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Memória Roda Viva

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Paulo Autran

4/5/1987

O teatro trabalha a imaginação e faz uso dos mais variados recursos para estar em constante progresso, diz o ator ao narrar sua trajetória, revelando toda uma vida devotada à paixão pelos palcos

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Rodolpho Gamberini: Boa noite. Nós estamos começando neste momento mais um Roda Viva, o programa de entrevistas e debates da TV Cultura de São Paulo. Esta noite nosso entrevistado é o ator Paulo Autran e, para participar do Roda Viva com Paulo Autran, estão conosco aqui no estúdio da TV Cultura: Chico de Assis, dramaturgo; Cacá Rosset, ator e diretor de teatro; Ninho Moraes, jornalista da TV Bandeirantes; Pedro Augusto Costa, jornalista de O Estado de S. Paulo; Inácio Araújo, jornalista; Patrício Bisso, ator; Jairo Arco e Flecha, ator e crítico de teatro; Marcos Weinstock, coordenador adjunto de criação da TV Cultura, que é a pessoa que desenhou o cenário do Roda Viva, deste programa que vocês estão vendo neste momento, e Hamilton Monteiro está conosco também. Eu errei aqui a ordem, este é Chico Solano, ator e diretor, e ao lado do Chico, então, Hamilton Monteiro, vice-diretor da Escola de Artes Dramáticas da USP. Para começar, então, a nossa conversa, Paulo, gostaria de que você me dissesse uma coisa. Me parece que, hoje em dia, o sucesso no teatro acontece, quase que sempre, [com] algumas poucas exceções, para as peças que mostram uma grande produção, para os grandes espetáculos. Esse sinal, na sua opinião, mostra o quê? Mostra o avanço do teatro brasileiro ou mostra justamente o afastamento do teatro brasileiro, das preocupações do homem brasileiro, dos problemas da sociedade brasileira?

Paulo Autran: Eu discordo da proposição pelo seguinte: alguns grandes espetáculos fazem sucesso, alguns espetáculos de grande montagem são um fracasso total. Não é a grande montagem que determina o sucesso ou não do espetáculo. O que determina o sucesso do espetáculo é o interesse que a peça possa ter e o nível em que o espetáculo foi realizado, o nível de direção, de interpretação e do interesse que ele possa ter para a platéia naquele momento em que se vive. Então, não é a grande montagem ou a pequena montagem, não é o dinheiro gasto na montagem que significa sucesso. Nunca foi e nunca será. Eu acabei de fazer, agora, uma viagem pelo Norte e Nordeste, com uma peça chamada A amante inglesa, de uma autora muito difícil, a Marguerite Duras. Eram apenas três personagens, sem cenário nenhum – o cenário é uma cadeira no palco– e lotamos as platéias de todos os teatros onde nos apresentamos, o que vem mostrar a você que há uma parte do público que se interessa, quando ouve dizer que tem chuva de ouro, que tem chuva de prata, que tem efeitos não sei o quê. Mas é uma parte mínima do público de teatro que é atraído apenas pela publicidade exagerada a respeito do custo da produção. Em geral, você vai ao teatro quando teu vizinho diz assim:”Vai, que é bom! A peça é ótima!”. Aí é que se vai ao teatro.

Rodolpho Gamberini: O Cacá Rosset está fazendo sinal e gostaria de fazer a próxima pergunta para você.

Cacá Rosset: Eu queria te perguntar, Paulo, o seguinte: a Nova República [denominação dada ao período que se inicia no Brasil em 1985, com o governo do presidente civil José Sarney, que marcou o fim do regime militar instituído em 1964] diz que acabou com a censura do teatro, no entanto isso é mentira. As produções ainda têm que mandar os textos para censura, você ainda tem que fazer o chamado ensaio visual. Eu queria saber qual é a sua opinião sobre a censura no teatro e se você já teve algum tipo de problema com a censura em algum espetáculo que você fez?

Paulo Autran: Quando você compara a censura atual com a censura que foi feita nos célebres tristes vinte anos que nós passamos, você quase que pode dizer que não há censura. Quer dizer, a censura atualmente, você manda seu texto para haver uma classificação etária, apenas. Eu não tenho sabido de peças de teatro proibidas pelas suas idéias. Vamos esquecer o caso do célebre filme Je vous salue, Marie, que eu acho que foi um retrocesso bobo que houve, mas em relação ao teatro eu não tenho sentido alguma censura mais violenta, de maneira alguma. A minha opinião é que censura significa sempre um retrocesso. Os fatos das proibições feitas pela censura na história da arte do mundo inteiro revelam sempre o ridículo do ser humano. Quando você pensa que Madame Bovary, de [Gustave] Flaubert [romance publicado em 1857 (narra a história de Emma Bovary, anti-heroína que, infeliz no casamento, se entrega a outros amores) que desafia os padrões do romantismo para inaugurar o realismo  aplicando à literatura o conceito de igualdade. Não haveria, para o autor, temas vis e os conflitos de pessoas pobres eram parte de suas histórias, tanto quanto os dramas das classes dominantes], foi um livro proibido na França no século passado, você só pode caçoar desses censores que ousaram proibir uma obra-prima, atualmente considerada uma obra quase inocente, como é Madame Bovary. Então, a censura está sempre atrás, ela está sempre com a tendência de fazer com que as coisas não progridam, que as coisas caminhem para trás. Então eu sempre fui contra a censura.

Rodolpho Gamberini: Paulo, por favor, a próxima pergunta é do dramaturgo Chico de Assis.

Chico de Assis: Bom, eu queria seguir na picada do Cacá a respeito da censura e lembrar que, quando o teatro brasileiro se calou ou foi calado – uma parte assassinada, outra suicidada– e a covardia invadia todos os setores e o Paulo Autran estava com Liberdade, liberdade [musical escrito por Millôr Fernandes e Flávio Rangel um ano após o golpe de 1964, estreando no palco em 1965, ficou sob a mira da censura porque apresentava um conjunto de peças, quase todas musicais criticando a repressão imposta pelo regime militar] em cartaz, de uma certa forma, não só se defrontando com uma situação de fato, mas afrontando uma situação de fato. Eu gostaria [de] que você desse pelo menos uma memória disso, que é o caso de Maceió.

Paulo Autran: É, acabei de contar esse caso. Quando nós levamos Liberdade, liberdade em Maceió, já quase no fim da viagem... porque depois da Paraíba, todos os estados proibiram a peça. Naquele tempo, a censura era estadual, então, em cada capital de estado que a gente se apresentava, tinha que fazer um ensaio para a censura e a censura permitia ou não o espetáculo. Em Maceió, houve uma proibição da peça, aí houve um movimento estudantil muito grande e convenceram o governador de que a peça estava liberada pela censura nos outros estados e não havia razão de Maceió não assistir à peça. Fizemos a peça, e eu me lembro de um fato que, até hoje, quando eu me lembro, me comove muito: quando acabou o espetáculo, entrou no meu camarim um rapaz, um estudante, mas ele soluçava, as lágrimas escorriam. Ele me agarrou, me abraçou e me disse: “Paulo, então, pelo menos, a gente ainda pode dizer essas coisas?”. E eu vi que ele estava numa exaltação de alegria e acho que um dos grandes efeitos de Liberdade, Liberdade, naquela época da mordaça total, foi justamente esse, de mostrar que as pessoas ainda deviam tentar dizer o que pudessem, no limite do que pudessem. Era preciso que alguém dissesse alguma coisa. E essa viagem do Liberdade, Liberdade, que, aliás, a viagem eu fiz com o Jairo Arco e Flecha, foi muito exaltante e muito comovente para nós todos que participamos do espetáculo.

Rodolpho Gamberini: Paulo, antes de passar a próxima pergunta que vai ser do Chico Solano, eu gostaria de avisar que este programa foi gravado com uma certa antecedência, não estando aberto à participação das pessoas que assistem em casa. Paulo, eu gostaria de lembrar que o Paulo Caruso, seu xará, cartunista, está lá em cima desenhando, olha lá! Estamos mostrando agora um desenho dele, você pode verificar ali no monitor. É o cartunista que fica desenhado as situações do programa, está bom?

Paulo Autran: Está fazendo um cabelo bonito, hein!

Rodolpho Gamberini: Você está gostando do trabalho do Paulo? [riso] A próxima pergunta é do Chico Solano, por favor.

Chico Solano: Paulo, ampliando um pouco a conversa política, já que o Cacá e o Chico começaram por aí [risos], eu não pretendia fazer essa pergunta como a primeira, mas, enfim, eles começaram por esse tema. O governo atual, o governo [José] Sarney [assumiu o governo em 1985 por ser vice de Tancredo Neves, primeiro presidente civil eleito em 1984, que faleceu na véspera da posse], há um ano atrás, armou um plano, que foi o Plano Cruzado [lançado pelo governo Sarney, em 1986, introduziu uma nova moeda, o cruzado, em substituição ao cruzeiro e visava deter a inflação], para ganhar as eleições de novembro. E ganhou, assim, estrondosamente. Acontece que, no dia seguinte, ele pegou esse capital político enorme e jogou fora. E hoje o Brasil... o país se encontra numa enorme confusão. Na sua opinião, qual é a saída para isso? Há a possibilidade de uma saída para isso sem mudança, qualquer que seja, do status quo [situação vigente]? Quem deve pagar a nota? E qual é o papel da Constituinte [Assembléia Nacional Constituinte, convocada pelo presidente Sarney para elaborar a nova Constituição da República, que foi promulgada em 1988] nesse processo?

Paulo Autran: Que pergunta sensacional! Olha, se eu fosse um economista, se eu fosse um político, se eu fosse um sociólogo, se eu fosse um técnico nesses assuntos provavelmente, eu teria a minha resposta, que seria contestada pela pessoa que tenha as idéias exatamente contrárias. O que eu tenho visto é a discussão sobre economia. É uma discussão de foice. É uma briga de foice, porque dizem “tem que haver congelamento, não pode haver congelamento, não pode haver congelamento, tem que haver congelamento”. Então, eu, na minha ignorância – graças a Deus – dos problemas econômicos, não sei como te responder. Agora, se você me pergunta se o país está numa má situação, eu só posso responder que sim, porque eu leio jornal. Agora, eu vou te dizer outra coisa, eu estou com sessenta e quatro anos e eu não me lembro jamais de nós não estarmos à beira de um abismo [risos]. Há sessenta e quatro anos, sessenta e quatro anos, não, porque quando eu já ouvi falar nesse assunto, eu já devia ter uns quatro ou cinco anos. Então, há sessenta anos que os mais velhos e depois as pessoas da minha idade diziam “a situação é dificílima, estamos à beira de um abismo”. E o Brasil tem tido tanta sorte, que não caiu no abismo até agora – ou será que nós estamos já dentro do abismo e não sabemos?–. Eu não sei. Então, eu tenho dentro de mim um pouquinho de otimismo, sabe? Então, eu acho que quando a gente é mais jovem, a gente pensa “é agora que a gente vai resolver e a solução é esta [gesticula insinuando estar de posse de uma grande certeza] e o negócio é resolver assim”. E nunca essa resolução, "assim" [tom de voz que insinua forte convicção], ela realmente resolve nada, sabe? Porque o ser humano varia muito, as condições variam muito, as circunstâncias da vida variam tanto, que uma solução que hoje parece a você ser A, B ou C, a única, com o passar do tempo os acontecimentos se encarregam de mostrar que não era a única e que era até a errada para aquele momento. Então, eu acho que precisa ter muita coragem para um economista chegar, hoje em dia, e dizer: “A solução é essa”. Porque eu acho que, na verdade, nós não acreditamos mais nos economistas, depois de tanto fracasso!

Rodolpho Gamberini: A próxima pergunta é do crítico de teatro Jairo Arco e Flecha.

Jairo Arco e Flecha: Paulo, uma coisa que eu vou perguntar para você é uma pergunta bem mais modesta, bem mais simples do que a pergunta sobre a situação do Brasil. Eu pergunto a você, como ator, como crítico de teatro, como jornalista. De todos os pontos de vista, eu faço para você uma pergunta muito simples: o que você acha, Paulo, o que deve ser, quais devem ser os caminhos para o teatro brasileiro de agora? Porque você deu um exemplo da sua peça, A amante inglesa, que fez muito sucesso, mesmo sendo uma produção muito barata. Agora, preciso levar em conta que essa é uma peça feita com você no elenco, que é uma celebridade, com a Tônia Carrero [atriz que fez grande sucesso no cinema, na televisão e no teatro ao lado de Paulo Autran. Os dois companheiros foram entrevistados pelo Roda Viva em 1990, quando comemoravam juntos quarenta anos de profissão], que é outra celebridade, e que hoje em dia isso está sendo muito difícil para grupos que não tenham um grande nome, um ator de grande popularidade pela televisão: fazer, conseguir romper a barreira e chegar para o público. Então, eu pergunto a você, Paulo, com a sua experiência... que você tem, quais você acha que são os caminhos que são mais claros, mais possíveis, mais exeqüíveis para o teatro brasileiro chegar ao público?

Paulo Autran: Jairo, se eu soubesse responder a sua pergunta eu seria um homem milionário. Eu duvido que haja alguém, em qualquer ramo da arte, que possa dizer: o caminho dessa arte agora é este. Há pessoas que dizem isso, mas são pessoas que têm uma ingenuidade muito grande, não é? Quer dizer, a pessoa, quando está apaixonada, quando ela tem uma fé total em alguma coisa, ela acredita naquela fé e acha que aquele é o único caminho. Então, quando você amadurece, você vê que os caminhos do teatro são tantos, graças a Deus! Eles são tão vários, são tão apaixonantes todos eles, que é impossível dizer, assim, “o que é certo fazer agora é isso ou aquilo” e essa resposta a respeito da grande produção, às vezes, uma grande produção... quer dizer, muito dinheiro gasto numa grande produção de um espetáculo dá certo, outras vezes, não dá. O que eu digo a você é o seguinte: o que é importante é a inteligência e, se um espetáculo é inteligente, ele faz sucesso. A inteligência do diretor, do autor de escolher aquele tema, de escolher aqueles atores para participarem do seu espetáculo... ele, em geral, faz sucesso. E nós temos um caso típico de um extraordinário sucesso de público em São Paulo e no Brasil inteiro com o espetáculo onde não havia nem nome nem nenhuma estrela e que continua em cartaz, que é o espetáculo UBU/Folias physicas, pataphysicas e musicaes [montado com o Teatro do Ornitorrinco, inspirado na obra de Alfred Jarry (1873-1907), patafísico, poeta e dramaturgo francês. O espetáculo envolvia circo, teatro, dança e música. Estreou em maio de 1985, com Cacá Rosset interpretando um Pai Ubu que lembrava os políticos corruptos e paternalistas, trabalho que lhe rendeu os prêmios Molière, Mambembe, APCA e Apetesp como melhor diretor], que o Cacá Rosset dirigiu... e até há pouco tempo Cacá não era um nome muito conhecido do público brasileiro. No entanto, o teatro continua lotando. Por quê? Porque é um espetáculo inteligente, feito com garra, com sensibilidade, com um senso de atualidade muito grande, então é um espetáculo que deu certo e não tinha nenhum nome global.

Rodolpho Gamberini: Próxima pergunta é do Inácio Araújo.

Inácio Araújo: A minha pergunta é um pouco um apêndice da do Jairo. Na medida em que você passou por várias fases do teatro do Brasil, eu queria saber se você acha melhor o teatro que se fez nos anos cinquenta ou depois, nos anos sessenta, do que se faz hoje em dia? E, inclusive, como você se referiu, pesa muito a presença da Rede Globo, enfim, da televisão em relação ao teatro?

Paulo Autran: Eu acho que a... [suspira]

Inácio Araújo: Para melhor ou para pior?

Paulo Autran: A televisão é um meio de divulgação do teatro fantástico! Eu acho que a televisão ajuda o público... a atrair público para o teatro. A televisão, incidentalmente ou numa entrevista ou num jornalismo de televisão ou até dentro das novelas, os personagens vão ao teatro, quer dizer que a televisão divulga o gosto pelo teatro. Você veja também que todos os grandes nomes da televisão fazem teatro ou têm uma formação teatral ou pertenceram à Escola de Artes Dramáticas ou tiveram seu grupo de teatro ou continuam fazendo teatro. Tarcisio Meira e Glória Menezes, é raro o ano em que eles não montam uma peça de teatro. E assim por diante: Regina Duarte saiu da televisão, começou em teatro, fez um enorme sucesso em televisão, voltou para o teatro e faz as duas coisas. E assim é com praticamente todos os grandes nomes da televisão. Então a televisão ajudou até no sentido da concorrência. Muita gente pensa que as pessoas que são apaixonadas por televisão não irão ao teatro, porque os programas são à noite e os espetáculos também são à noite, não irão. Não é verdade. O maior fã de televisão, tem o dia em que ele tem aquele estalo de inteligência, ele desliga a televisão e quer ver a um espetáculo teatral [risos]. Então, eu acho que a televisão ajudou o teatro e num outro sentido também. Um certo tipo de pecinha, mais "água com açúcar" e que pode ser levada na televisão, esse gênero o teatro não faz mais, quer dizer, a televisão foi uma coisa que estimulou, instigou o teatro. Você atualmente procura no teatro novos caminhos, diferentes da televisão, que não tenham exatamente os mesmos atrativos das histórias que você vê na televisão. Então, o teatro se diferenciou mais ainda da televisão, o que eu acho que é um benefício.

Cacá Rosset: Agora, Paulo, eu acho que, principalmente, durante a década de 1970, o padrão estético do teatro passou a ser a televisão, para uma peça dar certo teria que ter um ator de televisão, o discurso passou a ser um discurso televisivo, o tipo de cenografia era uma cenografia de televisão, o tipo de interpretação era uma interpretação mais naturalista, como de novela e tal, o teatro passou a ser uma tela ampliada. As pessoas saiam de casa, tinham esse click, mas ligavam um outro click. Passavam a ir ao teatro para ver uma tela ampliada, um pouco que reproduzindo, quase que de uma forma muito semelhante, muito próxima, uma coisa de televisão. Eu acho que isso durante um tempo até deu certo. Agora, eu acho que talvez esse click ali e esse outro click do teatro só podem acontecer se o teatro, efetivamente, se colocar até como uma coisa alternativa em relação à televisão. Não reproduzir a linguagem da televisão, mas encontrar a especificidade da sua linguagem.

Paulo Autran: Exatamente isso que eu disse, a televisão obrigou o teatro a procurar os seus meios específicos de expressão, de comunicação, que não podem e não devem ser exatamente os da televisão.

Cacá Rosset: Agora, você acha que de um modo geral, está acontecendo isso com o teatro? Ou o teatro continua um pouco imitando a televisão?

Paulo Autran: Eu acho que o teatro aproveitou as conquistas do rádio, o teatro aproveitou as conquistas do cinema, o teatro aproveita as conquistas da televisão. E eu acho que o fato de o teatro ser uma arte em constante progresso, permite a ele usar todos esses recursos e descobrir recursos novos e é o que vem acontecendo. O teu espetáculo é uma prova disso, que não tem nada a ver com televisão e ainda você faz até uma certa crítica à televisão. Quantos espetáculos existem, quantas peças existem em que o tema é justamente a sátira à mesmice de certos programas de televisão, não é? Então, a televisão inspira, a televisão está na ordem do dia, a importância da televisão é uma coisa que seria ridículo não reconhecer. A televisão faz parte da vida do brasileiro, do ser humano do século... da segunda metade do século XX, então desconhecer a importância da televisão seria ridículo. A televisão é importante, então o teatro, que está sempre atento ao que acontece, o teatro ora imita, ora critica, ora satiriza a televisão. E eu acho que é inteligente até você usar certos recursos de televisão para permitir uma maior comunicabilidade com a platéia. Agora, um espetáculo que seja totalmente distinto disso e que seja inteligente, que seja bom também. Não há... é aquilo que eu digo, a gente não pode dizer assim: há um único caminho para o teatro. Não! Sempre houve uma infinidade de caminhos, porque o material com que o teatro trabalha é a imaginação. E a imaginação do ser humano absolutamente não tem limites, graças a Deus!

Cacá Rosset: E você gosta mais de fazer teatro, televisão ou fazer cinema?

Paulo Autran: Eu gosto de fazer teatro.

Rodolpho Gamberini: Pedro Augusto Costa está ali, ao lado do Cacá, é jornalista e quer lhe fazer a próxima pergunta, Paulo.

Pedro Augusto Costa: Então, voltando um pouco aos seus sessenta e quatro anos, eu queria perguntar a você uma coisa. Você recusou um papel da Rede Globo, na próxima novela porque a Rede Globo te deu um papel de um velhinho bonzinho, segundo as suas próprias palavras. Depois você vai fazer, falou comigo também, que você queria ficar mais velho um pouco para fazer O rei Lear [personagem principal da tragédia escrita por William Shakespeare em 1606 que aborda os problemas encontrados por um rei quando ele decide fazer a partilha do reino entre as três filhas], de Shakespeare, e agora vai fazer o Tributo [espetáculo montado em 1987, escrito por Bernard Slade, que trata da tentativa que um doente terminal faz de desenvolver uma relação afetuosa com seu filho. Em 1980, um filme homônimo foi estrelado por Jack Lemmon e dirigido por Bob Clark], dentro em breve, para também fazer um papel de um senhor de idade que está às voltas... [sendo interrompido]

Paulo Autran: Em o Tributo, eu faço o papel de um homem da minha idade.

Pedro augusto Costa: Da sua idade. Eu queria perguntar para você... [sendo interrompido]

Paulo Autran: Que Romeu não dá mais para eu fazer!

[Risos]

Pedro augusto Costa: Eu queria perguntar para você como é que é essa relação, hoje, com tantos anos de carreira? Parece que trinta e cinco anos de carreira... Como é que você...

Paulo Autran: Trinta e sete.

Pedro augusto Costa: Trinta e sete anos. Como é que você vê a sua maturidade enquanto homem e enquanto ator?

Paulo Autran: Eu não sei se eu vejo a minha maturidade, só quando eu vejo as minhas fotografias e digo: "Puxa, estou velho mesmo!". Mas o que eu disse a você é o seguinte: eu recusei o papel, não porque era um velho, porque eu acabei de fazer um filme, O país dos tenentes [drama, lançado em 1987, dirigido por João Batista de Andrade, que narra o drama de um general da reserva que participou das revoltas de inspiração tenentista. No dia em que seria homenageado por uma multinacional, o general entra em crise pessoal e começa a rememorar os momentos dramáticos, as traições, os ideais frustrados e as divergências políticas do movimento tenentista no Brasil. Por esse filme, Autran ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Brasília], em que eu faço um homem de mais de oitenta anos. Mas eu adorei fazer esse filme, porque é um homem que tem mais de oitenta anos, ele tem problemas de um homem de oitenta anos, mas ele tem problemas de um ser humano. É um personagem que reavalia a sua vida, portanto tem uma vitalidade extraordinária, uma inteligência extraordinária para revalorizar... aos oitenta anos ele descobre coisas novas na vida dele. Então, esse é um personagem fascinante. Agora, quando me dão para fazer um velhinho, que é um velhinho que foi criado por um jovem que não tem a idéia do que seja a cabeça de um homem de mais idade e que, portanto, transforma aquilo, não em um personagem, não numa pessoa, mas num clichê, num estereótipo assim: o velho... Então, para aquele jovem, o velho só tem uma gama de sentimentos porque aquele jovem nunca raciocinou para pensar que [Pablo] Picasso [(1881-1973) artista plástico espanhol, um dos maiores nomes das artes plásticas do século XX. Desenvolveu o cubismo, vanguarda modernista, e é autor de Guernica, 1937, painel sobre a guerra civil espanhola, entre 1936 e 1939, sua obra mais famosa], aos noventa, tinha uma cabeça que poderia ser chamada de uma cabeça eterna, uma cabeça que sempre raciocinou, que sempre criou coisas novas e tinha noventa anos. Então, a idade nem sempre é um limite à capacidade do ser humano de raciocinar, de sentir, de agir, de ser até influente no seu ramo de atividade. E quando um jovem, normalmente, escreve sobre um velho – para ele, acima dos cinquenta –, já é uma coisa decrépita [gesticula colocando a mão na fronte insinuando confusão mental], sabe, são seres que já não raciocinam mais, então viram apenas um clichê. Então o que eu não tive vontade de fazer é, assim, o velhinho bonzinho, porque o velhinho bonzinho é um personagem que não existe. Então não quis fazer, porque o ser humano é bonzinho, é mauzinho, tudo ao mesmo tempo, tudo junto, não é? Ninguém é uma coisa só. E o meu personagem me pareceu, assim, ser uma coisa só. Ele é o velhinho bonzinho, a heroína da novela ia chorar no ombro dele quando tinha um problema, o rapaz ia chorar no ombro dele quando tinha um problema e ele só dizia coisas boas. Então, quer dizer, não tive vontade de fazer o personagem, embora grande, embora importante... e que provavelmente, se for muito bem feito, pode até ter uma grande aceitação pública, eu reconheço isso. Quem vai fazê-lo é um excelente ator, que tem um senso de humor muito grande, pode transformar esse personagem até numa coisa brilhante. Mas, no momento, ao ler aquilo eu não quis me dar ao trabalho de pegar aquele personagem e transformar em alguma coisa brilhante para convencer o autor da novela que devia modificar um pouco o personagem. Então, eu preferi não fazer.

Rodolpho Gamberini: Paulo, uma personagem, assim, do velhinho bonzinho não tem nada a ver com o Paulo Autran da vida real, foi por isso que você não gostou da construção da personagem?

Paulo Autran: Mas eu expliquei, eu acabei de explicar por que eu não gostei de fazer, eu não gostei, assim como eu não gostaria de fazer o velhinho mauzinho, sabe? [risos] Porque o velhinho mauzinho também não existe.

Chico de Assis: É a mesma coisa.

Paulo Autran: É a mesma coisa. Então, se você dá a um personagem uma única característica, esse personagem deixa de ter o clima, um clima de naturalismo, de realidade. Ninguém é uma coisa só.

[Falam simultaneamente]

Chico de Assis: Agora é a minha vez, espera um pouquinho.

Rodolpho Gamberini: Não, não, não. Chico, espera aí...

Chico de Assis: Eu queria perguntar uma coisa – para não deixar fugir o velhinho bonzinho –, que é a seguinte: eu acho que esse é o grande problema que existe no teatro, principalmente quando você não é o dono da companhia e não pode escolher o repertório. Então, você é obrigado a passar por vários tipos de experiência, que você vai recolher de uma certa forma ou vai ser profissional e vai fazer às vezes uma coisa que você não esta gostando. Mas eu queria saber do Paulo Autran, que na maior parte das vezes da sua carreira escolheu os papéis que fez, no que mudou a sua personalidade, no contato com essas vidas, nessas personagens vividas, nesses trinta e sete anos de teatro?

Paulo Autran: Eu acho que qualquer pessoa que entre em contato com qualquer coisa relativa à arte, que entre em contato, principalmente, com a dramaturgia, em que você lida com o quê? Com psicologia, você lida com seres humanos, você lida com personagens que o autor criou e você tenta dar vida a eles e você tenta entendê-los, não é verdade? Seja o seu personagem um vilão dentro da história ou um herói dentro da história, você é obrigado, para dar uma veracidade àquele vilão, você é obrigado a descobrir naquele vilão as suas pequenas qualidades humanas. Os defeitos e as virtudes que todo ser humano tem, mesmo quando a ação principal daquele indivíduo foi má, você tem que defender o seu personagem, mesmo quando ele é um personagem negativo, para que ele tenha carne e osso, para que a platéia acredite que aquele personagem existe. Ao fazer isso, evidentemente, você é obrigado a conhecer várias situações da vida, da história, da política, da situação familiar. Então, eu acho que a arte abre a cabeça das pessoas, abre muito, razão pela qual o burguês, normalmente, aquele que não tem acesso à arte, aquele que tem a sua vida marcada por um horário, por um certo tipo de trabalho, ele tem, inconscientemente, uma inveja do artista, mas é uma inveja que leva alguns a amar os artistas e leva outros a irem contra os artistas, a quererem classificar os artistas com um tipo de superioridade que, na verdade, eles não têm. E tudo isso é motivado pela vontade de ser, de poder ter aquela visão do mundo que normalmente os artistas têm: mais ampla, mais generosa.

Hamilton Monteiro: Paulo, ainda no sentido desse trabalho de que você está falando, eu concordo com tudo isso que você falou, mas dentro daquilo que você estava falando no início, no trabalho com esses personagens, qual seria a diferença fundamental nesse trabalho que é um trabalho de proximidade, realmente é um trabalho perigoso, onde você está lidando com sentimentos, com emoções... qual seria a diferença fundamental para você entre o trabalho para fazer um personagem no teatro e na televisão, basicamente, sem falar em cinema? Qual seria a diferença fundamental no trabalho do ator?

Paulo Autran: Eu acho que o trabalho de criação de um personagem é a criação de um personagem no cinema, na televisão, no rádio, numa novela de rádio ou seja onde for. Ou o artista cria ou não cria bem o seu personagem. Agora, a forma de expressão varia, então no momento em que você sabe que você tem uma câmera que está aqui, você sabe que no seu olhar está o seu pensamento. No momento que você sabe que no teatro você tem que falar com a última fila que está a vinte metros de distância, se você não expressar mais, aquilo não será entendido pela pessoa que está sentada lá longe. Essa é, em resumo, a diferença que é uma diferença quase óbvia, não é?

[...]: Normal, para você!

Rodolpho Gamberini: A pergunta próxima que eu gostaria que você respondesse é do Ninho Moraes, jornalista da TV Bandeirantes.

Ninho Moraes: Paulo, é o seguinte: você ficou dezoito anos sem fazer cinema, você voltou a fazer no ano passado e esse filme deve ser lançado agora. Eu acho que este ano, apesar de você estar com essa peça, o Tributo, eu acho que esse vai ser o ano de Paulo Autran no cinema, como em sessenta e oito foi Paulo Autran com Terra em transe. Eu queria que você fizesse essa ponte: o que aconteceu? Os cineastas não te convidavam com medo de você? Você não se interessou pelos papéis que te ofereceram? E como é que você viu essa diferença?

Paulo Autran: Eu quase não recebi convite nenhum. Eu recebi um convite do Nelson Pereira dos Santos, que eu admiro profundamente, para fazer O alienista [livro de Machado de Assis - entre conto e novela - que conta a história de Simão Bacamarte, o médico que, com rigor científico, vai declarando os moradores de uma cidade, um a um, dementes, recolhendo-os em um hospício, refeletindo o que seja a razão, a alienação, a condição humana]
, e então combinei com ele a época da filmagem, o local da filmagem, que seria em Parati, e ficou tudo certo. E eu fui para Parati, eram férias que eu tinha, e depois do filme eu ia montar Morte e vida severina [poema dramático de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) que narra em versos a viagem do retirante Severino, de sua terra nos limite da Paraíba até Pernambuco. Em sua peregrinação, Severino encontra a morte várias vezes, numa emboscada, na seca que retorce as plantas e os homens do agreste e faz minguar o rio Capibaribe, no próprio velório. É o mais conhecido trabalho do premiado poeta pernambucano, transformado numa peça homônima, com músicas de Chico Buarque, que fez sucesso em diversas cidades do Brasil e do exterior. Estreou no Teatro da Universidade Católica (Tuca) em 1965 e, em 1969, ganhou nova montagem pela Companhia Paulo Autran], e eu ia viajar com a peça, o elenco já estava todo contratado, pelo Brasil inteiro, como efetivamente fiz. Como costuma acontecer no cinema nacional, o financiamento para o Nelson fazer o filme saiu no dia em que estavam começando os ensaios do Morte e vida severina – e eu não pude fazer. Tive poucos convites para fazer cinema.

Ninho Moraes: Era O asyllo muito louco [filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1970]?

Paulo Autran: Que depois ele chamou de O asyllo muito louco e modificou o script [roteiro] todo e o script inicial era muito mais próximo do conto de Machado de Assis do que ele depois filmou. Eu ia fazer O alienista mesmo, não o padre, mas o médico, que depois foi um personagem que ele tirou, mas era o protagonista do conto de Machado de Assis. Tive muito poucos convites. Uma ocasião me convidaram para fazer um filme, que era um filme sobre tortura e era um filme cômico, ridicularizando a tortura. E eu achei que não era absolutamente possível, àquela altura, se brincar com tortura e não aceitei. E foram muito poucos. Uma ocasião também, um amigo meu me disse que um colega dele, que era diretor de cinema, queria muito que eu fizesse um filme que ele escreveu, mas não me convidou porque sabia que eu, para vir para São Paulo exigia um hotel cinco estrelas, exigia um carro com chofer na porta e pedia os tubos. Acontece que eu moro em São Paulo, tenho automóvel, então era uma total mentira. Então as lendas correram e, talvez, muito diretor deixou de me convidar por causa disso.

Rodolpho Gamberini: Como disse o Patrício Bisso, "os tubos" [muito dinheiro] você pediria mesmo. O único erro, o carro e o hotel, não, mas...

Paulo Autran: No cinema ninguém pode pedir os tubos. Cinema no Brasil... é impossível pedir os tubos, porque os orçamentos são muito pequenos e os orçamentos prevêem, em geral, a construção dos cenários, o pagamento disso, daquilo, e a verba para os atores é sempre a menor, porque sempre se conversa e quando o filme é interessante você sempre acaba fazendo porque acha que vale a pena participar daquilo.

Ninho Moraes: Como é que foi o trabalho com o Glauber [Rocha]? Como é que você...

Paulo Autran: O meu trabalho com o Glauber... pois, se você perguntou o que eu ganhei, ganhei uma miséria porque não tinha dinheiro nenhum...

Ninho Moraes: Eu digo o trabalho, não estou perguntando do dinheiro.

Paulo Autran: Com Glauber foi uma delícia trabalhar, contrariamente ao que ele mesmo dizia depois dos filmes, ele era um sujeito brilhante, de uma inteligência, de uma delicadeza extraordinária. O trato durante as filmagens do Glauber com os atores era o mais amigável, o mais simpático, o mais agradável possível. Depois de filmar Terra em transe, eu leio uma entrevista do Glauber em que a repórter perguntava a ele: “Como é que você consegue esse resultado sensacional com os seus atores?” E dizia assim: “É muito simples, eu tenho uma técnica, eu irrito o ator e, quando ele explode de raiva, aí eu filmo”. O que era uma invenção dele, naquele momento... que nunca aconteceu isso, comigo pelo menos, nas filmagens de Terra em transe. Era um clima maravilhoso. Depois dos intervalos das filmagens, conversar com o Glauber daquela época era muito agradável, um sujeito inteligente, culto, com idéias ótimas. Era fantástico!

Rodolpho Gamberini: O Marcos Weinstock, daqui da TV Cultura, quer te fazer a próxima pergunta.

Marcos Weinstock: Bom, Paulo, eu queria te perguntar como é que foi voltar a fazer cinema depois de vinte anos?

Paulo Autran: Eu voltei na Europa. Eu fiz um filme francês chamado Vertigens [Vertiges (1985), dirigido por Christine Laurent, drama sobre a conquista e a perda do amor numa companhia de ópera que se prepara para apresentar "As bodas de Fígaro", peça cômica em quatro atos de Wolfgang Amadeus Mozart] e foi muito engraçado, porque nesse filme trabalham o Henri Serre, que trabalhou em Jules et Jim [Uma mulher para dois, filme que conta a história de dois amigos e o amor dos dois pela mesma mulher, baseado em livro inspirado na própria vida do autor, Henri-Pierre Roché (1879-1959), que François Truffaut, o diretor do filme, encontrou por acaso num sebo de Paris e achou que era um "hino ao amor e à vida"] com a Jeanne Moreau [atriz que vive a personsagem Cathérine, pela qual se apaixonam Henri Serre (Jim) e Oskar Werner (Jules)] dirigido por... Quem é o diretor que dirigiu?

Rodolpho Gamberini: [François] Truffaut [(1932-1984), diretor e ator francês].

Paulo Autran: Trabalhava a Magali Noel, que trabalhou muito com Fellini, fez vários filmes com Fellini, trabalhava Cristina Janda, que é uma polonesa, atriz preferida do grande diretor polonês [Andrzej] Wajda, quer dizer, três grandes nomes de cinema. E eu, que era um ator de "là-bas" [lá, em francês], quer dizer, um ator de um país que ninguém sabia o que era na Europa... Imagina o que na cabeça de um grande ator francês ou europeu o que é que pode ser um ator do Brasil? Onde é que ele fica? Qual é a capital do Brasil? Onde é que é? O que é que vocês comem lá, bananas? Era mais ou menos nessa base. Então, no primeiro dia de filmagem, eu estava um pouco complexado porque, "oh, meu Deus, como é que essa gente vai me tratar"? Eles não têm idéia se eu sou bom ator, se eu não sou bom ator... E meu primeiro dia de filmagem foi justamente contracenando com Henri Serre, numa cena em que a cena era mais minha do que dele. Na terceira tomada que a gente fez, quando acabou a tomada, ele chegou junto de mim e disse assim: "Você acha que eu disse bem aquela frase?". Aí, meu coração se abriu [abre os braços representando a descontração], porque era o mesmo clima que a gente tem no Brasil, a mesma coisa. Me trataram muito bem e a filmagem foi ótima,e o meu papel era um papel sensacional no filme, aliás, muito melhor que o dele. Era o melhor papel masculino do filme, muito bom mesmo, “o maestro”.

Rodolpho Gamberini: O Patrício Bisso, que está ali.

Chico de Assis: Só um aparte para não perder... Na confluência do cinema com o teatro, está o [Adolfo] Celi, que fez com você durante anos, a Companhia Tônia-Celi-Autran [Companhia CTATA] e agora é o ator e diretor aqui.

Paulo Autran: Morreu, agora morreu.

Chico de Assis: Agora morreu, mas vive, está vivo na memória de todos [risos], como ator. Como é que houve essa troca, você passando para diretor e o Celi passando para ator?

Paulo Autran: A história do Celi é muito engraçada, porque, quando o Celi veio para o Brasil, o Celi já tinha feito inúmeros filmes na Itália e tinha sido protagonista de um filme chamado É proibido roubar. Então, ele estava no auge de sua carreira cinematográfica quando ele largou tudo para vir dirigir teatro no Brasil, porque ele tinha um fascínio muito grande pela América. E adorou o Brasil. Aqui ele teve as grandes paixões da vida dele. Muitos anos depois de ele estar na Europa, cada vez que eu ia a Roma procurar o Celi, quando ele me via ele ficava com os olhos cheios de lágrimas de saudades do tempo que ele passou aqui. Ele era fanático pelo Brasil e deixou inúmeros amigos aqui. E o Celi era um homem de uma extraordinária capacidade, não é? Quando o Celi veio para o Brasil, dirigiu e criou na verdade aquele nível extraordinário dos espetáculos do TBC [Teatro Brasileiro de Comédia criado em 1948, em São Paulo, por Franco Zampari, industrial italiano, a princípio destinado a abrigar grupos amadores e que depois se transformou em uma companhia profissional, contando com os melhores atores desses grupos] naquele tempo, ele era um homem de uma grande capacidade, um homem que tinha feito um curso de teatro muito importante na Itália, que tinha uma experiência, já tinha dirigido o [Vittorio] De Sica [cineasta Italiano], como ator em teatro em Roma e numa época em que havia muito poucos diretores nacionais, praticamente não havia. Era uma época em que cada ator dirigia sua companhia e dirigia os seus espetáculos. A figura do diretor de teatro foi uma figura que começou a existir a partir do TBC, no Brasil, não lá, mas realmente porque cada vez que alguém pensava em montar um espetáculo extraordinário, o Hamlet [peça de Shakespeare publicada em 1603 que narra a tragédia de um príncipe da Dinamarca que descobre que o tio matou seu pai para ficar com o trono. É uma das obras mais representadas da história] do Sergio Cardoso, foi dirigido por um alemão, depois apareceu um polonês, chamado [Zbigniew] Ziembinski [(1908–1978), diretor e ator], que ensinou direção no Rio de Janeiro. E em São Paulo não estavam nem o Ziembinski, nem o Hoffmann-Harnisch, que dirigiu o Hamlet [em 1948, no Teatro Fênix, Rio de Janeiro], então não havia a figura do diretor de teatro no Brasil. E foi o Celi que, nessa ausência de diretores, chamou outros colegas, chamou o Ziembinski, chamou o Ruggero Jacobbi, que estavam sem emprego no Rio de Janeiro os dois, sem ter o que fazer. Vieram para o TBC e, realmente, com a junção desses diretores extraordinários, foi possível transformar aqueles amadores de teatro que estavam começando, em artistas de um determinado nível. E aquela junção do Celi, a vinda do Celi... foi como se ele fundasse uma escola de interpretação no Brasil. Então, eu acho que o Celi foi um marco importantíssimo para o desenvolvimento do teatro brasileiro.

Chico de Assis: E a sua passagem de ator para diretor?

Paulo Autran: Eu continuo como ator. Eu adoro dirigir, me apaixono pela direção de uma peça, mas eu reconheço que, como diretor, sou um ator que coordena o trabalho dos colegas apenas. Como diretor, o que me interessa é a interpretação de cada um, entendeu? Ao passo que eu acho que quem nasce diretor, além de ele querer uma boa interpretação, ele tem determinadas visões de espetáculos e de tudo que eu, como diretor, deixo de lado. Então eu sou mesmo é ator.

Rodolpho Gamberini: Patrício Bisso está ali fazendo sinal faz tempo, deixa ele fazer a pergunta.

Patrício Bisso: Paulo, você fala assim de seus papéis: Romeu, Lear. Tem, assim, algum papel que você faria que não fosse o principal? Alguma vez lhe passou, assim, na cabeça montar alguma coisa em que você não fosse o ator principal?

Paulo Autran: Já fiz várias vezes.

Patrício Bisso: Bom, mas hoje em dia?

Paulo Autran: Hoje em dia, olha, se você me entrega uma peça que me apaixona, na qual o meu papel não é o principal, mas se realmente aquela peça me diz alguma coisa, eu monto. Eu montei O homem elefante [de Bernard Pomerance, baseado no livro de Sir Frederick Treves e Ashley Montagu: Estudo da dignidade humana], com Ewerton de Castro e o Antonio Fagundes, o papel principal do Everton de Castro. O Fagundes não pôde depois prosseguir, porque tinha compromissos na televisão e eu fui fazer o papel do Antonio Fagundes. Isso recentemente, por quê? Porque eu tinha paixão pela peça. Dirigi a peça porque, desde que eu li, fiquei fascinado por ela. Então, não tenho essa preocupação. Agora, por exemplo, eu vou fazer um protagonista absoluto nessa peça o Tributo, e é uma peça de que eu não sou o empresário, eu sou um ator contratado. No ano de 87 eu quero tirar férias das chateações e dos pequenos problemas que um empresário tem, porque é verdade que um empresário de uma peça de sucesso ganha muito mais de que qualquer ator pode ganhar, mas ao mesmo tempo ele tem tanta chateação, tanto probleminha que eu quero tirar férias. Então, este ano eu sou contratado do Ben Hur Lobo Prado [empresa editora e promotora] e vou fazer como ator exclusivamente o Tributo, que é um papel que vai exigir de mim, sabe, o papel é um presente para qualquer ator. E é um papel lindo, é um papel de uma humanidade, é um papel que tem vários aspectos, sabe? É um personagem amplo, um personagem generoso, um personagem divertido que tem os seus defeitos também, e que reconhece os seus defeitos. Então, acho que é um personagem que fascina, fascinou a mim e eu tenho certeza que vai fascinar a platéia, com um elenco ótimo. Nós vamos estrear, deixa eu fazer o meu comercial, estreamos dia 18 de março, no Teatro Procópio Ferreira.

Patrício Bisso: Paulo, você acha que hoje em dia um ator para ser bem sucedido, mesmo profissionalmente, ele tem que procurar o seu material, ele tem que tentar montar as coisas ou um bom ator fica em casa esperando que o chamem e o convidem para fazer as coisas?

Paulo Autran: Isso é uma questão de temperamento, mas eu acho que por temperamento, as pessoas que ficam em casa esperando que a vida aconteça, em geral a vida, não acontece para essas pessoas, não é? Eu acho que em qualquer ramo, se você não se dedica, se você não sai à caça, se você não sai para conquistar as coisas as coisas não chegam as suas mãos.

Patrício Bisso: Mas se aqui existisse assim, uma companhia de teatro, assim, que montasse os clássicos, que você vai lá montar sem se chatear com a parte comercial e tudo, seria mais cômodo para um ator no Brasil? O ator aqui tem que sair, procurar o material bom, as peças boas...

Paulo Autran: Mas acontece que a gente vive no Brasil! A gente não vive nos Estados Unidos onde existem os grandes empresários que chamam os grandes nomes e pagam ordenados fabulosos para fazer os grandes papéis. É onde tem agências de empregos que empurram os atores para isso, para aquilo, para aquilo outro, e essas condições não existem aqui no Brasil, então a gente tem que raciocinar como brasileiro, e o nosso meio teatral é esse, então a gente tem que sair à luta mesmo.

Marcos Weinstock: Paulo, como você, Paulo Autran empresário, vê essa questão da Lei Sarney [criada em 1996 e reformulada em 1991 passando a ser denominada Lei Rouanet], com relação aos incentivos, a Lei...

Paulo Autran: Eu acho que essa lei, se for aplicada, se for bem aplicada, ela pode resolver, ela pode efetivamente ajudar a elevar o nível cultural do povo brasileiro. Quer dizer, se uma parte de soma fabulosa de imposto de renda que é pago anualmente, se efetivamente uma parte desse imposto for empregada nas atividades culturais, vai haver uma possibilidade de acesso à cultura de uma camada muito maior da população. Então, o que nós estamos esperando é que ela seja efetivamente aplicada.

Rodolpho Gamberini: Paulo, a próxima pergunta é do Chico Solano, que está bem aqui do meu lado.

Chico Solano: Voltando à questão da arte, Paulo, a maravilha e o fascínio da arte é ser ela eterna, não é? [É] Que a criação sobrevive ao criador. Mas no caso do ator de teatro, não. Morre um, morre a outra. Eu pergunto: em que essa falha ou essa consciência do ator de teatro determina a sua psicologia ou o seu temperamento?

Paulo Autran: Eu acho... para mim, o fato de o teatro ser efêmero, ser absolutamente fugaz... o teatro só existe naquelas duas horas de espetáculo, fora disso ele não existe. No momento em que você fixa a imagem do teatro ele deixa de ser teatro, ele passa a ser um programa mal feito de televisão, ele passa a ser um filme mal feito, porque a linguagem cinematográfica, a linguagem televisiva é totalmente diferente da linguagem teatral. Então, quando você fotografa, quando você filma uma peça de teatro, o resultado não tem nada a ver com o espetáculo que foi feito. Esse fato de o teatro ser efêmero, para mim, é um dos encantos do teatro. É uma daquelas coisas que faz com que o teatro seja aquele prazer único e insubstituível de você estar ali como espectador naquelas duas horas e você estar vendo uma coisa que só aquelas duzentas, trezentas ou quinhentas pessoas daquele momento, dentro daquela sala estão podendo assistir. Ninguém mais está vendo aquilo. Então, para mim é um fascínio isso e, se eu acreditasse, por exemplo, na vida eterna, que eu vou ser uma pessoa que vive eternamente, talvez eu me preocupasse em, como ator, em não ficar tanto como vão ficar os autores, quanto vão ficar os filmes, quanto vão ficar os programas de televisão, se é que eles vão poder ser guardados por todos os séculos, porque esse material, também, da televisão, provavelmente com o tempo, ele embolora. Mas para mim não é nenhum problema não ser eterno, sabe? Eu acho que a vida, o tempo da vida é uma coisa tão fascinante, tão maravilhosa e tão curto, então, é fantástico você viver, você estar vivendo, saber que sua profissão enquanto você vive... e não me interessa a mínima, depois que eu acabe, o que é que vai acontecer. Me interessa agora se eu pudesse ajudar quem vem depois, para que a coisa continue, mas não como o ator Paulo Autran, depois que eu morrer [gesticula com as mãos representando indiferença], eu não estou interessado.

Rodolpho Gamberini: O Jairo Arco e Flecha é o dono da próxima pergunta.

Paulo Autran: Porque, na verdade, na peça que eu estou montando, que eu estou interpretando agora, meu personagem diz uma coisa que acho que coincide exatamente com o que eu penso. Ele diz assim: “Deus para mim é assim, como um parente de meu pai que eu não conheci e que só conheço o nome”.

[Risos]

Rodolpho Gamberini: Jairo, por favor.

Jairo Arco e Flecha: Paulo você, na sua carreira que é uma carreira longa, uma carreira muito bem sucedida, você teve inúmeros sucessos e deve ter tido alguns fracassos, poucos fracassos. Mas eu pergunto uma coisa a você, independentemente de uma peça ou outra não ter ido tão bem como você esperava, você já se arrependeu de ter feito alguma peça ou algum personagem? Mas quando eu pergunto arrepender, é aquele arrependimento de verdade, arrepender mesmo. Você já sentiu isso alguma vez?

Paulo Autran: Nunca, nunca. Eu já fiz peças de que eu não gostei, mas eu nunca me arrependi de ter feito. Quando eu fiz Macbeth [tragédia de Shakespeare escrita provavelmente em 1605, em que Lady Macbeth, por ambição de se tornar rainha, convence seu marido, o general Macbeth, a matar o rei Duncan. O livro se baseia em fatos históricos da Escócia do ano 1040. O general conquista o trono, mas anos depois é morto pelo filho do rei assassinado], por exemplo, o espetáculo, inicialmente, não foi nada bem. Foi uma experiência duríssima. A estréia de Macbeth, no Rio de Janeiro, foi um desastre completo e eu sofri profundamente nessa estréia. Quando acabou a estréia, quando eu cheguei na minha casa, eu pensei assim: eu essa noite envelheci dez anos! Não é verdade, não envelheci nada, dez anos. E, depois, o Macbeth, o espetáculo foi se recompondo, quando eu estreei aqui em São Paulo, o espetáculo já estava muito melhor. E depois viajei com o espetáculo e muita gente entrou em contato com a obra de Shakespeare através daquele Macbeth que estreou tão mal. Então, talvez no dia da estréia se você me perguntasse: está arrependido? Eu estava profundamente arrependido. Mas um mês depois estava achando ótimo. Nunca me arrependi de ter feito e tive vários fracassos. Nunca me arrependi de ter feito nenhum. Agora, o que já é um lugar comum dizer que mesmo um fracasso é uma experiência, não é, e que, se a gente não ganha dinheiro, a gente ganha em experiência. Mas não é isso, não, é porque você tem que pensar no tempo que você ensaiou, no que te aconteceu nos ensaios, no que você se enriqueceu efetivamente, nos ensaios. Depois, não deu certo. E é preciso que, de vez em quando, uma obra de arte não dê certo na carreira de um artista, porque, se dá tudo certo, ele não se transforma, ele não melhora nunca, ele perde o estímulo. Então, efetivamente, um fracasso acorda a gente. Por exemplo, quando eu fiz, eu levei dois anos fazendo espetáculos meio mornos. Os espetáculos não eram um fracasso, mas não faziam sucesso. Foi o Macbeth, foi o Assim é, se lhe parece [peça em que duas pessoas apresentam visões contraditórias sobre uma terceira pessoa], do [Luigi] Pirandello, uma peça maravilhosa, e o meu espetáculo não foi grande coisa. As sabichonas [Les femmes savantes, peça em cinco atos de 1672 considerada uma crítica ao pedantismo, em que Molière denuncia o artificialismo da linguagem e do comportamento das mulheres "sábias"] de Molière, não foi grande coisa e o que é que eu fiz? Eu parei. Eu parei e pensei assim: o que é que está havendo? Eu sempre fiz sucesso e, de repente, dois anos nem falavam muito bem nem muito mal, o público ia e chegava na minha companhia e falava: “oi... interessante”, mas eu sentia: não está agradando muito. E a conclusão a que eu cheguei era que a culpa era exclusivamente minha, porque eu estava com muito mais preocupações de empresário do que de ator. Então, eu estava, nos ensaios, negligenciando o meu ensaio de ator para me preocupar se o tecido da fazenda do vestido da fulana foi comprado, se isso aqui estava certo, se o cenário estava sendo feito, entendeu? Então eu passava o tempo todo de ensaio com os problemas de empresário na cabeça e esquecendo a minha função de ator. Então a culpa era só minha. Aí eu fui fazer Em família [peça teatral Nossa vida em família, que estreou em 1972, dirigida por Antunes Filho], com o Antunes. Pedi a Antunes para me contratar para montar aquela peça, fiz e pude me dedicar exclusivamente ao papel daquele velhinho que o Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho
(1936-1974), filho do também dramaturgo Oduvaldo Vianna, Vianinha, como era chamado, viveu apenas 38 anos, tempo suficiente para ser reconhecido como um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira. É autor, entre muitos outros textos fenomenais, do famoso Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come] escreveu tão bem, que é um velho com todas as características de um ser humano e as características de um velho, também. Então, é um papel riquíssimo e foi um papel... que eu pude me dedicar totalmente a ele e aquilo me fez fazer as pazes comigo mesmo como ator.

Jairo Arco e Flecha: Aquele não era o velho bonzinho?

Paulo Autran: Não era. Ele era um... não velho bonzinho. Ele era velho que a platéia amava apesar de ele ser um pai chato, apesar de ele ter todos os defeitos que um homem tem. Era um belo espetáculo com um personagem fantástico.

Jairo Arco e Flecha: O contrário, Paulo... Então o arrependimento você, felizmente, nunca chegou a ter. Mas, então, no contrário disso, qual foi o grande momento para você em teatro? Um grande momento, assim, aquele momento que você acha inesquecível? Pode ter sido, assim, numa peça, num determinado espetáculo, mas qual foi?

Paulo Autran: Eu não sei. Eu acho que o fato de eu ter, quero dizer, a razão pela qual eu tenha paixão por teatro é porque o teatro tem me dado tão grandes momentos, momentos tão plenos, tão fantásticos. E são tantos. Eu poderia citar alguns a você, eu poderia citar toda a carreira do Liberdade, liberdade, uma parte da qual você fez junto comigo. E foi um momento, pra mim, de uma alegria tão grande de poder estar dizendo aquilo no momento em que está todo mundo amordaçado, entendeu? De poder ter driblado a censura a ponto de poder dizer aquelas coisas. E você se lembra de que quando acabou a carreira da peça em João Pessoa, a peça foi proibida no Brasil inteiro. Mas, aí, nós tínhamos... chegamos até João Pessoa. Então, aquilo foi um momento sensacional. Quando eu fiz My fair lady [Minha querida lady, comédia musical baseada no livro Pigmaleão, do escritor irlandês Bernard Shaw, cujo libreto foi escrito pelo norte-americano Alan Jay Lerner. Na Broadway, o musical havia sido um dos grandes sucessos, tendo estreado em 1956 e permanecido seis anos em cartaz, estrelado por Julie Andrews. Depois, em 1964, virou um filme dirigido por George Cukor, estrelado por Audrey Hepburn e premiado com oito Oscars] com Bibi Ferreira [uma das mais renomadas atrizes e diretoras brasileiras, filha do ator Procópio Ferreira. Obteve grande sucesso na direção de musicais dos anos 1970, como Brasileiro, profissão: esperança, O homem de La Mancha, Gota d´água e Deus lhe pague. Em 1983, estreou o musical Piaf, a vida de uma estrela da canção, que ficou seis anos em cartaz]. Eu fui acidentado, fiquei seis meses fora da peça, aliás, dez meses fora da peça e retomei a peça aqui em São Paulo. Ela estava em cartaz no Teatro Paramount, que ainda não eram os seis cinemas que são hoje. Era um grande teatro, com uma grande platéia, onde se podia fazer muito sucesso. E, na noite da minha estréia, foi noticiado, o Brasil inteiro sabia que eu tinha sido acidentado, então a platéia estava abarrotada de gente e, quando eu entrei em cena, antes de eu dizer a minha primeira palavra, o público se levantou e começou a aplaudir e aplaudir e aplaudir e aplaudir e aplaudir e eu tinha que me controlar para não chorar, porque se eu chorasse eu não ia poder fazer a peça. Então eu ficava tentando pensar em outras coisas e Bibi agarrou a minha mão com uma força incrível, eu fiquei de cabeça baixa dizendo: eu não posso chorar, eu não posso chorar, eu não posso me emocionar, mas eu estava a mil por hora. Foi um momento lindíssimo! E assim tive tantos outros, tantos outros. Quando eu fiz, por exemplo, Entre quatro paredes, em Buenos Aires, nós tivemos o teatro só quinze dias, então fizemos várias peças no teatro, no repertório estava escrito que nós íamos fazer o Entre quatro paredes, do Sartre, mas não tínhamos mais o teatro, porque no dia seguinte, naquele teatro, estreava uma companhia francesa, a do Jean Vilar, o Teatro Popular do Jean Vilar estreava lá, então, nós fomos fazer o Entre quatro paredes na aula magna da universidade argentina. De graça. Então estavam todos os professores, alunos, onde coubesse aluno tinha aluno, tinham duas mil pessoas assistindo. E nós gravamos os aplausos, foram quinze minutos de aplausos ininterruptos. Também foi um momento maravilhoso para a gente, maravilhoso!

Rodolpho Gamberini: Paulo, eu queria...

[Falam simultaneamente]

Chico de Assis: Paulo... [sendo interrompido]

Rodolpho Gamberini: Chico, Chico de Assis, eu tenho um problema, Chico! Paulo, eu tenho um problema. Uma das semelhanças da televisão com o teatro é que a televisão também tem intervalo. É o que nós vamos fazer agora e a gente volta daqui a um pouquinho e eu juro que eu deixo você falar depois do intervalo. Nosso intervalo, aí você volta falando, por favor, nosso intervalo, aí você volta. Obrigado.

[intervalo]

Rodolpho Gamberini: Nós voltamos, então, com o Roda Viva, esta noite entrevistando o ator Paulo Autran. E antes de fazer o intervalo, o Chico de Assis, teatrólogo, quase brigou comigo, aqui, queria fazer a pergunta do hospital, então vou passar a palavra para ele, Paulo, eu sei da pergunta do hospital que ele quer fazer. Vamos lá, Chico.

Chico de Assis: Exato. Principalmente porque os atores, em geral, eu também sou ator – eu fui ator, depois parei e me dediquei a escrever mas eu fui ator também – então eu sei que os atores são pessoas que gostam de uma vida bem que cheia de coisas, de novidades e aquilo que a gente mais detesta, assim, é ficar muito tempo detido em alguma coisa e, de repente, a gente pega um ator, a gente coloca ele dentro de um saco de gesso, oito meses em uma cama de hospital, as aventuras desse ator, nesses oito meses, devem ser contadas.

Paulo Autran: Efetivamente, eu tive uma série de fraturas e fiquei oito meses imóvel no hospital no Rio de Janeiro. E hoje em dia, quando eu penso que foram oito meses, eu custo a acreditar, porque a minha impressão é a que esses oito meses voaram. Nunca houve um dia em que eu não tivesse visitas, sempre muitas visitas. Fiquei amigo de todos os enfermeiros, todas as enfermeiras, aliás. E, quando acabava a hora das visitas, as enfermeiras iam para o meu quarto e uma das coisas que me estimulou muito lá dentro é que às vezes elas me contavam problemas do emprego delas, de injustiças que elas sofriam lá dentro, de ordenados mal pagos a elas. No dia seguinte, eu telefonava - o telefone era ao lado e com o braço eu podia mexer - para o sindicato dos enfermeiros no Rio de Janeiro e denunciava: "Olha, venham ao hospital tal, procurem a ficha da empregada "fulana de tal" e vejam que ela não está sendo paga direito, pá, pá, pá...". Eu acertei a vida de as enfermeiras todas lá de dentro e nunca nenhum médico ficou sabendo disso. Os médicos me tratavam muito bem, o dono do hospital me tratava muito bem e as enfermeiras me tratavam de uma maneira espetacular. Então foi ótimo! E foi um tempo também bom... você sabe que foi nessa minha doença que eu pela primeira vez li – minha doença não, meu acidente – que eu li o Guimarães Rosa? Então, eu devo àquele gesso o fato de eu ter coragem de começar a ler o Corpo de baile, que é um livro desse tamanho [faz o gesto indicando a espessura do livro, publicado em 1956, reunindo sete novelas que viriam depois a ser publicadas em três volumes: Manuelzão e Miguilim, com as novelas "Campo geral" e "Uma estória de amor";  No Urubuquaquá, no Pinhém, com "O recado do morro", "Cara-de-bronze" e "A história de Lino e Lina"; Noites do sertão, com "Dão-Lalalão" e "Buriti"]. A primeira edição do Corpo de baile eram os contos todos reunidos em um volume só. Aquilo foi um mundo extraordinário que se desvendou para mim, do Guimarães Rosa. Li Ascensão e queda do Terceiro Reich [clássico sobre o nazismo alemão escrito por William L. Shirer, em 1960], que é um livro fantástico também, que me abriu muito os olhos e que tive a oportunidade de ler lá. Agora, as revistas e os jornais que me levavam, eu não tinha tempo de ler, porque o dia inteiro tinha gente no meu quarto. Então, foi uma época divertida que passou voando e que foi muito útil para mim.

Rodolpho Gamberini: O Patrício Bisso tem uma pergunta para fazer para você, Paulo.

Patrício Bisso: Bom, já que o ambiente está muito bondoso com o senhor, gostaria de perguntar assim: se tem alguém, algum ator, atriz que, mesmo que lhe pagassem os tubos, você não trabalharia ou você nunca mais voltaria a trabalhar? Nomes, nomes, diga...

Paulo Autran: Nomes eu não vou dizer. Mas tem uns três...

Patrício Bisso: Descrição física.

[Risos]

Paulo Autran: Você sabe, Patrício, o meu temperamento é o seguinte: quem fala dos atores, das atrizes é a imprensa. A imprensa, o crítico vai, diz o que quer, as colunas de fofocas dizem o que querem. Então eu, pessoalmente, eu acho que o que eu deva falar dos meus colegas é quando eu tenha coisas boas para dizer deles. E, efetivamente, há uns dois ou três atores com quem eu não pretendo trabalhar. Alguns com quem eu trabalhei e não pretendo trabalhar mais, outros com quem eu nunca trabalhei, mas sei, pela maneira deles serem, que eu jamais aceitaria trabalhar com eles.

Patrício Bisso: Mas por quê? O que eles aprontaram? O que lhe aprontaram? Alguma coisa que alguma dessas incógnitas já lhe aprontou?

Paulo Autran: São uns certos temperamentos de pessoas que não combinam com os meus. Então, para que juntar duas coisas que não se dão bem, não é? Então eu prefiro não trabalhar mais.

Patrício Bisso: Mas um duelo entre Titãs [na mitologia grega, 12 dos filhos de Gaia (a Terra) e Urano (personificação do céu estrelado) – que também geraram os hecatônquiros e os ciclopes – ancestrais tanto dos deuses olímpicos quanto dos seres mortais], assim, um desafio trabalhar com alguém que você odeia?

Paulo Autran: Duelo de Titãs é um bom nome de filme, não é? Mas não houve isso. Houve apenas afastamento.

Patrício Bisso: A Mirela, ela só trabalha com teatro de bonecos, então ela quer saber... "Paulo, uma pergunta de uma atriz que tem passado a maior parte da sua carreira atrás de um boneco: você já experimentou essa sensação de atuar através de um fantoche, sempre cedendo o seu lugar a uma cena, a uma cara de papel machê ou espuma ou feltro?

Paulo Autran: Eu acho admirável você fazer isso, sabe? Porque, normalmente, a mola normal que leva uma pessoa a procurar o teatro é o latente e inconsciente exibicionismo que todos têm. Então, nos atores, isso inicialmente é tão forte, que ele é obrigado a procurar uma coisa na qual ele se exiba, e o teatro, o palco, é isso. E depois, com o correr do tempo, você percebe que o teatro é muito mais importante que apenas uma exibição pessoal e você, então... aí então você se apaixona pelo teatro e não pela sua imagem no teatro. Agora, resistir ao seu exibicionismo e você divertir as crianças, divertir os seus espectadores, seja de que idade forem, atrás de um boneco, eu acho uma coisa admirável. Eu, uma única vez, representei atrás de uma máscara. Nós tínhamos montado uma peça infantil na Companhia Tonia-Celi-Autran, em que havia um papel de um burro e o ator que fazia o burro, um belo dia, não apareceu no teatro. Então: Paulo entra. Eu digo: mas o burro fala? “Não, não fala nada. A gente empurra você e você vai para o lado e depois você zurra” [risos]. Ah, não tem problema, eu zurro. Aí quando me enfiaram dentro daquele negócio todo, de burro, me deu uma sensação terrível de estar ali dentro e então me empurravam para um lado e me diziam assim: zurra! Eu disse: "Ai, meu Deus, como se zurra, como é que se zurra?". Mas o som do zurrar não apareceu na minha cabeça e não agüentei e eu fiz assim: "Haum... Haum!". Eu tinha que emitir algum som, então eu acho que o único burro que latiu na história do teatro infantil foi o meu, naquele único dia. [Risos]

[...]: De repente, não é tão altruísta, assim. A gente tem muitos ciúmes, aí você tem que passar...

Patrício Bisso: Ela acha que o ator não é tão altruísta assim, que ele tem muito ciúmes dos bonecos.

[Risos]

Rodolpho Gamberini: Boa tradução, Patrício, muito boa!

Patrício Bisso: Paulo, você acha que o bom ator é um fantoche do diretor ou ele se adapta ao que ele quer e faz do jeito que ele quer?

Paulo Autran: Eu acho que o bom diretor é o diretor que usa a inteligência do ator, o seu conhecimento, a sua capacidade de comum acordo. Esse é um bom diretor. O tipo do diretor ditatorial, que eu peguei alguns assim, no início da minha carreira, Ziembinski, por exemplo, não era um diretor, era um ditador. O Ziembinski exigia que você repetisse exatamente a inflexão que ele queria naquela frase. Se você tinha que dizer: “eu quero café”, e ele dizia assim: ”EU QUERO CAFÉ” [falando mais alto, tom rouco com sotaque]. Se você não dissesse “EU QUERO CAFÉ”, parava o ensaio e você era obrigado a repetir quatrocentas vezes, durante duas horas, até você chegar ao tom do “EU QUERO CAFÉ” que ele queria. Então, você já achava mais fácil tentar repetir de início para não parar o ensaio, não é? Então, ele era assim: o teu pé tinha que ficar naquela posição exata, o teu dedo mindinho tinha que ficar assim [gesto indicando como o dedo deveria fica] ou... ele exigia os menores detalhes como um ditador total e absoluto.

Patrício Bisso: E o ator tem direito de discordar do que o diretor fala?

Paulo Autran: Não, com o Ziembinski, naquela época, não tinha. Ziembinski depois amadureceu, no fim da carreira dele ele era um diretor completamente diferente. Mas, quando ele chegou no Brasil, ele era assim. E talvez, até, ele tivesse razão, porque ele estava lidando com um material humano muito virgem, muito inexperiente, então com a enorme experiência dele, ele exigia que copiassem, porque pelo menos ele tinha certeza de que sairia uma coisa razoável. Mas os tempos mudaram, graças a Deus, e eu acho que, hoje em dia, um bom espetáculo é aquele que resulta de um congraçamento verdadeiro, direção e interpretação.

Rodolpho Gamberini: Paulo, a próxima pergunta é do Pedro Augusto Costa, que está na mesma bancada, ali mesmo.

Pedro Augusto Costa: A Fernanda Montenegro, ela fica irada quando a gente chama ela de “a grande dama do teatro brasileiro” e parece que você também não gosta de ser colocado nesse pedestal de “o maior ator brasileiro”, não é?

Paulo Autran: A palavra pedestal é uma palavra que eu acho mesmo muito chata para qualquer pessoa. Você imagina como deve ser chato você ser uma estátua num pedestal? [Risos] Deve ser uma coisa horrorosa! Então, eu não me coloco em nenhum pedestal e nunca deixei que me colocassem em nenhum pedestal, porque eu sou uma pessoa que tem uma porção de defeitos, eu não sou o maior ator brasileiro, há muitos atores. Eu vou ver colegas meus, eu vejo trabalhos tão sensacionais, que eu tenho certeza que eu não poderia fazer!

Rodolpho Gamberini: Quem é o melhor ator, na sua opinião, Paulo? Quem é o maior?

Paulo Autran: Não há, não há. Graças a Deus, não há o maior ator brasileiro porque já há tantos bons atores que não há a necessidade de haver o maior. Qual é o maior ator americano? Me diz você? Você pode gostar de A, B ou C, entendeu?

Rodolpho Gamberini: E você gosta de quem, na sua opinião?

Paulo Autran: Atores brasileiros? São maravilhosos, são tantos!

Rodolpho Gamberini: Me diga algum.

Paulo Autran: Walmor Chagas, Ítalo Rossi, Marco Nanini, Gianfrancesco Guarnieri, um ator excepcional, Fagundes, um excelente ator, tem tantos... É difícil hoje em dia até parar de admirar, não é? Com atrizes é a mesma coisa. Não há a melhor atriz brasileira. Tereza Raquel faz coisas que nenhuma outra atriz pode fazer, Tônia Carrero faz coisas que nenhuma outra atriz pode fazer, Fernanda Montenegro faz coisas que nenhuma outra atriz pode fazer, Marília [Pêra] faz coisas que nenhuma outra atriz pode fazer. Qual é delas a melhor? Não sei, não tem nenhuma delas é melhor que a outra.

Rodolpho Gamberini: O Ninho está querendo fazer a próxima pergunta.

Ninho Moraes: Não é bem de acordo com isso. Agora a pouco no outro bloco, conversando com o Solano você disse que achava que o seu trabalho morria depois que você acabava a peça, uma situação meio assim, que eu não concordo. Eu acho que o trabalho do ator, ele não morre. Na medida em que ele foi feito ali, independe da pessoa. Isso vem desde o teatro grego, a gente não sabe nem quais eram os atores que faziam aquilo, interpretavam com máscara e tal, e todo teatro foi isso. Agora uma coisa que, depois de que veio a televisão, o cinema, o registro da arte, daí sim virou essa coisa de um nome de uma pessoa, daí o nome de uma pessoa de repente virou mais forte do que o nome, do que o próprio trabalho da pessoa, mesmo. Você não tem medo disso, dessa coisa de ser estrela, você se sente uma estrela? Você já foi acusado, em algum momento da sua vida você já se sentiu estrela ou alguma coisa assim?

Paulo Autran: Não, porque eu não sou imbecil nem idiota, quer dizer, eu sei que eu tenho um grande nome em teatro. Eu sei que, para muita gente, Paulo Autran é um mito, para muita gente Paulo Autran, esse nome, é uma estrela. Agora, para mim não. Eu não estou em cima de nenhum pedestal, eu não me considero estrela, eu não trato ninguém como uma estrela e digo mais: essa categoria de estrela, é uma coisa que ninguém escolhe. Quem determina a estrela, quem determina o estrelato é o público. O público é que elege A, B ou C como seu ator, sua atriz preferidos e a pessoa se coloca nisso sem nem saber como, entendeu? Eu, toda a minha vida, eu achei ridículos os medalhões. Eu pensava: como deve ser chato ser medalhão! Com o tempo, muita gente me considera medalhão. Mas eu só sou medalhão na cabeça dessas pessoas, não na minha. Eu não sou um sujeito que gosto de discutir com os meus amigos. Eles me xingam, eles discordam de mim e é ótimo a gente discutir como gente. Nunca discuti com ninguém como medalhão, entendeu? Então eu na minha cabeça, eu não sou medalhão, eu não sou um mito, eu não sou estrela.

Ninho Moraes: A continuação disso, a continuação desse tipo de mito para a própria arte você não acha que é perigosa, cada vez mais a pessoa depende de um estrelato, de uma mídia que cria, aí vai na vida da pessoa, aí descobre determinados nomes...

Paulo Autran: O problema não é esse. O problema não é esse. O problema é o seguinte: como eu disse a você, ninguém escolhe ser estrela, quem escolhe serem as estrelas, é o público é que escolhe. Você veja, por exemplo, uma peça em que são todos amadores, ninguém é conhecido. Você se lembra do grupo Asdrúbal trouxe o trombone? Um grupo excelente, inteligente, fez dois espetáculos maravilhosos. Ninguém conhecia ninguém naquele elenco, dali saiu uma estrela: a Regina Casé. É uma estrela, estrela de cinema, estrela de teatro. Ela pretendeu ser estrela? Não, ela começou num grupo em que todo mundo era igual, ela era igual a todo mundo, mas o público não tirava os olhos da Regina Casé e o público elegeu Regina Casé a estrela do grupo.

Ninho Moraes: Mas existe o risco de “criar fama e deitar na cama”? Não existe esse risco? Você não acha que é perigoso isso?

Paulo Autran: Isso existe em qualquer profissão, não é? A pessoa atingiu um certo ponto e pensa: “agora eu sei tudo”. A pessoa que pensa assim é um burro, é um infeliz, é aquele que só volta para trás. É aquele que chegou a um ponto, pensa que está tão alto e que cai, imediatamente.

Chico de Assis: Não há a possibilidade de se fabricarem estrelas falsas?

Paulo Autran: Não há. Não há. Uma estrela falsa, ela dura uma semana e aí desaparece.

Rodolpho Gamberini: Paulo, por favor, o Cacá Rosset gostaria de fazer a próxima pergunta.

Cacá Rosset: Paulo, você acha que o público jovem se interessa pelo teatro que você faz?

Paulo Autran: Não é que eu acho, eu constato. Eu constato, pelo número de jovens que vai ver as minhas peças, entendeu? Não é que eu ache, eu constato. A quantidade de entradas de estudantes que eu vendo é muito grande. Então, eu acho que vai.

Patrício Bisso: Bom, mas hoje em dia todo mundo...

Paulo Autran: Você é exatamente uma Regina Casé. Você não pretendeu ser estrela e você é uma estrela, atualmente, do teatro nacional. Você não deve gostar dessa classificação, mas é. Você se transformou, não é verdade, numa estrela. Você é uma estrela atualmente. Qualquer elenco gostaria de te convidar como diretor e como ator para trabalhar.

Rodolpho Gamberini: Paulo, o Hamilton Monteiro, está aqui.

Hamilton Monteiro: É o seguinte: a gente está vendo, assim, nessas respostas que você tem dado o caráter da tua formação, da tua experiência, da tua formação, que você sempre coloca como uma prática, mas que eu vejo também – e eu não faria diferença entre uma formação prática e teórica–... Esse nariz-de-cera é porque você agora mesmo citou um famoso teórico russo, [Constantin] Stanislavski [(1863-1938) criador do método Stanislavski de interpretação; para ele, os papéis teatrais ganham vida quando há conexão com o ator, que deve atuar da maneira mais natural possível. Para alcançar esse fim, os ensaios devem exigir muito do ator no sentido físico], uma frase dele, você soltou aí. Então você tem um grau de informação fantástico, até, que eu admiro, mas, enfim, isso é nariz-de-cera para a minha pergunta. Em 1948, TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], 1948, EAD [Escola de Arte Dramática]. A EAD foi fundada no mesmo ano do TBC e, justamente para formar, eventualmente, o Dr. Alfredo Mesquita tinha em mente formar um elenco, formar atores para aquele teatro com aquele ideário. A minha pergunta tem três tópicos. Primeiro: como é que você, na época, sentiu essa formação dessa escola? E, hoje, como é que você vê essa escola, a EAD, uma escola na formação de ator, hoje em dia, qual é a tua visão a esse respeito? E, finalmente, você acha a escola necessária?

Paulo Autran: Eu respondo pela última pergunta. Eu acho a escola absolutamente necessária. Há um grande movimento de gente que está meio por fora de teatro, achando que a regulamentação da profissão foi uma bobagem, porque não se pode exigir um diploma de teatro para todo mundo que quer fazer teatro. Paulo Autran não tem diploma, Fernanda Montenegro não tem diploma, o que é uma bobagem. Antes da regulamentação da profissão do médico e do advogado ninguém precisava de diploma para ser médico, ninguém precisava de diploma para ser advogado. E, então, quando se regulamentou a profissão do advogado, você precisou cursar a faculdade de direito para ser advogado. Agora, as pessoas que já estavam exercendo a advocacia sem o seu curso tiveram uma autorização para continuar exercendo a sua profissão, é o que acontece. Agora, um curso de teatro, o que é que ele faz? Ele eleva o nível das pessoas que vão trabalhar naquela profissão. Ele obriga as pessoas a terem conhecimento de história do teatro, de saberem o que é que é teatro, o que é que é a sua profissão e não fica sendo apenas um hobby que se transforma numa profissão, não é? Então, eu acho que é absolutamente necessário e benéfico. E quem quer fazer teatro, [que] procure primeiro uma escola de teatro, que se forme nessa escola e depois vá fazer teatro.

Chico de Assis: E o problema social? E aqueles que têm talento e não têm dinheiro para cursar a escola? Como é que eles fazem, eles vão ser o quê?

Hamilton Monteiro: A EAD é do governo e pública, viu, Chico?

Paulo Autran: A EAD não é [paga]... mensalidade não tem.

Hamilton Monteiro: A EAD é pública.

Chico de Assis: Mas eu gostaria de mostrar como é que sobrevivem os estudantes que não têm um pai para custear, o estudante trabalhador.

Paulo Autran: Mas isso não é só em teatro, isso é em todas as profissões.

Chico de Assis: Exato. Mas todas as profissões nobres já estão nas mãos dos filhos mais diletos da burguesia, não é? A medicina, a advocacia, a engenharia, tudo aquilo. Por que também entregar tudo isso somente para esses filhos prediletos da burguesia? Por que não deixar que aquele que nasce com talento possa alcançar o estrelato, a fortuna, como acontece no futebol? Porque no dia em que pedirem diploma para futebol e para cantor de rádio, aí eu gostaria de saber o que vai acontecer com aquilo que a gente chama “fulano subiu na vida”. Ninguém vai mais subir na vida.

Paulo Autran: Mas, atualmente, para você pertencer à Ordem dos Músicos, para você poder tocar a sua bandinha, você tem que pertencer à Ordem dos Músicos, você tem que passar por um exame na Ordem dos Músicos para poder ter a sua licença.

Chico de Assis: Eu não sou contra o exame. O exame, eu acho, pode ser... Porque no exame você pode também avaliar o talento. Eu conheço vários atores de origem muito humilde e que não teriam a chance de serem atores hoje em dia.

Paulo Autran: Mas eu conheço muito ator de origem absolutamente humilde. E fizeram a Escola de Arte Dramática, trabalhando de dia e fazendo a Escola de Arte Dramática de noite.

Chico de Assis: Eu acho que a escola também é boa.

Paulo Autran: É ótima!

Chico de Assis: Mas Grande Otelo [(1915-1993), ator, cantor e compositor que fez muito sucesso ao lado de Oscarito no teatro de revista e no cinema, com destaque para as chanchadas, e Macunaíma, filme baseado no livro homônomio de Mário de Andrade - ver entrevista com Grande Otelo no Roda Viva] não teria hoje em dia a chance de se transformar em um grande ator.

Paulo Autran: Não é verdade. Não é verdade porque um talento reconhecido, com diploma ou sem diploma, consegue sua autorização para trabalhar. Isso é fatal, isso em todas as leis de regulamentação acontece isso.

Patrício Bisso: Paulo, o que muda nos tempos para exigir que, hoje em dia, uma pessoa tenha que ser forçada a estudar para aprender as coisas? Antigamente não, antigamente era uma vontade própria, uma comichão que você tinha em ler, em aprender como antigamente...

Paulo Autran: Porque, na prática, até que essas coisas não acontecem. Você sabe que, hoje em dia, as pessoas vão tanto a médicos diplomados que conhecem o assunto, como vão aos curandeiros, como vão às sessões, sei lá do quê, para se curar, não é? Então, também, a quantidade de pessoas que não estudam medicina e que dão consultas médicas é enorme! Há muita gente que não entende, que não cursou direito e que ganha dinheiro dizendo que a pessoa deve se desquitar, não deve se desquitar, como é que faz o desquite, como é que não faz – e que não são advogados. Então, quer dizer que, na prática, o que eu prego é estudar teatro. Quem quer fazer teatro deve fazer qualquer sacrifício para estudar teatro, porque isso vai melhorar o desenvolvimento do seu próprio talento. Você tendo talento e tendo um curso de teatro, você tem a possibilidade de desenvolver – muito mais rapidamente e com muito mais profundidade – o seu talento do que não tendo curso nenhum. Você vai começar de zero, ao passo que você tendo um curso de teatro você já tem uma vantagem enorme sobre quem não tem.

Patrício Bisso: Mas você não gostou mais de aprender fazendo do que aprender só na escola, com os livros, lá, cinco anos enfim?

Paulo Autran: Eu não fiz escola, porque no meu tempo, em São Paulo, não havia escola de teatro. A escola de teatro do Alfredo Mesquita foi fundada ao mesmo tempo que o TBC e eu estava trabalhando no TBC. Então, eu já estava trabalhando quando a escola começou, entendeu? Mas eu estudei muita coisa depois que eu comecei a fazer teatro. Eu coloquei a minha voz, eu estudei o Stanislavski, já tão falado aqui, e sempre me interessei muito em estudar teatro. Tudo que é possível, fiz um curso com o Marcel Marceau, quando ele esteve aqui no Brasil, um curso de um mês. É até ridículo falar nisso, mas fiz o curso. Quer dizer, todas as chances que eu tive de estudar alguma coisa, de entender alguma coisa, além do que eu já sabia, eu aproveitei.

Rodolpho Gamberini: Paulo, por favor, a próxima pergunta vem do Chico Solano.

Chico Solano: Qual é o seu maior defeito e a sua maior qualidade, Paulo? E qual é, isso já é outra pergunta, qual é o peso das reminiscências de infância na tua criação, na criação dos teus personagens? A tua infância na criação dos teus personagens?

Paulo Autran: O peso da minha infância na criação dos meus personagens deve existir, mas para mim ele está no nível do inconsciente. Eu nunca relacionei a infância de um personagem meu com a minha infância conscientemente. Evidentemente, isso se dá no campo inconsciente, não é?

Chico Solano: Mas, no trabalho de ator, da pesquisa, da construção do personagem, nunca foi consciente?

Paulo Autran: Nunca joguei a minha infância na infância do personagem. Pelo contrário, sempre bolei uma infância para o personagem, em geral, diferente das minhas. E acontece também, que em geral, tenho feito personagens muito diferentes de mim. Foram pouquíssimos os personagens que eu fiz com os quais eu tinha algum ponto de contato. Um deles, o Depois da queda [1964], de Arthur Miller [(1915-2005) premiado dramaturgo norte-americano considerado um dos melhores autores de teatro da história, autor de A morte do caixeiro viajante (1949) e As bruxas de Salem (1953)], que tinha muitos pontos de contato comigo, com o que eu estava pensando naquela ocasião, com o que eu achava da guerra, da violência, do mal que cada um trás dentro de si, e que nós somos obrigados a conviver com o mal dos outros e com o nosso mal também. Tudo isso batia naquele tempo, embora a vida do personagem fosse totalmente diferente da minha. Mas eu nunca joguei, conscientemente, a minha infância na criação de um personagem, mas devo fazer isso inconscientemente. O que mais que você perguntou?

Chico Solano: Qual é a sua maior qualidade e o seu maior defeito?

Paulo Autran: [Riso] Não sei. Quer que eu te diga com sinceridade? Não sei. As pessoas, quando se queixam de mim, dizem que eu sou egoísta, dizem que eu sou vaidoso, dizem que eu sou ególatra, dizem que... [sendo interrompido]

Chico Solano: [interrompendo] Mas o que é que você pensa de você?

Paulo Autran: A gente se analisar é tão difícil, não? Eu acho que a minha maior qualidade é ter atingido uma certa maturidade em relação a minha compreensão da vida e dos outros. Eu, hoje em dia, aceito os outros sem nenhuma intolerância, sabe? A pessoa mais cretina, mais idiota, se ela vem falar comigo, eu dou a ela a mesma atenção que eu dou a uma pessoa que eu admiro muito, que eu acho muito inteligente, sabe? Então, eu acho que isso é pelo fato de atingir a maturidade, essa compreensão dos outros, porque eu acho que a gente só é maduro quando a gente descobre os outros, não é? A gente só amadurece quando a gente percebe que a gente não tem importância nenhuma, nenhum de nós tem importância nenhuma.

Chico Solano: É a tolerância, não é? Houve época que você tinha intolerância?

Paulo Autran: Isso é tolerância, isso é compreensão da pouca importância de cada um de nós e da enorme importância do ser humano e da pouquíssima importância de cada um de nós como indivíduo.

Rodolpho Gamberini: E o defeito?

Paulo Autran: O defeito eu já falei. Agora, eu mesmo não sei qual é o defeito. Eu fumo, não é? Eu sou burro. Eu não devo fumar, eu não posso fumar e então eu encontrei essa resposta que me alivia enormemente. Eu digo: eu fumo porque eu sou burro! Então, às vezes vem uma senhora, eu vejo que ela vai começar uma longa catilinária, com toda razão, contra o fumo, para me explicar todos os malefícios do fumo, eu atalho essa conversa dizendo “venha cá, minha senhora, sabe por que é que eu fumo? É porque eu sou burro! Eu sei todos os males do fumo, mas eu sou burro e por isso que eu fumo”. Então, aí, evito uma longa conversa sobre os malefícios do fumo, que eu conheço de trás para diante. Eu sei que eu fumo porque sou burro!

Rodolpho Gamberini: Para essa conversa você não é tão tolerante?

Chico de Assis: O ator representa continuamente, essa é uma pergunta de fundo que eu vou te fazer. O ator está sempre representando, dentro e fora de cena?

Paulo Autran: E não conheço absolutamente ninguém que não esteja sempre representando. Ninguém. E, se cada pessoa raciocinar sobre o que isso é, verá que é verdade. Cada um de nós sozinho com o seu travesseiro é uma pessoa. Na hora que você sai do seu quarto e encontra alguém dentro da sua casa, você é outra pessoa. Na hora do seu almoço você é outra pessoa, você chega na rua e encontra uma pessoa com quem você simpatiza, você fica logo simpático, agradável. Você encontra com uma pessoa com quem você antipatiza, você fica desagradável, você é antipático, não é? A gente representa, todo mundo representa o tempo todo. Agora, o excesso de representação... aí é chato. E principalmente quando, depois de uma longa carreira, é freqüente você encontrar atores e atrizes que se transformam em uma caricatura de si próprios. Eles começam a adquirir, na vida real, cacoetes e pequenos tiques que eles usaram tanto no palco, que aquilo passa a ser a sua maneira de representar na vida real. Aí fica meio ridículo. E, se a pessoa não acordar a tempo e perceber que – principalmente em interpretação – você tem que se renovar sempre, sempre, sempre... porque senão você cai num clichê de você mesmo, numa caricatura de você mesmo.

Chico de Assis: O senhor não acha que o ator às vezes usa isso? O senhor não acha que um ator é capaz de, por exemplo, de uma situação de envolvimento emocional, de ele criar, melhor do que as outras pessoas, uma tendência para que gostem dele?

Paulo Autran: Se ele é inteligente, eu acho que sim. Mas isso eu vejo todos os políticos fazerem também, não é? Nenhum deles se notabilizou como ator, mas todos eles têm uma capacidade histriônica muito grande, não é? Atualmente até todos os políticos aprendem o comportamento diante da câmera. Por quê? Porque eles tem que representar para a multidão diante da câmera, não é? Então essa noção inconsciente de representar que todos nós temos e que todas as pessoas que eu conheço representam sempre, se alguém desenvolve para ficar mais simpático, é fantástico. Acho que é só uma questão de inteligência.

Chico Solano: Mas quando é possível não representar, então?

Paulo Autran: Não sei. Quando é que não se representa? Sempre se representa. E às vezes até sozinho, você sozinho diante de um espelho, você se surpreende fazendo umas carinhas, de vez em quando.

[Risos]

[Falam simultaneamente]

Jairo Arco e Flecha: Deixa eu fazer uma pergunta de provocação. Você falou dos atores de um modo geral, você não falou mal de nenhum ator. E da posição do ator você fala com muita simpatia, com muito carinho pelos atores. Mas vamos perguntar, então, de um outro lado do teatro, por exemplo, o dos críticos. Você chegou a ter raiva de algum crítico, você tem raiva de algum crítico do teatro? Qual é a sua atitude em relação aos críticos?

Paulo Autran: Quando o crítico não gosta do meu espetáculo e diz por que não gostou ele está exercendo o direito dele. Quando um crítico, numa crítica qualquer, faz uma observação sobre a sua honestidade, sobre a sua moral, o seu comportamento pessoal, ele está saindo da sua função de crítico para atacar pessoalmente uma pessoa e aí você tem todo o direito de dar um bom soco na cara dele, como já aconteceu comigo duas vezes.

[Risos]

Chico de Assis: Ele conseguiu o resultado que ele queria.

Rodolpho Gamberini: A próxima pergunta é do Inácio Araújo.

Paulo Autran: Me deixa falar mais.

Rodolpho Gamberini: Ah, você quer falar mais.

Paulo Autran: Mas deixa eu falar mais sobre esse relacionamento entre atores e críticos. Em todas as áreas de arte existem as pessoas que fazem a arte e existem as pessoas que criticam a arte que é feita. Às vezes, com um grande conhecimento, com uma grande sensibilidade, com uma grande bagagem intelectual, eles então criticam, eles analisam aquilo que foi feito, em qualquer ramo de arte, em música, literatura ou seja o que for, teatro inclusive. Nunca houve um acordo, um congraçamento entre quem faz e quem critica. São duas funções opostas. Agora, eu sou mais por quem faz do que por quem critica, embora eu seja amigo de vários críticos.

Rodolpho Gamberini: Em quem foi que você deu o soco? É a mesma pergunta. Em quem você deu o soco, Paulo?

Paulo Autran: São histórias tão antigas!

[Risos]

Rodolpho Gamberini: Se são antigas, você pode contar.

Chico de Assis: Cacá não conhece.

Rodolpho Gamberini: Eu também não.

Paulo Autran: Eu cuspi na cara do Paulo Francis [(1930-1997) polêmico jornalista e crítico cultural entrevistado pelo Roda Viva em 31/10/1994] e depois eu briguei com o Paulo Francis, de luta, luta mesmo. Nenhum de nós sabia lutar absolutamente!

Rodolpho Gamberini: O que é que o Paulo Francis escreveu de você, Paulo?

Paulo Autran: E você não pode imaginar como é difícil você acertar um soco na cara de uma pessoa [risos]. Eu dei tanto soco no ar até acertar um nele, demorou... sabe? Veio a turma do deixa disso e me agarrou e muito obrigado.

Rodolpho Gamberini: E o que é que ele tinha escrito?

Paulo Autran: Não foi a meu respeito. Ele escreveu um artigo infame, calunioso, do qual ele se arrepende até hoje, contra a Tônia Carrero, [por]que a Tônia Carrero tinha feito uma brincadeira com ele num programa de televisão, ele tomou a brincadeira mal e escreveu um artigo violento. Eu sou amicíssimo da Tônia Carrero, então eu mandei um recado para ele: que a primeira vez que eu o encontrasse eu ia cuspir na cara dele e isso foi um ano depois e eu o encontrei. E eu disse: Paulo Francis. Ele: "Oi, como é que vai? E eu tchá! [imita o som de uma cusparada] Cuspi.

[Risos]

Rodolpho Gamberini: E onde foi isso? Onde foi isso?

Paulo Autran: Ele foi me esperar na porta da minha casa, longe de mim, eu estava chegando e ele disse assim: "Eu vim devolver o teu cuspe." E cuspiu no ar [risos]. E eu saí correndo atrás dele e ele entrou no carro e foi embora. No dia seguinte, havia uma estréia de teatro, era uma segunda-feira e, no hall do teatro, na frente de todo mundo tivemos o nosso catch-as-catch-can ["salve-se quem puder"], que foi muito bonito.

Rodolpho Gamberini: E hoje, como é que você se dá com o Francis? Você disse que ele se arrependeu de ter escrito?

Paulo Autran: Ele se arrependeu. O Francis é uma pessoa que, efetivamente, na cabeça dele, a única pessoa no mundo que sabe alguma coisa [risos]. Para o Francis se satisfazer seria preciso que fosse feita a República Universal para ele ser o presidente da República Universal, porque aí tudo iria dar certo. Isso, efetivamente, não é possível e nem todo mundo acredita na cabeça do Paulo Francis, graças a Deus. Agora, o Paulo Francis, para mim, não existe.

[Risos]

Hamilton Monteiro: Apesar da desculpa pública? Ele publicou um livro dele... em Afeto que se encerra ele conta esse incidente, se arrependendo, se martirizando!

Paulo Autran: Pois é uma vaidade enorme e tão grande, que é um livro que pouca gente lê [risos], porque é um livro muito ruim que, apesar de ele ser um brilhante jornalista, ele é um péssimo escritor. Então, os livros dele não vendem e uma das grandes mágoas na vida do Paulo Francis é que com o nome todo que ele tem como jornalista, ele não consegue vender livro. As poucas pessoas que compraram chegam até a terceira página e dizem: “Ai, como é chato, esse seu Paulo!" E os livros dele são uma tal exaltação ao próprio ego do Paulo Francis, que ninguém está muito interessado no ego de Paulo Francis.

Cacá Rosset: Ele era um bom ator, o Paulo Francis?

Paulo Autran: Eu nunca vi o Paulo Francis representar, mas suponho que não fosse bom, porque não foi adiante.

[...]: E na TV ele é um bom ator?

Paulo Autran: Péssimo, não é?

Rodolpho Gamberini: Você muda de canal quando aparece o Francis falando? [Risos]

Paulo Autran: Dependendo da notícia que ele está dando. Se a notícia me interessa eu vejo.

Rodolpho Gamberini: E esse foi o único episódio em que você foi obrigado a dar um soco em alguém?

Paulo Autran: Não, teve um crítico aqui de São Paulo, que já não escreve mais, acho que nem está mais aqui no Brasil. Era um crítico português e eu fazia uma peça e ele me disse assim: “O Paulo Autran é um navio que só aporta onde há gordas verbas para ele roubar, para ele ficar com elas”. E eu achei que isso era um desaforo, em primeiro lugar, porque isso era uma inverdade total e absoluta e ele não tinha o menor direito de inventar isso e então aconteceu a mesma coisa. Eu me encontrei num espetáculo na EAD. Eu fui ver um espetáculo dirigido pela Myrian Muniz [(1931-2004) atriz e diretora. Cursou a EAD e, nos anos 60, encenou grandes peças compondo o Teatro de Arena. Nos anos 1970, descobre sua vocação para comédia e brilha nos palcos e no cinema ao lado de importantes atores, incluindo Paulo Autran, na montagem de Só porque você quer..., de Pirandello, e As sabichonas, de Molière. Também atuou em diversas telenovelas e dirigiu shows musicais, com destaque para o show de Elis Regina Falso Brilhante, em 1975] – aliás, um espetáculo brilhante – e ele estava lá também e eu o esperei na saída e aí trocamos uns socos.

Rodolpho Gamberini: Você está se referindo ao João Apolinário?

Paulo Autran: Ao João Apolinário. Briguei com ele também [risos]. Mas aí eu já estava com um pouco mais de prática e no primeiro soco eu acertei o nariz dele e tirei até sangue. [Risos]

Rodolpho Gamberini: O Patrício...

Patrício Bisso: Paulo, na sua próxima peça, o Tributo, é um relacionamento muito complexo entre o pai e o filho, você se arrepende de não ter tido filhos na vida real, só tê-los no palco já lhe basta?

Paulo Autran: Eu não me arrependo de não ter tido filhos. Eu, quando era ainda muito mocinho dizia, repetindo um ditado muito conhecido, que eu queria "escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore". Plantei muitas árvores e, se não escrevi um livro até hoje... Eu acho esse ditado completamente idiota [risos], porque quando eu penso que, se todo homem escrevesse um livro, a quantidade de porcarias publicadas que não haveria por aí, não é? Já... além das que já há. E, felizmente, eu não tive filhos, porque a maioria dos meus amigos que tem filhos, os filhos sempre significam mais problemas do que prazer, sempre significam mais preocupações do que alegrias, sempre significam mais... Eu acho que quem quer ter filhos deve ter filhos. Poucos, porque há gente demais [risos]. E eu estou muito satisfeito de não ter aumentado a população do país.

Patrício Bisso: Você não teria prazer em contracenar com seu próprio filho nessa peça?

Paulo Autran: Se ele fosse simpático, provavelmente. Mas, de repente, se meu filho fosse um bestalhão desagradável [risos], aí eu não teria o menor prazer de me apresentar com ele, não.

Rodolpho Gamberini: O Inácio Araújo, crítico de TV, gostaria de te fazer a próxima pergunta.

Inácio Araújo: Eu queria perguntar se, a partir da tua experiência, da experiência que vem desde os fins dos anos 40, como ator, daquele tempo para cá, com escola e com televisão, a formação do ator no Brasil melhorou ou piorou? Nos momentos, eventualmente, altos e baixos por que passou? E a TV, ela cria mais vícios ou mais virtudes no ator? Ela ajuda mais do que atrapalha ou o contrário?

Paulo Autran: Eu, durante muito tempo, pensei que a televisão prejudicasse o ator. Hoje em dia, acho que, absolutamente, não prejudica, porque, tanto no teatro como na televisão, há certos atores que vão se estereotipando. Então, de repente, eles fazem um único personagem, em todas as peças eles são aquele mesmo personagem. E então isso não é culpa da televisão, é culpa da capacidade que cada um tenha ou não. Eu acho que o teatro no Brasil tem essa coisa fantástica de estar atento ao que acontece e estar espelhando o que acontece. Mesmo quando montam os clássicos, mesmo quando montam peça estrangeira, mesmo quando montam autores que ninguém conhece no Brasil, os nossos espetáculos têm características brasileiras e, de uma certa forma, refletem... a escolha da peça reflete o que o brasileiro está preocupado com um determinado problema naquele exato momento.

Inácio Araújo: Você acha que esse teatro tem apanhado melhor os problemas daquele momento nos anos 1950, 60 ou 80? Eu pergunto também porque você... parece que você tem diferenciado o teatro, que até é um pouco justo, mas eu gostaria de saber do que você mais gosta, do teu espetáculo ou o do Cacá?

Paulo Autran: Eu adoro o espetáculo do Cacá, acho sensacional! E gosto dos meus também. O coração tem capacidade para muito mais do que a gente pensa. Já o Drummond escreveu que o coração dele era maior que o mundo [no "Poema das sete faces", do livro Alguma poesia (1930), que se abre dizendo "quando eu nasci um anjo torto/desses que vivem na sombra/disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida". O trecho a que Paulo Autran se refere também é conhecido: "Mundo mundo vasto mundo/se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não seria uma solução/Mundo mundo vasto mundo,/mais vasto é meu coração] quando era muito jovem e depois ele escreveu um outro poema em que ele dizia: “Não, o mundo é muito maior de que o meu coração.” [referência ao poema "Mundo grande", do livro Sentimento do mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade (1902-1981)] É uma questão de maturidade. Mas eu acho que no coração da gente cabe gostar. Eu gosto muito dos meus espetáculos quando são bons, já fiz alguns de que eu não gostei muito, e gosto muito dos bons espetáculos que eu nem saberia como fazer, mas que eu gostaria de estar dentro deles, como é o espetáculo do Cacá.

Inácio Araújo: Não, não, tudo bem. Eu não fiz a pergunta do ponto de vista narcisista. Eu perguntei só, assim, se você acha que existem momentos melhores no teatro brasileiro nos anos 1950, anos 60, anos 80, qual o ano, o momento em que brilha mais o teatro?

Paulo Autran: Há marcos no teatro brasileiro, no moderno teatro brasileiro. Um dos marcos mais importantes... aliás, três marcos de quase igual importância. Um muito importante foi o TBC. O TBC, o que é que significou? Significou tirar o teatro de um comércio, de um pequeno comércio burguês e elevá-lo à categoria de obra de arte. Essa foi a grande obra do TBC. Em seguida veio o Arena que, aproveitando essa conquista do TBC, joga em cima a discussão da realidade brasileira no palco, atrai o estudante para o teatro, que foi um passo extraordinário que o Arena teve e cria uma dramaturgia brasileira de um nível desconhecido antes. E, depois, o Oficina atingiu, juntando essas duas coisas, um nível de espetáculos que foi raro no teatro brasileiro também, juntando as idéias sociais e políticas do Arena, com um nível de excelência que o Arena teve e que o TBC mostrou. Então foram três grandes momentos. A partir daí você encontra, de repente, grupos novos, que descobrem coisas novas, mas que normalmente, tem tido uma duração menor, como foi o grupo do Victor aqui em São Paulo, que de repente, parecia que ia ser uma coisa que ia ter continuidade, chegou a montar bons espetáculos e se desfez. Como foi o grupo Asdrúbal trouxe o trombone parecia que ia ser uma coisa para durar muito tempo e depois se desfez. E agora esse grupo do Rosset [Ornitorrinco], que provavelmente vá continuar muito bem, porque tem um cérebro em cima e dentro dele, que é o próprio Rosset, o Cacá.

Rodolpho Gamberini: E o grupo do Antunes Filho?

Paulo Autran: O que perguntou? O grupo do Antunes, o Antunes é um bom diretor, mas o Antunes tem um grupo de amadores e o Antunes está se eternizando no Macunaíma. O Macunaíma foi um espetáculo formalmente genial, um espetáculo que mostrou ao mundo inteiro, aos centros mais civilizados que no Brasil se pode fazer um espetáculo de altíssima categoria internacional como foi o Macunaíma, mas depois do Macunaíma está agora, normalmente, montando uma pecinha atrás da outra.

Chico de Assis: Nós tocamos em uma porção de pontos, mas eu me sinto responsável em fazer uma pergunta sobre um aspecto que eu acho fundamental, principalmente agora, quando a SBAT [Sociedade Brasileira de Autores Teatrais] está declarando que o governo vai impedir, através do não-envio para fora dos direitos autorais dos estrangeiros, que o teatro estrangeiro continue sendo levado no Brasil, a dramaturgia estrangeira no Brasil.

[...]: Não é a SBAT, não, é a ...

Chico de Assis: A SBAT está declarando isso. O nosso amigo, que é o presidente da SBAT, está indo aos jornais para dizer “nós estamos sendo proibidos de montar peças estrangeiras por quê? Porque eles não deixam mais montar porque tem remessa do dinheiro para fora. Daí eu pergunto: esse seria o momento de obrigatoriedade de se montar ou autores mortos, clássicos, ou os autores vivos brasileiros? Como não está aqui o Plínio Marcos para falar, eu vou falar aquilo que o Plínio falaria agora: pois é “os atores americanos mortos, ganham mais do que os atores brasileiros vivos e que trabalham mais. Agora, e os autores? E a dramaturgia? Qual é a sua opinião sobre essa posição? O que é que nós devemos fazer? Nós devemos estimular uma dramaturgia nacional ou termos um temperamento universal, colocando a nossa, no mesmo nível de todas as outras, escolhendo o melhor?

Paulo Autran: Na minha escolha de peças, eu nunca me preocupei em saber onde é que o autor nasceu. E por isso, levei peças nacionais, peças francesas, peças inglesas, peças americanas, clássicos de todas as nacionalidades, gregos inclusive. E toda vez que um bom autor nacional me apresentou uma peça e não foram muitas vezes, foram poucas às vezes, Guarnieri me promete uma peça há doze anos, está escrevendo uma peça para mim faz só doze anos. Nunca me apresentou. Vários autores dizem: “Vou escrever uma peça para você”, e não escrevem. Eu não sei. Então eu nunca tive nenhum preconceito. Eu levei a peça do Vianinha para o Antunes montar o Em família, o Antunes montou, e foi um espetáculo que resultou muito bem. Então, eu não tenho nenhum preconceito contra a nacionalidade de ninguém. Ao mesmo tempo, eu acho que nacionalismo, em arte, é um perigo muito grande. Não só em arte, em política, em seja onde for, o nacionalismo, é sempre uma coisa perigosa, uma coisa que se transforma em totalitarismo, e uma coisa que exacerba justamente, certos sentimentos egoístas que cada um tem dentro de si. Então, nacionalismo é uma noção perigosa. Acho, por exemplo, ridículo se você chegasse em Paris e só pudesse assistir peças francesas; se eu chegasse em Londres e só pudesse assistir peças inglesas; se eu chegasse nos Estados Unidos e só pudesse ver peças americanas, e não é isso que acontece. Em todos os centros civilizados levam-se peças de todos ou autores e de todas as nacionalidades. E inclusive, não há nenhum preconceito contra o sotaque na Europa, por exemplo. Autores de um país. Eu acabei de ver um espetáculo em Paris, de um autor alemão Bechett, dirigido por um italiano Giorgio Strehler, e que a maioria dos atores era francesa mas que os dois protagonistas, o rapaz e a moça, eram dois atores alemães, que o Strehler levou para irem representar lá. E não li nenhum artigo reclamando: “Como é que trouxe um ator  alemão? Por que é que leva Bechett a um ator alemão?” Não existe isso, não existe.

Chico de Assis: Mas Paulo, em futebol, nós também não ligamos quando nós importamos argentinos, uruguaios, bolivianos, franceses e italianos que venham jogar aqui. Sabe por que? Nisso, nós somos bons! No que nós ainda não somos bons, para chegarmos a ser, eu acho que nós temos que nos dar conta, de que existe sempre, em qualquer lugar do mundo, uma certa conspiração, para alguma coisa dar certo em algum lugar. Essa conspiração, essa conivência não se chama nacionalismo. É apenas o momento daquela cultura, não é verdade? A um momento em que a cultura se reflete a si mesma.

Paulo Autran: Chico, você já pegou uma pagina de anúncio de jornal, com os espetáculos em cartaz, você verá sempre que há uma grande predominância dos autores nacionais.

Chico de Assis: Sim, mas o que você está me dando é a sua opinião.

Paulo Autran: É o que eu acho. E eu acho muito justo isto, porque inclusive em um texto nacional, você tem muito mais facilidade de interpretar um texto nacional, porque é a sua linguagem, é o seu tema, há referências às coisas conhecidas do Brasil, que num texto estrangeiro é mais difícil de você conseguir, essa naturalidade, dizendo que você vai ao Tiffany's [Café da Manhã no Tiffany's (1958), peça de Truman Capote (1924-1984), explorava temas literários tradicionais do sul dos Estados Unidos], ninguém sabe o que é Tiffany's, então, um texto nacional tem só vantagem para o ator representar um texto nacional. Você deve reconhecer também que nós ainda não temos um nível. Dentro de um alto nível de autores, nós temos um número pequeno ainda de autores, para prover todo o teatro nacional, e será uma lástima, se de repente, for proibido se levar autores estrangeiros. Eu acho que se sempre haverá uma solução.

Chico de Assis: Também acho, mas aí também vira, o ovo ou a galinha, não é? O que é que vai nascer primeiro, o ovo ou a galinha? Você não acha que devia haver uma compulsão maior, da gente conhecer a nossa realidade através do teatro, mesmo que o autor fosse estrangeiro, mas que a realidade fosse a nossa?

Paulo Autran: Você vê a peça da Adelaide, que a Irene levou... Maria Adelaide Amaral e levou De braços abertos, foi sucesso no Brasil inteiro. Uma autora nacional, escreveu uma peça belíssima, interessantíssima, foi levada e foi um sucesso. Todas às vezes que um bom texto estreou, o teu texto, o Xandu Quaresma, foi um sucesso estrondoso, não é? Quero dizer, todas às vezes que um há um bom texto nacional e é levado há um sucesso muito grande. Então eu acho que não há nenhum preconceito contra o autor nacional, pelo contrário. Eu acho que há da parte do teatro, das pessoas de teatro e das autoridades, uma necessidade de se fazer concurso de dramaturgia, convênios, uma necessidade de divulgar o autor nacional. Eu acho que isso já está muito dentro da responsabilidade coletiva.

Chico de Assis: Mas quando você diz, Paulo, “escrever uma peça para mim”. Você disse agora mesmo “eu pedi para o Guarnieri escrever uma peça para mim”, “eu pedi para , não sei quem, escrever uma peça para mim”. O que é escrever uma peça para Paulo Autran? Eu queria escrever uma peça para Paulo Autran. Então, como é que é escrever uma peça para você?

Paulo Autran: Como é que você me vê? Escreva uma peça para como você me vê. Que tenha um personagem como você me vê.

Chico de Assis: Para o ator?

Paulo Autran: Lógico, para o ator Paulo Autran.

Chico de Assis: Mas o ator Paulo Autran é capaz de fazer tudo.

Paulo Autran: Então, você não escreva uma peça em que o personagem principal é um menino de 18, porque, apesar da minha grande capacidade de fazer vários personagens, dezoito anos eu não consigo fazer mais.

[Risos]

Rodolpho Gamberini: Paulo, a próxima pergunta é do Cacá Rosset, que está ali.

Cacá Rosset: Eu queria saber o seguinte: quando você começou a fazer teatro, você tinha algum ídolo, você tinha alguma pessoa que você imitava?

Paulo Autran: Não, eu nunca tive. Eu tinha vários atores de cinema e de teatro que eu adorava, nunca sequer me passou pela cabeça imitar. Nunca. Eu nunca imitei ninguém que eu me lembre, ninguém. Eu fui obrigado, na segunda peça profissional que eu fiz, eu fui dirigido pelo Ziembinski, então eu fui obrigado a copiar cada gesto do Ziembinski, cada inflexão. Então eu me sentia um Ziembinskizinho em cena efetivamente. Depois eu levei um ano para conseguir me livrar dos gestos e das inflexões do Ziembinski, porque aquilo ficou tão marcado, dentro de mim, que pensava: eu não vou me livrar nunca! Mas, depois de um ano, o personagem que eu fiz que era o Balabanovisk, você imagina, era uma peça do Pongetti [Henrique Pongetti (1898 -1979), ator e comediógrafo], em que eu era um anarquista russo, que está fabricando uma bomba para jogar no rei. Era uma comedinha leve, uma operetazinha quase. E esse personagem marcou muito, a crítica me adorou naquela época, porque quando a gente começa, as caras novas e os críticos adoram se você fez.

Cacá Rosset: Como é que você começou a fazer teatro?

Paulo Autran: Eu comecei fazendo teatro amador em São Paulo. Eu advogava e me convidaram para entrar para um grupo amador, eu entrei e comecei a fazer teatro amador aqui. Fiz duas peças em São Paulo, a Esquina perigosa, do [John Boynton] Priestley [(1894-1984) romancista e novelista, escreveu inúmeras obras de humor, aventura, amor e ficção científica. Destacou-se no teatro escrevendo peças que retratavam a classe média inglesa]; fiz A noite de 16 de janeiro, de Ayn Rand [Alissa Z. Rosenbaum (1905-1982), filósofa e escritora], e depois fui com o Abílio para o Rio de Janeiro, tirei férias no meu escritório de advocacia e fui para passar um mês no Rio, fazendo as peças do Abílio. Mas fui com uma condição, eu disse: "Abílio, eu vou fazer os papéis para você, mas eu quero que você leve À margem da vida" – que era uma peça do repertório do grupo teatral do Abílio– e eu quero fazer o Tom de À margem da vida [peça de Tennessee Willians, dramaturgo norte-americano (1911-1983)]. E foi muito engraçado, porque ele disse: “Ah, essa peça quem dirigiu foi o Alfredo, o Alfredo Mesquita. Você tem que pedir autorização para o Alfredo”. E eu fui falar com o Alfredo e o Alfredo falava "vicioso" [pronunciando o termo com a língua presa entre os dentes], ele tinha um defeitinho de dicção. Então, o Alfredo me disse assim: “Eu deixo, mas com uma condição...”. Eu disse qual é? “De você não falar feito carioca. Eu quero que você fale feito paulista [imitando o Alfredo falando].

[Risos]

Pedro Augusto Costa: Você já cometeu grandes gafes no teatro?

Paulo Autran: Devo ter cometido.

Pedro Augusto Costa: Você tem um exemplo para lembrar para a gente?

Paulo Autran: Não sei.

Rodolpho Gamberini: Paulo, nós estamos aqui no Roda Viva há duas horas. Você está acabando de contar para o Cacá o começo da sua carreira no teatro. Eu gostaria de que você, para encerrar este Roda Viva aqui com a gente, que você fizesse uma rápida fala, a fala que mais o emocionou no teatro até hoje. Você tem trinta e sete anos de carreira, é isso? Estou errado?

Paulo Autran: Trinta e sete.

Rodolpho Gamberini: Trinta e sete anos de carreira. Nesses 37 anos, uma fala, ainda que rápida, que foi a que mais mexeu com você,,,

Paulo Autran: Jesus Cristo! Isso é impossível. Se eu te contar uma coisa, você não vai acreditar. Eu tenho um mecanismo na minha cabeça, que é o seguinte: minha peça, a temporada termina no domingo. Se na segunda-feira você me disser assim: "Como é mesmo aquela fala que você dizia?". Eu não lembro! Agora, três anos depois, vamos remontar aquela peça, eu dou uma lida e eu sei de cor. Agora, se eu não tenho um papelzinho para dar uma lida, eu sou incapaz. Eu passei uma vergonha, em Londres, incrível! Nós tínhamos acabado de fazer o Otelo [tragédia de William Shakespeare que conta a história de um comerciante mouro que, influenciado por um pérfido alferes, Iago, mata a mulher, Desdêmona, por ciúmes. Publicada pela primeira vez em 1622, a peça foi inspirada em Mouro de Veneza, de Giraldo Cinthi, publicada em 1584] aqui, fomos assistir uma peça em Londres, saímos com o ator principal, que era o Sam Wanamaker [(1919-1993), ator  e diretor norte-americano que se estabeleceu na Inglaterra em 1950 ao descobrir que estava sendo perseguido pelo macartismo. É lembrado como o responsável pela idealização e construção do New Globe Theatre, em Londres, uma réplica do Globe Theatre onde trabalhava William Shakespeare, projeto iniciado em 1967 e inaugurado trinta anos depois, em 1997]. Tinha sido expulso dos Estados Unidos, no macartismo [campanha anticomunista promovida nos Estados Unidos durante o chamado período da Guerra Fria, de 1950 a 1954, liderada pelo senador Joseph McCarthy e seus seguidores. Atingiu em grande escala os meios artístico e intelectual], e ele me dizia assim: “Eu vou fazer agora o Iago no Otelo, numa versão aqui na Inglaterra”. E o Celi disse: “Ah, nós acabamos de montar o Otelo”. E ele disse: “E quem foi que fez o Otelo?" Eu disse fui eu que fiz. Ele disse: “Como é que você disse? Como é que é em português? Me diz em português. Eu quero ouvir como é que soa em português uma frase do Otelo”. E eu fui incapaz de dizer uma frase do Otelo e fiquei vermelho, fiquei rubro, uma vergonha desgraçada. E eu acho que para o resto da vida, o Sam Wanamaker pensou assim: “Aquele lá é um mentiroso, veio inventar que fez o Otelo no Brasil”.

Rodolpho Gamberini: Muito obrigado, Paulo, pela participação neste programa. Nós todos que participamos e todo mundo que está assistindo em casa sabe que você não é um mentiroso. O programa foi muito gostoso, com toda a sua inteligência, toda a sua vivacidade e toda a sua sinceridade. Muito obrigado a todo mundo que participou deste Roda Viva, que volta na segunda-feira que vem, às nove e vinte da noite. Até lá e boa noite.

[Paulo Autran, fumante inveterado, conforme se vê nesta entrevista, morreu de complicações devidas ao câncer e enfisema pulmonar, aos 85 anos, em 12 de outubro de 2007]

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