ver. Então vamos à luta.

Paulo Markun: Patricia, nós vamos fazer um rápido intervalo. Mas em nome da verdade, eu queria esclarecer que as minhas netas têm pai e mãe muito atentos [risos], que são atores do Rio de Janeiro, e que não são apenas objeto do Teletubbies, evidentemente. Mas que eu efetivamente assisti, fiquei extremamente espantado com o grau de atenção que as crianças dessa idade têm para com o programa, e que foi com as minhas netas, isso é verdade. Nós voltamos já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com Roda Viva, esta noite entrevistando a australiana Patricia Edgar que promove no mundo uma ação em busca de conteúdos melhores para as mídias destinadas a crianças e adolescentes. Patricia, uma das decisões importantes desse encontro que houve no Rio de Janeiro, eu verifiquei, é o fato de as crianças e adolescentes reclamarem maior participação efetiva deles, de representação dos adolescentes, das crianças, na estrutura que de alguma forma determina a programação nas televisões. A senhora conhece algum exemplo no mundo de emissoras que tenham isso e que isso funcione efetivamente?

Patricia Edgar: É um movimento ou tendência que está surgindo e acontece em vários países. Com certeza acontece na África do Sul. Na Austrália, apenas de uma forma muito tímida. É uma tendência onde a população tem um número muito grande de jovens. E os jovens, com razão, expõem muito mais as próprias necessidades. E isso foi parte desta Cúpula, uma parte muito importante. Mas isso não substitui, e nunca substituirá, a necessidade de fazer programas para crianças. Dar voz às crianças é um aspecto, mas não significa que os programas infantis sejam apenas esses. Ainda precisamos, como adultos, produtores experientes e professores, criar programas de qualidade para crianças.

Nelson Hoineff: Patricia, já que nós tocamos nesse ponto de dar uma voz às crianças, eu gostaria de tocar no ponto de dar voz a uma sociedade. O Giovanni Sartori, o grande analista de televisão italiana, atribui um dos fatores essenciais para se aferir a qualidade televisiva, à pluralidade, à diversidade da produção. E nós sabemos que a programação infantil distribuída para o mundo inteiro provém de centros produtores extremamente centralizados. Eu fiz uma rápida continha num outro dia e eu observei que as redes internacionais de TV por assinatura colocam nos line ups brasileiros uma coisa em torno de 560 horas de programação infantil por semana. Dessa, uma parcela menos do que ínfima é brasileira, e o Brasil ainda pode se considerar um dos grandes centros produtores de televisão entre os países em desenvolvimento; nos outros países, portanto, essa situação é pior ainda. Eu queria, então, que a senhora me dissesse como vê essa discrepância?

Patricia Edgar: Este foi um dos motivos para a Cúpula Mundial, as mudanças tecnológicas que permitiram às emissoras operar no mundo todo. Parecia que a programação viria principalmente de uma fonte. E, como australiana fundadora da Children’s Television Foundations, eu estava preocupada em criar programas australianos para crianças australianas. Houve uma incrível retração cultural. O que chamamos de retração cultural na Austrália? Sentíamos que nada australiano se comparava ou não era tão bom quanto o que vinha da Europa os dos Estados Unidos. De algum modo éramos um grupo inferior de pessoas que haviam sido colonizadas. E foi somente nos anos 70 que as coisas começaram a mudar na Austrália. Tivemos um governo que investiu nas artes, que investiu na produção, e passamos a ter voz própria. No quadro geral são 30 anos, não é muito tempo. Mas nossa indústria desenvolveu-se nesse período. E isso precisa acontecer no mundo. Nenhum país hoje, com a quantidade de horas a serem preenchidas, pode criar toda a programação. Talvez a China. Mas isso não é possível. Por isso é preciso pegar o melhor do mundo todo, e é onde suas vozes múltiplas, suas vozes diversas serão ouvidas. Na infância eu sabia muito pouco, era criança em uma pequena cidade rural na Austrália e sabia muito pouco sobre o mundo exterior. Mas não se pode crescer hoje sem conhecer o mundo exterior. E nós estamos cientes e somos responsáveis uns pelos outros. Devemos ouvir uns aos outros, ver os programas uns dos outros, o melhor que temos a oferecer. Mas existe essa onda de coisas que vêm principalmente de uma ou duas fontes, e é uma questão de começar, como temos falado esta noite, começar a expandir a indústria brasileira, começar a ouvir suas próprias vozes com mais freqüência e, ao mesmo tempo, ouvir e entender o que acontece no mundo. Será lento, mas deve acontecer.

Beth Carmona: Na verdade, você colocou aqui que um dos movimentos que foram muito importantes na Austrália para a mudança, foi justamente começar a pensar na regulamentação. E dentro da linha de regulamentação, desde você determinar quantidades ou a necessidade da produção nacional, no caso na produção local, ou na produção áudio-visual forte dentro do próprio país, você também colocou a necessidade de as crianças receberem histórias, a importância do drama, a importância da ficção. De uma certa forma, isso direciona um pouco, ao mesmo tempo que aponta para algumas coisas que, em princípio, como você disse, a sociedade estava de alguma maneira se expressando. Aqui no Brasil toda vez que a gente tem falado um pouco em regulamentação, a gente tem uma série de fantasmas na nossa cabeça em função da história do Brasil, da história da censura na América Latina e, às vezes, as pessoas não conseguem enxergar a regulamentação como alguma coisa que venha favorecer um ambiente de diversidade, ao contrário. O que você poderia falar sobre isso? Quer dizer, vocês também tinham essa questão da censura.

Patricia Edgar: Esse foi certamente o medo das emissoras. Mas não houve nenhuma tentativa de impedir que as emissoras exibissem alguma coisa. Ninguém disse: “Você não pode exibir um programa”. O que a regulamentação dizia era: “Você deve fazer um certo número de horas de programas de qualidade que devem ser aprovados. Qualquer outra coisa que queira exibir, exiba”. É uma exigência, não uma censura. Outra coisa que ocorreu na Austrália, importante para o quadro geral, foi que o governo reconheceu que programas infantis não seriam lucrativos, e a produção australiana de modo geral também não. Assim o governo criou um banco para subsidiar a produção australiana. Esse banco investe nos programas e espera recuperar o dinheiro com vendas no mundo todo. Mas não espera recuperar todo o dinheiro. Há um certo subsídio sem o qual, mesmo com a regulamentação, não teríamos os programas necessários. E o objetivo maior da política era a criação da Australian Children’s Television Foundation para produzir programas que serviriam de exemplo para o tipo de programas dos quais falávamos. Pois a resposta da indústria foi: “Essa televisão é um óleo de rícino. É um tipo de coisa de que as crianças não gostarão, e teremos de forçá-las a assistir”. E os programas que fizemos por meio da fundação demonstraram claramente que as crianças gostavam dos programas, queriam os programas. Eles fizeram sucesso, e não só isso, começaram a ser vendidos no mundo todo, e não tínhamos planejado isso. Simplesmente aconteceu. Agora a Austrália é conhecida como produtora de programas infantis de qualidade. Mas isso não fazia parte do plano original. Assim, não pode ser feito apenas com a regulação. É preciso tomar uma série de medidas estratégicas. E, como já falamos, é preciso educação. É preciso o envolvimento do setor educacional, é preciso uma compreensão mais crítica do que as crianças estão vendo. É um processo constante de trabalhar com professores, trabalhar com os pais e com as crianças.

Paulo Markun: Patricia, nosso tempo terminou, eu queria fazer apenas uma última pergunta extremamente curta. A sensação que a senhora me passou é que se a senhora jogasse tênis, seria uma jogadora de fundo de quadra, daquela que fica devolvendo a bola tranqüilamente. A pergunta é: é possível ganhar o jogo da questão da mídia de qualidade para crianças e adolescentes jogando só no fundo de quadra ou é preciso subir a rede e cortar com agressividade em certos momentos?

Patricia Edgar: Vocês viram um lado tranqüilo meu esta noite. Há outro lado também. Este é um assunto sério. É muito, muito sério. Há uma declaração que li no avião, ao vir para cá, feita por Oliver Stone [diretor norte-americano de cinema]. Ele foi atacado muitas vezes e disse: “Não sei se há mais espaço nas minhas costas para cicatrizes”. Acho que eu ainda tenho algum espaço. É preciso estar disposto e aceitar a crítica, mas espero ter muitos aliados comigo.

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores, a você que está em casa.

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