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Memória Roda Viva

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Dom Paulo Evaristo Arns

25/12/1995

Ao contrariar alguns dogmas do Vaticano, dom Evaristo teve seus poderes de cardeal reduzidos pelo Papa

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Matinas Suzuki: Boa noite. Hoje é Natal, e no Roda Viva desta noite está o cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.

[Comentarista]: Com gestos contidos e fala mansa, nos últimos trinta anos, dom Paulo Evaristo Arns transformou a arquidiocese de São Paulo em um referencial político. Quando foi promovido a bispo auxiliar em 1966, o Brasil começava a viver os anos de chumbo da ditadura, e dom Paulo nunca deixou de cobrar respeito pelos direitos humanos e a exigir a volta das liberdades democráticas. Em 1975, enfrentou a repressão e rezou uma missa na Catedral da Sé em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado em uma cela do DOI-CODI, um órgão ligado ao exército. Também em 1975, dom Paulo ajudou a criar a Comissão Justiça e Paz, que, clandestinamente, abrigava e socorria refugiados do regime militar. Essa atuação valeu vários prêmios e até uma indicação para o Nobel da paz. Às vésperas da volta da eleição direta para presidente, em 1989, dom Paulo teve papel importante como negociador no seqüestro do empresário Abílio Diniz. Catarinense de 74 anos, dom Paulo é padre desde 1945. Viveu em Paris, onde estudou letras na Sorbonne. E trabalhou em Agudos e Bauru, no interior de São Paulo antes de chegar à capital na década de 60. Tornou-se cardeal em 1973, quando o Papa era Paulo VI. Considerado progressista, apoiou a teologia da libertação e, recentemente, disse que a camisinha é um mal menor, contrariando os dogmas do Vaticano. Desde 1988, começou a perder prestígio junto ao Papa João Paulo II, que dividiu a arquidiocese de São Paulo e reduziu os poderes do cardeal. Dom Paulo Evaristo Arns garante que é apartidário. E, por isso, tem liberdade para criticar os políticos. É amigo de Luis Inácio Lula da Silva e de Fernando Henrique Cardoso. Em setembro do ano que vem, o cardeal completa 75 anos e terá que se aposentar de acordo com o direito canônico. Dom Paulo trabalha num livro sobre o regime militar, mas a obra só poderá ser publicada após a sua morte.

Matinas Suzuki: Bem, para entrevistar hoje o dom Paulo Evaristo Arns, nós convidamos: o jornalista Rui Xavier, que é assessor de política do jornal O Estado de S. Paulo; Paulo Sérgio Pinheiro, que é coordenador de estudos da violência da USP; o jornalista José Geraldo Couto, que é repórter da Folha de S. Paulo; Márcia Bongiovanni, que é repórter aqui da Rede Cultura; o rabino Henry Sobel; o jornalista José Maria Mayrink, repórter do Jornal do Brasil. Nós lembramos você que este programa foi gravado, e, portanto, infelizmente, nós não podemos receber as suas perguntas. O Roda Viva é transmitido em rede nacional por 48 outras emissoras de 17 estados brasileiros. Boa noite, dom Paulo.

D. Paulo Evaristo Arns: Muito boa noite.

Matinas Suzuki: Dom Paulo, hoje é uma data importante no calendário cristão e eu queria saber se o senhor tem alguma mensagem a dizer, a passar nesse momento de abertura do programa.

D. Paulo Evaristo Arns: Eu gostaria de dizer a você, a todos os amigos aqui presentes, mas também a todos os tele-participantes, que o dia de Natal para mim é um novo começo. É lançar-se de novo para a aventura da vida, é vivê-la plenamente, é aceitar a crítica dos outros, mas também é colaborar para que toda a humanidade encontre afinal um ideal comum, que é o ideal da tolerância, que é o ideal da paz. Mas também o ideal de levar os pobres a participarem, a não ficarem à margem da sociedade, nem à margem do caminho da vida, mas de eles caminharem conosco porque paz foi anunciada no Natal, paz foi anunciada na hora de despedida de Jesus, e paz é o sentido de toda a Bíblia, desde o começo da Bíblia do livro do Gênesis, até o livro do Apocalipse, que nós aceitamos como cristãos, é a paz que passa pelo coração dos homens, passa pelo desejo da humanidade e deve levar a uma sempre nova definição. E a definição para o tempo de hoje nos foi dada muito bonita, me parece que o senhor vá dizer assim, não. Pelo Papa Paulo VI, dizendo: “Paz é a caminhada comum e que ninguém fique marginalizado. E que todo mundo possa participar dos bens da terra para chegar à felicidade total com Deus na eternidade”. Então eu espero que todos os meus queridos ouvintes sintam esse Natal como um dia de paz, mas também como um dia de novo começo da caminhada para um tempo melhor no Brasil, no mundo e um tempo melhor para os pobres, como para todas as demais pessoas que possam colaborar dentro desse momento da história tão importante que vivemos no dia de hoje. Então, feliz Natal.

Matinas Suzuki: Feliz Natal para todos nós. E você também de casa. Dom Paulo, o senhor está em uma época com datas bastante importantes, atravessando um período de datas importantes. O senhor tem 50 anos de ordenação, o senhor tem 25 anos de iluminação como arcebispo de São Paulo, o senhor completa 75 anos o ano que vem. Qual é, nessa trajetória do senhor, quais foram os momentos mais alegres, mais... O que o senhor guarda de melhor e qual é, enfim, a vontade de algumas coisas que o senhor gostaria de ter feito e o senhor não conseguiu fazer nesse período?

D. Paulo Evaristo Arns: Primeiro, os momentos mais alegres, né? Os momentos mais alegres eu achei que foram aqueles que eu passei com os jovens. Eu fui professor do secundário, fui professor de universidades e convivi também, durante ao menos 20 anos, com universitários e com pessoas que iam se formando na vida e iam mostrando, assim, de que o homem é capaz na existência, sobretudo de criar novas esperanças e despertar aquelas utopias que a gente diz que são sempre irrealizáveis e, no entanto, nós sempre estamos a construí-las. Então eu acho que esses foram os momentos mais alegres. Mas, há um outro ponto que eu nunca gostaria de esquecer na minha vida, até nas horas mais difíceis e tristes me confortaram. Foram dez anos e meio que me foi dado trabalhar nas favelas de Petrópolis, ou seja, no estado do Rio. Eu tinha sete favelas, e passava três dias por semana nelas e nunca vi um crime em dez anos e meio.

Matinas Suzuki: Em que ano? Em que período?

D. Paulo Evaristo Arns: Isso foi exatamente de 1955 a 1966. Foram os anos antes de vir a São Paulo como bispo auxiliar e depois como arcebispo. Foram esses dez anos e meio que me prepararam para vir para cá. Eu passava três dias por semana nas favelas e devo dizer: a solidariedade daquela gente das favelas me impressionou tanto que eu estava pedindo aos meus superiores para eu morar no meio deles e terminar a minha vida servindo aquele povo simples para os quais eu pude construir, ou com os quais eu pude construir três escolinhas e pude construir uma série de outras coisas, e, sobretudo, de buscar junto a eles sempre de novo a esperança. Foram momentos de grande alegria. Agora, momentos de aprendizado, do que é a vida, foi realmente a Sorbonne. Eu estive cinco anos na França e convivi com os prisioneiros de guerra, que voltavam da Alemanha torturados, com o braço cortado, com perna amputada, com feridas em todo corpo, mas, sobretudo machucados na alma, no orgulho francês. E convivi com esses duzentos colegas na mesma classe, durante cinco anos e posso dizer que eles me prepararam para a vida. Foi também o grande momento da produção literária de [Jean-Paul] Sartre, de [Simone de] Beauvoir, de [François] Mauriac, de [Fernand] Braudel, e de tanta gente. E todos os dias a gente saía da Sorbonne e ia para as discussões e podia dizer assim: “A vida é realmente um desafio! É preciso preparar-se para ela, porque ela é brava”.

Rui Xavier: Dom Paulo, o senhor falou em produção literária. Esse seu livro sobre ditadura... O que vai constar desse livro? Qual é a grande revelação que o senhor vai fazer nesse livro?

D. Paulo Evaristo Arns: O livro sobre a ditadura, eu ainda não escrevi [risos]. Eu escrevi um livro sobre a tortura. Quer dizer, Tortura nunca mais [alusão ao nome do livro]. Essa Tortura nunca mais foi realmente um trabalho de seis anos de atenção constante, copiando todos os processos e tirando dos processos tudo aquilo que pudesse revelar o que se fez no Brasil naquele tempo contra a dignidade humana e contra os direitos humanos. E foi feito por um grupo muito corajoso e, afinal, foram dois redatores que terminaram o livro e foi lançado. Agora, sobre a ditadura, eu só escrevi um fichário e nunca publiquei e não sei se eu vou publicar não.

Rui Xavier: Por quê?

D. Paulo Evaristo Arns: Porque eu não sei se vale a pena agora, nesse momento, a gente suscitar no povo brasileiro essas idéias e etc., quando nós precisamos agora de muita coragem, muita esperança, de muita novidade. Eu acho que também precisamos de muita criatividade, etc. E talvez a recordação desses fatos que são, em geral, muito pesados, talvez não acorde o pessoal.

Paulo Sérgio Pinheiro: Dom Paulo, o senhor falava do novo começo do dia de Natal. Eu, repassando sempre a sua trajetória, fico me perguntando e olhando aquele jovem franciscano [aponta em direção ao vídeo inicial, em que foi apresentada a trajetória de dom Paulo], que eu gostei demais da foto. Eu fico me perguntando onde que o dom Paulo, referência de direitos humanos, referência da nossa coragem dos anos 70, quando que esse dom Paulo começa, porque, o senhor coincide a sua sagração como bispo nos anos 60, e nos anos 70 que o senhor se torna arcebispo. É o ponto alto do nosso estado policial. Eu queria saber quando é que o dom Paulo de hoje começa. Quando ele está no começo dessa sua articulação com todos esses temas.

Paulo Evaristo Arns: Eu acho que dom Paulo começa como Jesus começou: na hora do nascimento [risos], no Natal . Ele teve uma mãe que foi muito corajosa [com ênfase]; além disso, foi artista: tocava violino e cantava muito, muito bem. Nós acabamos de lançar um livro sobre ela de 250 páginas e os treze filhos dela, fora os dois adotivos, os treze filhos dela escreveram sobre ela e eu acho que começou aí, com a mamãe, e já publicamos um livro sobre o tempo no tempo do pai. Ele foi quatro anos mais velho que mamãe, então completou 100 anos faz quatro anos. E nós publicamos o livro sobre ele. Eu acho que começou no berço. Começou lá, na mata virgem. Eu nasci a 50 metros, quem sabe, [Forquilhinha – observação de Paulo Sérgio Pinheiro sobre a cidade natal de dom Paulo], da mata virgem. E aí é que nós aprendemos a respeitar a liberdade e, sobretudo, a trabalhar juntos, a lutar juntos como pessoas responsáveis pela sua própria ação e pela ação do grupo ao qual pertence.

Márcia Bongiovanni: Dom Paulo, o senhor ficou conhecido por levantar a bandeira dos direitos humanos e pela luta contra a ditadura militar. Hoje, o que move o senhor? É a luta contra a injustiça social?

D. Paulo Evaristo Arns: Não. O que me move são quatro pontos fundamentais, e foi muito bom você perguntar isso. Esses quatro pontos, eu os guardei foi de uma encíclica muito célebre chamada Pacem in terris, paz na terra, onde o Papa diz - João XXIII, que foi o Papa mais bondoso da história - ele diz assim: “Para uma sociedade se manter, é preciso que ela tenha: em primeiro lugar, justiça social. E pela justiça social, a gente tem que bater-se a vida inteira. Segunda coisa, ela precisa de solidariedade”. Então, é preciso que a nação sinta que a nação é responsável, não só os governantes, não só uns poucos. “Em terceiro lugar, ela precisa da verdade”. Então, tem que acabar com a corrupção, tem que acabar com a mania de política só para envolver mais e para, quem sabe, confundir mais. Em quarto lugar, a grande coisa mesmo que ele ressaltava era a liberdade. Ter a liberdade, mas respeitar, sobretudo, a liberdade dos outros. Então, eu acho que esses são os pontos que devem mover a gente no tempo novo e devem lançar o Brasil agora para frente.

José Maria Mayrink: Dom Paulo, o senhor defendeu e até arriscou a vida em defesa de pessoas que eram perseguidas durante a Ditadura Militar. Não só o senhor, mas um grupo muito numeroso com o senhor. Passou a Ditadura Militar, mas, pelo que se sabe, a tortura continua. E continua nos presídios, nas penitenciárias, nas casas de detenção. O senhor, alguns dias antes do Natal, visitou, celebrou a missa na casa de detenção. A Igreja e as pessoas que defendiam os direitos humanos dos presos políticos têm hoje a mesma audiência, a mesma força em defesa dos presos que estão lá morrendo e sendo torturados na casa de detenção e em outras penitenciárias ou em xadrezes do país?

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe que isso é um tema que já foi debatido na universidade católica? E nós até organizamos uma semana inteira e alguns de vocês devem ter participado naquela reunião. E nós chamamos especialistas da Europa, sobretudo da Holanda, que era um país que conhecidamente estudava muito a condição dos presos e nós chegamos à conclusão que o Brasil realmente está no fundo do poço quanto ao tratamento dos presos. Em primeiro lugar, a injustiça de prender. Houve um secretário de segurança, que hoje é deputado federal e até é chefe do partido dele dentro do nosso... [esquecendo-se do termo], de Brasília, como é que chama o...[tentando lembrar-se]?

José Maria Mayrink e outros entrevistadores: Congresso [ao mesmo tempo].

José Maria Mayrink: Deputado Michel Temer.

D. Paulo Evaristo Arns: Isso. Dentro da Câmara de Deputados. E ele me disse como secretário de segurança que 91% das pessoas presas não cometeram senão furto. Quer dizer furto, nem roubo. Portanto, tiraram até daquilo de que necessitavam para comer, para sobreviver. Portanto, é uma injustiça, 91%. Hoje eu vi até que alguém me disse que eram 96% que estavam lá presos porque tinham feito, tinham aprendido a sobreviver com jeito, com aquele jeitinho e tinham sido, quem sabe até, presos em uma hora assim de muita fome, de muita miséria, de muita revolta contra a sociedade. “Então era preciso que eles saíssem de lá o quanto antes, porque lá é uma escola de crime”, acrescentou ele. Aliás, ele era professor da PUC [Pontifícia Universidade Católica] naquele tempo. Então, eu me pergunto: “Será que isso pode continuar”? No dia 20, quando eu celebrei a missa na penitenciária, ou melhor, na detenção, aí eu pensei durante toda missa: “Ora, eu podia estar aqui no lugar deles”. Havia muito mais motivo de eu ser preso do que eles serem presos, se 91 só furtaram. Então, que ao menos esses possam viver em liberdade e possam ter trabalho. Possam ganhar a vida com dignidade e possam levar o Brasil para frente. Eles estão é gastando o dinheiro do povo lá dentro e revoltados com o que aconteceu com eles. Então, é preciso melhorar, É preciso acabar com essa detenção. Essa detenção é para São Paulo uma vergonha nacional e internacional. É a hora de mudar o sistema carcerário e de dizer: “Os direitos humanos exigem que cada qual possa, de fato, ser gente”! E ser gente não é estar lá na cadeia por um motivo de sobrevivência, simplesmente de sobrevivência pessoal, sem ter feito a mínima ofensa a outras pessoas.

José Maria Mayrink: Aí o senhor é acusado de ser defensor de bandidos. Como é que o senhor reage a isso?

D. Paulo Evaristo Arns: Ah, sim. Isso também foi uma acusação que fizeram a Jesus, não é? Que ele estava sempre com as meretrizes e os malfeitores, etc. Até para mim, eles até deram um título mais bonito. Bandido, né [risos]. A gente joga, brinca de bandido, etc., mas, para Jesus, disseram que ele estava entre meretrizes e pecadores. E isso é muito pior, não é? Eu acho que não faz mal eu defender esses que furtaram porque tinham fome. Meu Deus, um dia nós vamos ser interrogados na eternidade segundo o Evangelho de São Mateus, capítulo 25, versos 31 e seguintes: “Eu tive fome e você não me deu de comer em São Paulo. Eu tive fome e você me deixou com fome. Você me pôs na cadeia em vez de me dar um trabalho para eu merecer aquilo que eu devo”. Hoje é dia de Natal. Hoje é o dia de repartir. Vamos repartir! Repartir e partilhar sempre. E muito obrigado por essa pergunta, porque eu acho que a reforma carcerária tem que ser feita imediatamente para o povo se convencer de que quem está na cadeia não é sempre bandido, não. Os bandidos estão aqui fora, quem sabe mais numerosos do que lá dentro.

[Márcia Bongiovanni começa a perguntar algo e Matinas Suzuki a interrompe, dizendo]: O rabino estava... Desculpa... rabino, por favor.

Henry Sobel: Dom Paulo, querido dom Paulo...

D. Paulo Evaristo Arns: Oi, meu rabino, você está aí, então nós podemos conversar...

Henry Sobel: Querido dom Paulo, nós judeus estamos passando por uma fase difícil, uma fase de divisão interna. Ortodoxos liberais, extremistas moderados, eu sofro críticas por parte dos meus correligionários, por ser liberal. O senhor certamente deve enfrentar a mesma situação. A minha pergunta, como amigo fiel que eu sou: até que ponto isto prejudica o seu trabalho?

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, o senhor mesmo chamou a atenção, rabino Sobel, faz pouco tempo, que nós estamos no ano da tolerância, mas que essa tolerância não deve ser covardia, fugir dos desafios, mas enfrentar os desafios. Eu acho que o maior desafio para nós que somos religiosos, nós dois, o maior desafio para nós é unir as religiões. Eu tomei parte em quatro grandes congressos inter-religiosos internacionais, com judaísmo, islamismo, o budismo, hinduísmo, etc., presentes. Em todos eles, nós lutávamos para uma união. Para nós termos as idéias comuns, mas também respeitarmos as diferenças de cada credo para assim nós podermos viver não só num idealismo grande, mas também num pluralismo que enriquece e enriquece o povo do mundo inteiro. Por isso eu fico muito grato por essa pergunta, e essa pergunta eu acho que eu posso respondê-la dizendo: isso não me prejudica não. Isso é um desafio, e o desafio provoca energias e acorda a gente para a realidade. A realidade é esta: o mundo está dividido. E é preciso que a gente una o mundo não apenas pela técnica, mas que a gente una o mundo pela cultura, pela amizade, e, sobretudo, pela solidariedade e tolerância.

José Geraldo Couto: Dom Paulo, o senhor, em uma entrevista à Folha de S. Paulo na época da Semana Santa, o senhor se declarou um pouco decepcionado com as primeiras atitudes, os primeiros rumos do governo Fernando Henrique Cardoso, no qual o senhor nutria muitas esperanças. Agora, passado quase um ano de governo Fernando Henrique, eu queria saber se a sua avaliação mudou. Como é que o senhor está vendo essa gestão do Fernando Henrique Cardoso?

D. Paulo Evaristo Arns: Pois é, eu fui perguntar isso a ele mesmo [risos]. Na semana passada ele me deu o prêmio no qual, aliás, o rabino Sobel trabalhou muito para que eu ganhasse esse prêmio. Muito obrigado por todos aqueles que me atribuíram esse prêmio, e eu tive ocasião de andar com o Fernando Henrique e disse para ele: “Olha, eu vejo duas coisas: primeiro, o senhor está mais nervoso do que antes” [risos]. “O senhor está respondendo aos jornalistas assim, de vez em quando, com uma veemência que o senhor não costumava usar quando estava nos seus melhores dias, e quando nós trabalhávamos debaixo da tortura e debaixo da ameaça constante de o senhor ser preso e de eu sofrer também. E a segunda coisa, eu gostaria de saber: quando é que começa o seu trabalho [risos] em favor da reforma agrária, dos que não possuem nada, da justiça social, etc”. Ele disse: “Pois é, o primeiro ano foi um ano de contradições porque eu trabalhei para firmar as bases. Agora, daqui para frente, tem que vir as realizações”. Eu espero que essas realizações sejam em favor de todo o povo, e particularmente daqueles que foram prejudicados até hoje, e que essas realizações acabem beneficiando até aqueles que não acreditam na reforma agrária, em todas as outras coisas, porque a reforma agrária deve vir de tal maneira alicerçada na técnica, e também na colaboração de todos, que a gente possa dizer: “não, é assim que se constrói uma nação, com o trabalho de todos”. Ele mesmo concordou com isso plenamente, eu espero que ande por esses caminhos porque, faz poucos dias na Ásia, ele afirmou, foi na China exatamente, ele afirmou assim: “Olha, os chineses que são 1 bilhão e 200 milhões, eles conseguiram trabalhar não só para aumentar a entrada bruta, mas também para dividir. Para dividi-la entre os pobres”. Então, me parece que aí está um caminho novo a ser aberto e que é bem conforme o dia de Natal. O dia de Natal, o dia da solidariedade, o dia da amizade, o dia de respeito à pessoa humana, o dia de todos se sentirem irmãos uns dos outros.

Matinas Suzuki: Dom Paulo, o senhor tem algum aspecto positivo nesse primeiro ano do presidente Fernando Henrique Cardoso?

D. Paulo Evaristo Arns: Algumas coisas que sejam especialmente marcantes nesse tempo do Henrique Cardoso. Bem, o que me pareceu mais interessante nesse tempo de Fernando Henrique Cardoso foi o pensamento que orientou toda a política. O pensamento de unir quanto possível para que o povo também sentisse que é responsável. O que faltou nos outros governos é ter a cobertura do povo. Não ser eleito, mas ter a cobertura do povo. Não ir perdendo. Ele perdeu, é verdade, um tempo. Mas se esforçou para ir à televisão, para responder a todo mundo, para se comunicar, para... Eu disse para ele que ele precisa comunicar muito mais ainda. E precisa ter bons comunicadores em torno de si. O senhor podia mandar essa turma que está aqui hoje [risos].

Matinas Suzuki: Aliás, nós estamos tentando...

Rui Xavier: Dom Paulo, deixa eu fazer uma questão com o senhor, que a gente estava até conversando lá fora, sobre a ética da política hoje no Brasil. Vamos pegar um exemplo, essa questão da “Pasta rosa”. A imprensa tem divulgado, O Estadão tem divulgado muito isso, nós temos divulgado muito isso lá. Não existe - e o senhor estava falando do Presidente da República - todos os políticos ou todas as autoridades brasileiras deram como justificativa o fato que isso não tem importância, a questão da Pasta Rosa, de ter nomes ali como o presidente do congresso, um ex-presidente da República, o presidente da Câmara, de senadores, enfim, recebendo dinheiro de bancos para a campanha, por baixo da mesa, etc. E as autoridades brasileiras alegam que isso daí não tem nenhuma importância, porque não é o tentar minimizar o problema, dizendo que isso daí não tem nenhuma repercussão legal. Legalmente isso daí não tem nenhuma repercussão. A lei não pode fazer nada contra isso. Como o senhor vê essa questão da ética na política hoje? É legítimo esta coisa das campanhas eleitorais, os empresários darem dinheiro para político, que depois vai defendê-los no Congresso... Como é que é a Igreja, o senhor especialmente, vê isso?

D. Paulo Evaristo Arns: O senhor mesmo já deu a resposta, né, dizendo que a ética é muito mais ampla do que a lei. A lei se baseia e deve basear-se sobre justiça, portanto, sob a ética. E, se o comportamento de uma pessoa comum na sociedade deve ser bom, a ponto de prenderem até aqui em São Paulo, no Carandiru, aqueles que furtaram e nem roubaram, então, se o indivíduo, o cidadão, tem que comportar-se bem, quanto mais então aqueles que são eleitos para serem os animadores de todos aqueles que trabalham para o bem comum. Porque a política tem que ser a arte de provocar e produzir o bem comum, e, dentro das normas humanitárias e dentro das normas da justiça, dentro das normas que são aceitas pela sociedade inteira. Eu acho que nenhuma coisa, nenhum crime que foi cometido deve deixar de ser analisado, e também deve merecer o julgamento ao menos do povo, se não teve a possibilidade de julgamento a partir da lei, ao menos o povo deve poder dizer: “Eu apoiei, eu apóio”. Mas esse caso eu acho que nenhum brasileiro aprova. Que se ganhe dinheiro por baixo do pano para fazer uma propaganda ilícita. Hoje e ontem ainda não havia lei para declará-la lícita. Então, eu sou muito a favor da ética em todas as situações da vida. A ética é realmente aquilo que salva a humanidade e faz com que ela possa progredir unida. Se nós não tivermos ética, nem na vida particular, nem na vida familiar, nem na vida do Estado, nós não teremos progressos autênticos. Será sempre uma ficção, será sempre, quem sabe, uma construção feita de, talvez de areia, sem cimento.

Paulo Sérgio Pinheiro: Dom Paulo, nesse balanço, seguindo um pouco a linha do Matinas do balanço, quer dizer, o senhor não acha que já que estamos no final do ano, a instalação da comissão dos desaparecidos, a própria vocalização maior pelos direitos humanos, o próprio prêmio que o senhor recebeu, o senhor não acha que isso pode sinalizar para as instituições brasileiras e para os estados? Porque os governadores... parece que não existe os direitos humanos. Em muitos estados, os governadores, é como se nós não tivéssemos obrigações a respeitar internacionalmente. O senhor, no balanço, o senhor não registraria isso como sinais positivos, ainda que falte muito?

D. Paulo Evaristo Arns: Foi o motivo porque eu aceitei o prêmio nacional. E também foi o motivo porque eu aceitei o prêmio da parte do [jornal] Estado de S. Paulo, que apóia os direitos humanos, porque chamou alguém da comissão de direitos humanos para ser secretário da justiça, e outro para ser secretário da segurança. Então, eu imagino que, dentro do Estado de S. Paulo, exista um momento, uma conscientização, e o senhor tem grande parte do mérito desta conscientização, e muito obrigado por esse trabalho. Mas eu gostaria também de dizer que eu estou voltando de Alagoas, onde estive, há seis dias atrás e, no dia 19, eu verifiquei lá que deram um prêmio para um trabalhador, que se distinguiu justamente pela defesa contra os direitos humanos, ou seja, pela luta em favor da tolerância dentro da sociedade. Então, ele se chamava Paulão, e eu era o Paulinho ao lado dele, e nós dois fomos agraciados naquela noite. E o prefeito participou e fez um belo discurso sobre isso. Eu espero que essa conscientização na qual toda a Comissão de Justiça e Paz da arquidiocese de São Paulo está trabalhando, e vocês da Comissão Teotônio Vilela, que, aliás, é de Alagoas, estão trabalhando. Eu acho que é isso que vai levantar a democracia no Brasil e vai dar um sentido grande à nossa história. Sem direitos humanos nós vivemos na mediocridade. E, no respeito aos direitos humanos, nós crescemos como pessoas e crescemos também como nação.

Márcia Bongiovanni: Dom Paulo, eu queria falar um pouquinho sobre os direitos das crianças. A Rede Cultura fez uma série de reportagens especiais sobre crianças, e um dos temas foi o trabalho infantil. Nós estivemos no sertão da Bahia e encontramos lá uma situação muito triste: encontramos crianças a partir dos cinco anos de idade trabalhando pesado em pedreiras, no sisal e em olarias para ganhar centavos por semana. Como é que o senhor vê essa questão do trabalho infantil? Eu gostaria de saber se a igreja tem alguma ação em termos de pastoral para tentar minimizar esse problema, essa injustiça.

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, foi há 12 anos atrás, que me convidaram a participar em uma comissão internacional independente para questões humanitárias das Nações Unidas. Nós éramos 30 pessoas e eu era o único religioso. Então, na hora em que se abriu a sessão e ela foi aberta pelo secretário geral das Nações Unidas em Genebra, eu fui chamado de lado, assim, pelo diretor da Unicef, e ele me perguntou: “Por que vocês não trabalham mais pelas crianças no Brasil”? Eu disse: “Mas eu estou disposto a tudo! O senhor pode ajudar, o senhor é diretor da Unicef”. Então ele disse: “Olha, – e foi tirando do bolso os remédios caseiros e tudo mais que a gente usa para as crianças – o senhor não quer começar em São Paulo”? Eu disse: “Quero. O senhor me dê as coisas e me dê também a possibilidade de trabalhar”. Eu levei tudo que pude levar, mas entreguei para minha irmã, que é médica e pediatra e fez também um curso especial aqui em São Paulo. Então, entreguei tudo para ela. Hoje, nós temos na Pastoral da Criança 2 milhões 750 mil que são beneficiados, crianças de zero a seis anos. Agora, o que era importante - e agora vem a resposta à sua pergunta - o que era importante era, depois desses seis anos até aos 18 anos, nós termos também uma consciência nacional de que é preciso uma escola, mas uma escola em que se forme a pessoa integralmente. Dom Luciano abriu uma escola, na favela Esperança. Abriu uma escola dessas para mil crianças da favela. Olha, eu fui lá com o cardeal de Milão, o cardeal Martini, e ele entrou naquela favela, ele me disse: “Isso nem na Itália se pode imaginar como é bem feito”. Tendo de manhã as aulas, à tarde outro grupo tem aulas e os outros têm estudos e tem a sopa no meio e dom Luciano aparece de vez em quando, e tem duas pessoas voluntárias aí e as outras são remuneradas, e dá para fazer tanto com tão pouco para as crianças crescerem depois dos 6 anos, até os 15 anos, os 18 anos, tendo uma vida de criança, podendo brincar”. Uma outra história que me ocorre, mas esta foi muito séria, é que todas as religiões foram chamadas pelo diretor da Unicef, que faleceu há pouco de câncer. Ele nos chamou para Princeton, lá uma cidade próxima à Nova Iorque, e chamou todas as grandes religiões. Eu até fui com um colega seu, um colega do Rio, um homem inteligentíssimo. Fui com o colega para lá. Éramos os dois únicos brasileiros, mas estava lá o islamismo, estava lá o hinduísmo, estavam lá todas as religiões representadas. E, no final de toda a nossa reflexão sobre a criança, nós chegamos ao ponto de ver as crianças dos diversos continentes diante de nós. Trouxeram de todos os continentes as crianças, e elas nos disseram obrigado e por quê. E eu perguntei à criança menor, talvez tivesse oito, nove anos, eu perguntei: “E o que mais impressionou você nessa nossa proposta para o estatuto da criança e do adolescente”? Ela respondeu com um sorriso muito bonito dizendo: “É o direito de eu ser criança. E de eu poder brincar, e de eu poder comer, de eu poder estudar, de eu poder aprender”. Então eu acho que nós podemos continuar.

Matinas Suzuki: A esse respeito, tem havido aí uma polêmica sobre a questão do ensino religioso obrigatório. Qual é a visão do senhor sobre essa questão?

D. Paulo Evaristo Arns: Em primeiro lugar, eu gostaria de fazer uma pequena correção. Não é o ensino religioso obrigatório. É a obrigação de permitir a liberdade a todas as religiões de ensinarem a sua religião às crianças que quiserem, ou às famílias que quiserem. Portanto, é um ensino livre. Realmente a liberdade de aprender o essencial da própria religião lá dentro. A única coisa da qual nós precisamos nos livrar, é de nós fazermos aí uma separação ou uma contradição de uma religião com a outra. Porque nós experimentamos durante 25 anos, o tempo que eu sou arcebispo de São Paulo, nós experimentamos esse ensino religioso em todas as escolas aqui da capital que quiseram, e todos nos reunimos a cada ano, eu estou no meio dessa reunião para fazer o balanço. E o balanço dos espíritas, o balanço dos judeus, o balanço das diversas religiões é sempre positivo. Foi muito engraçado que a melhor apresentação deste ano na nossa reunião comum foi sobre a paz. E foi feita por uma professora espírita, que dava, então, o ensino lá naquele momento. Então eu acho que um ensino feito ecumenicamente, em plena liberdade, com respeito a todos, é um direito humano. Direito que a criança tem de ser bem informada, informada por pessoas bem instruídas também e com boa técnica. Então eu acho que, nesse ponto, a gente deve distinguir muito. Não falar de ensino obrigatório, mas falar da obrigação do estado de permitir que todo mundo tenha a liberdade de conhecer a sua religião e conhecê-la bem.

Matinas Suzuki: O senhor acha que, operacionalmente, há condições de fazer, de se respeitar esse ecumenismo?

D. Paulo Evaristo Arns: Nós fizemos isso durante 25 anos aqui em São Paulo, e foi numa paz total, numa alegria tão grande. Eu gostaria até que todo mundo estivesse presente quando há esta revisão anual e na qual eu participo durante três horas numa tarde. E foi agora há pouco tempo, no final do ano, que nós fizemos essa revisão. Então isso já existe em São Paulo. Agora, nós estamos querendo que exista para todo o estado de São Paulo, porque está na Constituição, tanto federal quanto estadual.

José Geraldo Couto: Dom Paulo, o Darcy Ribeiro, ele costuma dizer que, graças principalmente à influência dos cultos africanos no Brasil, o catolicismo que se desenvolveu aqui popularmente, é um catolicismo festeiro e santeiro, né, segundo ele. E ele exalta, como sempre ele vê o lado positivo das coisas que acontecem por aqui, ele exalta o caráter de tolerância e de riqueza desse catolicismo popular. Mas, por outro lado, esse catolicismo festeiro, santeiro, ele não teria também uma certa fragilidade, uma certa superficialidade, quer dizer, o católico brasileiro não seria mais supersticioso do que propriamente religioso? Isso não explicaria a facilidade com que muitos católicos deixam a religião, a igreja católica, em troca de outras correntes, ou a do espiritismo, ou a do candomblé, ou agora, dos evangélicos?

D. Paulo Evaristo Arns: Pode ser que a tolerância faça com que uma pessoa chegue à consciência de que uma outra religião satisfaça mais aos desejos íntimos dela. Isso é possível. Mas eu tive uma reunião ontem, é... foi ontem, no dia 24. É, foi ontem, com representantes negros, e, curiosamente, nós tínhamos gente do candomblé, e especializada, também gente especializada em candomblé. Mas todos eram negros. Eles vieram me ver, para saudar para o Natal e para agradecer também por ser chamado o “Cardeal Protetor dos Negros” [risos]. Por quê? Porque nós formamos mais de 150 grupos de estudo dos negros para verem o seu passado. Para saberem o que realmente brotou do fundo da alma africana para dentro do Brasil, e que foi depois ou esquecido, ou, quem sabe, muitas vezes, mutilado. Então, eles estavam estudando, estão estudando isto até o dia de hoje. Estava presente também um diretor da faculdade de teologia, negro, que foi nomeado por mim, o primeiro da história, que tem, aliás, uma profissão muito especial, justamente porque é negro e hoje é vigário da Querupita, pode ser até que ele esteja nos escutando no momento em que nós estamos aqui reunidos no dia de Natal. Eu gostaria de dizer que, se houve alguma influência, digamos assim, negativa de não ter convicções profundas, houve também uma grande vantagem. É a vantagem de nós sermos tolerantes, amigos uns dos outros e de nós respeitarmos as convicções alheias. Os negros são muito ligados a nós pelo coração. Se eles me chamaram e me chamam sempre de novo de “Cardeal Protetor dos Negros”, é porque eu acho que a história deles não foi estudada, porque, quando nós, por exemplo, estudamos o batismo, que vem de velha tradição do judaísmo, quando nós estudamos o batismo, também estudamos o candomblé. O candomblé tem uma iniciação também. É uma iniciação prolongada, muito mais bem preparada do que a nossa. Então eu dizia a eles: “Nós precisamos é aprofundar esses ritos para ver o que temos de comum lá dentro e cultivar aquilo que temos de comum”. E, quem sabe, então, nós também, trocar as idéias, nos enriquecermos uns aos outros, e, certamente, correspondermos mais à religião inculturada, que é o ideal para o dia de hoje.

Matinas Suzuki: Dom Paulo, eu pediria licença para o senhor para a gente fazer um breve intervalo e a gente volta daqui a pouquinho...

D. Paulo Evaristo Arns: Como o senhor é bom, como o senhor é bom. Vai dar um descanso para os nossos telespectadores.

Matinas Suzuki: Não, para o senhor poder descansar um pouquinho também.

D. Paulo Evaristo Arns: Muito obrigado.

Matinas Suzuki: E a gente volta daqui um pouquinho para o segundo tempo da entrevista de hoje com o cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Até já.

[intervalo]

Matinas Suzuki: Nós voltamos com o Roda Viva que hoje entrevista dom Paulo Evaristo Arns. Lembramos que como esse programa foi gravado, nós não estamos recebendo perguntas, nem por fax, nem por telefone. Dom Paulo, um pouco antes do intervalo, nós estávamos falando um pouco, o José Geraldo fez uma pergunta que falava um pouco sobre a tolerância do catolicismo brasileiro, desse caráter que o Darcy Ribeiro, o antropólogo Darcy Ribeiro apontaria no nosso catolicismo. Mas recentemente nós assistimos a imagens de intolerância explícita religiosa no Brasil, que é uma coisa que eu acho que o brasileiro, de uma certa maneira, não está acostumado a ver. E esse assunto tem sido debatido e eu acho que é uma das questões hoje mais importantes que a sociedade brasileira se debruça sobre ela. Na visão do senhor, como o senhor, como uma das pessoas mais importantes, de maior influência na igreja católica brasileira e de maior influência sobre a sociedade brasileira, como vai ser a evolução dessas relações, como é que o senhor vê o desdobramento e o crescimento dessas novas religiões no Brasil?

D. Paulo Evaristo Arns: Em primeiro lugar, quanto ao fato mesmo, o brasileiro não deixa insultar nenhuma pessoa sem que ele tome a defesa dela. Se é bom brasileiro, é isso, né? Sobretudo, se ofende a mãe. E ofender agora a mãe de Jesus, isso é um crime que vai perdurar por todos os séculos como sendo abominável e não sendo aceito. Agora, eu achei que não devíamos fazer nenhuma reação quanto a isso. Que nós devíamos respeitar a pessoa e todas as pessoas e que cada qual devia saber dentro do próprio coração como reagir. Nós não falamos, não organizamos nada e deixamos que o próprio povo dissesse o que ele quer. Mas as cartas que eu recebi, foram centenas, senão milhares, dizendo que eles gostariam que houvesse ao menos alguma satisfação a dar para a mãe de Jesus, a Maria, que era judia e uma pessoa certamente virtuosa e altamente venerada por nós, que ela recebesse a homenagem devida para a reparação. E eu estou fazendo esta reparação neste dia de Natal, aqui, no meio de gente de diversas crenças, mas com um coração muito bondoso para com todos. Então eu gostaria também de dizer que esse movimento contra Nossa Senhora despertou os católicos e dobrou a visita, sobretudo, às igrejas da periferia de São Paulo e de outras cidades e outros lugares. Então, às vezes se diz assim: “Quando uma religião é perseguida, então, ela também é seguida, então ela também tem a sua força, então ela também tem...” Mas nós gostaríamos que não houvesse perseguição de modo nenhum a ninguém, para que todo mundo vivesse segundo a sua consciência e bem informada e com possibilidade de praticar a religião, como nos garante a Constituição. De conhecê-la a fundo, e de praticá-la.
[a resposta de dom Evaristo refere-se à ocasião em que, diante das câmeras, no dia 12 de outubro de 1995, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Sérgio von Helder, durante a exibição de dois programas da rede Record de Televisão – Despertar a Fé e Palavra da Vida – chutou a imagem da Nossa Senhora Aparecida. O caso teve repercussão nacional e gerou indignação e números protestos por parte dos católicos].

Rui Xavier: Nesse assunto ainda, cardeal, por que essa igreja do bispo Macedo cresce tanto? Qual é a explicação que o senhor tem para isso?

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, eu vivi, como disse no começo, 10 anos e meio dentro de gente muito pobre na periferia de Petrópolis, a 5 km do centro da cidade e que tem a mesma atitude do pessoal do Rio, portanto, favelados. Mas favelado no sentido autêntico do termo. E eu vi que entre esses favelados justamente há esta condição de ter a sua predileção para ver, para tocar, para sentir e para fazer assim, a coisa chegar até ao âmago do coração. Mas - agora vem a resposta à sua pergunta - quando as três fábricas, tanto aquela que cuidava de tecelagem, quanto aquelas que cuidavam de fazer papel, etc., na minha região, que chamavam com o belo nome de Itamarati, quando as três fábricas não pagavam, todo mundo ia para o espiritismo, e todo mundo ia para o pentecostalismo, e todo mundo ia para as religiões que prometiam fazer milagres. E eu não prometia fazer milagre, porque eu acho que só Deus pode intervir na história da humanidade, porque ele é onipotente. Eu não prometia, então eu perdia os meus fiéis e sempre dizia depois: “Eles vão voltar”. No dia do pagamento, domingo seguinte, eles voltavam alegremente e - às vezes com sapatinho novo, etc. - e nós continuávamos. Assim também vai ser agora. Na hora em que o Brasil tiver justiça social, todo mundo vai se decidir por uma religião histórica bem fundamentada e que responda aos anseios modernos e saiba usar uma linguagem moderna, e saiba comunicar-se, assim como Jesus soube comunicar-se. Então, eu acho que esse crescimento se deu, sobretudo, pela propaganda milagreira. Essa propaganda é infalível nas horas em que há desemprego e nas horas em que o povo ganha muito pouco para poder sobreviver.

José Maria Mayrink: Dom Paulo, os evangélicos têm dito que, na virada do século, eles vão ser maioria no Brasil. Como a justiça social vai demorar, parece que está demorando a chegar ao país, não é arriscado que, de fato, eles consigam ser maioria em pouco tempo?

D. Paulo Evaristo Arns: Eu não acredito que isso aconteça. Eu tenho fé de que as religiões históricas, todas elas comprovadas em sua caminhada, etc., que procuram a união em todas as coisas, que devem unir os homens, sobretudo a paz, sobretudo o trabalho para a comunidade, eu acho que essas religiões vão vencer também esse desafio. No fim do milênio, e para o próximo milênio. Eu tenho certeza absoluta de que todo mundo vai ter uma consciência clara de que a religião deve unir, e jamais deve ser motivo de luta contra outras pessoas.

Henry Sobel: Eu concordo com dom Paulo realmente no que tange o caso do símbolo religioso profanado. Trata-se de um caso isolado. Há tolerância religiosa no Brasil, isto porque a população brasileira preza esta tolerância.

D. Paulo Evaristo Arns: Ontem, rabino, eu passei num bairro judeu e perguntei ao meu motorista: “Há alguém que ri destas crianças que estão com trançados, cabelos trançados, etc. E outros com chapéu, outros com o vestuário, e que são os chamados ortodoxos, né”? O senhor pertence ao partido mais liberal, mas eu perguntei ao meu motorista, que sempre passa por lá. Ele me disse: “Nunca vi, nesses 25 anos, alguém rir ou caçoar deles”. São Paulo, realmente, pode ser uma cidade cruel, pode ser uma cidade dura, pode ser uma cidade de pedra e de cimento e de ferro, mas é uma cidade que tem respeito e tem coração. E o paulista deve continuar, sobretudo no dia de Natal, deve firmar essa convicção de que cada um é irmã ou irmão do outro. E, por isso, precisamos respeitar isso.

Henry Sobel: Em matéria de tolerância, dom Paulo, o Brasil faz parte do Primeiro Mundo [risos].

D. Paulo Evaristo Arns: Eu acho que o Primeiro Mundo não é muito bom [risos]. O Brasil está um pouco melhor do que o Primeiro Mundo (risos).

Henry Sobel: A minha pergunta, dom Paulo, é diferente. Querido dom Paulo, por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?

D. Paulo Evaristo Arns: Esta é uma pergunta que Santo Agostinho fazia constantemente. Ele dizia assim: “Se não há outra explicação, o mal faz o bem aparecer”. Ao menos esta, né? Dizia ele. “Mas é um enigma”, ele dizia, “é um mistério”. É a palavra cristã para isso: um mistério. Quer dizer, a gente vai aprendendo alguma coisa, mas ele dizia: “O mal existe para que o bem apareça”. E, de fato, eu senti muitas vezes, o senhor deve estar sentindo a mesma coisa, na minha vida de padre em contato com os que sofrem, que é o contato diário, e, os que sofrem são mais tolerantes. Em geral, também, têm um coração bom. O sofrimento parece que tem que fazer parte do humanismo, ou seja, tem que fazer parte das qualidades humanitárias que nós temos que cultivar. E saber sofrer, quer dizer, saber unir-se àqueles outros que sofrem e formar com eles uma cadeia nova de esperança. Quem mais espera é aquele que mais sofre, e sabe sofrer.

Márcia Bongiovanni: Dom Paulo, a igreja católica que defende tanto o direito à vida me parece um pouco omissa numa questão importante mundial: a aids, que está fazendo milhares de vítimas, homens e mulheres e crianças inocentes, que já estão nascendo contaminadas pelo vírus. Como é que o senhor vê essa questão? O senhor acha que, entre a vida e a morte, é melhor optar pela orientação do uso de preservativos e de seringas descartáveis?

D. Paulo Evaristo Arns: Sim. Em primeiro lugar, eu gostaria de dizer o seguinte: que o aidético precisa ser respeitado. A primeira coisa que nós devemos pedir neste Natal é que haja uma solidariedade nova para com aquela pessoa que sofre. Nós abrimos 18 casas para aidéticos e 4 casas para crianças aidéticas, que correm todos por conta da arquidiocese de São Paulo. E fomos os primeiro a abrir, e nós temos uma grande amizade com o hospital Emílio Ribas, que trata. Esta é a primeira coisa. A segunda coisa: todo mundo tem que prevenir-se. Não cair, não chegar tarde para isso. Mas, para tanto, precisa três coisas: a primeira, precisa uma grande pesquisa mundial. E não deve deixar, embora o grande cientista Gallo dissesse esses dias que ele tinha muita esperança de que a vida pudesse prolongar-se e pudesse aparecer agora, mas nós ainda estamos longe disso. É a primeira coisa. Precisa prevenir para não cair nessa doença, porque ela é realmente covarde, mas é mortífera. A segunda coisa, eu acho que é preciso dizer para as famílias, quando alguém caiu doente, ou sentiu algum efeito já dessa doença, que ele não seja expulso de casa. Por amor de Deus [com ênfase], nesse dia de Natal, vamos cuidar dos aidéticos na família, o quanto possível, porque eles não prejudicam, eles não contaminam nem nada. E a terceira coisa é a resposta à sua pergunta. Eu não recomendaria simplesmente a camisinha. Mas eu diria se, por exemplo, marido e mulher, que tem direitos, direito absoluto ao ato conjugal, se um deles tem, então, é claro que deve prevenir, para que o outro não seja contaminado. Porque entre os dois males, sempre se deve escolher o menor. Agora, dizer, recomendar a todo mundo: “Use camisinha e faça”..., não é? Olha, ela não é segura! Há 30% de perigo de, sobretudo as nossas, 30% de perigo. Em segundo lugar, o sexualismo desenfreado não ajuda a nação a crescer. Em terceiro lugar, nós, como governo, ou como igreja, ou como instituição, nós não temos o direito de dizer ao outro: “Olha aqui, você pode fazer o sexo à vontade, desde que você se previna”. Eu acho que cada um tem que educar-se para que a vida em família seja realmente a base da sociedade.

Márcia Bongiovanni: Mas, além de atender pacientes com aids, crianças até, a Igreja tem algum trabalho de base de orientação dos fiéis? De explicar, quer dizer, a forma de contágio, como se evitar, existe esse trabalho de base da Igreja aqui em São Paulo?

D. Paulo Evaristo Arns: Existe até muito forte. Agora, nós nunca podemos fazer propaganda, porque o povo ainda não aceita o aidético, infelizmente. O povo devia saber que toda pessoa humana é digna de respeito e precisa ser bem acolhida. Então a gente tem que fazer isso com muita sutileza, muita sensibilidade para que o povo aceite essas explicações e não seja simplesmente um convite para um sexualismo desenfreado.

Matinas Suzuki: Dom Paulo, já que estamos próximos desse assunto, uma das críticas que se faz à Igreja Católica, principalmente nos países em desenvolvimento, é que ela se opõe a uma política de controle demográfico, que ela não atua nesta direção. Essa crítica procede? Como a Igreja poderia ajudar nessa questão?

D. Paulo Evaristo Arns: Eu acho que a questão se simplifica bastante se nós elevarmos a formação do povo. Um povo formado, um povo que saiba decidir as questões e que tenha também o nível de vida suficiente, ele não se contenta, não pratica o sexo simplesmente à toa assim, para prejudicar, quem sabe, a mulher e de ter 10 ou 12, ou 15, ou 20 crianças. Então, a solução está em elevar o nível não só intelectual, mas também o nível de formação geral do povo brasileiro, e aí as questões se resolvem automaticamente. O rabino falou há pouco do Primeiro Mundo. No Primeiro Mundo, a questão se resolveu rapidamente, mas foi pela formação, embora eles também não tenham chegado à felicidade, a descobrir que a expressão não é apenas ter poucos filhos e ter pouco trabalho não. A vida é sempre desejada e desejável. Enquanto a gente preza a vida, também preza as outras pessoas, de maneira que eu penso que o horror, o medo da criança não significa um progresso da humanidade. O progresso da humanidade seria aquele de respeitar a vontade do casal e de fazer com que o casal seja bem informado e também possa exercer a sua função de maneira bem livre e bem consciente.

Paulo Sérgio Pinheiro: Dom Paulo, um campo totalmente diferente, mas que o senhor citou, fez uma citação do Papa Paulo VI. É muito fácil nós gostarmos do João XXIII, mas vários estudos, várias novas biografias do [Papa] Paulo VI saíram. Eu gostaria um pouco que o senhor, nessa caminhada de reavaliação – o Paulo VI foi depois do João XXIII – é uma tarefa dificílima. Então eu queria que o senhor falasse um pouco dos seus encontros com ele, algum registro que nos ajude a entendê-lo.

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, o primeiro encontro que eu tive com o Paulo VI foi um encontro gostoso. Foi em fevereiro de 1972, quando eu já era há um ano e pouco arcebispo de São Paulo, eu já tinha alguma experiência que podia contar a ele. Então eu fui lá e ele começou a falar italiano e eu disse: “Olha, italiano, capisco poco. Então vamos falar francês”. Estudei cinco anos na França. Ah, ele ficou tão contente. Ficou tão contente porque ele é um grande admirador da cultura francesa e, depois, um grande amigo também de Maritain e de outros filósofos franceses, né, então, uma já, uma característica dele, é a cultura francesa desse Papa. Mas a segunda coisa tão extraordinária era a intuição desse homem. Ele, por exemplo, me dizia: “O senhor vem de São Paulo? Eu estive em São Paulo. Eu estive na periferia. É uma cidade com a fronte orgulhosa, mas coberta de coroa de espinhos. Então, uma cidade sofrida. Uma cidade muito sofrida. Então, o senhor tem que cuidar é dos que sofrem. Dos que sofrem em São Paulo”. Então, Paulo VI tinha uma sensibilidade muito grande para o desenvolvimento das pessoas. E, por isso, tanto a Octogésima Venice, que comemora oitenta anos, na Rerum Novarum, quanto também a outra encíclica que ele escreveu sobre o progresso humano, a gente pode ver onde ele em toda parte quer unir a humanidade para que a humanidade não só se tolere, mas a humanidade se alimente. E, agora estão escrevendo as biografias de Paulo VI, e ele está sendo considerado, quem sabe, o maior Papa da história da humanidade. E eu tive a sorte de estar com ele até o último instante quase. E, quando ele já estava muito fraco e debilitado, então, o chefe da casa do Papa disse: “O senhor pode ir, mas só cinco minutos. Pelo amor de Deus. Não mais que cinco minutos”. Eu disse: “Tá bom, eu viajei 10 mil quilômetros, 11 mil, para vir, vou voltar, 11 mil [quase inaudível] ... São 22 mil quilômetros, para falar cinco minutos, mas eu aceito de muito bom gosto porque é um amigo, é um grande amigo, eu não quero cansá-lo”. Eu entrei e disse isso para ele: “Olha, nós só temos cinco minutos, Santo Padre...” Aí ele me olhou e disse: “Quem manda nesse mundo? Não é o senhor e eu”? [todos riem] Ele não fazia brincadeiras, dessa vez ele fez uma brincadeira, né? “Quem manda nesse mundo? O vai senhor ficar à vontade”. E ficamos 55 minutos, para dar razão ao homem da casa. Cinco minutos mais cinco minutos ao lado, e conversando. E ele conversou sobre tudo para a Terra Santa [referência a Jerusalém, cidade sagrada dos judeus, em Israel]. Um amor à Terra Santa como o senhor tem e como eu tenho [dirigindo-se ao rabino Sobel]. Ele me disse: “O senhor vai para a Terra Santa, então o senhor vai para tais e tais lugares, porque além de ser uma terra de nossa tradição, é uma terra de uma beleza incomparável”. E foi o que eu pude verificar em Jerusalém, em todos os lugares que eu visitei. O Papa era um artista, era, ao mesmo tempo, uma pessoa muito culta e era uma pessoa extremamente sensível para o sofrimento humano. Graças a Deus que ele existiu depois de João XXIII para fazer essa passagem.

José Geraldo Couto: Dom Paulo, eu queria falar um pouquinho de televisão. O senhor dizia agora pouco para a gente ali fora, que o senhor presenciou a primeira transmissão em televisão na França, que foi exatamente uma missa. Mas, de lá para cá, a gente tem que convir que a televisão se distanciou bastante. Quer dizer, os valores que a televisão tem transmitido, o tipo de cultura veiculada pela televisão se distancia dos valores básicos pregados pela igreja católica, pelo cristianismo. Hoje, que é o dia de Natal e algumas famílias vão estar diante da televisão vendo este e outros programas, eu queria que o senhor dissesse o seguinte: se a igreja se preocupa com a presença enorme, massacrante até, da televisão no Brasil, e se a Igreja tem alguma estratégia, digamos, de ocupação desse espaço, de intervenção nesse espaço, já que a igreja evangélica tem até emissora em televisão.

D. Paulo Evaristo Arns: Eu agradeço muito porque estamos na TV Cultura e, se a TV Cultura não existisse, ela deveria existir em todas as tevês do Brasil. Se a cultura não tomar conta da tevê, ela vai virar sucata. Ela vai virar transmissão de futebol, talvez, e de outros jogos, mas não vai mais interessar a juventude daqui a pouco. Então, é preciso que a gente reflita sobre cultura. E dentro da cultura está, exatamente, a concepção religiosa e a concepção mundial da pessoa. Portanto, a Igreja, como toda religião, tem que interessar-se e deve ter algum espaço para que o povo possa comunicar-se e possa ter cultura. Cultura, mas no sentido profundo do termo, que é expressão da vida humana na sua totalidade. E eu acho que nós estamos agora querendo fundar a Rede Vida, que está começando a funcionar e que transmitiu, aliás, no começo deste mês, os meus 50 anos e os 250 anos da criação da diocese de São Paulo, de uma maneira muito imperfeita ainda, mas eu acho que vai progredir. Em todo caso, eu gostaria que nós refletíssemos para o futuro a imagem ou a “linguagem total do homem”, como dizia Tristão de Ataíde sempre pela televisão, é a “linguagem total”, que esta viesse também carregada de alma, de sentimento, de coração e de religião. Então, nós poderíamos dizer: “Não é só o Natal que interessa, mas interessam todos aqueles grandes acontecimentos em que Deus se revelou amigo dos homens, em que Deus nos socorreu, por exemplo, a partida do Êxodo”. Quando apresentaram o filme sobre Moisés, mas que audiência teve aquele filme! Como o povo apreciou aquilo! E as tevês, hoje em dia, são tão fracas. Passam o domingo inteiro não tendo quase assunto a oferecer, que eu próprio vejo as televisões quase só nos noticiários e em programas como este de hoje à noite.

José Maria Mayrink: Dom Paulo...

Matinas Suzuki: O rabino queria falar só um pouquinho sobre essa questão, depois é você, Mike, tá bom? (interrompendo José Maria Mayrink)

Henry Sobel: Dom Paulo, o Vaticano e a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] repudiaram oficialmente o anti-semitismo. Mas sabemos que o preconceito não pode ser banido por decreto. O que se pode fazer, dom Paulo, para erradicar o anti-semitismo que ainda existe em alguns brasileiros e clérigos também? Alguns.

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe que não são apenas alguns, mas são... No tempo da repressão, eu recebi uma vez a visita de um general. E que me propôs que nós fizéssemos uma campanha anti-semita...

Henry Sobel: Ah, é.....

D. Paulo Evaristo Arns: É, e eu disse para ele: “Meu caro general. Jesus é judeu, Maria, mãe dele, é judia e eu sou descendente dos judeus. O senhor errou a porta. A Igreja Católica jamais vai tolerar o anti-semitismo”. Nós temos que dizer que nós viemos do judaísmo e nós temos a nossa caminhada própria. Todas as religiões históricas têm a sua caminhada própria. Mas nós temos que respeitarmos uns aos outros e saber que não é por decreto que se mudam as coisas, mas também é preciso firmeza entre todas as pessoas para dizer: “Somos irmãos. Somos uns dos outros, dependentes tanto nas idéias quanto na existência”. Então, vamos continuar amando os judeus de todo coração, como nós amamos Jesus e Maria. E Jesus nasceu no dia de hoje.

José Maria Mayrink: Dom Paulo, o código de direito canônico que, quando determina que aos 75 anos de idade o bispo apresente sua renúncia, ele diz que caberá ao Papa, que o Papa vai fazer as ponderações e vai tomar a posição se aceita ou não. Nós temos alguns casos no Brasil, o dom Eugênio Sales, o cardeal do Rio, fez 75 anos agora em novembro, faz pouco tempo, mas o Papa não se pronunciou ainda. Sabe-se que ele já apresentou a renúncia. Há outros exemplos. No caso de dom Boaventura Kloppenburg, que é seu amigo, seu co-irmão, como franciscano, é reconhecidamente assim um bispo moderado, para não dizer conservador, no entanto, ele fez há um ano atrás, 75 anos, o Papa só aceitou agora a renúncia dele, há pouco tempo. Dom José Maria Pires, que está do lado contrário, ele renunciou, apresentou a renúncia em março do ano passado e o Papa esperou um ano e meio, quase dois anos, talvez esperando a comemoração da festa do Quilombo dos Palmares, do Zumbi, pelo fato de ele ser negro, e tem até o apelido de Dom Zumbi. Mas, fala-se que, no caso do senhor, quando o senhor completar 75 anos, dia 14 de setembro, portanto, daqui a menos de nove meses, que o Papa aceitaria no dia seguinte. O senhor está se preparando para isso?

D. Paulo Evaristo Arns: Claro que eu estou preparado para isso. Eu até desejo que a minha renúncia seja imediatamente aceita e venha alguém que seja melhor que eu. E tem alguém que é melhor que eu no Brasil.

José Maria Mayrink: O senhor tem candidato?

D. Paulo Evaristo Arns: Eu não vou dizer quem [risos], mas tem.

Voz masculina não identificada: Está no seu fichário...

D. Paulo Evaristo Arns: Nós estamos salvos. Nós estamos salvos, vem alguém melhor do que eu e, se o Papa aceitar no dia 14 de setembro, eu acho que ele está seguindo o direito canônico e está seguindo a opinião dos bispos do mundo inteiro, que aos 75, a gente deve dar lugar para um mais jovem. Agora, pena que um de vocês não pode ser [risos], mas tem um outro. Tem alguns outros devotos que são melhores do que eu.

José Maria Mayrink: E o que o senhor está fazendo para preparar essa retirada?

D. Paulo Evaristo Arns: Eu não vou fazer nada, especialmente porque já fiz. Já escrevi para o Papa e já conversei com o Núncio e nós estamos muito de acordo que ele também fale com a gente antes de nomear a pessoa, etc., e vamos ver com é que vai ser. Ninguém deve se preocupar com o futuro, porque o futuro está, de fato, na mão desse Jesus, que nasceu hoje.

Matinas Suzuki: E o que o senhor deseja fazer depois?

D. Paulo Evaristo Arns: Ah, depois? Ô, que pergunta boa, né [risos]. Não, depois não, eu vou começar antes. Eu, por exemplo, agora, no dia de hoje, eu celebrei a missa às 9 horas no Dom Pedro II, com os velhinhos e tinha 900 velhinhos aí, mas também todos os amigos e todos os parentes deles vieram para essa missa que foi uma missa campal. E essa missa eu estou celebrando há trinta anos, sempre dia de Natal. E, quando chegar o meu tempo de ser velhinho de 75 anos, eu quero lutar pela terceira idade. Eu acho que ela é mais sofrida e até mais sofrida do que a da criança e do jovem. E essa terceira idade vai crescendo em número e vai crescendo também em dificuldades. Nós já somos 10 milhões de 70, mais de 65 anos e aposentados, e todos eles, quase todos eles, fora de alguns marajás, mas fora deles, eles vivem sempre na miséria, na dificuldade. Eu gostaria de dizer aos velhinhos: “Olha, o dia de Natal é a promessa de vida, mas eu prometo a vocês de viver para vocês”.

Matinas Suzuki: Porque o senhor está aparentemente muito bem e com muita disposição, quer dizer, aposentadoria não parece ser alguma coisa que o senhor está pensando nela.

D. Paulo Evaristo Arns: Não, eu estou pensando naqueles que sofrem, são doentes e que não têm a possibilidade de viver plenamente como eu tenho. Realmente a religião católica me deu essa liberdade, como são Paulo diz, a liberdade para a qual Cristo nos libertou. Ele usa duas vezes. Uma tautologia para exprimir que a gente, sendo religioso do fundo do coração, também é um homem livre.

Paulo Sérgio Pinheiro: Dom Paulo, só para retomar o início da conversa do companheiro do Estado [referência ao jornal O Estado de S. Paulo], o seu fichário. Quem sabe o senhor não vai ter um tempinho para trabalhar no seu fichário. Eu estou achando que é uma pena o senhor deixar esse fichário quieto. O senhor podia começar a trabalhar, depois o senhor podia, enfim... Será que o senhor tem um diário além do fichário? Eu fico me perguntando: “Será que dom Paulo tem um diário”?

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, diário eu não tenho. Eu não tive esse costume de fazer, embora eu fizesse durante o tempo da França. Aí eu tinha o meu diário e fazia. Mas depois deixei e dou graças a Deus que deixei. Deixa desaparecer as coisas menos importantes da vida e vamos cuidar das coisas importantes. Mas o meu fichário eu vou continuar.

Paulo Sérgio Pinheiro: Ah, bom, isso já nos anima...[interpondo-se à fala de dom Paulo]

D. Paulo Evaristo Arns: O fichário sobre as experiências que eu tive com generais, e teve grandes experiências que eu nunca revelei [Paulo Sérgio Pinheiro e Matinas Suzuki falam juntos], tive experiências com presidentes da República que eu nunca revelei.

Matinas Suzuki: Mesmo que o senhor não cite os nomes, qual o episódio mais exasperante, ou de mais angústia, ou de maior dificuldade que o senhor teve que enfrentar naquele período todo?

D. Paulo Evaristo Arns: Eu acho que eu contei para o rabino um deles. Eu comecei a contar que um dia chegou à minha casa, às sete horas da manhã, um general comandante de São Paulo e do Mato Grosso, com imenso prestígio e se assentou e disse: “Dom Paulo, venho propor ao senhor uma campanha comum da igreja e do exército”. Eu disse: “Opa, é uma novidade, não é”? E ele disse: “É uma novidade, mas o senhor vai gostar. Uma campanha contra a pornografia”. Eu disse: “Está certo. Uma campanha contra a pornografia é muito bom”. Então ele disse: “E contra as duas editoras que promovem essa pornografia, que são a editora Abril e a editora Bloch”. Eu disse: “Não. Aí o senhor está entrando em outro campo. O senhor não está entrando no campo da pornografia, o senhor está entrando no campo da religião. Isso nunca! Nunca nós vamos lutar contra os judeus. A época do anti-semitismo deve ser enterrada para sempre, e nós devemos respeitar aquele povo que soube lutar, que soube escrever a sua história para inspirar a todos nós a enfrentarmos os desafios da vida”. Então, esse foi um momento importante, mas não foi o momento mais chocante. Há outros momentos muito mais chocantes, mas que eu não vou contar hoje, porque hoje é Natal.

Matinas Suzuki: O senhor sofreu algum tipo de represália por parte desse general por não ter topado fazer isso, esse acordo da Igreja?

D. Paulo Evaristo Arns: Recebi logo no dia seguinte. Veio o embaixador falar comigo e disse: “Agora eu acabo de vir do general, mas o senhor parece que não é muito amigo dele”. Então eu disse: “Eu sou, de minha parte, eu tenho que amar a todos os homens como amo a mim mesmo. Não é, a prescrição da Bíblia – amar aos outros como amar a si próprio”. Então ele disse: “É, mas o general me disse para eu não ir com o senhor porque o senhor é um malandro” [risos]. No mesmo dia que isso tinha acontecido, eu recebi a resposta, não é, uma resposta bem severa, bem severa. Mas esse general foi depois deposto e sofreu muito na vida.

Matinas Suzuki: Invertendo um pouco o ângulo, teve algum interlocutor, teve alguma pessoa que estava do lado do regime militar e que o senhor guarda uma boa impressão ou um fato positivo? Teve esse momento? O senhor passou por isso também?

D. Paulo Evaristo Arns: Ah, sim. O general Golbery [do Couto e Silva], por exemplo, que era totalmente do outro lado, que foi o criador mesmo do serviço secreto, e que foi o criador da própria ideologia da revolução, ele se tornou meu amigo no fim da vida e nós almoçamos muitas vezes juntos e sozinhos, só nós dois, para discutirmos como é que poderíamos acabar com a tortura, e, no momento em que o diretor dessa casa, Vlado Herzog, foi preso, foi torturado e foi morto, naquele momento eu telefonei para ele dizendo: “General Golbery, está acontecendo isto em São Paulo”. Ele deu um murro na própria mesa que eu ouvi por telefone. Ele disse então um palavrão que eu não vou repetir aqui porque é Natal [risos], mas um palavrão e disse assim: “Esse pessoal não está entendendo mesmo”. E o general foi deposto. Aquele general foi deposto. Aquele que matou o Vlado Herzog foi deposto. Então eu penso que eu tive algumas pessoas que são muito discutidas em muitas situações, mas que foram realmente amigas e conselheiras em horas difíceis, em horas tristes. Até um dos comandantes daqui.

Matinas Suzuki: O senhor teve medo em algum momento?

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, medo todo mundo tem. Quantas vezes eu tive medo! Eu telefonava da cúria para minha casa dizendo: “Estou saindo tal hora e tal minuto, e se eu não chegar em vinte minutos, vocês vão ver, vão olhar”. Eu tinha medo de ser raptado, eu tinha medo de... Eu cheguei a dizer a um general assim: “Como é que eu posso saber se aqueles que estão sendo raptados foram raptados pelo exército ou foram raptados por criminosos”? Ele disse: “Não. Se alguém for raptado e, se não for o senhor, o governador ou eu, então o senhor já pode saber que foi pelo exército. Porque os outros não raptam mais”. Tal segurança ele tinha no próprio trabalho dele. Agora, não era bem verdade aquilo que ele me dizia. Bom, mas isso fica para a história.

Paulo Sérgio Pinheiro: Vamos ficar torcendo...

D. Paulo Evaristo Arns: Para a sua história, viu? O senhor escreve o livro se eu não escrever [referindo-se a Paulo Sérgio Pinheiro].

Henry Sobel: Dom Paulo, amigão, eu sei que a fraternidade universal faz parte da nossa retórica, como líderes religiosos. O senhor acredita realmente que, um dia, haverá paz no mundo, apesar de tudo o que sabemos sobre o mundo hoje?

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, eu creio numa utopia da paz, mas eu não sou tão radical de dizer que o coração humano não é ambicioso demais para desejar e promover a paz em todos os outros. Eu sei que cada um de nós é ambicioso demais, por isso essa paz não vai realizar-se plenamente nunca, mas vai ser constantemente um apelo, sobretudo para nós, que temos uma concepção de um Deus que é amor, de um Deus que é justiça, de um Deus que é verdade. E esse Deus nasceu no dia de hoje para nos dizer: “Vamos juntos, vamos caminhar juntos, porque vale a pena lutar pela paz”. Os anjos cantaram na noite de Belém, na noite de hoje: “Paz aos homens de boa vontade”. Isso entra pelo ouvido, vai para o coração, e, um dia, vai para o coração da humanidade, se Deus quiser.

Márcia Bongiovanni: Dom Paulo, a Igreja Católica condena veementemente o aborto. Mas a lei aqui no Brasil permite em duas situações: no caso de estupro e de risco de vida para a mulher. Agora, uma proposta que está sendo discutida no Congresso, pode eliminar até essas exceções. Como é que o senhor analisa o aborto nessas situações limites para a mulher?

D. Paulo Evaristo Arns: Sim. Há duas questões que a gente teria que separar. Primeiro lugar, o aborto como tal é sempre um atentado contra a vida. Tira a vida de alguém. E tira a vida do mais fraco, e tira a vida com mais covardia, porque tira a vida assim, quando ela ainda não está à vista de todos. Porque eu acho que hoje é crença comum de que a pessoa humana se forma nos primeiros dias da vida. Então, se o aborto é crime, é muito difícil aprovar o aborto para o progresso da humanidade. Onde se precisa estudar é como o casal pode planejar os nascimentos na sua vida, os que deseja. Mas, aprovar o aborto é simplesmente introduzir uma anarquia nesse campo do pensamento humano na defesa da vida. Eu acho que não devemos fazer.

Márcia Bongiovanni: E nessas situações onde há violência sexual contra a mulher e há também o risco de vida dela?

D. Paulo Evaristo Arns: Sim, o que se deseja sempre é que ela, no primeiro momento, faça a coisa, né? No primeiro momento. Mas muitas vezes ela não faz. Ela fica pensando, ela fica querendo, fica não querendo, e depois fica sempre a grande cicatriz. Aliás, essa lei não vai passar. A lei contra esses dois casos, porque ela já foi posta de lado, de maneira que não precisamos discuti-la. Mas eu sou a favor da vida, uma vez que ela está indefesa no ventre materno e está pedindo: “Me deixe sentar também à mesa e ser conviva de vocês”.

José Maria Mayrink: Dom Paulo, o senhor falava há pouco de medo que o senhor teve medo em várias ocasiões da vida, aqui em São Paulo.

D. Paulo Evaristo Arns: Muitas ocasiões, muitas ocasiões.

José Maria Mayrink: No final de 92, em outubro de 92, o senhor sofreu um acidente na República Dominicana, em Santo Domingos, o senhor e dom Geraldo Magela, e que o senhor sofreu uma fissura no crânio, passou várias horas desacordado, e depois o senhor teve medo que houvesse seqüelas para sua memória e tal. Mas também o senhor supôs, levantou a hipótese de que teria sido um atentado. Eu pergunto as duas coisas: primeiro, foi um atentado, e segundo lugar, isso deixou alguma seqüela na sua saúde?

D. Paulo Evaristo Arns: Eu tenho certeza de que foi um atentado porque, naquele dia, o coronel que sempre viajava comigo e os sargentos trocaram de carro e me deram um carro militar. E, nesse carro militar tinha uma barra de ferro muito grossa, e eu perguntei para ele: “Por quê”? “Isso é comigo”, diz o coronel. E foi essa barra que evitou minha morte imediata, porque eu devia ser seqüestrado e devia ser solto o Guzmán lá do Peru em meu lugar [em setembro de 1992, Abimael Gúzman, fundador e líder do grupo terrorista Sendero Luminoso, foi preso o condenado à prisão perpétua]. Eu teria sido levado para algum lugar. Isso o patriarca de Lisboa me explicou dizendo: “Olha, isso eu soube de um serviço secreto daqui, e por isso eu posso dizer...” [Matinas o interrompe].

Matinas Suzuki: A barra ajudou o senhor de que maneira?

D. Paulo Evaristo Arns: Esta barra forte assim estava dentro do carro. Me colocou naquele dia num carro militar. Sempre me levava num carro comum. E aquele dia que eu ia para a embaixada brasileira, que não havia nenhum motivo. Era um domingo. Era cedo, então eu disse: “Por que o senhor trocou de carro”? Ele disse: “Eu sou responsável. Não preciso dar explicações porque eu sou o responsável”. Então eles queriam me pegar em vida, claro. Não queriam que eu morresse. Então, aquele carro de guerra que veio contra nós, aquele jipe enorme que bateu contra aquela... Me deixou atordoado e, de fato, dois minutos sem respiração, com o coração parado. Então, eu depois sofri um tempo de amnésia, que é uma coisa terrível. Três semanas de amnésia, que eu tive que dormir durante as três semanas, e depois me recuperar devagar por exercícios, etc. Eu estou revelando a primeira vez no seu programa de hoje e lhe agradeço porque eu posso dizer a Deus um grande obrigado por um Natal, por me ter restituído a consciência de tudo. E me ter restituído também a memória. Eu havia perdido tudo. A única memória que eu não recuperei foi de Santo Domingo. Eu não sei nada do que aconteceu comigo nem durante os tempos de recuperação no hospital, nem depois, quando voltei ao Brasil nas três ou quatro semanas em que eu tive que dormir, e que os médicos do InCor [Instituto do Coração] depois me restabeleceram, me restituíram a faculdade tanto de pensar, quanto também de rememorar as coisas mais decisivas da vida. E eu recuperei o resto da memória mais ou menos perfeita.

José Maria Mayrink: Mas ao desembarcarem no Brasil, no aeroporto, o senhor deu uma entrevista coletiva.

D. Paulo Evaristo Arns: Eu telefonei ao embaixador depois que eu estava bem, porque ele veio ao Brasil. Então, eu soube, ele me telefonou e eu disse: “Olha, aconteceu isso comigo. O senhor não acha que devia examinar”? Ele disse: “Não. Para uma ditadura militar, não adianta. Acabou”.

José Geraldo Couto: Mas, segundo o senhor disse, os seqüestradores seriam ligados ao Sendero Luminoso, do Peru.

D. Paulo Evaristo Arns: É, seria para ser... Para haver uma troca entre duas personalidades. Assim me disse o patriarca de Lisboa, é uma interpretação. Pode haver outra.

Rui Xavier: Dom Paulo, deixa eu fazer uma pergunta para o senhor, que eu tenho a maior curiosidade sobre essa questão das igrejas aqui no Brasil. Eu queria saber o que o senhor pensa – a gente já tocou um pouco nisso -  mas eu queria saber o que o senhor pensa do bispo Macedo? É o quê? O que o senhor acha do bispo Macedo? Ele é o quê? É um picareta, o que é, como é que é o bispo Macedo?

D. Paulo Evaristo Arns: Sabe, nós temos o costume de não falar mal das outras pessoas. Muito menos eu falaria mal de uma pessoa aqui no dia de Natal, dia do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu rezo por ele todos os dias, mas eu acho que ele tem que mudar muita coisa na existência, e por isso vou intensificar as orações, uma vez que o senhor me provocou a tanto.

Henry Sobel: Dom Paulo, como o senhor encara o novo problema que surge no cenário internacional: o problema do fundamentalismo religioso?

D. Paulo Evaristo Arns: Esse é um problema muito sério e muito importante. Fazer as pessoas que tomam ao pé da letra tudo o que está, por exemplo, na Bíblia, ao pé da letra, qualquer coisa da religião que têm e não toleram as outras religiões. Eu acho que esse é um dos problemas mais sérios e que pode provocar até dificuldades entre as diversas religiões. Eu posso me sentir mais à vontade com o senhor, muito mais, porque nós somos amigos mesmo, do que com um fundamentalista católico. Um fundamentalista católico não me aceita. Simplesmente não me aceita. Então, eu não posso tratar com ele de jeito nenhum, porque ele diz: “Não, mas, dom Paulo é dispensor de comer carne na Sexta-feira Santa. Então ele não está em concordância com o Papa”, embora o homem que conhece o Direito Canônico está aí atrás. Mas o Direito Canônico dá essa faculdade ao bispo de dispensar. Mas os fundamentalistas são realmente aqueles que dividem as religiões dentro delas mesmas e dividem, por isso mesmo, o mundo inteiro. Por isso nós temos que cuidar da tolerância no sentido bom do termo.

Henry Sobel: No contexto do assassinato trágico do primeiro ministro de Israel, Yitzhak Rabin, o primeiro telefonema de solidariedade que recebi foi do dom Paulo. Mas eu conto isto porque eu disse naquela ocasião que eu, como rabino, me identifico muito mais com meu primo árabe moderado, do que com meu irmão judeu fundamentalista.

D. Paulo Evaristo Arns: É isso, é isso. Está certo.

Matinas Suzuki: Dom Paulo, infelizmente, nosso tempo está esgotado...

D. Paulo Evaristo Arns: Mas o Natal não acaba nunca!

Matinas Suzuki: O Natal não acaba, exatamente. Só o nosso programinha que acaba. Eu gostaria de ter conversado muitas coisas com o senhor, mais coisas, eu gostaria muito de ter podido falar sobre seu livro, sobre São Jerônimo, que é considerado talvez um dos trabalhos mais importantes sobre São Jerônimo, que é um santo que está sendo...

D. Paulo Evaristo Arns: Grande biblista! Um grande amigo dos hebreus. Dos rabinos, sobretudo.

Matinas Suzuki: E que está sendo revalorizado, um santo que está sendo reestudado. Infelizmente, nós não vamos ter tempo para conversar sobre isso, mas eu gostaria de deixar registrado isso aqui também. Então eu queria agradecer muito a sua presença nesse dia de Natal, agradecer bastante a presença dos nossos entrevistadores, agradecer a atenção do nosso telespectador nesse dia também em casa. Agradecer bastante também, hoje é o nosso último programa do ano, a sua atenção durante todo esse ano de 95, lembrar vocês que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, que já é o ano que vem, às dez e meia da noite. E... excepcionalmente às dez horas. Nós vamos antecipar o dia 1º, então será às dez horas, e será o programa com a Daniela Mercury, para a gente trazer um pouco de alegria no começo de 96. Até lá então, uma boa noite para todos e uma excelente passagem de ano.

  

 

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