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Jorge Escosteguy: Boa noite! No Roda Viva que começa agora pela TV Cultura de São Paulo, nós vamos discutir as idéias e os rumos da universidade brasileira. Vamos falar também sobre política brasileira. O nosso convidado desta noite é o professor Roberto Mangabeira Unger, carioca, 46 anos. Mangabeira Unger é professor titular de direito da universidade de Harvard, onde leciona teoria social, econômica, jurídica e política, e é membro da Academia Americana de Ciências e Artes. Ele mesmo se define como um agitador político. Foi um dos redatores do manifesto de fundação do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], partido que abandonou em 1980. Passou para o PDT [Partido Democrático Trabalhista], partido pelo qual foi candidato a deputado federal, sem se eleger, nas últimas eleições. Lembramos que o Roda Viva também é transmitido ao vivo pela TVE da Bahia, TVE do Ceará, TVE do Piauí, TVE de Porto Alegre, TVE do Espírito Santo, TVE do Mato Grosso do Sul e TV Minas Cultural e Educativa. Para entrevistar o professor Mangabeira Unger esta noite no Roda Viva, nós convidamos Marcelo Pontes, diretor de redação do Jornal do Brasil em São Paulo; Mauro Chaves, editorialista e articulista do jornal O Estado de S. Paulo; Caio Túlio Costa, diretor da Revista da Folha de S. Paulo, Ibsen Spartacus, chefe de pauta do Departamento de Telejornalismo da TV Cultura; professor Jacques Marcovich, professor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo; professor Celso Campilongo, chefe do Departamento de Teoria Geral do Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professor Milton Lauheta, professor de teoria política da Unesp, Universidade do Estado de São Paulo; e o professor Stephen Kanitz. Como o programa de hoje foi gravado, não será possível haver telefonemas dos telespectadores ao vivo. Boa noite, professor!
Roberto Mangabeira Unger: Boa noite.
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho que nós não afirmamos ainda no Brasil as condições para uma reflexão autônoma sobre o país. E há dois grandes obstáculos à afirmação dessa autonomia cultural. O primeiro obstáculo é a falta de condições materiais de pesquisa e, sobretudo, de conhecimento dos países que guardam o maior parentesco com o nosso; países como o México ou a Rússia ou a China ou a Índia. O segundo obstáculo é que uma grande parte da intelectualidade brasileira continua a praticar algo que não é idéia nem política, senão a política das idéias; não se expõe aos riscos de um pensamento capaz de levar a conclusões desconcertantes.
Jorge Escosteguy: Por que o senhor diz que eles têm esta prática de fazer a política das idéias?
Roberto Mangabeira Unger: Porque eles raramente têm praticado uma forma de pensamento que procura não apenas ornamentar as posições já feitas, mas imaginar alternativas de pensamento e organização social. É isso que está faltando à cultura brasileira.
Jorge Escosteguy: O senhor diz alternativas; mas o senhor também afirmou que, por exemplo, se tivéssemos um projeto coerente de crescimento econômico, não seríamos capazes de executá-los. O senhor acha que não há pessoas no Brasil capazes para executá-los?
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho que o que mais choca no Brasil, hoje, é a falência imaginativa das elites. E eu não digo das elites universitárias, eu digo dos quadros dirigentes do país como um todo. Estes quadros abandonaram um antigo projeto nacional populista sem abraçarem a suposta alternativa neoliberal e colocaram o país no limbo em que está. O governo Itamar [Franco, presidente entre 1992 e 1994] é o reflexo dessa indefinição, dessa bancarrota imaginativa das elites brasileiras.
Jorge Escosteguy: O senhor disse o governo Itamar, mas o governo Itamar é uma herança do processo de impeachment, do processo político que veio do Fernando Collor [de Mello, presidente de 1990 a 1992, quando foi afastado pelo impeachment], ou seja, ele assumiu diante de uma crise.
Roberto Mangabeira Unger: Sim, mas essa rebelião nacional contra a corrupção [que culminou no impeachment de Collor] teria um significado maior de representar a busca de uma vida pública, de um espaço público que não fosse apenas um instrumento ou o disfarce de um interesse privado. Essa rebelião só pode prosperar se ela encontrar o caminho das alternativas estruturais. Se não encontrar, ameaça perder-se num moralismo frustrado e frustrante.
Jorge Escosteguy: O senhor acha que o governo Itamar é um governo sem alternativa, ele não tem um projeto?
Roberto Mangabeira Unger: É um governo que demonstra a falta de projeto. Projeto de estabilização, projeto de crescimento ou projeto de redistribuição da renda e da riqueza. Mas esta ausência de projetos é apenas o reflexo da situação em que se encontra toda elite brasileira; e, se a elite brasileira está sem projeto, o país como um todo está de joelhos e não se levantará até que o ressentimento for transfigurado pela imaginação.
Jorge Escosteguy: Por que o senhor acha que as elites brasileiras foram incapazes de fazer esse projeto?
Roberto Mangabeira Unger: Há muitos componentes nisso, nesse malogro. Há o componente do interesse do servilismo, da falta de arrojo na ruptura com as instituições convencionais; mas há, também, o elemento imaginativo: a falta de idéias e a falta de confiança na produção de idéias.
Jorge Escosteguy: Mas o senhor acha que as elites não têm interesse em buscar um processo, buscar uma saída alternativa para elas, ao menos nesse processo político?
Roberto Mangabeira Unger: Veja o exemplo do debate sobre a inflação [o Brasil estava então em plena crise da hiperinflação (1986-1993)]. Nós herdamos do passado essa idéia de que bastava crescer economicamente para consertar a inflação; não à recessão a qualquer custo. Essa idéia nos levou às portas da hiperinflação, onde estamos agora. Por outro lado, adotamos a noção de que a inflação é um fenômeno inercial e que basta uma série de truques de congelamentos de preço e salário e de negociações entre as partes organizadas no país para acabar com a inflação. E, assim, sonegamos ao país a discussão do verdadeiro problema. O verdadeiro problema é que o Estado brasileiro, ao invés de impor à parte privilegiada do país o custo do investimento público em infra-estrutura e em gente, generaliza esse custo à sociedade toda, através do dinheiro emprestado impresso. Só pode resolver isso dando ao Estado a capacidade de impor essa conta às classes proprietárias do país. Mas é apenas um exemplo; se não conseguirmos sequer encaminhar a discussão da problemática da política anti-inflacionária de forma realista, como podemos aspirar a discutir os problemas mais complexos do crescimento e da redistribuição?
Jorge Escosteguy: Como o senhor acha que o Estado poderia impor esse preço?
Roberto Mangabeira Unger: Eu sustento que o que precisamos é da formulação de alternativas estruturais. De uma mudança do modelo econômico que tenha como contrapartida a mudança do Estado e a reorganização da política brasileira. E, na mudança do modelo econômico, eu privilegiaria quatro temas. Primeiro, aumentar a capacidade do Estado de arrecadar, de impor esse custo, e prefiro um tributo.
Jorge Escosteguy: O senhor diz arrecadar mais, ou ter mais impostos?
Roberto Mangabeira Unger: Arrecadar mais, porque estamos num patamar muito baixo de arrecadação e, sobretudo, de investimento público, arrecadar mais. Prefiro um tributo que incida sobre a diferença entre o que as pessoas ganham e o que elas gastam. Segundo, uma política que enfrente diretamente a divisão interna do país entre dois sistemas econômicos que convivem no mesmo território: um moderno capitalizado e favorecido pelo Estado e outro marginalizado, à míngua do acesso ao capital, à tecnologia e aos mercados. O Estado tem que consolidar uma vanguarda tecnológica que se torne a parceira da vasta retaguarda econômica do país. Terceiro, precisamos impor o capitalismo aos capitalistas e privatizar o setor privado. E, em quarto lugar, precisamos de um vasto investimento em infra-estrutura e em gente e, sobretudo, em educação; um investimento acompanhado por uma revolução no conteúdo do ensino brasileiro, para que ele abandone o culto da memorização de fatos e passe para a conquista de capacidades genéricas, conceituais e práticas, de analisar, criticar e recombinar idéias e coisas.
Jorge Escosteguy: Marcelo, por favor, depois o Caio.
Marcelo Pontes: Professor, o senhor passa dez dias no Brasil, depois de muito tempo fora, e me recolhe uma impressão muito pessimista de tudo que está ocorrendo aí. O senhor não acredita no governo Itamar, o senhor diz que não há idéias na área acadêmica, o senhor recolhe também uma impressão de muita depressão e desânimo na população. E aí? Qual é a saída? Temos que esperar a próxima eleição presidencial apenas?
Roberto Mangabeira Unger: Esse baixo astral existe e não existe. Quer dizer, é apenas metade da história. Eu acho que a consciência coletiva de um povo sempre tem uma estrutura dupla. Na superfície, há sentimentos, hábitos, premissas que refletem a acomodação à realidade dominante. Mas, desde que aquele sistema sofra algum trauma, desde que haja uma alternativa, ainda que remota, a essa ordem existente, aí começam a aflorar os aspectos ocultos e reprimidos da consciência coletiva.
Marcelo Pontes: A saída do país tem que ser traumática?
Roberto Mangabeira Unger: Não, o que eu sinto no Brasil é uma imensa inquietação, uma inconformidade, uma busca de alternativas. O que falta é traduzir essa busca num caminho político.
Marcelo Pontes: Esse não é o papel dos partidos?
Roberto Mangabeira Unger: Seria o papel dos partidos, mas, num país como o nosso, é papel de todos os cidadãos, sobretudo dos cidadãos com algum acesso à cultura, com alguma capacidade de pensar por conta própria. Então, a mim me parece que uma das nossas tarefas fundamentais é encaminhar a discussão nacional para o debate sobre as alternativas. As formas alternativas de organização da economia e do Estado. Digo o seguinte: há uma grande mudança ideológica que está ocorrendo no mundo hoje e que nós, no Brasil, ainda não percebemos. Os velhos conflitos entre estadismo e privatismo, capitalismo e socialismo, estão perdendo seu sentido, estão sendo substituídos por novos conflitos entre as formas alternativas da democracia representativa e da economia do mercado. As economias periféricas do leste europeu e da América Latina têm quadro dirigentes que começam com esforço de apenas imitarem e importarem as instituições dos países ricos. E só à medida que esse esforço imitador malogra é que esses países são levados a um experimentalismo institucional involuntário, descobrindo que o pluralismo político-econômico pode e deve revestir entre nós formas alternativas. Este deve ser o caminho principal do debate político brasileiro.
Caio Túlio Costa: Professor, dentro disso, eu vejo um paradoxo muito grande quando o senhor coloca que uma das necessidades vai levar a uma revitalização do próprio Estado, certo? A um reforço do Estado, a um aumento do poder do Estado, inclusive arrecadatório. Quando o Estado provou no Brasil até hoje que não é um bom gestor da coisa pública. Basta ver a condição das empresas, algumas das quais estão sendo privatizadas agora. O senhor não acha que há uma contradição muito grande quando a gente vê que, no Brasil, a gente precisa ter cada vez menos Estado e cada vez mais liberdade, para as forças do mercado poderem agir livremente? E o senhor vem propor exatamente o contrário?
Roberto Mangabeira Unger: Mas esse é o círculo vicioso que nós precisamos quebrar. A fraqueza do Estado leva ao descrédito do Estado. O descrédito do Estado justifica fraqueza do Estado. Nós precisamos quebrar esse círculo vicioso, compreendendo que não há uma relação inversa simples entre fortalecimento do Estado e liberdade econômica. O Estado pode fortalecer-se na sua capacidade de gerir e tributar. Na sua capacidade, inclusive, de ser um parceiro do segundo Brasil, sem que este fortalecimento leve a uma supressão da vitalidade autônoma da sociedade civil. Os dois projetos, na verdade, são convergentes. Sem fortalecer ou reorganizar o Estado brasileiro, sobretudo sem colocar o Estado brasileiro a serviço desse segundo Brasil, não há salvação para nós.
Jorge Escosteguy: Professor Marcovitch, depois Mauro Chaves.
Jacques Marcovitch: Professor Mangabeira, o senhor analisa a universidade diante do que o senhor analisa, a sua paralisia, e depois observa uma agenda que parte da questão econômica. No âmbito da universidade, o que temos refletido, nos leva a concluir que antes da questão econômica, antes da arrecadação, surge um problema essencialmente político neste país. Um país que têm passado, presente e futuro. Um país que hospedou vários fluxos migratórios quando outros países estavam em crise. Países que hoje estão sendo elogiados estão servindo de paradigmas, transferiram para o Brasil várias correntes migratórias nos últimos setenta, oitenta anos. Portanto, isso não faz muito tempo. Portanto, é compreensível que o país atravesse momentos de crises na sua história. Mesmo nos Estados Unidos, ainda no fim do século passado [século XIX], a Guerra da Secessão [1861-1865] provocou um drama para aquele país naquele final de século. Bom, então estamos atravessando a nossa crise. Na nossa crise, nós observamos elites - porque elas existem -, mas elites que vivem num fosso, dentro delas e entre elas. Num fosso, entre o discurso e a prática e um fosso diante da dificuldade de consertar uma agenda diante das prioridades do país. E uma dessas agendas - que o senhor, aliás, quando candidato sublinhou a sua importância - é a questão da organização partidária no Brasil e do sistema eleitoral. Foi um assunto de que o senhor tratou e que nós consideramos hoje uma pré-condição para lidar com essa agenda. Enquanto não tiver um número aceitável de partidos com uma representação no Congresso baseada num mínimo eleitoral - 5% ou algo em torno -, fica difícil chegar a uma agenda de prioridades. E, aí, nem a inflação, nem a questão educacional, nem a questão da reforma do Estado se torna possível, porque o executivo fica isolado do resto. A segunda pedra, que nós vamos identificar nesse caminho, é uma questão de valores e uma questão do sistema judiciário. A questão da cleptocracia no Brasil é algo conhecido, se revelou quando da questão do governo Collor [referência ao escândalo PC], mas ficou no presidente Collor. Isto não desceu como se esperava e, até agora, foram uns poucos do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] no Rio que foram até agora presos confortavelmente, isolados numa prisão militar. Como lidar com a questão da estrutura política de um lado e do sistema judiciário do outro? São as questões que eu gostaria de ouvir.
Roberto Mangabeira Unger: Eu não dou nenhuma primazia à mudança do modelo econômico. A mudança do modelo econômico me parece ser apenas a contrapartida à reorganização da política do Estado. E, na verdade, essas duas vertentes - a economia e a política -, mesmo juntas, são insuficientes, porque a macropolítica, a grande política das instituições, teria que ser complementada por uma micropolítica das relações pessoais. Então, permita que coloque essas questões que o senhor levantou num contexto mais amplo. A tradição política e constitucional das democracias ricas é uma tradição que privilegia dois conjuntos de mecanismos. Em primeiro lugar: consolida práticas que mantêm a sociedade num patamar relativamente baixo de mobilização política. Num país como o nosso, em que nós precisamos de um experimentalismo democrático acelerado, de uma prática reiterada de reformas estruturais, nós temos que substituir essas práticas desmobilizantes por outras que elevem de forma persistente o nível de mobilização política dos cidadãos: pelo financiamento público das campanhas políticas, pela quebra do cartel da televisão e pela mudança do regime eleitoral. A minha preferência na reforma eleitoral seria a solução mais radical, o sistema que chamam da lista fechada e do voto proporcional: o partido apresenta uma lista fechada de candidatos, e o cidadão tem que escolher entre partidos e depois tem que brigar dentro dos partidos para democratizá-los internamente. O segundo conjunto de mecanismos tradicionais dessas democracias ricas são técnicas que facilitam a fragmentação do poder e, deliberadamente, favorecem os impasses. É o sistema dos freios e contrapesos do presidencialismo clássico ou é um imperativo de buscar o consenso dentro da classe política, que caracteriza o parlamentarismo. Nós teríamos que substituir também esse segundo conjunto de mecanismos por outros que facilitassem a resolução rápida de impasses entre os poderes do Estado.
Mauro Chaves: Professor, uma grande questão da legislação eleitoral é o problema da relação entre o dinheiro e eleição, e o senhor tem realmente se preocupado com isso. O senhor tem proposto o financiamento público e o senhor tem proposto formas de se estabelecer o controle do dinheiro privado na eleição. Acontece que, no Brasil, por nossa legislação, nós já temos, de um certo modo, financiamento público, que são os horários gratuitos - que, inclusive, não existem em democracias norte-americanas -, e existe esse horário gratuito em redes nacionais de rádio e televisão. Nós temos sistemas de inelegibilidade e desincompatibilização - não sei se isto também é uma coisa tão freqüente -, isto é, aquele que exerce o mandato, ele torna-se inelegível ou tem que se desincompatibilizar do próprio mandato para concorrer, para buscar até um cargo executivo. E nós temos outros mecanismos. Por exemplo, o que proíbe a participação de empresas, pessoas jurídicas, nas campanhas, determina apenas que as pessoas físicas possam fazê-lo e com determinados limites - que, no caso, [é de] duzentos salários mínimos - e sob controle dos partidos. Muito bem. Essa legislação toda, ela é restritiva, mas também muito farisaica, porque não é obedecida. Nós temos, sob o ponto de vista de arcabouço legislativo, de norma, nós temos realmente uma preocupação contra o abuso de poder econômico etc. Mas, na prática, o senhor sabe muito bem, o senhor foi candidato, que essas leis não são cumpridas. Eu perguntaria qual seria a forma de se fazer - já que nós temos que fazer modificações nessa parte fundamental, [pois] estamos nas vésperas também de uma reforma constitucional -, gostaria de saber o que nós poderíamos fazer em termos de legislação nova eleitoral para impedir o abuso de poder econômico e para fazer com que a lei fosse cumprida seguindo modelos de democracias como a norte-americana e outras.
Roberto Mangabeira Unger: A forma mais simples não é tentar constranger o uso de dinheiro privado. A forma mais simples é dar dinheiro público, é dar dinheiro público em quantidade suficiente para neutralizar o uso do dinheiro privado. Bastaria isso para começar revolucionar a prática de política brasileira.
Jacques Marcovitch: Mas como impedir que o dinheiro privado entre? Porque, digamos, o horário gratuito é uma forma de dinheiro público...
Roberto Mangabeira Unger: Eu estou reconhecendo que é difícil impedir o uso de dinheiro privado. O que eu estou dizendo é que a solução a curto prazo não é impedir o uso de dinheiro privado, é colocar dinheiro público nas campanhas à disposição dos partidos.
Caio Túlio Costa: A França faz isso, professor, e o dinheiro privado entra do mesmo jeito.
Roberto Mangabeira Unger: Eu estou reconhecendo isso. Mas, se há dinheiro público, o uso de dinheiro privado significa muito menos.
Caio Túlio Costa: Não necessariamente...
Roberto Mangabeira Unger: Vão usar o dinheiro privado e os que usam o dinheiro privado vão ter vantagem, mas a vantagem que terão será muito menor se os que não têm dinheiro têm um mínimo de capital assegurado pela máquina do Estado.
Jacques Marcovitch: Desde que seja transparente, tanto o privado como o público, não é?
Roberto Mangabeira Unger: Desde que seja transparente, desde que diminuído o número de partidos e fortalecidos os partidos como agentes e alternativas programáticas.
Jorge Escosteguy: Professor Celso, por favor.
Celso Campilongo: Professor Unger, todas essas sugestões de mudanças institucionais, de uma prática contestadora e de mudança no modelo econômico, possui implicações jurídicas muito importantes. Então, eu subdivido a minha pergunta em dois tópicos. Em primeiro lugar: é possível, sem uma ofensa à proteção de direitos adquiridos ou a princípios jurídicos importantes como o princípio da certeza jurídica, que as instituições jurídicas brasileiras ofereçam alguma contribuição para essas importantes mudanças estruturais? Número um. Número dois, o senhor produziu análises refinadas sobre o Critical Legal Studies Movement, o Movimento de Crítica Jurídica nos Estados Unidos. No Brasil, talvez exagerando um pouco, a manifestação análoga seja do movimento pelo direito alternativo. Então eu pergunto: que balanço o senhor faz do Critical Legal Studies Movement? E como vê as tentativas de reformulação das práticas judiciais no Brasil e, particularmente, essa discussão em torno do direito alternativo?
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho que há duas maneiras principais de encarar a vocação do direito e do pensamento jurídico num projeto democratizante desse tipo. Uma forma de encarar é ampliar a capacidade de interpretação construtiva dos juristas. Quer dizer, eles podem interpretar o direito à luz dos seus objetivos sociais. É isso que tem sido privilegiado nos Estados Unidos. Mas isso aí tem um limite. Porque é como que uma espécie de bonapartismo coletivo de juristas que se substituem aos cidadãos, reconstruindo o direito à luz de uma visão mais progressista que a consciência popular não abraçou. Muito mais interessante, ao meu ver, é uma segunda maneira de encarar a vocação do pensamento jurídico. Que o pensamento jurídico, nesse segundo entendimento, tem como tarefa principal fazer análise à crítica e à proposta das instituições; que a vocação do pensamento jurídico é ser uma tentativa de ampliar a conversa democrática; e que o pensamento do jurista, antes de dirigir-se ao juiz, dirige-se ao cidadão e aos partidos políticos e movimentos sociais. Nós precisamos urgentemente, no Brasil, de uma consciência jurídica que caminhe nesse sentido, que procure ser como que a assistência técnica da cidadania.
Stephen Kanitz: Mas nós temos essa consciência jurídica. Um dos grandes problemas neste país é justamente a famosa frase do "direito adquirido". O que mais impede o progresso neste país é algumas pessoas usando o direito de adquirir - por exemplo, a ministra [da Economia] Zélia [Cardoso de Mello] recebe aposentadoria do pai por ser filha solteira. Isto é um direito adquirido constitucionalmente.
Roberto Mangabeira Unger: É.
Stephen Kanitz: E isso impede... Não há Estado que agüente pagar aposentadorias - ela só é um exemplo; tem mais de seiscentas mil pessoas com 45 anos de idade aposentadas. Agora, juridicamente, o direito deles vai contra o meu direito adquirido de me aposentar, porque eu não vou me aposentar porque eles se aposentaram com 45 anos e usaram todo esse dinheiro que é meu, do Jacques e de todo mundo aqui presente.
Mauro Chaves: Acrescentaria aí as aposentadorias precoces dos deputados com oito anos, por exemplo, e todos os privilégios corporativos que são sacramentados na Constituição.
Roberto Mangabeira Unger: É, mas não vamos confundir a consciência jurídica com a apologia de determinada estrutura institucional. O que o direito pode contribuir na democracia é mostrar que abstrações como a idéia de uma economia de mercado podem ser traduzidas em instituições radicalmente diferentes. Vamos ver, por exemplo, o debate no plebiscito [que decidiu entre o presidencialismo e o parlamentarismo, em 21 de abril de 1993, quatro dias depois que esta entrevista foi ao ar] que discutiu presidencialismo e parlamentarismo, como se esses rótulos tivessem conteúdo pré-determinado, quando, na verdade, podem assumir formas radicalmente diferentes com conseqüências radicalmente diferentes. Essa seria uma das missões fundamentais da consciência jurídica: demonstrar o grau de liberdade coletiva que é sonegado ao país. E, em vez de desempenhar essa função o pensamento jurídico faz o oposto, contribuindo à mistificação, fingindo que esses rótulos, como economia de mercado, como parlamentarismo, têm um conteúdo pré-determinado.
Jorge Escosteguy: Professor Lauheta, por favor.
Milton Lahuerta: Professor Unger, o senhor tem insistido na perspectiva de uma agenda nova em vários aspectos - aspectos institucionais e até mesmo econômicos. A pergunta que eu lhe faria é a seguinte: para se ter uma agenda nova, não seria necessária, uma atualização intelectual que hoje faz falta na nossa sociedade, em primeiro ponto, e não seria necessário também algum tipo de consenso? Eu lhe pergunto isso, pegando em outro ângulo da sua colocação, quando o senhor fala que na universidade, hoje, se faz uma política de idéias e não se produz idéias criativas. Agora, essa não seria uma tendência universal decorrente da própria especialização, da profissionalização das disciplinas acadêmicas e até, de certo modo, da própria modernização econômica? Em suma, o que seria específico da nossa sociedade, no que se refere a essa questão da universidade? E, com relação à questão do consenso, o senhor tem colocado que, no fundo, a busca de consenso, ela acaba reproduzindo uma certa ilusão, a ilusão da cordialidade política. Eu lhe perguntaria, se o senhor pôr nesses termos o problema de insistir na perspectiva do que é decisivo - é um governo disposto a enfrentar uma oposição feroz e disposto a submeter empresários à disciplina de uma concorrência que não existe hoje no Brasil -, o senhor também não estaria incorrendo numa certa ilusão, uma ilusão voluntarista?
Roberto Mangabeira Unger: Eu começaria...
Milton Lauheta: A ilusão de um governo forte? Porque a pergunta, ela fecharia com o seguinte: como um governo poderia ser forte num contexto em que o Estado brasileiro está destruído?
Roberto Mangabeira Unger: Eu começaria por dizer que o nosso problema no discurso político e na prática política não é a falta do consenso. O nosso problema é, em certo sentido, exatamente o inverso, o nosso problema é a existência do consenso.
Milton Lauheta: O consenso em relação à agenda nova?
Roberto Mangabeira Unger: Sim, mas os partidos políticos brasileiros convergem hoje no mesmo ideário; na verdade, no mesmo vocabulário social-democrata. Que é fantasioso e que sonega ao país a discussão de verdadeiras alternativas estruturais. Então, esse ideário social-democrata de que participam todos os partidos políticos brasileiros, desde o PDS [Partido Democrático Social] até o PT [Partido dos Trabalhadores], não propõe uma estratégia concreta de crescimento econômico e propõe uma forma de redistribuição [de renda] que é claramente inviável, que é a redistribuição por mecanismos compensadores: tira do Brasil 1 para dar ao Brasil 2, mas, muito antes de alcançar a dimensão necessária para resolver os problemas da maioria aprisionada no segundo Brasil, essa transferência começaria a desorganizar o primeiro Brasil. Então, não há nenhum projeto de redistribuição viável que não passe pelo enfrentamento desse dualismo interno, dessa divisão entre dois países e dois sistemas. Então, o que nós precisamos nisso, como em tudo, é uma dialética de conflitos para criar essas idéias. Não é o consenso, aquilo que precisamos, mas a ruptura do consenso ou do falso consenso.
Jorge Escosteguy: Ibsen, por favor.
Ibsen Spartacus: Eu gostaria de entender na prática como funcionaria essa agenda que o senhor propõe, em contraposição à agenda social-democrata. Ela, me parece que começou a ser desenhada ainda no governo Collor a partir de uma proposta neoliberal e foi sendo amarrada com injeções esporádicas de alguns parlamentares e alguns grupos organizados, inclusive empresários. E ela é, na prática, o seguinte: depois do plebiscito, faríamos um sistema parlamentarista, uma série de reformas políticas, que inclui reforma do sistema partidário, reforma do financiamento de campanha e várias outras questões relacionadas à própria economia dentro desse perfil, próximo do neoliberalismo. Como seria essa agenda na prática? De onde começaria a ser feita essa agenda?
Roberto Mangabeira Unger: A agenda alternativa, de onde começaria?
Ibsen Spartacus: Sim. E como ela se desdobraria no caso... institucionalmente: dentro do Congresso, com projetos de reforma... Que projetos seriam?
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho que há três condições fundamentais para a realização de uma agenda alternativa desse tipo. A primeira condição é uma convergência dentro da esquerda. É a construção de uma série de alianças políticas e sociais - primeiro políticas, depois sociais - que sustentem uma alternativa desse tipo. Nós temos, hoje, no Brasil, duas esquerdas uma voltada para o Brasil moderno consciente, organizado; e outra voltada para o Brasil da bagunça. Então, essas duas esquerdas refletem a divisão do país que deveriam ter por tarefa superar e, por isto, acabam sendo partes do problema, em vez de serem partes da solução. Segunda condição: é o desenvolvimento de um discurso político, [passa a falar com o corpo inclinado, com muitos gestos] uma prática política, uma forma de imaginar, de praticar a política que combine a política orientada ao Estado e aos partidos políticos com a política que se desenvolve dentro da sociedade civil, organização por organização, grupo por grupo. E que, ao mesmo tempo, junte a política como um apelo aos interesses reconhecidos e a política como um apelo aos mundos alternativos; a política como estratégia e a política como profecia. Agora, eu sustento que ainda há uma terceira condição, que é mais psicológica e moral, do que coletiva e política. Nós estamos agora vivendo um quadro de desesperança. E a esperança é muito mais a conseqüência do que a causa da ação. Então, uma das condições para formação de uma alternativa desse tipo é que muitos brasileiros em suas vidas individuais tirem a couraça protetora e se exponham ao risco e ao despojamento, aceitando um grau mais elevado de vulnerabilidade pessoal. Que sejam eles, cada um a seu modo, pequenos profetas. Para que sejam também depois cidadãos. [respirando forte por causa do excesso de movimentação]
[...]: A começar pelo presidente?
Ibsen Spartacus: Professor, por favor, continuo sem entender, na prática, como isso se daria. Quer dizer, o âmbito da discussão desse novo sistema alternativo ou dessa nova proposta alternativa, qual é? Temos pouco tempo, tem uma revisão constitucional...
Roberto Mangabeira Unger: Mas, mas...
Ibsen Spartacus: ...já há algum consenso em torno de algumas idéias; como se dá?
Roberto Mangabeira Unger: Eu não acredito que haja um âmbito privilegiado. O âmbito tem que ir desde o Congresso Nacional a qualquer família, a qualquer fábrica, qualquer escritório. O país tem que virar um clube de debates, o país tem que se lançar nessa discussão dos seus futuros alternativos. Não se pode dizer que haja uma arena prioritária para resolução desse problema, que a salvação vem de um lugar: a salvação vem de qualquer lugar! Esse é o ponto essencial para compreender.
Stephen Kanitz: Desculpe, senhor, Mangabeira... Não estamos na Suíça, onde um país pequenino...
Mauro Chaves: [após algumas palavras ao mesmo tempo que Stephen Kanitz] ...de certo modo, de dez anos para cá, a sociedade brasileira tem aprendido a cobrar... Essas discussões, esse debate público, de um certo modo - o senhor pega de dez anos para cá -, tem se intensificado em todos os níveis.
Roberto Mangabeira Unger: É.
Mauro Chaves: Apesar de tudo isso, não chegamos ainda à coisa concreta né? E a coisa é fundamental. Mas o senhor fala, por exemplo, que o investimento fundamental é em gente, o senhor tem repetido isso. Muito bem. Por que não se investe em gente? Por que não se investe em educação se todo candidato a qualquer governo coloca como meta prioritária a educação - e depois não cumpre? Por que essa razão? Que mal, que vício existe nessa elite que faz com que as coisas não aconteçam? Que faz com que os judiciários não funcionem e que as leis não sejam cumpridas?
Roberto Mangabeira Unger: Pois é...
Mauro Chaves: O que é que tem por trás disso? Qual é a ideologia da coisa, professor?
Roberto Mangabeira Unger: É uma combinação de egoísmo e de desesperança, que nós só vamos vencer por uma prática de resistência, por uma insurreição nacional que não é como que um fenômeno revolucionário que acontece de repente, mas que é uma mudança gradativa dos brasileiros que se levantam. Há um contraste entre suas observações. O senhor diz: “Já fazemos isso” e o senhor diz: “Não podemos fazer isso, porque não somos a Suíça”.
Mauro Chaves: Mas, já começamos a fazer isso.
Roberto Mangabeira Unger: Mas não é nem uma coisa nem outra. O país está inconformado. Debaixo dessa apatia, há essa imensa indignação que não tem voz política ainda, mas que pode ter.
Ibsen Spartacus: Onde é que o senhor vê este fenômeno? Onde é que o senhor percebe isso?
Roberto Mangabeira Unger: Eu vejo em toda parte, eu vejo em toda a parte. Por exemplo, nessa campanha política malograda que eu fiz a deputado federal foi uma experiência muito interessante. Eu não tinha nenhuma estrutura, não tinha nenhum dinheiro, não tinha nenhum apoio, não tinha nem um automóvel. Então, imaginava aquilo como um gesto cívico. Então, depois, eu fui ver que, naturalmente, como qualquer um poderia me ter dito, os votos vieram dos bairros da classe média do Rio de Janeiro - do Flamengo, do Botafogo -, onde não apareci. Fui lá com os meus panfletos programáticos subir nas favelas e percorrer a Baixada Fluminense, onde a maioria das pessoas me tratava como estelionatário, porque eu pedia algo - votos - sem oferecer nada em troca. Mas, em todos esses ambientes, por mais pobres e desinformados que fossem, havia sempre uma minoria que respondia, que se separava dos outros. Então, eu sinto que em todo ambiente no Brasil há pessoas dispostas à resistência, desde que seja oferecida a elas uma alternativa encarnada, uma alternativa apresentada em forma de carne e osso.
Caio Túlio Costa: O senhor quer um líder então professor? O senhor está procurando um líder para canalizar essa insatisfação?
Roberto Mangabeira Unger: Não é um líder, não é a interpretação correta do que eu disse. O que eu disse é que muitos indivíduos, em muitos âmbitos da vida social, precisam dar aos outros brasileiros o exemplo do risco e da ruptura, da resistência e da esperança, e que esse trabalho exemplar é que é a forma essencial da subversão da ordem estabelecida no país.
Jorge Escosteguy: Isso não é uma visão muito romântica não, professor?
Roberto Mangabeira Unger: É uma visão romântica que me parece ser uma parte essencial do realismo. Olha, eu acho que ser realista e ser visionário são duas tarefas, duas ambições conexas. Porque o realista não pode ser a pessoa que confunde o possível com o existente. O realista precisa ser a pessoa que compreende as coisas como funcionam, à luz das coisas como poderiam ser; e que aprofunda a visão da realidade, compreendendo os caminhos e os limites da transformação. Essa é a trajetória do realismo, é desses realistas que nós precisamos no país e não dos pragmáticos, antipragmáticos que são a maldição da política brasileira.
Caio Túlio Costa: Por exemplo, professor?
Roberto Mangabeira Unger: Por exemplo, a grande maioria dos políticos brasileiros. A grande maioria dos políticos brasileiros, porque o que tem caracterizado a política brasileira é a prática repetida desses golpes de esperteza, confirmando o que disse [o ator estadunidense] Richard Gere, que o mais sabido é logrado em primeiro lugar. Porque esses espertalhões vêem seus projetos sempre malogrados. Então, foi uma coisa depois da outra, um golpe de esperteza depois do outro conduzindo o país ao descalabro em que está.
Jorge Escosteguy: Professor, no primeiro bloco, o senhor fez uma longa análise sobre a situação brasileira, como bem lembrou o Marcelo - inclusive, uma visão bastante pessimista. Eu gostaria que o senhor nos contasse como é visto o Brasil entre os seus colegas de universidade. Ou seja, o senhor transmite a eles esse seu pessimismo ou eles acham que é por aí mesmo...?
Roberto Mangabeira Unger: Não... Permita que eu diga que eu sou menos pessimista... sou menos pessimista do que qualquer das pessoas com que eu tenha falado no Brasil. Eu acredito na existência e na viabilidade dessas alternativas. Eu acredito que nós temos os elementos para construir aqui uma forma exemplar de democracia que ofereça à humanidade um exemplo real de um outro caminho. Eu acredito também que a cultura brasileira tem uma mensagem a oferecer à humanidade; que, no coração da cultura brasileira, a idéia da vida humana é levada ao plano da pungência da própria natureza, desonerada das ilusões da grandeza pagã e sublimada pela ternura do amor cristão. Eu não sou pessimista, eu sou uma pessoa que acredita no Brasil como um lugar de formação de uma experiência humana alternativa. Agora, o Brasil no mundo, a sua pergunta...
Jorge Escosteguy: Então, como os seus colegas de universidade vêem o Brasil?
Roberto Mangabeira Unger: O Brasil desapareceu do horizonte, o Brasil sumiu do horizonte. O Brasil não existe, é visto como um país em que as elites não conseguem arrumar as coisas. Está completamente marginalizado dos grandes blocos que estão se formando no mundo. É preciso compreender a grande mudança que está ocorrendo na divisão internacional do trabalho. Aquela indústria tradicional de produção em grande escala de bens padronizados, com maquinaria rígida e mão-de-obra semiqualificada, que os economistas chamam de "fordista", está sendo desmontada nas economias ricas para ser remontada nas economias de vanguarda do Terceiro Mundo, como a brasileira. Serve, aqui, para reproduzir os bens de consumo produzidos nos países ricos, mas não nos permite concorrer no mundo, senão à base da repressão dos salários internos, e muito menos permite equipar essa retaguarda imensa e marginalizada da economia brasileira. Então, a contrapartida, o complemento dessa política de enfrentamento da divisão interna do país é uma rebelião nacional, contra o papel que está sendo preparado para nós na economia mundial. De sermos o receptáculo que um "fordismo de segunda mão". Nós precisamos aproveitar as vantagens correspondentes às nossas desvantagens. Estamos marginalizados desses grandes blocos econômicos que se estão formando no mundo, mas a nossa pauta de exportações é muito distribuída pelo mundo todo. Então, vamos, pela ação diplomática - pelo multilateralismo, quando necessário, e pelos acordos bilaterais quando possível -, criar espaço para essa ampliação, essa expansão da concorrência brasileira, sustentada numa vanguarda tecnológica que, ao mesmo tempo, procure equipar esse segundo Brasil! Essa seria uma grande tarefa de afirmação nossa, no mundo que se está reorganizando.
Jorge Escosteguy: Mauro Chaves.
Mauro Chaves: Eu queria recuperar dois pequenos pontos do bloco anterior. Como nós falávamos da cobrança da sociedade, um exemplo que me ocorreu foi o seguinte: Nós não imaginávamos, há dez anos, por exemplo, que pessoas fizessem cobranças diretas ao poder público, como, por exemplo, fechar uma via pública, uma estrada para fazer uma passarela; por exemplo, pessoas que, como no Sul - aconteceu há alguns meses -, saíram correndo atrás de um juiz, porque estava veraneando com uma chapa branca do Tribunal. Esse tipo de coisa não acontecia. As pessoas, atualmente, cobram mais, as pessoas não deixam furar filas, quer dizer, pequenos detalhes da vida cotidiana. Isso não se refere sempre, essa importância - da vida cotidiana... -, não só às coisas institucionais [ou seja, essa importância não se refere sempre às coisas institucionais, mas também às cotidianas], isso tem revelado uma certa revolução da sociedade.
Roberto Mangabeira Unger: Sim.
Mauro Chaves: Agora, o problema é o seguinte: quando o senhor faz uma crítica generalizada das elites, da classe política, isso, num país como o Brasil - se fosse em outro país, Estados Unidos, qualquer lugar, tudo bem; mas, num país como o Brasil, latino-americano, isso sempre leva a um tipo de informação para o grande público de descrença nas instituições. E, evidentemente, o que se lê imediatamente é a possibilidade de golpe militar. Quer dizer, sempre, como uma alternativa, as pessoas pensam nesse risco. Eu queria que o senhor analisasse um pouso esse risco, se essa descrença generalizada ou essa crítica - de certo modo exageradamente contundente - à classe política não pode levar a um temor, a um risco de valorização de um golpe militar?
Roberto Mangabeira Unger: O golpe militar, no Brasil, tem duas condições essenciais. Uma condição é institucional: é esse mecanismo de impasse entre o presidente que propõe reforma e a maioria que resiste dentro e fora do Congresso. Vamos mudar essa condição reformando o presidencialismo, essa seria a tarefa. A segunda condição é social e cultural: o golpe militar exige uma unidade no oficialato, e a unidade no oficialato reflete a unidade do sentimento de classe média. Um governo popular que levou a classe média a antagonizá-lo já perdeu, e o golpe militar é apenas o fim da história.
Mauro Chaves: E o golpe tipo [Alberto] Fujimori [presidente do Peru de 1990 a 2000, fechou o Congresso e suspendeu o poder judiciário em abril de 1992; uma nova Constituição foi promulgada no ano seguinte]?
Roberto Mangabeira Unger: Sim, golpe tipo Fujimori seria apenas uma variante do mesmo desfecho. Porque um verdadeiro projeto popular no Brasil nunca se poderia sustentar por uma forma golpista, não encontraria o respaldo necessário nesses quadros médios da sociedade brasileira. Agora, voltando ao seu outro tema, que é o aumento dessa capacidade reivindicatória dos brasileiros. Eu vejo isso como um prenúncio de grande esperança! Porque esse sonho brasileiro que eu descrevia, esse sonho de informalismo, de exuberância, de pungência na vida, esse sonho é comprometido, imaculado por essas lógicas repressoras da vida cotidiana. É aquela mistura de poder, troca e sentimento; a parceria escusa que se estabelece entre o apadrinhamento personalista e a rigidez burocrática, um dando oportunidade para o outro; e a polarização, em cada episódio da vida social, entre os conhecidos e os estranhos, entre os incluídos e os excluídos. Essas são as lógicas repressoras da vida cotidiana. Mas os brasileiros estão começando a subverter essas lógicas! Então, eu sustentaria que essa é, por assim dizer, a base existencial, a base, na micropolítica das relações pessoais, de uma outra visão da grande política das instituições. Porque, se as pessoas começam a adquirir esperança nessa experiência imediata, elas têm esperança também para mudar as estruturas mais amplas.
Jorge Escosteguy: Professor Marcovitch, por favor. Depois, o doutor Celso.
Jacques Marcovitch: Destacando algumas concordâncias com relação aos seus pontos de vista. Em primeiro lugar, a diversidade cultural que caracteriza o Brasil e que faz do Brasil um país que pode ser fonte de luzes, fonte de caminhos para o resto da sociedade humana. O segundo ponto era a revolução educacional que o senhor propõe - eu acho que ela é indiscutível, ela começa na sala de aula, na relação aluno-professor. E a questão do dualismo crescente que tem elevado o desrespeito ao ser humano. E, quanto a isso, eu acho que nós temos que sublinhar esses pontos que o senhor levantou. A questão começa quando o senhor vê a universidade - como, aliás, eu a vejo também - como um lugar onde surgem as alternativas, são levantadas alternativas globais para o país, para que correntes estruturadas da sociedade se apossem dessas alternativas e comecem, via conflito, a defendê-las para sua implantação. O que nós temos visto nesses últimos anos no Brasil são alguns acertos que foram mais pelo caminho da concertação. O caso do ABC [zona industrial na Grande São Paulo, formada pelsas cidades de Santo André, São Bernardo, São Caetano e outras e onde começou a construção do PT com as greves de metalúrgicos das quais Lula era uma das maiores lideranças], recentemente: capital e trabalho se entenderam em torno de um contrato de dois anos e meio e que foi a única forma de evitar a exclusão da realidade mundial. E, aí, houve um entendimento acirrado, mas que chegou ao programa de entendimento. A cidade de Curitiba, cujo prefeito é do seu partido [Rafael Greca, do Partido Democrático Trabalhista (PDT)], não utilizou a estratégia do conflito, pelo contrário: para viabilizar o seu projeto urbano, utilizou a estratégia da concertação. Então o que eu queria entender, concordando com esse papel - que a universidade, na minha opinião, está desempenhando em parte, mas deveria desempenhar cada vez mais - de apresentação de alternativas, se a via do conflito e da desestabilização é a única, ou se em certos casos, como aqueles que nós citamos - o caso de Fortaleza e do Ceará é um outro exemplo -, existem realidades no Brasil que exigem um mínimo de concertação.
Roberto Mangabeira Unger: Eu não vejo as vias de conflito e de pacto como excludentes. O problema de uma política de pactos é que uma política de pactos é mais facilmente viável num Brasil organizado. E o outro Brasil? Tome o caso das propostas políticas do PT, na última campanha presidencial. É um exemplo típico. Apresentava duas propostas principais: a redistribuição pela política salarial que não alcança a maioria dos brasileiros no subemprego, no emprego instável, e a estabilização econômica pela negociação em câmaras setoriais. O mini-corporativismo, a concertação, mesas nas quais o Brasil da bagunça, o outro Brasil não senta. Então, uma imaginação política que privilegia os pactos, que privilegia o diálogo organizado entre as forças organizadas está esquecendo o enigma brasileiro, que é aquele outro Brasil que está lá atrás e que, se for esquecido, [com ênfase e com o dedo em riste] se vingará pelo voto ou pela violência.
Jorge Escosteguy: Professor Celso, por favor.
Celso Campilongo: Professor Unger, as suas análises privilegiam mesmo, ou até conferem um espaço privilegiado ao Brasil número dois, ao Brasil não integrado ao mercado. E, talvez, em decorrência disso mesmo é que as suas análises a respeito da economia - do estado de São Paulo, por exemplo - sejam análises bastante duras, não é? Porque, afinal de contas, no estado de São Paulo está concentrada a economia do Brasil número um: os setores mais modernos, mais articulados da economia, os setores mais articulados do trabalho, os setores mais articulados do capital. Eu pergunto: qual o papel a ser desempenhado pelo Brasil número um, por esses setores organizados, dentro da sua alternativa transformadora?
Roberto Mangabeira Unger: Duas das grandes revoluções econômicas têm que ocorrer nesse Brasil organizado. Em primeiro lugar: a revolução que eu descrevi como a imposição do capitalismo aos capitalistas. Temos certeza.
Jorge Escosteguy: O que significa isso, professor?
Roberto Mangabeira Unger: Verdadeira concorrência, legislação antitruste, limite ao nepotismo e ao direito de herança, quebra dos oligopólios, responsabilidade privada pelo custo do investimento público. E a contrapartida a essa privatização do setor privado é dotar as empresas públicas de um regime de autonomia empresarial e responsabilidade financeira. Segunda revolução econômica no Brasil moderno...
Caio Túlio Costa: Vão quebrar todas, não é professor?
Roberto Mangabeira Unger: Como?
Caio Túlio Costa: Vão quebrar todas?
Roberto Mangabeira Unger: Não, não vão quebrar todas. Não vão quebrar todas porque, desde que não sejam elas também obrigadas a subsidiar tanto o Estado brasileiro quanto os produtores privados, poderão adquirir as condições da viabilidade, não vamos esquecer...
Caio Túlio Costa: Mas, isso é uma coisa antidesejosa, professor. Os políticos brasileiros mostraram que não têm condições de gerir uma empresa estatal.
Roberto Mangabeira Unger: Não concordo, porque não se trata... Justamente, a empresa estatal não pode ser gerida por políticos.
Caio Túlio Costa: Exatamente.
Roberto Mangabeira Unger: Ela tem que ter autonomia empresarial.
Caio Túlio Costa: Exatamente.
Roberto Mangabeira Unger: Não vamos esquecer que na nossa economia é que empresas privadas foram e são tipicamente negócios de família. Foi nas empresas públicas que se abriram caminhos...
Caio Túlio Costa: O senhor acha possível, com a elite que existe no Brasil, profissionalizar empresa estatal?
Roberto Mangabeira Unger: Foi nas empresas públicas, já no passado, empresas como o Banco do Brasil ou a Vale do Rio Doce, que se abriu caminho para uma meritocracia de classe média, para a gente subir sem ter ligações de família.
Caio Túlio Costa: Mas isso acabou, professor!
Roberto Mangabeira Unger: Isso... As empresas públicas pagaram uma grande parte do preço dessa política do dinheiro fácil, do dinheiro impresso, emprestado, que desorganizou progressivamente a economia brasileira.
Ibsen Spartacus: Mas hoje não tem um caminho inverso? Por exemplo, no caso da burocracia: os fundos de pensão de estatais, sempre que há um rombo neles, há uma injeção do Tesouro na empresa que injeta dinheiro no fundo de pensão. Hoje não seria uma situação contrária?
Roberto Mangabeira Unger: Empresa pública e empresa politizada são duas coisas diferentes; difícil ser mais politizada do que...
Caio Túlio Costa: Olha, eu conheço dois exemplos: Vale do Rio Doce...
Roberto Mangabeira Unger: Muitas das nossas grandes empresas privadas...
Caio Túlio Costa: Não é mais fácil privatizá-las, então?
Roberto Mangabeira Unger: Não, porque algumas não podem ser privatizadas. E vou dizer porque: está ligado ao problema do dualismo, está ligado ao problema da rebelião contra o "fordismo de segunda mão", o fordismo descartado. Nós não vamos poder mudar de padrão industrial. E não vamos poder equipar essa segunda economia brasileira levados só pelo curto prazo do cálculo do lucro. Nós precisamos ter algum setor da economia brasileira - bancos e empresas, indústrias - que possam pensar e agir estrategicamente. Segundo uma visão de longo prazo.
Stephen Kanitz: São justamente os bancos estaduais que estão quebrando o país, justamente os bancos estaduais, tudo o que o senhor queria.
Roberto Mangabeira Unger: Sim, mas bancos públicos de fomento, de investimento, não bancos estaduais, que são obrigados a ser, a nível estadual, os agentes da política do dinheiro fácil. Agora eu dizia, para terminar de responder a sua pergunta, que há uma segunda revolução que tem que ocorrer nessa parte moderna da economia, que é justamente essa mudança de padrão para não ser apenas esse fordismo atrasado, para não ser apenas a vanguarda do atraso, para poder representar uma indústria de ponta que produza de forma não padronizada, com mão-de-obra altamente qualificada e que, por isso, seja capaz de produzir aquilo que a retaguarda econômica precisa, de acordo com a capacidade de assimilação tecnológica dela. Agora, é claro que essas mudanças econômicas num Brasil moderno precisam ser complementadas por uma mudança na organização social e política.
Caio Túlio Costa: Professor, mas dá licença, só um minuto. Eu acho que o senhor está fazendo uma... O senhor está desejando algo tão perfeito e está esquecendo alguns dados bastante reais. O país está passando por uma depuração muito grande. Se alguma coisa o ex-presidente Collor fez, por exemplo, foi permitir que o capitalismo se reintroduzisse no Brasil. Até o Plano Collor, nenhuma empresa brasileira - nenhuma empresa brasileira! - vivia da sua produtividade. Ela vivia do seu lucro financeiro. Hoje, as empresas estão se reorganizando. Nós estamos enfrentando um desemprego muito grande, a classe média está se empobrecendo, mas as empresas estão procurando viver da sua produtividade. No nosso ramo, por exemplo, que é o ramo das comunicações, as grandes empresas estão, hoje, se depurando para viver da produtividade do seu produto, daquilo que ela produz; é dali que ela vai tirar o seu sustento - dinheiro para pagar os nossos salários, inclusive. Certo? Isso é uma depuração muito grande, quer dizer, é uma coisa que a recessão está trazendo. O capitalismo está sendo introduzido. Isso, que o Mauro Chaves falou, já está acontecendo. Agora, o seu modelo, ele parte de grandes desejos em que pressupõe uma organicidade muito grande, e não existe assim [estala os dedos] num estalar de dedos.
Roberto Mangabeira Unger: Vamos falar do específico.
Caio Túlio Costa: [um pouco exaltado] Então, vamos ver o que é possível! Inclusive, com essa elite que, malgrado ela mesma, está enfrentando, hoje, essa reintrodução do capitalismo no Brasil!
Roberto Mangabeira Unger: Mas vamos falar do específico e depois do geral. Específico: concordo, houve um avanço - modesto! - no grau de concorrência a que estão expostas as empresas do Brasil moderno, com dois grandes limites. O primeiro limite é que essa mudança não ocorreu no contexto de uma reorganização industrial e tecnológica. Não houve essa mudança de padrão tecnológico, que teríamos que alcançar. E, em segundo lugar, a elite brasileira foi compensada, [no] incômodo desse pequeno aumento de concorrência, pela oportunidade de fazer negócios da China com as empresas públicas. Esses são os dois grandes limites. Agora, quando falamos do problema mais geral, eu apresentei essas alternativas econômicas e políticas. Não estou imaginando que é um negócio como a substituição do capitalismo pelo socialismo do pensamento marxista, que é uma mudança total e repentina, que, ou acontece tudo ou não acontece nada. O que eu imagino é que essas reformas estruturais podem ocorrer pedaço a pedaço. E, ao ocorrerem criam estabilidades e oportunidades para outras reformas, criam um jogo de uma dialética de transformação. Na verdade, o nosso pensamento universitário e político continua dominado em grande parte por uma das heranças do marxismo, que é essa idéia [de] que a verdadeira mudança seria mudança total, a substituição de um sistema pronto. E, como essa substituição não é viável - e, se fosse viável seria perigosa -, a não existência da transformação revolucionária acaba sendo um álibi para a prostração. Assim, está sendo o Brasil governado também por ex-marxistas e ex-comunistas que encontram na derrocada desse devaneio revolucionário o pretexto para o conluio com as oligarquias brasileiras.
Jorge Escosteguy: Quem o senhor diria que está governando o Brasil [que sejam] ex-comunistas e ex-marxistas?
Roberto Mangabeira Unger: Não vou fazer ataques personalistas, mas isto...
Jorge Escosteguy: Não, mas...
Jorge Mangabeira Unger: Esta é uma experiência...
Jorge Escosteguy: Eu não consigo imaginar, no governo Itamar...
Roberto Mangabeira Unger: Não, essa não. Todos nós conhecemos, porque esse é o cenário, é a formação típica da pessoa intelectualmente instrumentada na política brasileira. A forma pragmática da mudança é a reforma revolucionária, não é a revolução total.
Mauro chaves: Professor, um pequeno esclarecimento só, com relação a setores. Se eu não me engano, o senhor acha que certos setores estratégicos não podem ser privatizados. O senhor mora num país [EUA], numa democracia onde eu não sei quais os setores estratégicos de produção que não são privatizados, não são da economia privada. As fábricas de foguetes, de equipamento militar, todas elas são, se eu não me engano, empresas privadas.
Jorge Escosteguy: Até penitenciárias.
Mauro Chaves: Até penitenciárias. Se eu não me engano, o senhor disse que há certos setores que não devem ser... devem continuar na mão do Estado; é isso? Quais seriam esses setores?
Roberto Mangabeira Unger: É. Mas eu não usei a terminologia de "setores estratégicos". O que eu disse é que a retaguarda econômica, as pequenas e médias empresas - sobretudo do segundo Brasil, mas também do primeiro Brasil - precisam ter como aliados e parceiros bancos públicos e empresas públicas que produzam para elas...
Mauro Chaves: Que setores?
Roberto Mangabeira Unger: ...que produzam aquelas coisas que elas precisam em todo o espectro...
Mauro Chaves: Exemplo, professor?
Roberto Mangabeira Unger: ...da atividade produtiva. Desde aços especiais a materiais necessários para estrutura hídrica de uma lavoura de alto valor agregado. Se vamos, por exemplo, criar no semi-árido do Nordeste uma lavoura de frutas e hortigranjeiros, vamos precisar de material técnico para aquilo. Tem que ser produzido! Tem que ser produzido em lotes pequenos de forma não padronizada por uma indústria de ponta, por uma visão estratégica de aliança entre a ponta e a retaguarda! É isso que exige a presença de um setor público. Agora...
Mauro Chaves: E não há empresas privadas capazes de abastecer esse setor?
Caio Túlio Costa: Já levou, muito mais do que se imagina, em termos de subsídio, de dinheiro, de...
Roberto Mangabeira Unger: Isto não é um projeto distributivista, é um projeto produtivista.
Jorge Escosteguy: Mas, me parece que a colocação do professor, ela não vai nesse sentido de você distribuir.
[...]: É a mesma coisa...
Milton Lahueta: Ela não vai nesse sentido...
Roberto Mangabeira Unger: Não é uma distribuição de subsídio.
Mauro Chaves: Não está falando em subsídio?
Roberto Mangabeira Unger: Não é uma distribuição de subsídio.
Caio Túlio Costa: É mais do que isso! É muito mais do que isso!
Roberto Mangabeira Unger: Eu estou falando de uma parceria produtiva.
Milton Lauheta: Eu gostaria de pegar esse ângulo e fazer uma colocação para o senhor. Até pelo debate aqui, pelas colocações dos jornalistas, eu lhe faria a seguinte pergunta: o senhor disse que existe um consenso na sociedade brasileira, um ideário, o social-democrata. Até pelas colocações, eu acho que o ideário mais presente é o neoliberal. Quer dizer, isso não é nenhuma acusação, é um dado; essa lógica de que realmente o Estado brasileiro não tem mais nenhum significado para a reprodução econômica e que o mercado, enfim, se emancipou e ele pode se auto-regulamentar. Quer dizer, essa é a lógica que está presente, inclusive, em várias dessas colocações.
Jacques Marcovich: Mas, aí por uma questão ideológica ou por uma incapacidade do Estado em gerir...
Milton Lauheta: Não importa, não importa...
Jacques Marcovitch: Bom, mas, aí, eu acho que...
Milton Lauheta: Eu digo, a idéia que se passa permanentemente na imprensa é a idéia de que o mercado brasileiro está maduro para dar conta desses desafios que nós temos pela frente. Nós concordamos todos que o Estado está falido. Eu acho que, aí, há um consenso entre nós. Mas o que se está colocando como alternativa é a perspectiva de que o mercado poderá por si mesmo dar respostas para esses desafios, que são desafios de vários tempos, inclusive, como o senhor mesmo concordou.
Roberto Mangabeira Unger: De que mercado, nós temos que perguntar.
Milton Lauheta: Agora a questão é de se perguntar: que mercado? Quer dizer...
Roberto Mangabeira Unger: Que mercado, nós temos que perguntar. Porque vamos colocar um problema geral. Que é um problema que está, inclusive, ligado à nossa conversa sobre o direito. A forma convencional do direito de propriedade é a forma do direito de propriedade quase absoluto, no escopo e no tempo. Mas nós podemos imaginar uma outra forma em que os direitos de acesso ao capital se tornam temporários e condicionais. Em que nós privilegiamos o conceito da propriedade, a ampliação do acesso ao capital, e não o domínio absoluto sobre os recursos. Ora, essas formas alternativas de propriedade exigem a formação de agentes, de entidades, de organizações que tenham um caráter misto, público e privado. Que são gestores de fundos sociais e que têm autonomia decisória em relação ao Estado central, justamente para protegê-las do clientelismo político. Então, eu diria que uma política antidualista, essa política de parceria do Brasil, do Estado com o segundo Brasil, exige, como um dos seus instrumentos a formação de todo um nível intermediário de organizações sociais. Que têm caráter misto, público e privado e que atuam num espaço criado por formas alternativas de propriedade. Agora, eu digo: isso que é ampliar a liberdade econômica! É dar aos brasileiros um repertório mais amplo de formas de acesso ao capital. Ampliar a liberdade econômica, não é esquartejar o Estado e entregar os pedaços à oligarquia econômica do país.
Jacques Marcovitch: Sem partidos mais responsáveis não vai se alcançar isso, porque nós estamos falando, o senhor mesmo disse muito bem, [que] precisaríamos despolitizar essa estrutura do Estado. E, para isso, o senhor está mencionando e tem defendido um presidencialismo que, eu acho, não vai ajudar muito no Brasil nesses próximos anos - a menos que o parlamentarismo vingue no plebiscito do dia 21, não vai ajudar muito. Qual o interesse de um presidente de ter partidos melhor estruturados, pelo menos no quadro atual que estou me referindo agora?
Caio Túlio Costa: Eu quero acrescentar um dado: o que me preocupa é o verbo que o professor usou, que eu acho também paradoxal em relação ao seu próprio discurso anterior: é "dar" aos brasileiros.
Roberto Mangabeira Unger: Na verdade, os brasileiros "se darem" através da ação política. Não, porque o dar aí é um atalho para descrever isso. Agora, eu digo o seguinte: esse presidencialismo não é uma solução. O que ele é e foi é a opção menos ruim. Porque o parlamentarismo era a tentativa de concentrar o poder na classe política. Há duas apostas atrás dessa tentativa, uma razoável e outra insensata. É razoável a aposta de que, se os políticos forem responsáveis pelo governo, vão melhorar de qualidade, vão passar do padrão Inocêncio [de Oliveira, então presidente da Câmara dos Deputados] para o padrão Tancredo Neves. Tudo bem. Agora, a outra aposta, que se vá formar no parlamento brasileiro uma maioria que sustente um projeto forte sem pressão plebiscitária de fora, esta aposta é que é insensata. Então, o povo brasileiro matou essa charada e manteve o regime do susto passado nas elites periodicamente pela eleição presidencial. Mas, aí, coloca o problema...
Jorge Escosteguy: Por que esse susto é necessariamente sempre nas elites?
Roberto Mangabeira Unger: Esse susto...
Jorge Escosteguy: Às vezes nem é nas elites, às vezes é no povo [inaudível] Brasil...
Roberto Mangabeira Unger: Esse susto [é] porque a representação política no Brasil é clientelista no segundo Brasil e é corporativa no primeiro Brasil. E não oferece, nos mecanismos concretos na política, a oportunidade para formar uma maioria sustentadora de projetos fortes. A não ser que, protegida por essa pressão popular que vem de fora...
Caio Túlio Costa: O senhor não acha que o voto distrital ajuda isso, professor?
Mauro Chaves: A nossa história latino-americana prova que esse susto, muitas vezes, deu outra coisa; quer dizer, foi muito desfavorável. Então, nós temos experiências, tivemos muitas experiências... O senhor, no começo do programa se referiu ao nacional-populismo; nós tivemos várias experiências nacional-populistas no país e em outros países latino-americanos e isso não resolveu realmente, continuou o país na crise e com interrupções, com regimes excepcionais militares etc. De forma que é um pouco perigoso. Como o senhor disse que esse susto é que propicia o regime presidencialista, é muito bom, mas também pode...
Roberto Mangabeira Unger: É um jogo de alto risco. Mas esse jogo de alto risco que combina a luta pelo poder e pela presidência e pela reforma com a contestação do dia-a-dia é a única alternativa que temos tido ao jogo oligárquico. Então, a tarefa agora é reformar esse presidencialismo e mudar as regras do jogo na política.
Caio Túlio Costa: Mas, professor, no parlamentarismo com um voto distrital, esse susto periódico não seria muito mais fácil de ser aplicado?
Roberto Mangabeira Unger: Não, de forma nenhuma.
Caio Túlio Costa: Por que não?
Roberto Mangabeira Unger: De forma nenhuma, porque, num país como o nosso, altamente dividido e altamente hierárquico, combinar o voto distrital com o monopólio do poder pela classe política é tornar as coisas invisíveis, é fragmentar de tal forma a luta política, que a questão nacional nunca se põe. E ela se coloca no contexto da luta plebiscitária da campanha presidencial.
Caio Túlio Costa: Não entendi, não entendi.
Roberto Mangabeira Unger: O poder, nesse sistema do parlamentarismo e do voto distrital, o poder está dividido em frações pequenininhas, e cada representante está tratando da problemática do seu distrito por vínculos clientelistas num Brasil, ou por vínculos corporativos de apresentação dos interesses organizados no outro Brasil.
Caio Túlio Costa: Não necessariamente, vai depender de quem for eleito, o senhor pode eleger lá em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, um deputado que vá tratar o esgoto em Laranjeiras, mas pressupõe-se que a população eleja o deputado que vá tratar das grandes questões nacionais.
Roberto Mangabeira Unger: É, mas, não necessariamente, mas a nossa experiência tem sido que, nesse lusco-fusco da política brasileira, em que os políticos adotam o mesmo palavrório indistinto, as coisas se tornam mais transparente quando levadas ao âmbito nacional. Que aí se põe as grandes alternativas para o país. Grandes erros podem ser cometidos! Mas também fica muito mais difícil para a elite brasileira controlar o jogo. Agora, eu vejo, então, a manutenção do presidencialismo...
Jorge Escosteguy: Mas, nós temos cem anos de presidencialismo! O senhor acha as elites não conseguiram controlar o jogo?
Mauro Chaves: Cento e quatro.
Roberto Mangabeira Unger: Não, de presidencialismo popular do voto real nós temos muito poucos anos.
Jorge Escosteguy: Cinqüenta, que seja!
Roberto Mangabeira Unger: E anos que deram justamente nessas crises de impasse, nesses sustos que esses quadros dirigentes não agüentam mais e [com os quais] tentaram acabar através da conspiração parlamentarista. Agora, que mantivemos o regime do susto, vamos reformar o presidencialismo e mudar as regras do jogo.
Jorge Escosteguy: Professor. Desculpe, mas o senhor falou em quadros dirigentes; mas os velhos quadros dirigentes estavam com o presidencialismo. Leonel Brizola [então governador do Rio de Janeiro], Orestes Quércia [então presidente nacional do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB], Antônio Carlos Magalhães [(1927-2007), então governador da Bahia]... [todos os políticos citados tem perfis de liderança política em seus respectivos partidos e foram, formalmente, dirigentes históricos dos mesmos]
Roberto Mangabeira Unger: Não...
Milton Lauheta: No parlamentarismo também existem velhos quadros dirigentes, acho que por aí... Até, eu gosto muito...
Jorge Escosteguy: Se o senhor me permite terminar a minha pergunta, eu não estou defendendo o parlamentarismo...
Milton Lauheta: É que eu tinha que... [risos]
Jorge Escosteguy: Eu estou apenas dizendo que, pela colocação do professor, também há esses velhos quadros políticos no presidencialismo.
Milton Lauheta: A colocação que eu lhe faria é a seguinte: eu penso que o seu ângulo para abordar esse problema é muito interessante. Interessante por quê? Nós corremos o risco, [pela] maneira que o debate sobre o plebiscito foi travado, de pensar que a engenharia institucional por si só pode resolver todos os problemas do país. E, aí, nós saímos da lógica do "homem salvador", para a lógica do "sistema salvador". Então, eu acho que essa colocação, ela é muito rica, as colocações que o senhor fez. Agora, a pergunta que eu lhe faria é a seguinte: nós não corremos o risco, também, de, se acontecer uma vitória - tudo indica que ela está selada - muito acachapante do presidencialismo, de todo ímpeto pela reforma institucional que vem se generalizando na sociedade brasileira acabar ficando contido? E aí, ao invés, talvez não façamos nem a mudança "de" sistema e talvez não façamos a mudança "no" sistema. Em suma, a reforma no presidencialismo ficará prejudicada.
Ibsen Spartacus: Eu quero acrescentar isso: o senhor fala em conflitos, mas é como seria possível fazer uma reforma no presidencialismo, senão por meio de alianças? E o senhor também falou ainda há pouco que seria necessário que as esquerdas se unissem para em determinado campo, darem início a essa agenda. Mas, aí, qual seria o conflito entre esquerda e direita?
Roberto Mangabeira Unger: Se nós supusermos que for eleito, na eleição presidencial, um presidente que represente um dos partidos de esquerda e que proponha um projeto forte de mudança, logo em seguida se coloca o problema do presidencialismo clássico, que é o problema do impasse. Então, vamos sucumbir ao impasse ou vamos inventar os mecanismos capazes de resolver o impasse? É claro que um desfecho mais provável, a linha de melhor resistência, é sempre o malogro, é sempre o não inventar. Mas a manutenção do presidencialismo nos colocará mais uma vez diante desse impasse histórico, numa situação em que já fizemos uma certa aprendizagem coletiva e temos pelo menos a oportunidade histórica de mudar essa situação. É isso que eu estou propondo.
Jorge Escosteguy: Mas essas reformas. Quais seriam essas reformas para o sistema presidencialista?
Roberto Mangabeira Unger: Eu defenderia um presidencialismo que desse grande relevo a mecanismos para resolução de impasses entre o presidente que propõe reformas e o Congresso que resiste. Então eu dou exemplo de três mecanismos desse tipo. Primeiro, deve-se fazer uma distinção entre programa de governo e legislação episódica. O programa de governo tem primazia, pois é até registrado antes da eleição na Justiça Eleitoral. Corre com rito especial antes de negociação sobre legislação episódica. O Congresso aceita ou recusa. Se o presidente e o Congresso não se acertam sobre o programa, podem talvez se acertar sobre os termos e a realização de uma consulta popular.
Jorge Escosteguy: Antes das eleições?
Roberto Mangabeira Unger: Não: programa pode ser apresentado antes das eleições, mas o programa vai ser apresentado ao país antes das eleições; e, ao Congresso, depois das eleições.
Stephen Kanitz: Aí, não pode ser mais rejeitado, porque foi eleito com base nesse projeto.
Roberto Mangabeira Unger: Não, mas no regime presidencial, o Congresso pode recusar o programa de um presidente, é um sistema de poder...
Mauro Chaves: Então nós teríamos um plebiscito por semana, se isso acontecesse aqui nesse país.
Roberto Mangabeira Unger: Não, não, não, não é verdade.
Mauro Chaves: A cada impasse...
Roberto Mangabeira Unger: Não é verdade, porque o Congresso e o presidente têm que se acertar sobre a realização e os termos de uma consulta popular. Isso não é tão fácil assim.
Caio Túlio Costa: Esse mecanismo já existe, o da medida provisória.
Roberto Mangabeira Unger: Não, acho que não. Não atrelado a essa idéia de primazia do programa. Agora, se não se acertam sobre a consulta popular ou se o resultado da consulta popular não é decisivo, um terceiro mecanismo: cada poder do Estado, o Congresso e o presidente, deve ter o direito de convocar eleições antecipadas, desde que o poder que convoque as eleições, impondo o risco eleitoral a outro poder, tenha que correr ele próprio esse risco.
Mauro Chaves: O presidente pode dissolver o Congresso?
Roberto Mangabeira Unger: Desde que ele próprio tenha que se submeter a novas eleições. Está entendendo? As eleições são sempre para os dois poderes, os dois poderes, então, dir-se-á: é uma forma híbrida! É uma forma híbrida!
Mauro Chaves: É um "presiparlamentarismo".
Roberto Mangabeira Unger: É! Dir-se-á: é uma forma híbrida de parlamentarismo e presidencialismo, só que...
Mauro Chaves: É original, professor, é original, esse sistema...
Roberto Mangabeira Unger: Só que radicalmente, diferente.
Mauro Chaves: Existe em algum lugar do mundo, esse sistema?
Roberto Mangabeira Unger: Não. Só que radicalmente diferente no conteúdo e nas conseqüências...
Caio Túlio Costa: Na França, é mais ou menos assim; o presidente tem mandato de sete anos... [até 2002; atualmente, é de cinco anos]
[muitos falam ao mesmo tempo]
Jorge Escosteguy: Um minutinho, por favor!
[...]: Não perde o mandato?
[...]: Não.
Roberto Mangabeira Unger: Radicalmente diferente no conteúdo e nas conseqüências desse regime híbrido que estão discutindo aí. Mistura do sistema alemão com o sistema francês. Porque o regime híbrido começou no europeu é o regime que, nas condições brasileiras, condena o governo à fraqueza programática. E esse regime que eu estou descrevendo é o oposto, é uma maneira de acelerar a prática das reformas estruturais. Ora o que é isto, senão um pequeno exemplo da necessidade e da possibilidade de imaginar instituições alternativas.
Jorge Escosteguy: E o senhor acha que essas...
Roberto Mangabeira Unger: E da adequação do pensamento jurídico para ser agente dessa tarefa de reinvenção das instituições.
Jorge Escosteguy: E o senhor acha que essas reformas dessa maneira estão na cabeça de alguma forma das lideranças políticas? Do presidencialismo?
Roberto Mangabeira Unger: Não, o que está na cabeça, agora, de uma parte da elite brasileira, é, no processo de revisão constitucional, impor o presidencialismo congressual, quer dizer, enfraquecer o presidente para criar o pior dos dois mundos.
Caio Túlio Costa: Mas esta atual Constituição já está contra.
Roberto Mangabeira Unger: E, na cabeça de outra parte da elite, está a consciência, o temor antecipado dessa problemática dos impasses. Mas ainda não o desenho de uma solução.
Celso Campilongo: Professor, o senhor tem insistido bastante na necessidade de um revigoramento do Sistema Tributário Nacional, um revigoramento nas políticas públicas. Entretanto, os nossos cursos de direito financeiro, de direito tributário, a própria atividade dos tributaristas brasileiros acabou se concentrando praticamente num ponto: as limitações constitucionais ao poder de tributar. Muito bem. Como conciliar esse impasse? Afinal de contas, qual o papel do pensamento jurídico? Qual o papel dos juristas nessas questões? Controlar o poder do Estado ou instrumentalizar a sua ação?
Roberto Mangabeira Unger: O papel secundário, o papel profissional é reivindicar e esclarecer os direitos dos cidadãos. Tal como postos. Mas há um outro papel que eu salientei nessa nossa conversa, que é ajudar a reimaginar as práticas. Então, tome o seu exemplo aí da tributação. Nós temos que ter uma discussão sobre a forma essencial da tributação. O tributo mais eficiente e mais eqüitativo para o Brasil seria o tributo universal e direto sobre o consumo, que funciona da seguinte forma: o contribuinte prova a renda, como ele prova hoje, ele prova a poupança no sentido amplo. Isenta-se o consumo popular e o tributo incide em escala altamente progressiva sobre a diferença entre a renda e a poupança.
Mauro Chaves: Professor, para fiscalizar isso, realmente, seria muito difícil.
Roberto Mangabeira Unger: Não, não, não. Não tem nenhuma diferença em relação ao imposto de renda.
Caio Túlio Costa: Faço só com o assalariado.
Roberto Mangabeira Unger: Não, espera! Porque a única quantia provada é renda. É do interesse do contribuinte demonstrar a poupança, porque é sobre a poupança que ele não vai pagar. Agora, isso tem duas conseqüências. Primeiro, que a tributação, ao invés de ser inimiga do investimento e da poupança, vira aliada dela. E, segundo, que a tributação incide sobre o que importa, que é a hierarquia dos padrões de vida e a apropriação individual do excedente social.
Caio Túlio Costa: Mas, quem tem dinheiro compra em dólar lá fora, professor.
Roberto Mangabeira Unger: O desejável seria então que...
Jorge Escosteguy: Vai pagar mais?
Roberto Mangabeira Unger: ..que esse imposto sobre o consumo viesse combinado como imposto sobre o patrimônio, sobre a riqueza, que abrisse um caminho em direção a descoberta das fontes da renda. Agora, é claro que a reforma nos mecanismos da tributação precisa andar em paralelo com o investimento na máquina arrecadadora do Estado. E precisa começar com uma providência muito simples, que é pôr duzentas pessoas na cadeia e dar o exemplo das conseqüências da sonegação.
Mauro Chaves: Por que só duzentas? [risos]
Roberto Mangabeira Unger: Eu estou sendo agora, um péssimo realista, por incentivo das suas perguntas. [risos]
Jorge Escosteguy: O senhor foi excessivamente realista.
Marcelo Pontes: O senhor é filiado ao PDT, é muito amigo do governador Brizola. Eu só não entendo como é que o senhor prega esse radicalismo democrático num partido que, segundo os adversários é de um dono só.
Roberto Mangabeira Unger: É, permita que eu explique por que eu optei pelo PDT. Depois que tive a experiência malograda de imaginar que o PMDB, de cuja fundação participei, seria veículo de uma convergência entre as esquerdas independentes e os liberais progressistas. Tive que escolher entre o PT e o PDT. Como disse antes, esses dois partidos, na minha visão deveriam estar juntos.
Marcelo Pontes: PDT e PT?
Roberto Mangabeira Unger: PDT e PT. Porque refletem a divisão do país, em vez de enfrentarem a divisão do país. Agora, tendo que escolher entre o Brasil organizado, o Brasil dos "mauricinhos", e o outro Brasil, prefiro ficar com o outro, porque aí é que está a esfinge. Agora, a esse fator programático decisivo acresceu outro, de ordem psicológica. Eu convivi como assessor do antigo PMDB, à frente da oposição, com esses políticos que agora estão divididos entre os partidos. O que senti na grande maioria deles é que eram e são homens basicamente satisfeitos com o país, com a sua vida, com a sua situação no país, e que adotam esse vocabulário progressista que é a grande fantasia da política brasileira. Em Brizola encontrei o oposto, encontrei o marginal, o revoltado, o garibaldiano [de Giuseppe Garibaldi (1807-1882), guerrilheiro italiano], o carbonário [referente à Carbonara, sociedade secreta revolucionária européia do século XIX que atuava principalmente na Itália] que procura de vez em quando se tornar mais aceitável. E muito mais empatia tive com esse segundo modelo, porque, embora tenhamos experiências radicalmente diferentes, o governador Brizola e eu temos certas semelhanças psicológicas.
Jorge Escosteguy: Quais sejam?
Ibsen Spartacus: O governador Brizola é pragmático?
Roberto Mangabeira Unger: O governador Brizola, para ser franco, tem de vez em quando, se deixado levar por esse "pragmatismo antipragmático", que é a maldição da política brasileira. Nessas ocasiões, tem cometido grandes erros. Mas a trajetória fundamental dele é a trajetória da resistência e é uma trajetória muito voltada para essa problemática da divisão dos dois países, a que eu dou tanto valor.
Jorge Escosteguy: Que grandes erros ele teria cometido, professor, que o senhor mencionou?
Roberto Mangabeira Unger: Houve o erro da aproximação com o Collor, que eu acho que ele compreende hoje. Mas muito mais importante do que isso é o sentido geral da trajetória dele. Quantos homens há no país que têm uma trajetória dessa integridade? De tal forma que se possa fazer uma leitura da biografia deles, quer dizer, não são as palavras, são os atos?
Jorge Escosteguy: O senhor não diria que, ao demorar a se afastar do Collor, ele foi o menos oportunista de todos os políticos?
Roberto Mangabeira Unger: Há muitas razões, que levaram...
Jorge Escosteguy: Ou seja, isso seria uma virtude, não um defeito?
Roberto Mangabeira Unger: Não, há muitas razões que o levaram a isso, e uma foi a analogia - falsa, a meu ver - com as experiências de Getúlio [Vargas, presidente do Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954, que foi deposto por um golpe militar em 1945 e suicidou-se na véspera de outro suposto golpe em 1954] e de Jango [João Goulart, presidente do Brasil de 1961 a 1964, também deposto por um golpe militar em 1964].
Jacques Marcovitch: Mas o senhor... Quando o senhor fala do risco da vingança dos excluídos, eu acho que esse risco já está ocorrendo no Brasil - está ocorrendo em alguns outros países até, e eu acho que, nas periferias das grandes cidades, essa vingança já começou, mas no Brasil, pela proporção dos excluídos, ela é muito presente. Ela é muito visível aqui em São Paulo, mas também no Rio. E, no Rio, se organizou... Os excluídos estão se organizando, entendo que fora do direito. Quando o senhor endossa a política do governador Brizola, o senhor está endossando essa forma de favorecer a organização dos excluídos da forma que estão se organizando no Rio de Janeiro?
Roberto Mangabeira Unger: Eu não entendi essa pergunta. Eu não diria que o ponto forte da atuação política de Brizola seja nem a clareza programática, nem a organização popular.
Jacques Marcovitch: Sim.
Roberto Mangabeira Unger: São pontos menos fortes, são pontos mais fracos da atuação dele. Forte nele é a intuição e a integridade da trajetória.
Jacques Marcovitch: Eu não tenho dúvida quanto a isso.
Roberto Mangabeira Unger: Que leva a essa vocação contestadora.
Roberto Mangabeira Unger: Agora, qual é a prática no Rio que poderia ser transposta para outras cidades brasileiras?
Milton Lauheta: Só uma perguntinha. Pensando a colocação do Jacques - quer dizer, de certo modo, o governador Brizola liberou as ruas do Rio de Janeiro para as camadas subalternas, mas ele não apresentou uma política de incorporação à cidadania. E isso é um problema grave, porque ele deixa essas camadas relativamente liberadas de controle social nas mãos do poder do [jogo do] bicho e do crime. Então essa é uma questão que eu acho...
Roberto Mangabeira Unger: Não, eu não concordo com essa colocação. Não há nenhuma complacência com essas forças criminosas, o que há é uma escassez completa de recursos com uma experiência que Brizola compartilha, em geral, com os governadores brasileiros: que eles têm que enfrentar em seus estados problemas nacionais sem ter recursos nacionais. Esse é um problema comum, um drama comum que os governadores enfrentam no Brasil. Agora, Brizola tem preferido, liberar essas forças desorganizadas quando não pode atendê-las, em vez de reprimi-las como quer a parte reacionária das elites.
Mauro Chaves: Professor, já que o senhor está falando de um presidenciável explícito, gostaria que o senhor, em rápidas pinceladas, também dissesse a sua opinião sobre outros presidenciáveis que estão aí. Como Lula, Quércia, [Paulo] Maluf [então prefeito de São Paulo], Antônio Carlos Magalhães, e se o senhor acha, que é o momento de se precipitar uma campanha sucessória agora, faltando um ano e oito meses para acabar o mandato.
Roberto Mangabeira Unger: Não, não concordo, absolutamente, com a reclamação que diz que precipitar a campanha sucessória é subverter as condições da governabilidade. O projeto de governabilidade só se justifica à luz de um programa de governo. O problema da governabilidade não é que haja críticos ou pretendentes na sucessão presidencial, o problema é que o governo não tem projeto, esse que é o problema da governabilidade. Que é essa falência de projetos e de alternativas.
Mauro Chaves: Mas o senhor não acha que, na relação do governo Itamar com o Congresso, qualquer coisa que ele venha a fazer ou deixar de fazer vai estar na dependência das candidaturas já colocadas nos partidos já colocados?
Roberto Mangabeira Unger: É indispensável que essas candidaturas se ponham. No meu ponto de vista, quanto mais cedo melhor. Porque esse é um dos veículos possíveis para impor uma discussão nacional às elites que não querem ouvir essa discussão. E, na escalada da campanha presidencial, tenderão a prosperar os candidatos mais contestadores. Há esse palavrório, essa neblina densa na política brasileira, e o povo vai fazer um julgamento intuitivo para penetrar essa neblina e ver quem tem mais credibilidade como contestador.
Jorge Escosteguy: Professor, nosso tempo já está se esgotando e eu lhe farei uma última pergunta, aproveitando a discussão sobre a sucessão presidencial, com quem o senhor acha que o povo vai dar o susto em 94? No primeiro turno, para depois realizar o segundo?
Roberto Mangabeira Unger: Você sabe que, na Divina Comédia, do poeta Dante Alighieri [(1265-1321), o maior poeta italiano], o castigo dado aos que fazem previsões é que há uma corda no pescoço virando a cabeça deles para trás. Então, eu não me aventuraria a previsões. O que posso dizer é que eu apoio a candidatura do Leonel Brizola. Se o Leonel Brizola não entrar no primeiro turno e outro representante da esquerda entrar - o Lula - é claro que apoiarei o outro. E creio que o nosso partido apoiará o outro.
Jorge Escosteguy: O senhor acha, o senhor concorda que a tendência...
Roberto Mangabeira Unger: Mas essa sucessão vai ser uma grande oportunidade para o povo brasileiro de mudar esse jogo. E creio que a direita não tem hoje no Brasil nenhum candidato que tenha boa chance de se apresentar ao país...
Jorge Escosteguy: Paulo Maluf, o senhor acha que não tem?
Roberto Mangabeira Unger: ...como contestador. A direita conseguiu emplacar no Brasil candidatos que conseguiram fingir serem inimigos da oligarquia e que tinham tipicamente um perfil psicológico napoleônico. É muito difícil ao doutor Maluf encenar esse papel.
Jorge Escosteguy: O senhor diria que há algum perfil napoleônico na praça?
Roberto Mangabeira Unger: Para encenar esse papel, eu acho que a direita está com falta de um tal personagem. O povo brasileiro tem uma oportunidade, agora, não só de passar um susto, mas de mudar o jogo. E esta sucessão presidencial será uma grande aprendizagem coletiva para todos nós, brasileiros.
Jorge Escosteguy: Bom, de repente pode ser um susto no bom sentido. Nós agradecemos então a presença no Roda Viva do professor Roberto Mangabeira Unger e dos nossos convidados. Lembrando aos telespectadores que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, agora em novo horário: as dez e meia da noite. Até lá. Uma boa noite e uma boa semana a todos.