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Memória Roda Viva

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DBC Pierre

2/1/2006

Ganhador do Booker Prize 2003, Peter Finlay caracteriza sua obra como uma coletânea de fragmentos da mídia, que nos assedia diariamente, e diz que o lucro é a maior motivação do mundo

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Programa gravado

Paulo Markun: Boa noite. O mais importante prêmio literário inglês foi dado para um autor estreante e essa decisão acabou provocando uma repercussão enorme na imprensa européia, não tanto pelo ineditismo da decisão, mas pelas bombásticas declarações do escritor ao tradicional jornal [britânico] The Guardian. Depois de receber uma bolada de quase R$ 250.000, Peter [Warren] Finlay, autor do Vernon God Little, novela passada numa cidadezinha do interior do Texas, disse que pretendia gastar o dinheiro pagando algumas dívidas que contraíra quando era um jogador e um drogado militante. Finlay, que assina sob o pseudônimo de DBC Pierre, Dirty But Clean, ou seja, Sujo Porém Limpo Pierre traça um ácido panorama da vida no interior dos Estados Unidos e dos adolescentes sem rumo capazes de um massacre como o acontecido em Columbine [em 20 de abril de 1999, em West Denver, Colorado, os estudantes Eric Harris, de 18 anos, e Dylan Klebold, de 17 anos, entraram na escola de ensino médio, Colombine, em que estudavam, com armas, bombas e granadas escondidas sob longas capas. Em apenas 16 minutos, eles atiraram e mataram 12 alunos e um professor, ferindo mais 21 pessoas]. DBC Pierre, destaque da ficção contemporânea e ganhador do Booker Prize 2003, está no centro da Roda Viva esta noite. Para entrevistar o escritor DBC Pierre, convidamos: Jayme Spitzcovsky, diretor do site Prima Página e editor-chefe do jornal do [site] Terra; Sílvia Colombo, editora do Folha Teen da Folha de S. Paulo; Cassiano Alec Machado, redator chefe da revista Trip; Gioconda Bordon, do programa Estação Cultura da Rádio Cultura FM; Luciano Ribeiro, editor-chefe da Vogue RG; Maria Elisa Cevasco, professora de literatura da USP e o escrito Júlio Ludemir. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. Boa noite, Peter.

DBC Pierre: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar pelo óbvio. Você, quando deu a entrevista para o jornal inglês imaginava a repercussão que ela fosse dar?

DBC Pierre: Na verdade, não. Mas é preciso entender que tudo aconteceu muito rápido. Foi uma seqüência de eventos que aconteceu em uma semana. Então, meu cérebro estava bem distante da situação. Eu estava agindo totalmente por instinto. Eu não esperava toda essa quantidade de atenção.

Paulo Markun: Eu queria que você contasse um pouco da sua vida. Você nasceu na Austrália e ficou lá até que tempo, e a idade, quantos anos?

DBC Pierre: Eu nasci na Austrália, o meu pai era australiano e minha mãe era inglesa. Eu fui tirado da Austrália quando eu tinha oito meses. Fui morar nos Estados Unidos onde meu pai deu aula na Universidade do Estado de Washington. Depois moramos na Inglaterra por pouco tempo e, quando eu tinha uns sete anos, nós emigramos para a Cidade do México, e cresci ali, onde passei a juventude até meus 20 anos. Depois disso, morei em Londres, na Espanha, Dinamarca, Trinidad, e se tudo der certo, venho morar aqui um tempo.

Paulo Markun: Mas você se imagina como um cidadão... No México você vivia entre a juventude inglesa ou os mexicanos mesmo?

DBC Pierre: Era uma mistura. Eu estudava numa escola internacional lá. Eu tinha muitos colegas americanos, muita gente falava inglês, mas havia crianças de uns 16 ou 17 países, era uma pequena ONU, era bem interessante. Toda vez que Israel e Palestina entravam em conflito, os dois grupos de crianças eram expulsos da escola, porque começavam a brigar. Era um microcosmo do mundo, de certa forma. Quando cresci, comecei a andar mais com crianças mexicanas. Eu achava a vida nas ruas muito mais interessante que a vida opulenta que tínhamos onde eu morava.

Jayme Spitzcovsky: Peter, numa de suas entrevistas, você declarou que uma das críticas preferidas suas, em relação a você, veio da Índia, onde o crítico teria dito o seguinte: “Pierre era um obscuro canalha vivendo numa área remota da Irlanda; agora ele é um célebre canalha”. Que tipo de canalha é Peter Finlay? [risos]

DBC Pierre: Um canalha em extinção. Com a mudança das circunstâncias e com a idade e tudo mais, agora estou tentando ser um canalha conceitual, confinando meus atos infames às páginas de um livro. Mas se quiser uma resposta séria e honesta à pergunta, eu provavelmente cresci como um pequeno narcisista, não no sentido de uma pessoa obcecada com sua imagem no espelho, mas pelo fato de eu ter sonhos bem desvairados e irreais. E eu armava meus planos baseados nesses sonhos. Foi por isso que comecei a me meter em encrencas. Foram travessuras românticas. Eu estava vivendo no México, numa cultura romântica e tinha a sensação de que eu podia fazer qualquer coisa. Isso foi o que fez com que eu me metesse em encrencas. E quando estava encrencado, perdi os meios e a disciplina de: A) pedir ajuda o quanto antes para resolver meus problemas; B) agir corretamente em relação aos direitos dos outros. Por isso era fácil para mim pegar coisas emprestadas, roubar e pedir para as pessoas, pensando que eu iria criar algo incrível.

Cassiano Alec Machado: Você usava no seu livro DBC Pierre, Dirty But Clean. Fico curioso se no seu próximo livro você vai manter esse DBC Dirty But Clean – sujo, mas limpo – ou se agora vai ser, JC - Just Clean Pierre? [risos]

DBC Pierre: Provavelmente não estou limpo ainda. Há um grande escritor inglês chamado Dan Rhodes e ele diz que meu nome é "Sujo, mas Comparativamente Limpo".  [risos] Então, é isso.

Cassiano Alec Machado: DBCC.

DBC Pierre: Eu posso mudá-lo totalmente.

Maria Elisa Cevasco: Pierre, eu queria lhe perguntar, como professora de literatura, o que é que te fez contar uma história tão contemporânea quanto à do Vernon God Little, que é um garoto absolutamente contemporâneo, cuja vida acaba sendo monitorada pela internet. O que o fez decidir escrever isso em forma de livro? Por que você não filmou a história dele, por que você não fez um cartoon, por que você resolveu contar como literatura? O que fez você se tornar um escritor no século XXI, que não é mais o século da literatura?

DBC Pierre: É uma pergunta imensa e acho que o coração da resposta é: eu me encontrava incrédulo, e ainda estou, na verdade. Não estou muito espantado com que acontece no mundo, que acho louco, improvável e brutal muitas vezes. O que me espanta é que ninguém em volta de mim parece dar muita atenção a isso. De certa forma, parte da resposta é que canso de ver inúmeros romances históricos e histórias de ficção científica e diferentes... Sei que são livros maravilhosos, mas me parece que ninguém está contando essa extraordinária e brutal história que acontece de verdade na TV toda noite. Foi isso que me motivou a começar. E quando comecei, fui tomado pela sensação de que, com certeza, outros 800 milhões de escritores pensaram: “Essa é a única história de hoje”. E que todos estavam escrevendo o mesmo livro. Eu sofria pressão para acabar antes que alguém acabasse. Eu não conseguia ver outra história na minha frente, eu sabia que precisava. Primeiro: palavras são “baratas”, basta escrever. Eu era pobre, não tinha dinheiro para pintar, foi isso que impulsionou a coisa do começo até o fim.

Paulo Markun: Mas o livro tem muito fortemente a presença dos diálogos, inclusive na tradução brasileira que, pelo que eu imagino, foi muito competente. Porque eu não vi o original, mas eu vejo como os meus filhos falam – o de 19 anos e o de 15 – esse tipo de linguagem muito direta e muito crua está muito bem relatado ali, e me dá impressão também que tem uma clara influência da televisão no que toca a uma coisa meio cinematográfica, mas com a velocidade da televisão, não?

DBC Pierre: Sim, muito mesmo. E para entender a história, devo dizer que não é uma impressão direta da cultura americana, é uma história recuada para uma geração atrás. É a cultura americana como ela nos é apresentada através da TV. Queria um livro que pudesse ter sido escrito por qualquer um no mundo simplesmente assistindo TV. É uma coletânea de fragmentos da mídia espetacular que recebemos todos os dias através da tela. E é espetacular porque é isso que vende, e o lucro agora é a maior motivação do mundo. Eu quis juntar todos esses fragmentos, que eu reconheço, porque eu como hambúrgueres e compro os produtos que chegam em imagens até mim. Então, peguei todo eles e fiz uma colagem, que é o livro. E eu queria que fosse obviamente um estereótipo dessas imagens e, ao mesmo tempo, contar a história deles no estilo de um filme de TV, num estilo cinematográfico. Existem guinadas improváveis e também bastante prováveis e bem realistas, eu acho.

Silvia Colombo: Mas você nunca viveu no Texas, por que você escolheu o Texas para ambientar o livro?

DBC Pierre: Eu adorava o Texas quando era menino e passava muito tempo lá. Nunca morei lá. Cheguei a ter parentes no Texas numa certa época, mas eu cresci de fato no México. E quando eu era um pouco mais velho, adolescente, eu cruzava a fronteira de carro para ter aventuras no Texas. Eu tinha muito interesse em comprar carros nos Estados Unidos, porque não havia carros de luxo no México na época, tínhamos de contrabandeá-los através da fronteira. Acabei fazendo muitos amigos por lá. Escolhi o Texas porque eu conhecia e me sentia bem lá e gostava muito de lá. E, segundo, porque na história de Vernon queria que todas as coisas ruins possíveis acontecessem com ele no mundo moderno, e eu tinha que incluir a pena de morte. E para incluir a pena de morte, tinha de ser no Texas.

Gioconda Bordon: Agora, Pierre, você disse que não contava com toda a repercussão que o jornal The Guardian acabou trazendo para o livro. Mas você não acha que justamente ao expor todos os seus dramas pessoais, dívidas, dependência de drogas, jogo, isso fatalmente despertaria a atenção do livro e a atenção para você, já que se vive numa imprensa e numa mídia que, pelo menos os leitores, os espectadores, gostam desse tipo de segredo, de dificuldade, de exposição?

DBC Pierre: Sim, de certa forma. Eu não esperava que fosse nessa escala, porque é muito diferente. Eu preciso lhe dizer, uma pessoa com privacidade virar uma pessoa pública é uma experiência curiosa. Você fica atordoado e eu continuo assim. Ainda não entendo por que devo estar aqui no centro da arena e vocês aí em cima. Você se recusa a admitir que está tão diretamente envolvido nessa história. Mas a dimensão disso foi extraordinária. Por exemplo, eu moro no campo, na Irlanda, e quando a matéria saiu, a mídia irlandesa tinha helicópteros procurando minha casa nas montanhas e vários carros e belos barcos...

Paulo Markun: Como Vernon, como o personagem dessa história?

DBC Pierre: Exato.

Silvia Colombo: Agora, por que você decidiu contar no momento em que você ganhou o prêmio, por que não contou antes?

DBC Pierre: Eu não tive escolha. [risos] Se quer ouvir essa história, vou tentar contar resumidamente. A história veio a público por causa de um homem, senhor Lenton, um americano de cujo apartamento eu me apropriei ilicitamente e vendi. Na verdade, o que aconteceu...

Paulo Markun: Desculpe, só para esclarecer melhor para o nosso ouvinte e telespectador, um pouco do detalhe dessa história, porque quem não leu essa entrevista certamente não saberá o que aconteceu. O que você fez e em que época foi isso?

DBC Pierre: Isso aconteceu da metade para o fim dos anos 80, no auge dos meus problemas com drogas e dívidas. E tinha um vizinho no lugar onde eu morava, na Espanha...

Paulo Markun: Em Granada?

DBC Pierre: Em Granada. Chegou um momento em que tomei posse do apartamento dele, fiz um acordo com ele e ele não percebeu. Em outras palavras, eu dei um golpe nele, de certa forma. Ele não percebeu que estava cedendo a posse do apartamento. Então o vendi e usei o dinheiro para tentar pagar algumas dívidas, eu pretendia devolver o dinheiro em algum momento. Entrei em contato com ele uns dois ou três anos depois disso, mas meus problemas se agravaram e eu nunca consegui pagá-lo. Perdemos contato e isso virou meu maior arrependimento, porque basicamente eu tinha roubado a casa daquele homem. Ele voltou aos Estados Unidos e a situação era desesperadora. Logo depois eu fui fazer tratamento num hospital e a situação entrou em colapso. Agora, pulando para  setembro de 2003, quando anunciaram que eu estava na lista final do Booker Prize, havia seis pessoas que eram finalistas para o prêmio. Eu percebi que apenas o anúncio aumentaria as vendas do livro e vi que, com as vendas, eu teria chance, com o tempo, de começar a pagar o Robert, era a minha maior prioridade. Então tive problemas para encontrá-lo e telefonei para ele, em setembro, e disse: "Robert, vou conseguir pagar você, espero, e queria ter certeza de que está aí para fazer contato". E ele foi muito... ele é um cavalheiro, e disse: "Sem problemas, isso é passado, não se preocupe". Ele foi muito generoso. Mas havia um membro da família dele que continuava muito bravo, e esse membro da família entrou em contato com a Booker Association, em Londres, e mandou um e-mail dizendo: “Esperem... esse desgraçado... esperem até eu contar o que ele fez nos anos 80". Após alguns dias eles fizeram contato com os jornais londrinos. Eu contei ao Robert que tinha escrito um livro e a família entrou na internet e viu que eu era finalista e disseram: "Não podem dar prêmios para esse safado!". Então, eles escreveram para a imprensa. Embora algumas pessoas em Londres pensem que eu conspirei para que a história viesse à tona para ganhar publicidade, na verdade eu não tinha escolha a não ser falar com alguém, porque a imprensa entrou em contato comigo e disse: "Há um jeito fácil e um difícil de fazer isso. Podemos vir bater à sua porta no meio da noite ou você pode falar conosco”. Eu não tinha nada esconder. Não era uma coisa ignorada por minha família, meus amigos e até por meus editores, mas era um fato que, obviamente, não queríamos usar para fazer publicidade.

Silvia Colombo: Mas você acha que você chegaria a pagá-lo se você não ganhasse o Booker Prize?

DBC Pierre: Lentamente. [risos]

Paulo Markun: Então eu queria falar um pouco do seu livro. A história principal do livro em que o personagem central está envolvido, ela aparece ao longo do texto, de modo que um leitor qualquer dificilmente vai compreender do que se trata se ele não ler outras referências, às vezes na orelha do livro, ou seja como for. Eu queria saber como é que surgiu a idéia, enfim, de contar essa história? Muitos autores dizem que isso é o mais difícil de qualquer livro, é saber que história se vai contar. Como é que ela surgiu para você?

DBC Pierre: Ela surgiu sozinha, espontaneamente. Foi muito curioso. Eu nunca tive uma idéia na cabeça para escrever esse livro, especificamente. Foi num dia em que eu devia estar frustrado, irritado; foi algum sentimento explosivo que eu tive e escrevi uma página na voz de Vernon, e ele foi contando a história sozinho. É um mistério saber de onde ela veio. Eu trabalhei vários meses para criar uma estrutura, tive que aprender a fazer isso do zero e inserir uma trama. Primeiro, quanto ao tema, parecia ser o único na minha frente. Para mim era um ícone dos dias de hoje, um ícone da economia de mercado e das pessoas que a adotam e excluem todo o resto. E quando consegui a voz de Vernon, que veio espontaneamente, a história se escreveu sozinha, eu só tive que segui-la.

Luciano Ribeiro: O livro foi todo escrito em primeira pessoa e no caso, era um garoto de 15, 16 anos. De certa forma isso o limitou muito na hora de jogar tudo o que você queria e sintetizar isso tudo na cabeça de um garoto, de um adolescente?

DBC Pierre: Sim, foi sim, isso me limitou no fim. Foi libertador no começo, mas me limitou no final, porque sou principiante, não tenho experiência de como é escrever com a duração de um romance em mente. Quando cheguei a 100 páginas, estava comprometido, estava preso à voz dele. Na verdade, tomei as liberdades que pude para fazê-lo inteligente, preenchendo a mente dele, talvez um pouco mais do que um garoto texano médio de 15 anos. Mas, no geral, eu fiquei preso às limitações sobre o que ele poderia ou não poderia fazer. Foi divertido, mas no final, me limitou muito.

Luciano Ribeiro: Ele também foi todo feito antes dos atentados nos Estados Unidos. Você acha que seria possível escrever esse livro depois de tudo o que aconteceu lá?

Júlio Ludemir: Você assinou o contrato no dia 11 de setembro [referência aos ataques terroristas dos quais os EUA foram vítimas em 2001, quando dois aviões foram seqüestrados e arremetidos contra o World Trade Center, em Nova Iorque, matando milhares de pessoas], não é isso?

DBC Pierre: Sim, acho que foi uns 45 minutos antes da tragédia. É uma coisa muito estranha, por isso me tornei tão supersticioso. [risos] Vou fazer um comentário rápido. Escrever esse romance quase me matou, porque não tenho absolutamente nenhuma disciplina. Eu sou noturno, portanto escrevo dia e noite; eu não descanso. Depois de passar alguns meses escrevendo, eu ia ao médico toda semana com sintomas de todo tipo de ansiedade e doenças que eu achava que tinha. E o médico disse: ''É o seu trabalho. Arrume um escritório, saia de casa para ir até lá, volte e deixe a o trabalho lá. Não pode trabalhar 24 horas". Bem, foi uma coisa incrível. E quando, finalmente, cheguei ao momento de escrever "fim" no final do livro, pensei: "vou ligar para o meu melhor amigo na Cidade do México para contar a novidade". Disquei o número dele e estava ocupado. Não falava com ele havia meses e deu ocupado. Desliguei o telefone e ele tocou, com minha mão ainda nele, eu atendi, e era esse meu amigo da Cidade do México falando que o vulcão, sob o qual vivíamos, estava em erupção pela primeira vez em anos. Assim que assinei o contrato, fiquei nas nuvens, porque tinha um editor, na manhã de 11 de setembro de 2001 e, 45 minutos depois, acontece essa tragédia. Há uma energia presa por trás dessa história toda que, por coincidência, parece estar ligada ao livro. Há muitas fatalidades e ironias pairando em volta dele. Preciso agradecer às minhas estrelas da sorte. Respondendo a sua primeira pergunta, eu não escrevi o livro depois do 11 de setembro, acho que não, eu havia terminado bem antes. Eu escreveria um livro mais duro agora, com menos compaixão, provavelmente.

Silvia Colombo: Mas a idéia de fazer uma crítica aos Estados Unidos existia desde o princípio, ou ela surgiu enquanto você escrevia?

DBC Pierre: Inicialmente não era uma crítica aos Estados Unidos, mas uma crítica à porcaria que os Estados Unidos nos vendem através de imagens. De certa forma, nem é culpa deles, porque compramos as imagens. Eu consumo tanto quanto qualquer um. Não queria criticar tanto isso. No início era apenas o aborrecimento com as tediosas e intermináveis promessas ensaiadas, que é a mídia americana com seus formatos absolutamente previsíveis. Foi a frustração de toda a minha vida ser afetada. Todo dia vejo mais conceitos e imagens americanas do que árvores e pássaros. Isso virou um tédio. E foi essa raiva que talvez tenha gerado isso. Inicialmente não era o lance cultural, e ainda acho que continua não sendo. Eu tenho tentado me manter bem dentro da idéia de que são estereótipos da mídia que não eram americanos na cultura americana.

Maria Elisa Cevasco: Pierre, eu queria só perguntar uma coisinha para você, em conexão com isso, é que você escreve um livro que fala de assassinato em série, do poder da mídia, da pena de morte e você resolve filtrar tudo isso através da mente de um adolescente. Então a gente tem todo o choque da mente do adolescente. Eu concordo quando você diz que não é só uma crítica aos Estados Unidos, mas é uma crítica a toda a sociedade de mercado que a gente vive. Eu queria que você contasse um pouco para todo mundo, uma das cenas que mais me impressionou no seu livro, é que depois do assassinato em série na escola, a cidadezinha de Martírio começa a ter um progresso incrível e a história da camiseta, eles começam a vender camisetas com a historinha do Martírio. Eu achei que isso foi o momento da sátira mais feroz do seu livro, foi o momento em que a gente leva aquele choque e diz: “meu Deus, essa é a sociedade em que nós vivemos”. Eu queria que você comentasse um pouco de como lhe veio a idéia da camiseta que, para mim, é o resumo de todo o seu livro?

DBC Pierre: É muito interessante. Ninguém havia citado esse fato em particular. Particularmente, eu adoro essa coisa da camiseta. Provavelmente isso surgiu, não sei dizer direito, provavelmente surgiu com o julgamento de O.J. Simpson [Orenthal James Simpson, ex-jogador de futebol americano foi acusado de matar a facadas sua ex-mulher, Nicole Brown, e seu amigo, Ronald Goldman, em 12 de junho de 1994], porque havia fantásticas “lembrancinhas" de mau gosto à venda. E foi um julgamento tão longo que os fabricantes tiveram tempo de lançar produtos no mercado. Eram coisas de muito mau gosto e ainda continua assim. Existem sites de fabricantes de camisetas e coisas assim. Exatamente no dia seguinte ao de qualquer crime ou tragédia, você vai encontrar muitas coisas de mau gosto à venda. E tem um grande mercado de pessoas que compram, até eu compro, se for algo bem engraçado. De repente tocamos na questão do humor e da sua relação com o subconsciente quando enfrentamos uma tragédia. Não estou certo de que o mau gosto seja necessariamente inútil nesse caso, mas é bom falar disso.

Gioconda Bordon: Agora, você disse que talvez tivesse escrito antes, aliás, se você escrevesse depois do atentado, escreveria com menos compaixão. Apesar de toda a sua crítica, de todo o cinismo, tem, sim, compaixão no seu livro, porque o Vernon enxerga que as pessoas estão meio presas ali em um vazio, em uma bobagem qualquer. Mas ele dá uma situação muito privilegiada para uma personagem que é a mais desarrumada, a mais desarranjada de todas, é aquela garota que depois acaba ajudando ele a conseguir um dinheiro para fugir. E, no final, no dia da execução, ela aparece toda bonita, chama a atenção inclusive dos guardas, e você – perdão –, e o Vernon fala: “Nossa, olha ela com todo o equipamento”. Quer dizer, a gente pode entender que no final existe no seu livro redenção, a idéia de redenção, para quem é legitimamente bom, porque ela era, e o Vernon também era, de uma certa forma?

DBC Pierre: Eu acredito que sim. Eu queria que fosse assim. Eu concordo, acho que o livro mostra compaixão e esperança em relação ao futuro, mas não foi fácil. O processo de escrever... eu não tive essa idéia quando comecei. No primeiro esboço os personagens eram mais estereotipados, não tinham profundidade, eles evoluíram. Ao escrever o livro, também vivi o mistério da criação. É incrivelmente misterioso, porque o intelecto vai se desprendendo do trabalho, e ele se torna um trabalho emocional. Eu comecei a ter afeição pelos personagens, eles começaram a ter afeição um pelo outro. Há uma espécie de vida que parece emergir das páginas pela qual eu tinha muito respeito, e é daí que veio a compaixão. Acho que o livro dá esperanças e que eles se redimem. É um processo de Vernon concluindo que as coisas são uma porcaria, mas mesmo assim existe um certo amor ali. A mãe dele ainda quer que ele coma coisas saudáveis, é uma coisa idiota, mas é o melhor instinto dela. No final, ele é bastante clemente. Ele segue seus impulsos mais profundos em vez de – como posso dizer? – de ser envolver com a vaidade e a cobiça que o rodeiam.

Júlio Ludemir: Eu acho engraçado que várias vezes as pessoas confundem o Vernon com você, e confundem conscientemente. Mas tem alguma coisa que eu, às vezes, principalmente quando a gente pega o fato de ter muitas referências bíblicas, Martírio – a cidade, Jesus – o personagem, a própria cena final, que é um pastor que resolve, que aponta para a solução final do livro. Mas aí eu fico me perguntando, até nessa confusão entre o Vernon e o DBC, até que ponto você não estaria resolvendo ou que você não estaria se redimindo, você próprio não estaria se livrando de todas as suas culpas, inclusive da questão paterna, do seu pai. Eu acho que ele morre num momento de ruptura na sua vida, ali nesses 16 anos que são também os 16 anos do Vernon.

DBC Pierre: Com certeza. É um veículo incrível e fornece um combustível incrível para o trabalho. Você fala da disciplina de sentar para escrever, quando você tem a psicologia para entrelaçar na história. Não posso dizer que seja a minha história, mas existe uma dinâmica paralela que é a minha história de culpa. Vernon é inocente, eu não era inocente. Ainda assim, consegui colocar psicologia suficiente para me satisfazer e tenho certeza de que resolvi muitas coisas durante o processo.

Cassiano Alec Machado: Pierre, uma das coisas que salta aos olhos do seu livro, que me chama muito a atenção, que chamou atenção dos críticos no mundo inteiro, é que como você não vinha desse métier da literatura, você criou uma linguagem muito fresca, você escreve de uma forma muito original. Embora lembre um pouquinho livros como O apanhador no campo de centeio [The catcher in the rye, uma das obras mais cultuadas por amantes da literatura] do [Jerome David] Salinger [escritor (1919-), um dos nomes mais importantes da literatura norte-americana do século XX, também famoso por ser avesso a qualquer publicidade vivendo paranoicamente recluso] e coisas assim, parece que você criou uma linguagem realmente própria. Eu queria saber como você criou frases como essas, eu queria citar uma frase bem rápida: "um filme que você já viu com notas de piano elétrico tinindo ao fundo, suaves como ovários caindo em farinha de aveia". Queria saber de onde você tira frases como essas, o que passa pela sua cabeça quando está escrevendo uma coisa assim?

DBC Pierre: Não me pergunte, [risos] só Deus sabe. Um dos motivos é porque eu sou idiota e inútil na vida. Precisa levar em consideração, porque, como Júlio disse, meu pai morreu, eu vim de uma boa família, mas não estudei muito, não fiz faculdade, perdi todo esse tempo tomando drogas e sendo idiota. Além disso, um dos motivos de eu me meter em encrenca e de continuar inútil e incapaz de ter um emprego, é porque sou um sonhador. Eu vejo imagens das coisas, eu sou muito visual e muito musical. Eu adoro o som da linguagem, das palavras que se unem, eu me distraio com isso. Então, tudo isso... Se eu pegar um táxi para ir até o aeroporto, vou ver alguma coisa que me dará uma idéia para escrever. É uma coisa que não ajuda muito na vida que temos que ter hoje. Temos que arrumar um emprego e ficar quietos, ganhar dinheiro e contribuir com a economia, mas é muito útil para esse tipo de coisa. E eu não sabia. Eu me senti mesmo como um idiota completamente inútil durante muitos anos, e até me disseram isso, até que achei uma forma de colocar essas imagens no livro.

Jayme Spitzcovsky: Agora, há no seu livro alguns posicionamentos e algumas referências que lembram, em certa medida, o cineasta norte-americano Michael Moore [polêmico e militante, produz documentários sobre questões como posse de armas, sistema de saúde, violência, etc, onde ataca duramente pessoas e instituições dos EUA]. Você acha que poderia ser comparado ao Michael Moore, talvez um Michael Moore não americano e das letras?

DBC Pierre: Não. É a resposta rápida. Pergunta esperta. Eu o conheço porque vivo numa ilha distante da costa. Temos um cinema móvel que vai até nosso vilarejo todo mês, normalmente com filmes do Exterminador [do futuro], da Disney... É um caminhão, eles carregam tudo. Uma vez, faz pouco tempo, passaram Tiros em Columbine [filme documentário de Michael Moore], eu só assisti ao filme depois que o livro foi publicado. Pelas razões que já expus, eu tentei escrever esse livro como um estrangeiro. Eu o considero um livro estrangeiro, escrito a partir da TV e não a partir das profundezas da cultura americana. Os comentários que faço nele ainda sinto que são frutos do distanciamento de um espectador de TV e não de alguém do lugar. Espero que sejam válidos. Não gostaria de ser visto como um Michael Moore estrangeiro.

Maria Elisa Cevasco: Pierre, eu queria pegar carona na pergunta do Cassiano, quando ele leu aquele trecho do seu livro e agora quando respondeu que você é uma pessoa fascinada pelo visual e pela música, me ocorreu te perguntar qual é a sua relação com a poesia, que da literatura é o que lida com o visual e com a música? Você gosta de poesia, você curte poesia? Porque tem muitos pedaços que se lêem como pequenos poemas, não sei se era isso que o Cassiano tinha em mente, mas foi isso que me pareceu. Quando li o seu livro, havia momentos de redenção poética ali, que você tentava sair daquele horror, que o Vernon tentava sair daquele horror através da poesia, não sei. Você tem alguma relação com poesia, você gosta de poesia, como é que é?

DBC Pierre: Eu gosto. Mas devo ter lido menos poesia do que um aluno seu lê em uma semana. Há coisas da poesia que ficarão na minha mente para sempre. O meu verso favorito é de um poema caribenho; para mim, ele fala da vida, principalmente da dificuldade de escrever. Ele diz: "Eu adoro isso, como marinheiros afogados adoram o mar". É assim que eu me sinto em relação a muitas coisas. Conheço poesia porque era obrigado a ler na escola, sempre achei muito chato e guardei isso comigo. E só agora que estou amadurecendo é que estou tentando redescobri-la. Mas não estou lendo muito, no momento, gostaria de ler mais.

Paulo Markun: Peter, o seu livro fala dessa cultura americana, da violência, enfim, do massacre na pequena cidade do Texas, e, curiosamente, eu acho até engraçado a gente estar falando isso, é bom porque leva os leitores a comprar livro e isso que é importante, porque no Brasil se lê muito pouco e quanto mais as pessoas lerem, melhor será. Mas, enfim, o que me chamou a atenção é que há um personagem do seu livro que é muito pouco descrito, com poucas palavras, aparece muito rapidamente no final, que é um pastor dentro de uma cadeia, no corredor da morte, e esse pastor dá um giro na história, a partir daí que a história muda. Então pergunto se tem nisso algum tipo de convicção sua de que o caminho para se sair dessa sociedade totalmente materialista é algum caminho espiritual?

DBC Pierre: De certa forma é sim. É também uma referência ao espírito da inteligência. É interessante você ter tocado nesse ponto. Na verdade, a mensagem é passada como espiritual, mas o que o personagem Vernon precisa aprender é usar as ferramentas que tem com inteligência. E isso é aprender a manipular os outros para que façam o que ele quer, encontrando suas fraquezas.

Paulo Markun: De certo sentido o seu deus que aparece no título, o pequeno deus?

DBC Pierre: Exatamente. Até que ele consiga aprender a conquistar para ele o auto-respeito e a arrogância de um deus e manipular e encontrar as fraquezas dos outros para explorá-los, como ele foi explorado, então ele vai morrer na nossa cultura. Essa é mensagem. Ele chega a ele de uma forma espiritual, mas, na verdade, ela tem a ver com a mecânica da inteligência "Não fique sentado dizendo que é inocente. Levante e faça algo. E faça algo dramático.”

Paulo Markun: E isso apareceu ao longo da fase em que você estava comandado pela emoção ou desde o início você tinha essa idéia da história e esse final surpreendente já desenhado?

DBC Pierre: Não. A história do livro viajou muito e mudou bastante no percurso. Entre o primeiro esboço que escrevi bem rápido, em cinco semanas, e o último, que terminei oito meses depois, após muito sofrimento, muitas coisas mudaram e isso foi muito... Quando escrevi essa seqüência específica, eu estava preocupado em também dar à história o ar de um conto americano como se fosse contado na TV dos Estados Unidos. Muitas coisas contribuíram para esse final, mas ele não existia desde o início, com certeza. Na verdade, sem revelar nada da história, posso dizer que o final do primeiro esboço era quase o oposto do que ficou no último. Simplesmente não estava correto, tive que retomar e reescrever o final.

Cassiano Alec Machado: Pierre, você disse que o seu livro, de certa forma, era a jovem América encontrando, encarando as promessas que fizera a si mesma, a jovem América encarando as promessas a si mesma. Você acha realmente que a jovem América é tão espirituosa como é o seu livro?

DBC Pierre: Não é espiritualismo. Você tocou num ponto muito subjetivo. Isso veio da minha impressão pessoal dos Estados Unidos, porque eu cresci à sombra dos Estados Unidos. Meu pai tinha emprego em Nova Iorque, embora morássemos no México. Eu tinha muito contato com americanos e com os Estados Unidos quando eu era bem pequeno e eu amava os Estados Unidos, amava como se ama o maior amor. Era fantástico. Eu morava do outro lado da fronteira e era mais espetacular. Antes do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, antes do Nafta, o México não tinha acesso a nenhum desses produtos. Os Estados Unidos eram como uma loja de brinquedos para mim. Eu costumava ficar, eu adorava a idéia do pensamento positivo, eu adorava a idéia da autocapacitação, de que todos deveriam trabalhar para se sentirem poderosos e merecedores da felicidade e capazes de conquistar o mundo e fazer o que quisessem. Todo esse tipo de besteira me impressionava muito quando eu era pequeno. Eu não era uma pessoa muito confiante e segura de si. Aquilo tudo era fantástico, e mesmo com todas essas teorias e jogadas acontecendo, elas aconteciam, me parece, com um tipo de inocência, elas aconteciam com certa suavidade. Em outras palavras, não eram o fim nem o começo do mundo, eram apenas idéias. Você podia comprar pedras de estimação e todo tipo de coisas bizarras. Eram ferramentas cínicas de um mercado desesperadamente competitivo. Eram apenas idéias e tudo era muito amigável. Eu vi isso. Na minha época me parecia mais inocente. Sei que não era um poder global, mas como cultura me parecia muito mais inocente, e muito mais disposta a olhar para si mesma, de certa forma.

Jayme Spitzcovsky: Peter, o seu livro se passa no Texas e hoje em dia uma associação quase que imediata, pelo menos para muita gente, é entre esse estado  com a dinastia Bush, presidente George W. Bush e a sua onda conservadora, a direita fundamentalista cristã cada vez mais forte nos Estados Unidos. O que representa George W. Bush para você?

DBC Pierre: Fico feliz que tenha perguntado isso. Vou dizer exatamente o que ele representa. Eu vejo – e isso é algo por trás da imagem do todo da obra que Vernon é – eu vi o massacre da escola secundária como um ícone muito trágico, não apenas da cultura americana que é dominada pelo consumo, porque me parece que as crianças são as mais vulneráveis num clima em que você tem de alcançar o sucesso ou morrer. E se você não for o mais inteligente, se não for o mais bonito, se não for o mais instruído, aonde vai chegar? Acho que as crianças caíram no vácuo de uma cultura superaquecida e explodiram. E, para mim, Bush, essa dinastia representa, se usarmos a metáfora de que o mundo é uma sala de aula e que cada país é um aluno da escola, você vai ter os tímidos, os agressivos, os fortes, os ricos e tem um gordinho de 13 anos com uma arma. Para mim, essa é a dinastia, é isso que ele representa.

Silvia Colombo: Peter, você escreveu seu livro antes do 11 de setembro, mas depois dele muitos autores se viraram para o mundo como está e tentaram fazer uma crítica tanto aos Estados Unidos quanto à situação mundial causada por eles. Está aí o livro do Ian Mcewan, Sábado, dá para mencionar outros autores, Carlos Fuentes, [José] Saramago [ver entrevistas com Fuentes e Saramago no Roda Viva]. Adianta tudo isso, que diferença faz a literatura para essa discussão?

DBC Pierre: A literatura deve ser a primeira a se manifestar. Acho que a arte guia a cultura mais que a ciência e a política, porque ela planta idéias. Antes de qualquer coisa ser inventada ou implementada, nós sonhamos com ela, temos que imaginar se ela é possível, um formato é criado. Mas é verdade quando diz que escrevi antes do 11 de setembro, terminei antes do 11 de setembro, não é minha culpa o paradigma ter mudado, é outra ironia o livro falar sobre mudar paradigmas, as coisas mudaram dramaticamente. Quando eu terminei o livro, ele continuaria sendo outra obra da trivialidade americana, como Os Simpsons [série de desenhos animados para a televisão que retrata o dia-a-dia de uma família estadunidense e indiretamente faz críticas ao comportamento humano, à sociedade e ao modo de vida americano], um pouco mais crítico, talvez. De repente, o mundo mudou em torno da obra, e ela recebeu muito mais atenção do que receberia na ausência desses acontecimentos. Eu sinto muito por isso, mas está fora do meu controle.

Silvia Colombo: Você acha que os livros têm o poder de mudar alguma coisa?

[ocorre falha de comunicação entre tradutor e entrevistado]

Paulo Markun: Faça a pergunta novamente, por favor.

Silvia Colombo: Então, eu queria saber se você acha que a literatura tem força para mudar alguma coisa no mundo hoje?

DBC Pierre: Não, nada tem poder suficiente, a não ser os instrumentos dotados de poder. É difícil fazer isso. Eu tenho a idéia romântica de que isso é possível, é uma boa razão para tentar escrever melhor o tempo todo. Eu tenho essa idéia adorável de que poderia ser possível mudar mentes com meu trabalho, mas ao dizer isso eu não estou armando nenhum tipo de ação política. Vou acabar escrevendo livros sobre borboletas, ursinhos e coisas assim. Repito, como o paradigma mudou de repente, fiquei parecendo um crítico duro e frio, e não sou tão duro quanto imaginam. Eu como hambúrgueres também, eles fazem sanduíches muito bons nos Estados Unidos.

Júlio Ludemir: Isso quando você fala, até o que ela falou, me remete a uma fala do [José Eduardo] Agualusa, que é um escritor angolano muito lido no Brasil, que ele diz que o povo inglês está perdendo a sua língua, porque como ela é uma língua universal, como ela pertence a todo mundo, ela não pertence a ninguém. Você, quando escreve, do ponto de vista de um estrangeiro, e acho que tem uma fala sua em alguma das entrevistas em que você fala que para ter acesso à cultura americana, qualquer pessoa pode apenas ligar a televisão que entra em contato e, de alguma forma, se apropria dessa cultura americana. Não estaria ocorrendo com essa cultura americana o mesmo que está ocorrendo com a língua, ou seja, é uma cultura minha também, eu posso ligar a televisão e ser influenciado pelo que está passando no Simpsons, do mesmo modo que um garoto texano. Ou seja, aquele garoto texano também não está perdendo essa cultura americana?

DBC Pierre: Não sei se está. Primeiro, o que é cultura americana? É muito complicado. Esse é outro motivo pelo qual tentei ficar próximo aos estereótipos da TV para o livro. Você precisa ter cuidado. Os Estados Unidos também têm uma fantástica população de descendência africana que nos deu o jazz, e são culturas maravilhosas dentro da cultura. O consumismo e a cultura do ser bem-sucedido ou morrer e a cultura que diz que não há nada mais valioso que o dólar é isso que eu estava atacando especificamente. E ela não vai desaparecer, porque é a cultura do lucro a qualquer custo. É isso que eu vejo quando eu ligo a TV. É por isso que tudo que eu vejo é previsível. E por isso que ela vai ficar mais sensacionalista e trágica até que algo aconteça e ela se autodestrua. E é verdade que isso está aumentando em várias culturas, na cultura de todo o mundo, quer as pessoas gostem ou não. Porque você está cercado, mesmo desligando a TV, haverá algo em volta de você, haverá idéias e as pessoas ao seu redor serão infectadas de certa forma. É como a roda do hamster. A vaidade e cobiça movimentam a engrenagem do consumo.

Gioconda Bordon: Pierre, você não acha que a expressão “cultura americana” começa a se tornar hoje um símbolo vazio? Vazio no sentido que pode caber qualquer coisa dentro dele? O que nós estamos falando na verdade é uma cultura de mercado que, embora tenha até surgido e [mesmo] se arrefecido nos Estados Unidos, mas ela é global, é uma imitação de padrão e de desejo de sucesso que está no mundo inteiro. Então quando a gente fala em cultura americana você não acha que a gente está desprezando outras coisas e incluindo só esse aspecto da cultura de mercado numa palavra que é muito mais abrangente do que a gente imagina?

DBC Pierre: Sim, você está totalmente certa. Deveríamos dizer "cultura de mercado". É exatamente o que eu quis dizer. Há uma frase muito antiga nos Estados Unidos que diz: "O negócio dos Estados Unidos é o negócio". A Constituição americana não é tão complicada quanto se imagina. Com todas as suas emendas e supostos direitos, a Constituição americana não passa de um documento comercial. São leis instituídas por uma minoria muito rica, há alguns séculos, e que continua igual. É por isso que quero tomar cuidado para não desprezar coisas culturais de verdade.

Gioconda Bordon: Até porque muito a parte da crítica contra essa cultura de mercado vem também dos Estados Unidos, embora, claro, de uma forma menos conhecida, mas ela existe lá. Não é que todo mundo esteja feliz e satisfeito e sem o menor senso crítico.

DBC Pierre: É claro que sim. Mas os Estados Unidos são o guia. E existe um único homem que foi o maior responsável por essa cultura de consumo. Um homem que era sobrinho de Sigmund Freud [(1856-1939) médico neurologista austro-húngaro, fundador da psicanálise e um maiores pensadores do século XX] e que decidiu ser o primeiro explorar as idéias de Freud de que nós, humanos, éramos infectados por forças subconscientes perigosas que ele achou que poderia manipular e ter lucro com isso. Até Wall Street [referência à rua considerada o coração financeiro de Nova Iorque, pois ali se localiza a bolsa de valores mais importante dos Estados Unidos e uma das mais importantes do mundo] acabou dizendo: "Precisamos mudar essa cultura de necessidade para uma cultura de desejo". Existe realmente uma filosofia detectável florescendo de um grupo muito pequeno de pessoas que fizeram essa cultura de mercado surgir e que estão bem à frente de nós. Sei que vão dizer que agora está tudo globalizado, mas se quiserem ver onde isso ocorre hoje, é nos Estados Unidos que está acontecendo isso. Eles estão vendendo frações de frações de frações do futuro, frações potenciais de promessas.

Cassiano Alec Machado: Pierre, você chegou a mencionar que se fosse escrever uma continuação para o Vernon God Little, que você chegou a pensar a escrever uma continuação, e que provavelmente você o faria até chegar a presidente da república. Você acha que ele seria realmente um bom presidente, o Vernon God Little seria melhor que o George Bush?

DBC Pierre: Ele teria sido, se eu tivesse escrito, mas ainda não escrevi esse livro. É verdade, pouca gente sabe, mas originalmente eu ia fazer uma trilogia. Fiz o esboço de três livros e esse foi o único que terminei. Esse mostra a posição bem negra urbana e liberal na cultura de mercado. Eu ia escrever uma oposta, na qual o protagonista era o vilão e a cultura conservadora era saudável, incentivadora e positiva. E queria dar equilíbrio escrevendo um terceiro livro para encontrar a área cinza para balancear os dois. Era nesse que Vernon teria se tornado presidente, mas levei esse ao editor e contei que tinha planejado mais dois e ele disse: "Não abuse da sorte, esqueça." E eu esqueci.

Paulo Markun: Você falou em Freud, e um dos personagens também muito patéticos do livro é a mãe do Vernon. É uma mãe cujo grande barato é uma televisão, televisão não, perdão, uma geladeira bege de duas portas, e é uma viúva americana absolutamente patética na sua relação com os filhos. Isso tem alguma coisa a ver com a sua história real?

DBC Pierre: [ri antes de responder] Não, não tem nada a ver com a minha história pessoal. A mãe, no primeiríssimo esboço desse livro, repito, porque sou principiante, achei que tinha "colocado ovos demais no pudim", como dizemos, um pouquinho porque eu tinha colocado várias metáforas religiosas. Eu também tinha a metáfora central que era a adolescência, em que tudo de ruim acontece com o Vernon, porque é assim que achamos que as coisas acontecem conosco. Na adolescência ou as coisas são fantásticas ou terríveis, eu queria passar isso. "Eu vou ser condenado à morte". E a mãe, originalmente, ia ser simbolicamente o Estado...

Paulo Markun: O Estado americano.

DBC Pierre: Queria que ela fosse o símbolo do Estado que não estava cuidando do seu povo, estava pensando só nela e estava negligenciado a única coisa inteligente que merecia ter sua atenção, que é a população. Foi isso que a tornou tão vaidosa e gananciosa. Ela se transformou em patética por si mesma, e também tentei dar a ela um pouco do que reconhecemos nas nossas mães na adolescência. Sabe aquela época em que sua mãe era sua pior inimiga? Eu queria colocar um pouco disso, ela dizendo coisas erradas e brigando de forma errada. Ela é, de fato, um amálgama, ela mudou muito. O nome dela mudou umas 12 vezes enquanto eu escrevia. E o personagem foi mudando, mudando, mudando, até que ela mesma acabou se definindo.

Paulo Markun: Eu li em várias entrevistas suas referências de entrevistadores a influências que você teve, até a história de que você começou a escrever quando tinha nove anos por determinação de uma companhia aérea que queria o diário de bordo dos seus passageiros e você era um passageiro freqüente. Mas de alguma forma, a sensação que me deu o seu livro é que tem muito pouca influência, muito embora, certamente, você não conhece, mas aparece uma semelhança com um livro que circulou no Brasil há muito tempo, não tem nada a ver a história, mas eu digo no relato da primeira pessoa, que é um livro de um escritor brasileiro, Marcelo Rubens Paiva, que escreveu quando era muito jovem. Ou seja, o que mais me surpreende nesse seu trabalho é como você conseguiu registrar essa linguagem jovem sem levar em conta o fato de você tinha 40 anos quando você escreveu o livro, e não 15 ou 16. Como é que você conseguiu isso?

DBC Pierre: Porque sou retardado. [risos] Não quis dizer que sou doente e que ainda não amadureci, eu continuo com a cabeça de um jovem. Provavelmente há alguma verdade nisso. Eu me interesso, as coisas ficam tediosas. Fiquei surpreso quando cresci, ver pessoas continuando a evoluir. Era fantástico quando eu conhecia pessoas de 60 e 70 anos que continuavam a viver dramas da adolescência, foi uma surpresa para mim. Eu esperava chegar aos 20 anos e depois morrer. Assim, à parte disso, é muito mais divertido. Eu tenho mais interesse em retratar os jovens pensando e falando, e acho que aí está nossa esperança, nosso futuro. Nas ruas, todas as coisas mais divertidas vêm dos mais jovens. Eu sou muito ligado nisso e provavelmente devo ser um pouco atrasado emocionalmente.

Paulo Markun: Mas você realmente começou a escrever por causa dessa história da companhia aérea? De quando você viajava, tinha que fazer uma espécie de diário de bordo, pelo menos eu li isso em uma entrevista, não sei se procede. Não? Nada a ver?

DBC Pierre: Nunca ouvi essa história. Nunca ouvi isso. Isso foi um erro terrível de citação ou é mentira.

Luciano Ribeiro: Pierre, queria saber se para você um grande livro, a grande arte, necessariamente, precisa nascer da culpa, da dor, do desconforto?

DBC Pierre: Não, nem sempre. O que eu posso ter aprendido é que essas coisas são combustíveis muito úteis. Se eles alimentavam uma situação, eu me alimentava de várias emoções por um longo tempo. É um combustível muito útil, não apenas para a psicologia por trás da trama do livro, mas também para pressionar você e dar disciplina. Chega um momento na vida em que você diz: "Preciso fazer alguma coisa. O que estou fazendo aqui?" Acontece num certo momento. E ter essas opressões é um combustível para isso. Não entendo muito disso, temos que perguntar para a Maria Luisa, que é uma especialista e muito mais lida, literariamente, mas eu acho que deve ser útil para a arte se o artista tiver uma vida caótica e tiver...

Júlio Ludemir: Esse negócio da dor... Eu fiquei muito mal resolvido com essa sua história de droga. A primeira coisa que eu queria entender o seu "fundo do poço". Qual foi aquele momento a partir do qual você disse: "Eu não posso mais me drogar". E que grande dor é essa? E tem uma outra coisa que eu também não entendo, que, na verdade, é esse Dirty But Clean, que é sujo, mas limpo. Porque a droga é a compulsão; se eu começo a beber um, é mais um, é só mais um, é só mais um e esse mais um nunca acaba. E eu vejo que você gosta de caipirinha...

DBC Pierre: Demais. [risos]

Júlio Ludemir: Como é que você concilia esse barato da caipirinha com a sobriedade?

DBC Pierre: Existem tipos diferentes de sobriedade. É uma pergunta interessante e não sei se posso responder por todos. No meu caso, eu cheguei ao fundo do poço por volta de 1990 ou 1991. E foi o final de um caminho que comecei por volta de 78, 79, talvez até antes, não sei. Eu fui a uma festa uma noite nos anos 70 e acabei em 1990 sem nada. Eu destruí relacionamentos, é impossível descrever, é um grande vazio. E o maior problema é que, no momento do colapso você ainda está apegado à sensação da intoxicação. É muito duro, a dor é parecida com o sofrimento que você passa quando perde um membro da família. É uma coisa que você tem que digerir durante anos e anos. É uma dor prolongada e você está ciente que tem todo o tempo do mundo, que mais nada pode acontecer com você, porque você já perdeu tudo e está ali sozinho só com a sua dor para despertar e tudo mais. Caipirinha? Isso é uma coisa fantástica, que existam drogas boas e drogas ruins. Eu posso beber muito e não virar alcoólatra. Eu fumo demais. Consegui direcionar toda a minha tendência ao vício para o cigarro, e espero que um dia eu consiga me livrar dele sem despertar outra coisa compulsiva terrível, tipo masturbação. [risos] Se quiser chegar ao "sujo, porém limpo", ele não está tão livre das drogas. Ele é uma pessoa limpa. Pode me emprestar R$10 hoje que eu vou devolver rápido. Vou ser um amigo bem melhor do que já fui.

Silvia Colombo: Peter, você conta que quando você ganhou o prêmio, mudou sua vida do dia para noite. Até outro dia escritores tinham uma vida solitária, não tinham que fazer verdadeiro road showspara promover os seus livros. Como é que você vê essa pressão do mercado hoje para vir até uma bienal do livro no Rio, dar entrevistas para vários cadernos culturais. Como é isso para você? Como você concilia isso com ser escritor?

DBC Pierre: Eu levei um tempo e isso faz parte da sua pergunta também. Uma das coisas que descobri quando finalmente tive meu colapso pessoal, que eu chamo de “o final da minha juventude", uma das lições foi que meus instintos estavam errados. Somos ensinados a seguir os instintos, mas se você está intoxicado seus instintos estão errados. E uma das coisas que aprendi, que tem sido muito útil, é não agir, quando estou absolutamente... a não ser que seja absolutamente necessário, não aja, observe. Siga em frente e veja que acontece, não faça movimentos repentinos, nem vá nesta direção ou naquela. Observe as coisas, seja paciente. É muito recente ainda, meu livro saiu faz menos de um ano e por isso estou observando. Foi uma lição rápida sobre como funciona o mercado editorial. Tem sido uma época de muita excitação - respondendo sua pergunta - não dá para fazer as duas coisas, preciso ficar em casa escrevendo. Estava impossível, eles mandaram helicópteros até minha casa e eu tive que enfrentar uma grande publicidade imediatamente após receber o prêmio, e tenho feito o melhor para observar, respeitar e agradecer minha boa sorte. Fui a vários lugares e agora, exceto o Brasil, que é um caso especial, eu parei de fazer isso. Agora quero ficar em casa escrevendo. Foi uma agradável pausa na minha vida, foi uma "vírgula" entre uma fase e outra.

Maria Elisa Cevasco: Pierre, e você está escrevendo um livro novo, é isso? Você está escrevendo um novo romance?

DBC Pierre: Sim estou.

Maria Elisa Cevasco: Ou você está escrevendo uma adaptação para o cinema do Vernon God Little?

DBC Pierre: Não, estou terminando um segundo romance. Não poderia me envolver com o roteiro de Vernon, levaria uma eternidade. Porque a história, mesmo que você tenha escrito, eles podem mudar em 10 anos, não poderia me envolver com isso. Estou terminando o segundo romance no momento.

Paulo Markun: Esse segundo livro, se eu li certo – porque depois da informação que você me deu na pergunta anterior, eu fico em dúvida – fala de um americano envolvido com uma russa que conheceu na internet e que discute um pouco o papel dos dólares no mundo e da globalização, é isso ou está tudo errado? [risos]

DBC Pierre: Não. É um inglês, é bem complicado. Se eu explicar a trama, posso revelar a surpresa. Ele fala de um adulto sossegado da classe média européia. E a metáfora é a globalização, nesse caso. É a história de um homem que arruma uma noiva russa na internet, porque ele é idiota e preguiçoso para transar no país dele, e porque ele acha que o resto do mundo está esperando e implorando que ele venha com dólares comprar uma camiseta do Brasil e os últimos acessórios. Ele acha que o mundo vai cair aos seus pés. Na história ele descobre que a mulher é muito mais durona, inteligente e esperta que ele.

Paulo Markun: As mulheres vão adorar.

DBC Pierre: Com certeza. E é a verdade. É uma pequena metáfora do nosso ponto de vista. Nós vivemos achando que vamos consertar o resto do mundo, que vamos fazer isso e aquilo. Mentira. O resto do mundo é muito mais esperto do que imaginamos. Estão lá sentados esperando por nós.

Cassiano Alec Machado: Pierre, você falou uma vez para mim, quando a gente fez a entrevista, você disse que tinha um plano de também escrever um livro que passava pelo Brasil. Eu queria saber, você já mencionou aqui caipirinha e aqui no intervalo você falou também Kelly Key [cantora brasileira de música pop], que você já conheceu Kelly Key, a cantora, eu sei que você foi ontem no baile funk também. Queria saber se essas coisas todas entrariam nesse seu romance, se você realmente pretende escrever um romance que passe pelo Brasil ou se isso era uma brincadeira?

DBC Pierre: É a primeira vez que venho ao Brasil. Eu sempre quis vir, por vários motivos. Esses são os meus primeiros dias aqui, tive muita sorte. Principalmente com Ana Lima, que está atrás de você. O pessoal da minha editora providenciou para que eu não visse nada turístico, para que eu visse eventos brasileiros verdadeiros, tem sido fantástico. E eu tinha... Voltando a Vernon, foi um livro que aconteceu espontaneamente, eu nunca tinha pensado nele. No que sempre pensei e gostaria de fazer é um livro que tivesse alguma passagem aqui, porque você nunca... a não ser no filme do James Bond ou algo assim, acho que não foi usado da maneira que eu gostaria de usar. É óbvio que eu não poderia escrever um romance brasileiro, mas poderia trazer um estrangeiro para cá no livro e armar alguma trama. Isso iria ser fantástico, uma excelente desculpa para passar uns meses aqui sentado, vendo como tudo funciona. Há muito interesse pessoal envolvido nisso.

Jayme Spitzcovsky: Agora, Peter, o próximo livro sobre o qual você está se debruçando, você mencionou a história da noiva russa e do cidadão europeu que a conheceu via internet e quer trazê-la por conta dos dólares. Essa história é baseada numa experiência real sua? [risos]

DBC Pierre: Preciso confessar que fui uma noiva na internet [risos] e tentei fazer esse livro bem diferente do Vernon. Eu estava muito ciente de que poderia haver a possibilidade de eu reescrever Vernon como um segundo romance. Alguém me disse que existe esse perigo quando você é um romancista novo, você investe pedaços da sua vida no livro e, quando vai escrever o segundo livro, mesmo subconscientemente, você usa a mesma dinâmica e reescreve a mesma coisa. Eu estava bem consciente disso e tentei escrever uma coisa bem diferente. Este é na terceira pessoa, tem personagens adultos e fala de uma coisa que eu não vivenciei, noivas russas, coisa e tal. Tinha que ir fazer pesquisas nos lugares, achar correspondentes. Em outras palavras, a parte mais fácil de Vernon para mim foi a voz e o personagem, e muita gente na Inglaterra disse que gostou disso no livro. Isso fez com que eu me sentisse levemente como se tivesse deixado algo pelo caminho. Porque achei muito fácil escrever e queria passar pelo exercício de escrever o que chamo de "livro padrão": na terceira pessoa, desenvolver um tema que eu decidi escolher e ter a disciplina de colocar tudo isso junto, etc.

Jayme Spitzcovsky: Agora, você falou que fez pesquisas sobre as noivas na internet, em particular sobre as russas, é isso? Até onde você chegou nessa pesquisa?

DBC Pierre: Eu fui até a região do Cáucaso recentemente. Estive lá e ainda havia guerras na região do Cáucaso. E fui com a organização Médicos Sem Fronteiras que tem unidades hospitalares e dão apoio psicológico por lá. Foi incrível. Eu não fiz sexo com nenhuma delas, não cheguei a tanto. Mas para entender a dinâmica o suficiente para escrever os detalhes da cultura, se é que me entende, e para ver como essa coisa funciona, é uma grande indústria. Tem muitas noivas russas na internet. E grande parte disso é um golpe, é falso; em grande parte, é verdade. Fui tentar entender isso para detalhar no livro.

Paulo Markun: Tem muito de ficção na internet obviamente?

DBC Pierre: Sim, tem.

Paulo Markun: Para finalizar, a última pergunta. Eu imagino que alguém que escreve o primeiro livro, consegue publicar, ganha o maior prêmio de literatura da Inglaterra, torna-se um sucesso da noite para o dia, deve tremer nas bases quando vai escrever o segundo livro, deve ficar preocupado em saber se vai funcionar. Você está confiante?

DBC Pierre: Não estou pensando nisso. [risos] Não estou pensando nisso. Claro que há expectativas. Acho muito importante para mim ignorá-las completamente e ficar em casa e dar o melhor de mim.  Também estou olhando para a estrada mais longa. Eu quero, depois de 7, 9, 10 ou 15 livros, um Pulitzer [criado em 1917, por Joseph Pulitzer,  o Prêmio Pulitzer é dado a pessoas que realizam trabalhos de excelência nas áreas de jornalismo, literatura e música, sendo administrado pela Universidade de Colúmbia]. Só preciso aprender a fazer o que posso fazer e absorver isso. Tenho tido muita sorte nos últimos anos. E quero ter sorte todo o dia.

Paulo Markun: Claro. Muito obrigado, Peter, pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa.

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