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Memória Roda Viva

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Jeremy Rifkin

18/8/2003

Economista norte-americano aponta o hidrogênio como a melhor alternativa para produção de energia renovável, diz porque é contra alimentos transgênicos e que o Brasil pode ser um modelo de comportamento sustentável

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Programa gravado

Paulo Markun: Boa noite. Que o petróleo um dia vai acabar, todos concordam. Sobre quando isso vai acontecer, muitos discordam. Agora, o que todos admitem é que as últimas reservas estão concentradas no Oriente Médio e é dessa região conflituosa que o mundo vai depender cada vez mais para ter combustível. Diante dos novos tempos difíceis, a discussão em torno das energias alternativas ganha mais atenção e este é o tema do Roda Viva desta noite. Nosso convidado é o economista americano Jeremy Rifkin. Ele é hoje um dos principais críticos do predomínio do petróleo como combustível e prevê que o hidrogênio poderá promover uma revolução na economia como aconteceu com o carvão e o vapor no começo da era industrial. Jeremy Rifkin, com formação em economia e assuntos internacionais, mora em Washington e é consultor de empresários e congressistas americanos. Ele é um estudioso dos impactos que as tecnologias promovem na economia e na sociedade e já escreveu vários livros a respeito. O último deles acaba de ser lançado aqui no Brasil e fala que o mais básico e onipresente dos elementos do Universo pode ser o combustível do futuro e mais do que isso, o combustível eterno.

[Comentarista Valéria Grillo]: A economia do hidrogênio quando não houver mais petróleo. Jeremy Rifkin começa dizendo que a crise energética dos anos 70 foi esquecida e o debate sobre conservação de energia tornou-se cada vez mais raro. No entanto, o mundo caminha para um ponto crítico na era dos combustíveis fósseis. Especialistas acham que ainda temos cerca de 40 anos de petróleo bruto disponível e barato, mas existem geólogos alertando que a produção de petróleo pode atingir um pico e entrar em queda já no final desta década. A vulnerabilidade que isso cria para a vida industrial é agravada por dificuldades novas que surgiram no mundo afetando não só a economia, mas a democracia e a divisão de poder na Terra. É nesse horizonte que o autor projeta uma nova era energética com base no hidrogênio, o elemento mais abundante do Universo, encontrado principalmente na água. Mas é do gás natural em processos modernos e de mais baixo custo que atualmente ele está sendo retirado e disponibilizado para uso como combustível. O hidrogênio, já usado em naves espaciais, vem sendo testado em protótipos da indústria automobilística. Usado como fonte das células combustíveis, ele pode representar uma nova forma de produção de energia elétrica descentralizada e democrática. Para Jeremy Rifkin o hidrogênio pode acabar com a dependência do petróleo, reduzir a emissão de carbono na atmosfera e apaziguar guerras políticas e religiosas.

Paulo Markun: Para entrevistar o economista e consultor Jeremy Rifkin, nós convidamos: Eugênio Esber, diretor de redação da revista Amanhã, Economia e Negócios e da revista Aplauso. Hélio Gurovitz, diretor do portal Exame da revista Exame. Mônica Teixeira, editora de ciência e tecnologia da TV Cultura. Maurício Tuffani, editor-chefe da revista Galileu. Márcio Pochmann, economista e secretário do Trabalho da prefeitura de São Paulo e Ary Plonski, diretor superintendente do IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Boa noite.

Jeremy Rifkin: Boa noite.

Paulo Markun: Queria começar com uma provocação. Ontem eu estava cozinhando em uma casa de campo em um fogão a lenha, hoje de manhã eu tomei banho em um chuveiro movido a energia elétrica, vim para cá em um carro movido a gasolina, e o senhor disse que daqui a 30 anos nós vamos estar consumindo hidrogênio. Não é um pouco de otimismo demais?

Jeremy Rifkin: Acho que não. Acho que estamos à beira de uma grande revolução energética. É o fim da era do combustível fóssil. É uma história de 200 anos que começou com o transporte de carvão para Newcastle, na Inglaterra e agora se desenvolve no Oriente Médio. São mais de mil empresas na corrida pelo hidrogênio. Milhares de empresas se lançam nesse projeto. A Pricewaterhouse Coopers [também chamada de PwC, foi formada em 1998, pela fusão de duas empresas londrinas, é uma das maiores prestadoras de serviços profissionais do mundo, nas áreas de auditoria, consultoria e outros serviços, e está presente em 149 países, com cerca de 140 mil colaboradores] elaborou um estudo e projeto que, em 2020, essa área estará movimentando US$ 1 trilhão e 700 bilhões, isso é daqui a 17 anos. Acho que o público e, de certa forma, os políticos e economistas, estão atrasados em relação a essa tecnologia. Isso lembra a internet, a revolução da informática dos anos 1980. Ela pegou de surpresa os políticos, o público e os economistas, mas quem era da área sabia que a porta estava se abrindo. Estamos à beira de uma grande revolução do hidrogênio. São os primeiros anos, serão 10, 20, 30, 40 anos para criar a infra-estrutura, como aconteceu para o vapor, o carvão e a ferrovia no final do século XIX. E foi o tempo usado para estabelecer o motor de combustão interna no século XX.

Paulo Markun: Agora, no caso, o senhor menciona a internet, que, de alguma maneira, avançou sobre um espaço vazio. Ela surgiu e se estabeleceu como algo que não existia. Quando a gente fala em combustível, em toda a estrutura da economia que é baseada no combustível fóssil, basicamente no petróleo e seus derivados, nós estamos falando de algo que já está estabelecido e que certamente terá que ser desmontado para que um novo sistema de combustível predomine. Isso não é muito mais difícil e muito mais demorado do que, por exemplo, o crescimento que a internet revelou?

Jeremy Rifkin: Está será uma grande revolução de ruptura na História. Foi o que houve com o vapor, o carvão e as ferrovias. Tudo mudou, não só a condução das atividades econômicas, mas a manipulação do tempo e do espaço, as nações de política e sociedade. Quando passamos da lenha para o vapor, o carvão e os trens, passamos de mercados pequenos para mercados nacionais; passamos da cidade para o país, fomos de uma economia feudal para a capitalista. Tudo isso resultou de uma revolução energética. A segunda revolução industrial, com o motor de combustão interna, levou-nos a modos de vida suburbanos, dispersando a população, criando grandes centros urbanos. A revolução do hidrogênio vai romper com a estrutura vigente, mas sempre foi assim nas mudanças de energia. Você mencionou outra coisa importante, a internet. Eu gostaria de explicar como a revolução nas comunicações tem paralelo com a da energia. As grandes revoluções econômicas da história ocorrem sob duas condições: uma mudança básica da forma de organizar a energia da Terra e uma grande mudança na forma de nos comunicarmos para organizar o novo regime de energia. Uma nova energia e novas comunicações juntas criam momentos fundamentais. Por exemplo, o antigo Iraque, a Suméria, a primeira grande civilização agrícola. Aumentou a complexidade da organização da agricultura, que passou a ser muito diferente para o homem. Passou-se a usar a energia do sol que era estocada em cereais, e os grãos produzidos a mais se tornaram a energia para a civilização. Mas essa complexidade de organização da agricultura demandou um novo mecanismo de comando, a escrita cuneiforme. A escrita era a forma de gerenciar a agricultura. A escrita impressa tornou-se absolutamente essencial para a revolução do vapor, do carvão e das ferrovias. Com o uso do vapor e do carvão, aumentamos o ritmo, a velocidade, o fluxo e a complexidade das interações humanas. Precisávamos de uma nova comunicação organizada entre pessoas, a escrita impressa. O telefone e o telégrafo precederam em alguns anos a revolução da combustão interna. Quero dizer o seguinte: nos anos 90 houve a revolução das tecnologias digitais, dos PCs, da internet, a revolução das telecomunicações, mas não entendemos sua verdadeira missão na História. Conseguimos unir 1 bilhão de pessoas com a internet e isso foi significativo. Aumentamos a produtividade nos locais de trabalho com as novas comunicações, é significativo. Mas as empresas “.com” eram uma bobagem. Sem saber o que fazer com essa revolução nas comunicações, criamos empresas tolas, e a maioria deixou de existir. Estou dizendo que, nos próximos seis meses, no ano que vem, a comunidade de investidores, de executivos, vai perceber essa grande convergência entre a revolução da informática e das comunicações dos anos 90 e a nova, distribuída e descentralizada revolução do hidrogênio das duas primeiras décadas do século XXI. Quando mudarmos para o hidrogênio, você terá uma célula combustível, que será análoga ao seu PC. Haverá uma célula na indústria, no centro comercial, nas casas, e cada um vai gerar sua energia, assim como cada um cria o conteúdo de seu PC. A energia excedente que você não usar será enviada de volta, aí está a revolução. As Hewlett-Packard [empresa multinacional de suprimentos e equipamentos em informática com sede em Palo Alto, Califórnia (EUA)] e Microsoft [empresa multinacional de softwares norte-americana, foi fundada em 1975 por Bill Gates e Paul Allen, sendo a maior do mundo neste ramo] do mundo - "a verdadeira missão delas" - vão usar essa revolução da comunicação para descentralizar o sistema de energia no Brasil. Quando você gerar energia com sua célula combustível, a partir de sua casa, fábrica ou escritório, enviará essa eletricidade como informação para quem você mesmo designar, como se faz em um computador. A união da comunicação descentralizada como mecanismo de controle para organizar a distribuição descentralizada de energia é poder para o povo. É uma grande revolução na História. Seu impacto será tão importante quanto a união da prensa de impressão com o carvão, o vapor e as ferrovias - a primeira revolução industrial do século XIX - e será importante como a união do telefone e do telégrafo ao motor de combustão interna. A convergência do hidrogênio combustível e da internet, a comunicação descentralizada, é a terceira revolução industrial que vai afetar todo o século XXI.

Mônica Teixeira: Rifkin, eu queria fazer uma pergunta. O senhor faz essa pregação sobre a célula combustível, mas hoje me parece que há pelo menos duas questões tecnológicas a serem resolvidas. Uma delas que para gerar essa energia, é necessário, neste momento, de alguma maneira, quebrar o hidrogênio e usar energia. Então eu gostaria de saber como o senhor acha que isso vai ser feito no futuro e como isso será barateado. Porque hoje praticamente se gasta mais. E a outra questão é o tamanho dessas células combustíveis que também me parece, ou melhor, dos estoques de hidrogênio, que também, me parece, tem que ser grandes, etc. Então eu gostaria que o senhor abordasse essas duas questões.

Jeremy Rifkin: Esse é um problema fundamental. Vou contextualizar. O mundo todo gira em torno do petróleo. É a civilização do petróleo. Produzimos alimentos com fertilizantes e pesticidas derivados do petróleo, os tecidos sintéticos são derivados do petróleo, produtos farmacêuticos, materiais para embalagem, energia, aquecimento, luz, tudo vem do petróleo. A era do petróleo vai chegar ao pico nas próximas décadas. Os cientistas não sabem exatamente quando. Para alguns, será no final desta década, para outros em 2020 ou 2035, mas isso é pouco tempo na História. O hidrogênio é uma alternativa aos combustíveis fósseis. O bom é que o hidrogênio é um elemento básico do Universo. É o material das estrelas, o elemento mais leve que há. A queima do hidrogênio gera apenas água e calor. Os astronautas bebem essa água e usam células combustíveis há 30 anos. Essa é a parte boa. A ruim você citou: o hidrogênio não existe sozinho, ele precisa ser extraído. O hidrogênio hoje é extraído de combustíveis fósseis, sobretudo o gás natural. Extraímos o hidrogênio do gás, depois o estocamos e o colocamos em uma célula combustível para gerar energia. O problema é que o gás natural, que emite menos dióxido de carbono que o petróleo, segundo os estudos que estão no meu livro, chegará ao pico de produção 10 anos após o petróleo. Em uma infra-estrutura global para extrair hidrogênio do gás natural, do petróleo ou do carvão, vamos continuar na era do combustível fóssil. Há outra alternativa, mas é mais cara, é mais elegante, é a alternativa do futuro, mas deve ser barateada. Trata-se do uso de fontes renováveis: energia eólica, solar fotovoltaica, hidráulica, geotérmica e biomassa, todas renováveis. Gerando-as localmente, você tem eletricidade e parte da eletricidade é usada em aquecimento e iluminação. O excedente é usado imediatamente para eletrolisar a água como nas aulas de química, separando o hidrogênio do oxigênio na água, estocando hidrogênio. Isso é energia, como no carvão, no petróleo e no gás. É energia estocada. É caro, porque você gera eletricidade duas vezes. Primeiro, das fontes renováveis; depois, para eletrolisar água e extrair hidrogênio. Quero dizer o seguinte - e isso precisa ser entendido especialmente aqui no Brasil e no mundo todo - esta geração quis um futuro baseado em energia renovável. Há 30 anos falamos de energias renováveis, eólica, solar, geotérmica, hidráulica. Não pode haver uma sociedade baseada em energias renováveis sem que o hidrogênio seja usado para estoque. Quando se gera eletricidade, ela não pode ser estocada, ela se dissipa imediatamente na transmissão. Se parar de ventar por alguns dias no Brasil, se o sol não brilhar ou se não houver água por causa da seca, vocês não terão eletricidade. Foi o que aconteceu no Brasil em 2001. A crise de eletricidade tornou-se uma crise econômica, porque 92% da energia produzida neste país já é de fontes renováveis, é hidrelétrica, mas não havia água, e a eletricidade não podia ser gerada. O hidrogênio é um portador secundário, não é fonte primária. Ele é usado para armazenar energia. Se o Brasil usasse hidrogênio para estoque, vocês poderiam usar a energia hidrelétrica, enviando uma parte pelas linhas de transmissão e o excedente, nas épocas de fartura, seria usado na eletrólise da água e no estoque de energia para momentos de seca. Esta é a bell curve [referência à "distribuição normal", conhecida também como distribuição de Gauss ou gaussiana. Rifkin a usa como imagem para afirmar o crescimento constante e progressivo do preço do petróleo]. O preço do petróleo e do gás vai subir enquanto caminhamos para o pico de produção daqui a 10, 20 ou 30 anos. Vai baixar algumas vezes, mas a tendência é estar alto quando chegarmos ao pico. Os custos indiretos do petróleo e do gás estão subindo. O custo militar apenas nos EUA para garantir o petróleo no Oriente Médio foi superior ao valor líquido do petróleo que importamos antes do início da guerra. Some os US$70 bilhões da guerra e os US$ 30 ou 40 bilhões anuais para ficar lá e veja que os custos indiretos são altos. Outro custo indireto desses produtos é o aquecimento global. Queimando mais combustíveis fósseis, emitimos mais dióxido de carbono na atmosfera, desestabilizamos ecossistemas, e os custos econômicos são terríveis. Secas, grandes incêndios nas florestas, violência da água em regiões costeiras, espécies cruzando barreiras biológicas, gerando problemas... A lista é imensa. Os custos diretos e indiretos vão subir rumo ao final da era do combustível fóssil. Os custos das tecnologias renováveis, das tecnologias com hidrogênio estão caindo. É um exemplo da Lei de Moore [que diz, em uma versão popular, que, atualmente, a performance dos dispositivos eletrônicos vem dobrando a cada 18 meses] vocês conhecem. Vimos isso na indústria do software e na biotecnologia. A tecnologia avança tão rápido que você duplica o conhecimento e reduz pela metade os custos a cada 18 meses. Tal patamar foi alcançado agora para tecnologias renováveis, como energia eólica, solar e hidrelétrica e para células combustíveis. Os custos estão caindo. Quando adaptamos tecnologias renováveis, os custos caem devido à economia de escala, e as células combustíveis são duas vezes e meia mais eficientes que motores de combustão interna. Os custos do petróleo e do gás subirão nas próximas décadas, e os custos das tecnologias de células combustíveis cairão. Quando um se aproximar do outro, veremos uma mudança de um sistema para outro. Vou encerrar dizendo que isso só vai acontecer com uma parceria entre os setores público e privado. Uma mudança dessa magnitude não ocorre apenas no mercado. É preciso haver consenso entre o governo e o público.

Mônica Teixeira: Nesse momento existem linhas de pesquisas ou financiamento de linhas de pesquisa que permitam esse barateamento de custos que é necessário? Porque me parece que essa parceria à qual o senhor se refere entre público e privado será também para financiar a linhas de pesquisa que permitam o barateamento, é isso?

Jeremy Rifkin: Isso mesmo. Você foi mais adiante, e vou acompanhá-la. Há uma política em desenvolvimento que o Brasil deve conhecer, sobretudo com o novo governo. Há um cabo de guerra político entre a Europa e os EUA com relação ao futuro do hidrogênio. Sou consultor pessoal de Romano Prodi, presidente da Comissão Européia, que comanda a União Européia [(UE), bloco econômico, político e social de 27 países europeus que participam de um projeto de integração política e econômica]. Em março do ano passado, apresentei a Prodi um longo relatório estratégico mostrando como a União Européia pode criar uma parceria entre governo, indústria e ONGs, a sociedade civil, para criar um plano para superar a dependência do petróleo e tornar-se a primeira superpotência do hidrogênio renovável no século XXI. Apresentei o projeto, ao qual dedicamos muito tempo, ele aprovou e, seis meses depois, apresentamos o plano, em outubro passado. Prevê uma integração por meio de parcerias entre empresas européias e governos. Seriam 2 bilhões de euros só para começar, e quando Prodi fez o anúncio, ele disse: “É o maior passo para a integração depois do euro. Primeiro centralizamos a moeda e agora vamos descentralizar a energia”. Ele também disse: “Isso será o equivalente ao programa espacial nos EUA. O programa espacial levou à multiplicação das economias de alta tecnologia dos anos 90. Com a nova abordagem do hidrogênio, seremos a primeira potência com tecnologia sustentável do século XXI". Ele também disse: "Aceitamos as parcerias entre os setores público e privado". Isso foi para provocar os EUA. Todo mundo pensou na Airbus [segunda maior fabricante de aviões comerciais do planeta, sediada em Toulouse, na França] contra a Boeing [A Boeing Commercial Airplanes, empresa americana cuja sede está localizada em Chicago, é a maior montadora de aviões e material aeronáutico do mundo]. A Airbus é uma parceria entre setores público e privado e hoje é a número 1 em tecnologia aeroespacial de aviões. Prodi esteve atento à História. Os ingleses foram a potência do século XIX por um motivo: foram os primeiros a atrelar as reservas de carvão à energia a vapor. Os EUA foram a grande potência do século XX, porque atrelaram as reservas de petróleo do Texas ao motor de combustão interna dos alemães Daimler [empresa automobilística alemã] e Benz [referência à Mercedes-Benz, marca alemã de automóveis pertecente ao grupo Daimler AG, criada em 1924, como resultado de uma fusão entre a Benz & Cia. e a Daimler]. Prodi é professor de história e quer que a nova Europa, que englobará 25 países que terão uma única constituição, 450 milhões de pessoas, um PIB [Produto Interno Bruto] comparável ao dos EUA, ele quer que a Europa seja a primeira potência da era pós-petroleo a explorar o hidrogênio. Faremos uma convenção para anunciar o plano. Estarei lá junto com Prodi. Vejam por que eu citei isso. Bush também quer explorar o hidrogênio. A pressão da Europa chegou aos EUA. E muitas empresas disseram: "A Europa pode nos superar. É uma repetição do Sputnik. Não queremos ficar para trás na corrida tecnológica". As empresas pressionaram Bush. Em seu discurso, ele disse que o hidrogênio é o futuro. Ele pegou o público americano de surpresa. Muitos foram consultar dicionários, achando que hidrogênio só servisse para encher bexigas. Os mais velhos pensaram no dirigível Hindenburg [O LZ 129 Hindenburg foi um dirigível construído pela Luftschiffbau-Zeppelin, na Alemanha, na década de 30], o Zeppelin. Há muita diferença entre a abordagem americana e a européia. Na Europa, eles querem um futuro com energias renováveis. 22% da eletricidade gerada na UE deverá ser renovável daqui a 7 anos. 12% dessa energia precisa chegar a isso. É o objetivo mais agressivo do mundo. O hidrogênio deve ser usado para estocar a energia, o Brasil descobriu isso com a seca. Sem água, não há capacidade de armazenagem.  Nos EUA, Bush está dizendo que o futuro é o hidrogênio, mas o orçamento que vai ao Congresso é usado em quê? Na pesquisa de formas de extrair hidrogênio do carvão, do gás natural, do petróleo e também para dar bilhões à indústria nuclear para que extraia hidrogênio. Bush está usando o hidrogênio como o cavalo de Tróia para proteger a indústria do petróleo. Ele quer nos levar a um futuro com hidrogênio, sem deixar o passado de combustíveis fósseis e energia nuclear. São duas amplas visões políticas, científicas, tecnológicas e comerciais para parceria entre o público e o privado. A Europa não quer combustíveis fósseis. Eles ainda serão usados por muito tempo, mas na Europa, há três caminhos. Primeiro, usar combustíveis fósseis com cuidado, aderir ao Protocolo de Quioto [tratado internacional discutido e negociado em Quioto, no Japão, em 1997, por meio do qual se propôs um calendário pelo qual os países desenvolvidos têm a obrigação de reduzir a emissão de gases do efeito estufa em, pelo menos, 5,2% em relação aos níveis de 1990, no período entre 2008 e 2012], obedecer aos padrões de eficiência, usar o petróleo com critério, sem desperdício. Segundo, ver o gás natural como uma transição a curto prazo. E terceiro, subsidiar pesadamente a energia renovável para que, em 2020 ou 2030, quando combustíveis fósseis forem muito caros, haja a infra-estrutura. Bush está na primeira alternativa. Extraindo hidrogênio de combustíveis fósseis, ele não vai chegar ao futuro renovável do hidrogênio. Para o Brasil, com este novo governo que quer ser modelo para o mundo em desenvolvimento, esta é uma decisão política muito importante. O Brasil vai seguir o modelo europeu ou o modelo americano?

Ary Plonski: Pensamos exatamente que sendo o Brasil o país que o senhor descreveu, talvez nós possamos ter um pensamento autônomo e não necessariamente copiar nem o modelo americano, nem o modelo europeu. E, nesse sentido, das suas palavras, o que me parece relevante é a preocupação com a matriz energética diversificada e com o processo decisório dinâmico, pelo qual nós possamos acompanhar de maneira muito simpática as visões futuristas e de natureza muito humanitária que o senhor traz, com a velocidade com que as coisas se desenvolvem no mundo real. Por exemplo, eu queria lhe perguntar como o senhor vê a evolução em uma certa linha mais incremental, green diesel, ultra low emissions e outras formas pelas quais a preocupação ambiental vem sendo desenvolvida. Os carros de hoje poluem 10 vezes menos do que os carros de 10 anos atrás. E possivelmente há uma questão que em países onde a infra-estrutura é, como o senhor bem colocou, escassa, cara, uma mudança radical de infra-estrutura deve ser pensada com muita cautela, nós podemos ter um caminho de evolução incremental enquanto observamos o que acontece de maneira mais radical.

Jeremy Rifkin: Concordo plenamente. Precisamos de vários caminhos concomitantes. Vamos falar de automóveis, já que você os citou. Não adianta dizer que teremos carros a hidrogênio em 2010 e não fazer nada nos próximos sete anos. Precisamos usar os híbridos que são funcionais e baratos, combinam gás natural e eletricidade ou eletricidade com combustíveis fósseis. Os carros híbridos representam a transição a curto prazo que vai nos levar ao veículo de célula combustível de hidrogênio 100% renovável. Isso é fundamental. Também precisamos usar os combustíveis existentes de forma cuidadosa. Os EUA não fazem isso. Vou falar do que está havendo nas montadoras. Elas gastaram US$ 2 bilhões em carros com células combustíveis. Meus colegas ambientalistas dizem que é uma manobra, é um truque. Eles falam desse grande futuro com hidrogênio porque não querem seguir padrões de eficiência de combustíveis, não querem aderir ao Protocolo de Quioto, então fazem manobras com essa fantasia. Sou ambientalista há 35 anos. Não é uma manobra. US$ 2 bilhões não é manobra, mas também não foi sério até o ano passado. Foi a Califórnia que virou a mesa. No ano passado, a Califórnia aprovou uma nova legislação. Carros vendidos na Califórnia por volta de 2009 não poderão emitir poluentes. Serão carros a hidrogênio. A General Motors e todas as montadoras processaram a Califórnia e, infelizmente, a Casa Branca também, mas na surdina, o senhor Wagoner [Richard Wagoner Junior], da General Motors, o senhor Ford, a Toyota, a Honda, a BMW, na surdina, disputam uma corrida furiosa para ser a primeira a vender carros baratos movidos a células de hidrogênio, para não perder o mercado californiano, que é o maior, é a quinta maior economia do mundo. Você viu o carro da General Motors, o Hy-Wire Water Car? O público brasileiro precisa conhecer, é de fato um conceito revolucionário. Foi apresentado no Salão do Automóvel em Paris no ano passado. O projeto foi feito por italianos, alemães e suecos. O carro é de vidro, queima hidrogênio e os subprodutos são água e calor. Hoje o hidrogênio vem de combustíveis fósseis, mas a eletricidade virá de fontes renováveis. Com esse carro, é como se você adquirisse uma usina, é um novo conceito. A General Motors vende quatro rodas com um chassi. É uma usina que você compra e pode usar no carro que quiser, num conversível, num utilitário esportivo, numa perua... Ele é modular, todo de vidro, não tem volante, não existe. Não tem freios, nem pedal, nem motor. “É um joystick movido por cabos, um carro ".com" para a geração ".com". Eu nunca vou saber dirigir esse carro, mas qualquer criança que use videogames e computadores poderá operá-lo. O importante é que, fora de uso, o carro é uma usina. Se 25% dos carros do Brasil que estivessem estacionados, estivessem ligados a uma rede inteligente e descentralizada de energia, como a rede de comunicação, a internet, com 25% dos carros conectados quando parados, você poderá eliminar as usinas de energia na América do Sul. No caso dos EUA, será possível eliminar as usinas na América do Norte. A célula combustível em carros, casas ou indústrias equivale ao computador. Quando todas se conectam, acabam gerando energia. Quando os PCs se conectam, geram conteúdo e informação à velocidade da luz. Nesse caso, ao contrário de outras civilizações nas quais a energia era centralizada, desde as civilizações do Egito e da Suméria, até as civilizações da era do petróleo no século XX, desta vez, teoricamente, a energia vem de baixo para cima, porque cada um pode produzir a sua. Haverá transições no caminho, não é um evento repentino, como é comum dizer. É uma revolução de ruptura, longa e problemática. A pergunta é como iniciá-la para encontrar as soluções. 

Paulo Markun: Mister Rifkin, eu queria mudar o assunto e falar de um tema que, com certeza, uma grande parte dos telespectadores, para esse público, é muito mais próximo do que a questão do hidrogênio, que é a questão do emprego, outro tema que o senhor abordou no livro e que eu tenho certeza que a grande maioria da nossa audiência concorda que está havendo uma grave mudança no emprego e dá a impressão de que isso é uma espécie em extinção. Extinção mais próxima do que a dos combustíveis fósseis. O senhor vê alguma hipótese otimista nesse cenário?

Jeremy Rifkin: Escrevi um livro chamando O fim do emprego. Infelizmente os prazos que estabeleci no livro estão se mostrando menores que o previsto. A era industrial acabou com o trabalho escravo. Criamos máquinas para substituir a mão-de-obra física do escravo. A era da informação, essa nova era de alta tecnologia inteligente, vai acabar com o trabalho assalariado em grande escala. O fim da escravidão foi uma oportunidade e uma ameaça. Foi uma ameaça ao sistema econômico vigente, mas criou oportunidades para um mundo melhor. Era uma ruptura. A passagem do trabalho assalariado em grande escala, que é símbolo da revolução industrial, para pequenas forças de trabalho elitizadas, que simbolizam a revolução da era da tecnologia, ameaça a atual estrutura da atividade humana organizada, mas é uma oportunidade de libertar o homem do trabalho exaustivo em um emprego. O fim do emprego pode ser um período de grande desestabilização ou uma nova oportunidade. Trabalho com executivos, sou professor da Wharton School [escola de Administração da Universidade da Pensilvânia (EUA)] no programa de gerenciamento, temos alunos do mundo todo, e todos estão convencidos de uma coisa. Pergunto se vislumbram números maciços de trabalhadores no século XXII e eles dizem que não. Eles vêem a tecnologia substituindo o trabalho físico e intelectual. O operário mais barato do mundo não custará menos que a tecnologia que o substituirá. Vimos isso nos EUA no ano passado. Achamos que nos anos 90 teríamos um milagre graças ao melhor gerenciamento e às melhores oportunidades, mas isso não aconteceu. O desemprego se massificou nos anos 90. Passamos de uma força de trabalho em tempo integral com benefícios para pessoas subempregadas. Para amenizar isso, criamos cartões de crédito, para todos poderem comprar e os subempregados produzirem bens e serviços, e os americanos passaram a gastar mais do que ganhavam, o que se chama "poupança negativa". Para manter o consumo, os americanos que tinham casas refinanciavam suas hipotecas a juros baixos, para ficar com dinheiro. Agora não resta nada. Não temos o crédito dos cartões, já refinanciamos as casas, e os americanos continuam consumindo. Nesse período, segundo um estudo da Universidade de Chicago, o desemprego nos EUA era de 10%, similar ao da Europa. Não houve nenhum milagre. O interessante é que, nos EUA, no Brasil, na Europa, no mundo todo, a resposta é mão-de-obra flexível, desregulamentação da indústria, novos incentivos aos negócios para aumentar a produtividade. Com mais produtividade, haverá mais empregos. Esse é o mantra. Lamento dizer isso, mas a realidade é o seguinte: nos EUA, em 2002, tivemos o maior avanço de produtividade dos últimos 50 anos nos EUA. Foi um aumento de 4,5% na produtividade. No mesmo ano, demitimos mais de 1 milhão de pessoas. Elas foram demitidas, não conseguiram emprego; não contam mais como desempregadas, simplesmente deixaram de fazer parte da força de trabalho. Hoje temos vários milhões de pessoas substituídas pela tecnologia. Com o aumento da produtividade, produzimos bens e serviços gastando menos do que com os operários. Eis a contradição do capitalismo. Chega um momento em que você substitui muitos operários por tecnologia inteligente, que é mais barata e eficiente, mas não há gente assalariada, as pessoas não têm dinheiro, não adquirem os novos produtos e serviços tornados disponíveis pela maior produtividade. Elas não guardam dinheiro e não investem no mercado de títulos e ações. Nos EUA nós tivemos o maior aumento de produtividade em 50 anos, que aumentou o desemprego e o subemprego. É uma contradição básica do capitalismo. Para resolver isso, é preciso repensar o trabalho, e o que as pessoas vão fazer quando não forem mais necessárias no local de trabalho. Podemos fazer algumas coisas. Podemos falar sobre elas também...

Márcio Pochmann: Gostaria de levantar dois pontos nessa tese que o senhor defende, de que com o avanço tecnológico nós estaríamos fadados a uma destruição maciça de pós-trabalhos. Ela é questionável, porque, por exemplo, ao longo do século XX, o avanço tecnológico e os ganhos de produtividade foram muito maiores do que a tecnologia existente e os ganhos de produtividade do século XIX. Todavia, nos países desenvolvidos, nós convivemos com uma situação de pleno emprego. Então não é tão claro que o avanço tecnológico irá suprimir o emprego, depende de como você distribui a produtividade do trabalho. Porque é plenamente possível se trabalhar todos com jornada menor. Ao mesmo tempo, se nós olharmos as duas últimas décadas, nós verificaremos que os países que mais avançaram tecnologicamente são os países que têm menos taxa de desemprego. Os EUA, até 2000, antes da crise conjuntural que vêm se alastrando, os EUA vinham registrando taxas de desemprego inferiores aos últimos 30 anos. Justamente o período em que ele mais ampliou a sua tecnologia. E os países mais pobres, os países que menos investem em tecnologia, hoje são os países que concentram o maior número de desempregados. Então eu estou observando que a sua tese de que o avanço tecnológico suprime o emprego está sendo, de certa maneira, desfeita pela realidade atual.

Jeremy Rifkin: Com todo o respeito, eu discordo totalmente. Sua análise dos EUA está errada. Por muitos anos as pessoas repetiram isso, que os EUA tinham 4% de desemprego, era um milagre. Estamos descobrindo, com os novos estudos - o de Chicago é o mais recente, mas há muitos outros - que o que aconteceu nos anos 90 foi a passagem de empregos em tempo integral, com benefícios, para empregos de meio período e subempregos. Além disso, muitos foram excluídos da força de trabalho involuntariamente. Por exemplo, foram presos. Em 1985, 500 mil homens estavam presos. Hoje são 2 milhões, 2% da força de trabalho masculina não contam, são pessoas presas. É o maior índice de detenção do mundo. Outro estudo da Universidade de Chicago mostrou - conforme publicado no New York Times - que milhões de pessoas simplesmente deixaram a força de trabalho, gastaram os benefícios e não conseguiram emprego. Nos EUA, se os benefícios acabam, você não encontra trabalho e desiste, não é considerado desempregado. O verdadeiro índice de pessoas que saíram da força de trabalho foi de 10%. Você precisa entender isso, é o que mostram as estatísticas. Não foram 4%, as estatísticas foram camufladas. O índice foi 10% e está perto de 12% agora. Não superamos a Europa nos anos 90. Agora o novo elemento do aumento da produtividade...

Márcio Pochmann: Mas mesmo os prós...

Jeremy Rifkin: No ano passado a produtividade aumentou e demitimos mais de 1 milhão. Essas estatísticas constam de estudos do governo e das páginas do New York Times.

Márcio Pochmann: Adicionando essas informações que eu compreendo, embora a metodologia de medição dos empregos não tenha se alterado nos EUA, mesmo incorporando os números que o senhor está dizendo, as taxas de desemprego nos EUA seriam abaixo, por exemplo, da final do século XIX no século XX. Então nós não estamos rumando para um desemprego excepcional, porque o desemprego é uma norma no capitalismo. A exceção, eu diria, foram as três décadas depois do pós-guerra em que se situou uma situação de quase pleno emprego. Por quê? Porque foram feitas reformas que viabilizaram a melhor distribuição da produtividade, para parcelas que então puderam gerar posse e trabalhos...

Jeremy Rifkin: Quando a isso eu diria... Vamos chegar a um acordo aqui. Acho que a diferença é que os novos empregos criados não são empregos que ocupam mão-de-obra intensiva. Na primeira e na segunda revolução industriais, eliminamos empregos para gerar novas oportunidades, mas eram empregos baseados em mão-de-obra intensiva. Os novos empregos da alta tecnologia dependem de pequenas elites profissionais de educadores, consultores, técnicos, programadores de computador, cientistas de biotecnologia. Você nunca vai ver milhares de pessoas saindo pelos portões das empresas de software e de biotecnologia. O fato indiscutível do mundo é que o operário barato nunca vai ser mais barato que a tecnologia que o substitui. Podemos criar todo tipo de novos empregos e habilidades, produtos e serviços, mas elas não exigirão mão-de-obra física e humana intensiva. Os executivos com que lido - esqueça os acadêmicos, eu trabalho com os executivos - eles não vislumbram milhões de trabalhadores nos próximos 20, 30, 40 ou 50 anos. Podemos fazer algumas coisas. O aumento da produtividade significa mais produção com menos trabalho. As opções sempre foram reduzir a força de trabalho ou reduzir a carga horária para dar emprego a todos. A semana de trabalho no início da Revolução Industrial tinha 70 horas, passou para 60, 50 e 40. Isso aumentou os benefícios proporcionalmente ao aumento da produtividade. Então repentinamente paramos. Se a revolução tecnológica do século XXI for pelo menos tão produtiva quanto as revoluções dos séculos XIX e XX, teremos a semana de 35, 30 ou 25 horas para que mais gente trabalhe, com mais benefícios, e sem ter de se esforçar tanto. Quando laçamos O fim do emprego, colocamos essa idéia, e o governo francês aprovou a semana de 35 horas. A França não é o país mais produtivo do mundo. Ok, vamos reduzir as horas, mas encontrar alternativas. Aí entra o hidrogênio novamente. A força de trabalho será elitizada, mas a curto prazo, há empregos nessa nova infra-estrutura de energia. O índice de empregos muda quando você muda toda a rede de energia, a infra-estrutura do país. Usando o vapor, as ferrovias e o carvão, produzimos muitos empregos. No século XX, com o petróleo e o motor de combustão interna, reconfiguramos toda a infra-estrutura. Isso gerou, a curto prazo, em 50 anos, muitos empregos. Tenho a dizer o seguinte: passando para a infra-estrutura do hidrogênio, reformulando e descentralizando o sistema, usando células combustíveis e tecnologias renováveis no mundo inteiro, vamos criar, a curto prazo, vários empregos. A longo prazo, teremos de pensar no que o homem pode fazer quando não for mais necessário trabalho. Para mim, é triste pensar que a única coisa que o homem pode fazer é trabalhar para gerar bens e serviços. Definimos de maneira tão limitada o valor do ser humano. Deixe que as máquinas produzam bens e serviços, vamos libertar as gerações que virão para remunerá-las por uma atuação profunda na sociedade civil, a fim de criar capital social e comunidades para ampliar a experiência da família humana. Deixe que as máquinas produzam bens e serviços. Não duvido que no século XXIII não veremos milhões de pessoas sentadas e labutando em escritórios ou fábricas, produzindo bens e serviços. A tecnologia fará isso.

Maurício Tuffani: Professor Rifkin, o senhor tem apresentado visões de um cenário muito otimista para o futuro, seja no que diz respeito à questão da energia, do emprego, da biotecnologia. Eu pergunto se não existe a possibilidade de que fatores alheios ao desenvolvimento científico e tecnológico trabalhem contra esse cenário otimista. Até que ponto o senhor não estaria confiando demais no desenvolvimento da ciência e da tecnologia de uma determinada forma e subestimando fatores sociais que agiriam contra esse cenário? Essa é uma questão. Uma segunda e na mesma linha, é a seguinte...

Jeremy Rifkin: Vou responder uma de cada vez. Estou rindo, porque no meu histórico, nos meus 16 livros e na minha vida acadêmica, fui acusado, por 35 anos, de ser contra a ciência. Fui acusado de ser o homem mais pessimista do mundo [risos]. Agora você está dizendo que sou um otimista. Não sou. Tenho criticado a biotecnologia, a crítica à manipulação genética começou comigo; tenho criticado as tecnologias da internet e as tecnologias nucleares. A tecnologia é uma oportunidade, mas concordo com você. A sociologia do uso das oportunidades é fundamental. Nem toda tecnologia deve ser usada. Sempre fui contrário à energia nuclear. É energia, mas é desordenada, é desproporcional, não deveria ser usada. Também fui contra os transgênicos na agricultura. Há benefícios, mas os efeitos no ambiente, na saúde e nas futuras gerações são maiores. Dito isso, acho que precisamos de uma nova história para a família humana. Precisamos acreditar que podemos melhorar nossas vidas. Precisamos acreditar que temos a opção de construir nosso futuro, e precisamos saber que haverá dúvidas e problemas. Não sou Poliana [personagem principal,  que dá nome ao romance infanto-juvenil de Eleanor Porter e que é uma menina capaz de ficar feliz até nos piores momentos. Desde 1923, quando foi publicado, encanta crianças e adolescentes com um otimismo que chega às raias do irritante, inspirando o termo "síndrome de Poliana" que identifica pessoas para quem tudo é cor-de-rosa] e não sou assim tão otimista. Acredito que precisamos ter cuidado e que há um jeito melhor de fazer as coisas. Não duvido que usaremos o hidrogênio no futuro, mas não sei quem terá o controle. Vou dar um exemplo. Este é o primeiro esquema de energia descentralizado, porque podemos gerar energia sem as grandes empresas. Por outro lado, se a internet for o exemplo, haverá uma briga por esse controle. Nos primórdios da internet, os pioneiros disseram que a informação seria grátis, seria partilhada por todos, porque, com vários computadores interligados, seria eliminado o poder das grandes empresas sobre a nossa vida. Lembra? Então a Microsoft chegou dizendo: "Adoramos a internet, mas queremos que usem nosso sistema". Então veio a AOL [American on line]: "Adoramos a internet, mas queremos cobrar pelo acesso ao ciberespaço". A luta pelo controle dessa grande revolução na comunicação entre as grandes empresas e o povo, é uma luta que não terminou. As empresas não ganharam, o povo também não. A Microsoft parece forte, mas vejam a Linux [sistema operacional de uso livre para computadores]. Conhece o código de fonte aberto da Linux? Ela está avançando mais que a Microsoft e é uma ameaça, porque oferece tudo de graça, e o software está sendo usado no mundo todo. Empresas como a Disney querem controlar direitos autorais. Estão criando criptografias e leis para controlar isso, mas qualquer criança brasileira que tenha acesso a um PC faz o que depois da aula? Baixa arquivos de música, compartilha CDs, e é tudo de graça, porque esses garotos descobrem uma forma de burlar a tecnologia. Entre as empresas que querem controlar os direitos autorais e os milhões de jovens que não têm nada para fazer além de encontrar formas de burlar isso, eu apostaria nesses jovens. Com relação ao hidrogênio, a questão do poder é ainda maior. A tecnologia será controlada pela British Petroleum? [empresa multinacional com sede no Reino Unido que opera no setor de energia, sobretudo de petróleo e gás] Pela Dutch Shell? [ou apenas Shell, é uma empresa multinacional petrolífera de origem britânica, que tem como principais atividades a refinação de petróleo e a extração de gás natural] Pela Exxon? [Exxon Mobil Corporation ou ExxonMobil é uma empresa petrolífera multinacional norte-americana, formada em 1999, da fusão da Exxon com a Mobil] Outras empresas vão querer o controle? As Hewlett-Packards e Microsofts vão querer controlar a comunicação para deslocar o poder? Ou o poder será do povo? Essa questão será mais importante no Terceiro Mundo, porque os grandes beneficiários dessa revolução tecnológica são os países em desenvolvimento. O motivo da dívida dessas nações está profundamente ligado ao petróleo. Todo ano acontece o Fórum Social Mundial, ONGs do mundo inteiro vão para Porto Alegre e sugerem o cancelamento da dívida do Terceiro Mundo. Ok, mas se não entendermos a mecanismo, a dívida volta. Há 30 anos, países em desenvolvimento emprestam dinheiro para pagar o alto preço do petróleo. Desde o embargo da OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo], o Terceiro Mundo não consegue pagar. Hoje temos 90 países altamente endividados. A revolução do hidrogênio é a chance de criar um novo modelo. Lula pode estar assistindo a este programa. Ele é visto pelo mundo como o novo modelo. Comanda uma das mais poderosas economias em desenvolvimento, e todos esperam dele uma nova visão para que os pobres sejam incluídos. Com todo o respeito, quero dizer a ele que o povo não tem poder porque não tem energia, não tem eletricidade. Se você passa quatro ou cinco horas cortando lenha, você não faz parte da revolução econômica. 65% dos seres humanos nunca fizeram uma chamada telefônica, e 1/3 deles não tem eletricidade. Mas eu senti entusiasmo pelo seguinte: se reduzirmos o custo das tecnologias renováveis - e eu acho que podemos fazer isso - e utilizarmos as células combustíveis, os países do Terceiro Mundo podem obter essa tecnologia com microcréditos em suas aldeias e cidades, podem gerar eletricidade localmente, podem produzir localmente e vender globalmente. Aí vem a fase 2: reglobalização de baixo para cima. Concordo com Lula e com líderes de hoje que afirmam que a globalização de cima para baixo falhou. Foi muito estreita, muito elitizada. As trocas eram entre os ricos. Os pobres não tinham poder nem energia para participar, literalmente. Com uma tecnologia barata de células combustíveis para que cada um gere energia, produza bens e serviços localmente e os venda globalmente, a reglobalização será profunda, o poder será do povo, como se dizia nos anos 1960. Acho que para os novos líderes do mundo, que pretendem prover acesso irrestrito ao bem-estar econômico, esta é a visão, é o plano, é a história da próxima geração. E isso é acesso universal à eletricidade, para que, com a reglobalização profunda, todos participem do processo econômico, em vez de uma pequena elite e poucas empresas americanas.

Maurício Tuffani: Mas até que ponto... Só continuando com a...

Jeremy Rifkin: Faz sentido?

Maurício Tuffani: Sim. Faz sentido, está claro. Mas na sua argüição, muitas vezes, pelo menos se passa muito a idéia de um processo racional do desenvolvimento histórico que normalmente tende à descentralização de diversos procedimentos ou o senhor não concorda?

Jeremy Rifkin: Não.

Maurício Tuffani: Certo.

Jeremy Rifkin: A História tende à centralização, infelizmente. As civilizações da Suméria, da Mesopotâmia, do Egito centralizavam energia humana. Depois a civilização industrial centralizou a energia humana e dos combustíveis fósseis. Quero dizer que temos a chance de mudar a História. Estamos caminhando para comunicações descentralizadas e energia descentralizada. Podemos - cada um de nós - gerar informação e transmiti-la ao mundo e gerar energia para transmiti-la e concentrá-la. Há um longo caminho entre a teoria e a prática, e sabemos que muitos agentes institucionais querem manter o controle, assim como a Microsoft e a AOL quiseram controlar a rede internacional descentralizada de comunicações. Não estão ganhando, nem perdendo. As grandes empresas de energia vão querer controlar a energia descentralizada do hidrogênio. Estou dizendo que precisamos de equilíbrio. Há espaço para todos. A Dutch Shell e a British Petroleum podem desenvolver tecnologias renováveis. As HPs do mundo podem redefinir o esquema de energia para transmitirmos energia como fazemos com a informação. As empresas de força e luz podem coordenar as novas redes sofisticadas e descentralizadas de energia. Tudo isso é bom, desde que seja garantido que o usuário final, que detém as células, controle a própria energia, negocie com as concessionárias por meio de cooperativas, de entidades municipais, de associações de bairro, de partidos políticos e governos. É preciso haver a consciência de que poder para o povo significa que, se eu tenho minha célula combustível, se eu mesmo gero a minha eletricidade, posso controlar o destino dela e criar parcerias de negócios com qualquer um.

Maurício Tuffani: Está perfeito.

Jeremy Rifkin: Isso é difícil. Tenho 58 anos, vivi as revoluções dos anos 60, 70 e 80. Não sou ingênuo, sei que as empresas são poderosas, mas pergunto se as próximas três gerações poderão garantir que, com a energia descentralizada, estejamos organizados, como os sindicatos do século XX, para controlar nossa própria energia. Os sindicatos devem organizar coletivamente a energia de cada indivíduo para negociar com empresários. Não dá para fazer isso sozinho. Sete gerações de pessoas foram sacrificadas para que o movimento sindical tivesse força para se manter. As próximas cinco gerações deste planeta terão o mesmo poder para organizar, descentralizar e distribuir a energia do hidrogênio para termos o poder de baixo para cima? É uma pergunta em aberto.

Hélio Gurovitz: Eu queria fazer uma pergunta. Ao longo de todo o seu livro, o senhor menciona como uma realidade na natureza, a 2ª. lei da termodinâmica [lei da física formulada por Rudolf Clausius (1822-1888). Numa de suas versões, pode-se dizer que, toda vez que se realiza algum trabalho, parte da energia empregada é perdida para o ambiente em forma de calor], que impõe certas restrições aos processos geradores de energia. E uma das suas teses é que todos os sistemas econômicos fracassaram e são um fracasso por não terem sabido lidar com essa segunda lei. Por outro lado, o senhor veio de um país, os EUA, que são responsáveis hoje por cerca de ¼ das emissões de gases de efeito estufa do mundo, são os maiores geradores de entropia [princípio que se relaciona à ordem ou desordem do mundo físico] deste planeta, e neste momento o senhor está em um país que tem a maior reserva florestal do mundo, onde 90% da geração de energia é feito com base em recursos hídricos e, portanto, renováveis, e que teria, de certa forma, condições de se adaptar melhor a essa nova realidade. Eu queria que o senhor explicasse, por que a economia baseada no hidrogênio é melhor para lidar com essa realidade natural, em que medida o Brasil pode ser um exemplo para o mundo nesse ponto?

Jeremy Rifkin: Acho que o Brasil é a ponte perfeita para o próximo século. 92% da energia aqui já é hidroelétrica, renovável. O hidrogênio é necessário para o estoque, para que não haja blecautes, como aconteceu em 2001. Vocês têm recursos naturais para gerar energia solar, eólica, geotérmica e hidroelétrica; tem um governo jovem, uma sociedade jovem no sentido populacional, que pode nos levar a essa nova era e ser um exemplo para o hemisfério. Espero que o Brasil seja líder. Estou aqui esta semana para falar com a Petrobras, com ministros, com pessoas que fazem parte da experiência brasileira. Acho que o Brasil e a Europa, juntos, podem ser o modelo do século XXI para uma sociedade baseada em fontes renováveis, com o poder nas mãos do povo. Seria uma grande revolução.

Hélio Gurovitz: E a resistência do seu país, onde a indústria petrolífera hoje está no poder e comanda os destinos do planeta?

Jeremy Rifkin: É verdade, mas sabe de uma coisa? Se eu pensasse assim, não teria me oposto à Monsanto [indústria multinacional de agricultura e biotecnologia e líder mundial na produção de sementes geneticamente modificadas]. Quando iniciei a campanha contra os transgênicos da Monsanto, sabe quantas pessoas éramos? Três. Três produtores agrícolas, dois que já morreram e eu. Não comecei dizendo que eles eram poderosos e que não venceríamos. Comecei dizendo que a idéia deles de alimentos geneticamente modificados não era boa. Isso foi há 20 anos. Hoje a campanha contra os transgênicos é mundial. Brasil, Europa, Japão. Não comecei pensando que não venceríamos, mas pensando em como chegar ao futuro que esperávamos. Acho que os EUA não são monolíticos. Muitas indústrias e muitas comunidades têm interesse em abandonar o petróleo e criar uma sociedade sustentável. Nosso governo está ligado ao petróleo, eu concordo, mas muitos americanos querem fazer o que é certo. Eu estou pressionando. Voltei de uma viagem ao Canadá, esperando que esse país possa fazer pressão pela economia renovável do hidrogênio. Fui ao México, estive com o governo mexicano para que faça pressão contra os EUA. Na Europa, criamos um plano para a era da sociedade renovável do hidrogênio. Agora estou no Brasil. O Brasil é o modelo para o mundo em desenvolvimento. Com este governo que está no comando hoje, todos esperam que haja um novo plano econômico, uma nova idéia política, uma nova história para a raça humana. O melhor lugar vocês já têm, já é meio caminho andado. Que com o governo Lula e as pessoas que o apóiam, o país seja o primeiro no hemisfério a deixar os combustíveis fósseis, centralizados, elitizados e que favorece poucos, e adotar um futuro descentralizado, renovável, baseado no hidrogênio. O avanço do Brasil será o modelo para os países em desenvolvimento, e o país exercerá liderança visionária no século XXI. É um grande desafio. Este é um país jovem. Acho que para essa mudança é o país ideal.

Paulo Markun: Mister Rifkin, esse governo novo que o senhor mencionou e que realmente carrega muitas esperanças, vive hoje um paradoxo. Ele acaba de autorizar a comercialização da safra de soja transgênica que havia sido plantada ilegalmente e que, na verdade, debaixo dos olhos das autoridades do governo anterior. E, ao mesmo tempo, o governo diz que a próxima safra não poderá ser plantada. Ou seja, estamos em uma situação que nós não sabemos, em primeiro lugar, como separar a soja transgênica daquela que não é transgênica, e não está claro isso. Em segundo lugar, que país é esse, quer dizer, que posição o Brasil tem em relação a esses organismos geneticamente modificados na agricultura? Queria que o senhor explicasse por que o senhor é contra.

Jeremy Rifkin: Acho que organismos geneticamente modificados são o caminho errado para a agricultura. Quando analisamos cientificamente a questão, ela não parece favorável. Há questões ambientais insolúveis, qualquer que seja o tempo disponível. Há problemas de fluxo de genes. Genes de organismos modificados contaminam plantas nativas ou safras não transgênicas. Como se pode ter uma agricultura orgânica se as safras são contaminadas por transgênicos e não podem chegar ao mercado? Como vender soja convencional para a Europa se ela se contamina e a Europa não a aceita? O que acontece se os genes de tolerância a herbicidas passarem para plantas nativas na polinização? Já vimos isso acontecer. As plantas nativas serão resistentes a herbicidas, e não poderemos nos livrar delas. Quais seriam os impactos para a saúde? São tantos aspectos negativos, que questionamos o valor que pode superar isso. Não vejo nenhum. A Europa estabeleceu uma moratória, o Japão também. O Brasil é que vai fazer a ponte aqui. Este é o segundo maior produtor de soja do mundo. As decisões do Brasil sobre a soja serão fundamentais para o futuro da agricultura. Se o governo brasileiro decidir que vai autorizar a soja transgênica, o que considero uma decisão errada, estará ao lado dos EUA e da Monsanto, mas perderá o mercado europeu, o Japão e boa parte do resto do mundo, os maiores mercados. Se o Brasil decidir não autorizar os transgênicos, se proibir a produção da soja modificada, poderá dominar o mercado mundial da soja. Na União Européia, que terá 450 milhões de pessoas, ninguém quer alimentos transgênicos. Mesmo que Bruxelas aceitasse esses alimentos, o público os rejeitaria. Estou sempre na Europa, e em todo o continente ninguém vai consumir soja transgênica. Se o Brasil aprovar a produção de soja transgênica, os produtores brasileiros estarão em desvantagem. Vocês se alinhariam com a política de comércio dos EUA, mas no fim acabariam perdendo. Deve haver uma moratória mundial de longo prazo para a autorização de safras transgênicas. Não temos previsões ecológicas, não analisamos os riscos que podem mostrar o perigo dessa prática. É complicado demais. Trabalho com empresas de seguro do mundo todo. Elas não estão segurando - vocês precisam saber disso - elas não estão segurando organismos transgênicos contra perdas ambientais a longo prazo. O seguro é contra negligência e perda de safra. Se você tiver organismos geneticamente modificados polinizando plantas nativas aqui no Brasil ou contaminando safras orgânicas, quem vai se responsabilizar? As seguradoras não vão pagar. Isso quer dizer que o produtor agrícola brasileiro vai pagar? Ou o consumidor brasileiro? O governo vai aprovar leis para que o dinheiro dos impostos seja usado para cobrir custos ambientais e de saúde? Meu conselho para o governo brasileiro, se me permitem, é que a melhor decisão econômica que o governo pode tomar pelo futuro da agricultura, sobretudo da soja, é ser inflexível quanto à moratória para qualquer uso de soja geneticamente modificada. Se o Brasil fizer isso, vai dominar o mercado mundial de soja, vai pressionar os EUA, e será o fim dos alimentos transgênicos. Os produtores agrícolas americanos não vão conseguir se manter no mercado se a soja do Brasil estiver sendo vendida, porque ela será convencional e pura, e a nossa não.

Eugênio Esber: Mister Rifkin, o Brasil começa a ser reconhecido como talvez a grande potência agrícola mundial emergente. E no seu livro, A economia do hidrogênio, fica com a sensação de que a agricultura é um setor que se exclui um pouco da economia do hidrogênio na medida em que a produtividade agrícola depende ainda fortemente de derivados do petróleo. Nesse sentido eu gostaria que o senhor analisasse o impacto da economia do hidrogênio no agronegócio e as conseqüências disso para a economia brasileira na medida em que a eficiência agrícola do Brasil é um dos poucos trunfos que o país tem para competir nesse complicado jogo do comércio internacional.

Jeremy Rifkin: Isso é muito importante. Muita gente pensa na alta do petróleo e se preocupada com a falta de gasolina para o carro. É a maior preocupação. Ninguém pensa na eletricidade, não percebe que o preço do petróleo, do gás natural e do carvão afeta a eletricidade, que é gerada a partir deles. Muitos pensam: "Com o aumento da gasolina, não poderei abastecer meu carro". As pessoas não vêem que a área econômica mais importante afetada pelo petróleo é a agricultura. Nos EUA, conforme afirmo no livro A economia do hidrogênio, que fala sobre a agricultura e, nos EUA, 17% do petróleo usado é aplicado em produção de alimentos e agricultura. 17% do orçamento para energia dos EUA é para produzir alimentos, com fertilizantes e pesticidas, e para processar alimentos, usando combustíveis fósseis para transportá-los e vendê-los. O valor é alto aqui também. Imagine as conseqüências. No pico da produção de petróleo, que deve acontecer no final desta década, para os geólogos, e provavelmente não passará de 2035, segundo a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], os preços vão continuar subindo. O maior efeito será sobre a agricultura, que usa petróleo para produzir, processar e vender alimentos. É fundamental que o Brasil, que é líder na agricultura, seja líder no novo esquema energético. Isso significa usar fontes renováveis para não depender do petróleo. Vocês já estão em vantagem com a eletricidade, porque 90% da energia aqui é gerada com recursos hidrelétricos renováveis. O problema é a falta de hidrogênio para estocar essa energia. Nas secas, como há dois anos, falta eletricidade. Para começar, vocês vão extrair hidrogênio da água. Vão gerar energia nas hidrelétricas, e parte dessa energia será usada para obter hidrogênio e assim poder estocar a energia. Vocês ainda usam muito o petróleo, são um dos maiores consumidores do mundo. Para que os produtos agrícolas tenham preços competitivos no mercado mundial, é preciso mudar para energia gerada localmente com fonte renovável. Energia solar, eólica, geotérmica, hidrelétrica. Usem isso para gerar eletricidade. Parte da produção será usada para extrair hidrogênio da água e fazer estoque de energia para tratores, para operar o maquinário, para transportar e comercializar, para processar alimentos. É fundamental para o Brasil, se quiser ser líder agrícola, não depender do petróleo e usar o hidrogênio, porque a agricultura moderna requer muita energia. Algumas coisas o hidrogênio não pode fazer. Ele não substitui fertilizantes petroquímicos, não substitui pesticida, mas a agricultura orgânica, sim.

Eugênio Esber: Mas não será simples e nem econômica essa migração para fontes renováveis, no caso da agricultura. Não lhe parece?

Jeremy Rifkin: Não será o quê?

Eugênio Esber: Não será simples e nem barata essa migração.

Jeremy Rifkin: Eu tenho dito a líderes políticos, a executivos e a ONGs que essa será uma difícil e desafiadora revolução de ruptura. Pense na magnitude desse desafio na mesma escala da introdução do vapor, do carvão e do trem. A ruptura provocada por essa revolução mudou a política e a sociologia do mundo por um século. A revolução da célula combustível de hidrogênio traz a mesma ruptura e o mesmo desafio da inserção do petróleo, do motor de combustão interna e da eletrificação. Isso mudou tudo, foi uma ruptura para todo o século XX, mas houve benefícios. Precisamos seguir o caminho do futuro renovável com o hidrogênio. Isso não vai acontecer de repente, há barreiras tecnológicas, há instituições que não querem esse avanço, há questões de transferência de poder. O poder é exercido de cima para baixo na era do petróleo, poucas empresas comandam o mundo, mas se a energia for gerada em cada comunidade, de baixo para cima, a reglobalização deixará o poder nas mãos do povo. Eu ouço palavras de ordem há 30 anos, vivi os anos 60, sempre ouvi a frase "poder para o povo" e agora proponho tornar isso real. Vamos passar da palavra de ordem à realidade. O poder para o povo começa com a posse da energia, da eletricidade. Se o governo Lula quiser uma revolução econômica, que insira os pobres no século XXI. O começo é a criação de um plano para o emprego do hidrogênio, para que todos os brasileiros possam gerar energia e participar. Se a atitude não for essa, pode até funcionar, mas não mudará a configuração básica do sistema. O poder hoje vem de cima e se baseia em combustíveis fósseis. Sem abandonar isso, continuaremos com a estrutura elitizada de poder. Isso faz sentido?

Eugênio Esber: Faz, faz sentido.

Mônica Teixeira: Mister Rifkin, eu estou ouvindo o senhor falar há algum tempo já e fiquei me perguntando agora: o que move o senhor nessa pregação por tantos assuntos diferentes, esses que o senhor mencionou? Aí me ocorreu fazer uma pergunta, absolutamente ela não é grosseira. Mas eu queria saber: o senhor ficou rico com sua pregação?

Jeremy Rifkin: Depois de todos esses anos, vou dizer qual é a situação, embora a pergunta seja pessoal. Durante 30 anos da minha vida, tudo o que eu fiz, toda a minha renda era aplicada na organização de atividades. Minha mulher e eu percebemos que eu ia fazer 60 anos, e nós não tínhamos nada para a aposentadoria. Estou guardando dinheiro, mas não vivemos como milionários, somos de classe média. Eu fui abençoado, trabalhei muito, e quase tudo que ganhei foi empregado nessas atividades. Acho que ninguém deve viver como pobre. Desfruto dos prazeres de uma pessoa de classe média, e todo mundo deveria ter acesso a isso. Como dizia minha mãe, “dinheiro não traz felicidade”, mas ela deveria dizer que ser pobre também não. É preciso haver equilíbrio. Tento viver assim e espero iniciar uma busca pessoal mundo afora para que nossos filhos vivam melhor.

Mônica Teixeira: Eu suponho que os seus livros devam ser best-sellers, devem vender bastante bem. Isso, possivelmente, imagino que seja uma fonte dos seus recursos.

Jeremy Rifkin: Depende do livro e do país. Alguns são desconhecidos, foram publicados e sumiram. As pessoas conhecem os que vendem bem. Para os meus objetivos, chega uma época da vida, perto dos 40 e dos 50, eu tenho quase 60. Primeiro queremos evoluir, usar nossas habilidades, na meia-idade começamos a achar que há algo mais, pensamos no que vamos deixar. A meu ver, quando passamos da meia-idade, questionamos o que é importante. Nos últimos 15 ou 20, eu me perguntei quais são as coisas importantes que quero deixar. Critiquei muitos aspectos da revolução biotecnológica. Pode ser um renascimento, mas me preocupa a possibilidade de ela se tornar um Admirável mundo novo [livro escrito por Aldous Huxley em 1931, que narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas] de eugenia comercial. Então passei 20 ou 25 anos criticando isso. Quanto à revolução do hidrogênio, meu medo é depender de combustíveis fósseis e ver o colapso desta civilização. Vamos disputar esse material e colocar jovens em perigo. Dediquei algum tempo para nos afastar da energia nuclear, dos combustíveis fósseis e seus problemas para usar fontes renováveis. Em algumas áreas, é importante contribuir. No fim, nenhuma dessas mudanças vai ocorrer se a disposição das pessoas não mudar. O Brasil me interessa. Este é um país jovem, sinto isso. A população é muito jovem se comparada à da Europa e à dos EUA. Há vigor, vitalidade e energia aqui. Isso não é explorado, queremos inserir todos no futuro, queremos uma comunidade no Brasil que respeite diversidade, sustentabilidade e dê uma chance a todos, em um mundo de paz. Essa é a nova ordem, a nova História. Vocês têm um novo presidente, todos estão atentos, mas ele não pode fazer nada sozinho. Toda a comunidade, os acadêmicos, profissionais, executivos, sindicalistas, operários e produtores agrícolas precisam se unir para planejar o futuro. Eu gostaria de ver um plano para o Brasil, que o levasse a um futuro renovável descentralizado e fosse um modelo para o mundo. Gostaria de ver o Brasil como líder na agricultura, sem a insanidade dos produtos químicos e da engenharia genética, que maltratam o ambiente e as gerações futuras. Gostaria que o Brasil nos livrasse disso, usando a nova biologia e a nova ciência para criar alimentos orgânicos, sustentáveis, e oferecer opções melhores para a próxima geração. Nesses aspectos, um novo esquema de energia, novas abordagens para a agricultura, este país, em nosso hemisfério, pode fazer alguma coisa que seja modelo para os outros.

Márcio Pochmann: Em relação aos seus estudos que estão um pouco na fronteira da investigação técnica e cenários visionários, o senhor se coloca mais como o Júlio Verne  [(1828-1905), escritor francês famoso por suas obras onde a aventura e as grandes descobertas científicas são temas frequentes] da literatura ou um Alfred Chandler [1918-2007], historiador americano e professor de administração e história econômica na Harvard Business School, fez pesquisas minuciosas sobre as empresas norte-americanas em atividade entre 1850 e 1920. Uma tese recorrente em seus trabalhos é que durante o século XIX o desenvolvimento de novos sistemas baseados no vapor e na eletricidade foram os responsáveis pela Segunda Revolução Industrial] da história da ciência?

Jeremy Rifkin: Você acha que estou mais para Júlio Verne ou para o quê?

Márcio Pochmann: Ou ao Alfred Chandler.

Jeremy Rifkin: É interessante. Não gosto muito de ficção científica, mas coloquei um texto de Júlio Verne em A economia do hidrogênio. Ele escreveu um livro, há 100 anos, A ilha misteriosa, em que alguns soldados usam um balão para fugir e vão parar em uma ilha. Uma noite, estão conversando, e um dos soldados fala para o engenheiro: "E se o carvão acabar? Será o fim da revolução industrial". O engenheiro, nessa história de Júlio Verne, diz: "Não, eu acredito no futuro. O hidrogênio vai nos suprir de energia e será extraído da água". Não sei como ele concluiu isso, mas concluiu. Acho que a tecnologia não é neutra. Dizer que a tecnologia não tem valor é ridículo. Tecnologia é poder. O arco lhe dá mais poder que o braço. O carro lhe dá mais poder que as pernas. Computadores ampliam a memória. Resta saber que volume de poder é adequado e em mãos de quem ele vai ficar. Precisamos debater em sociedade que tipos de tecnologia devem ser introduzidos e se o poder é adequado e pode ser controlado em nome do povo, de maneira responsável para as gerações futuras. Essa responsabilidade deve ser nossa. Nós deixamos as grandes empresas e instituições científicas tomarem decisões sem influência popular. Precisamos dos cientistas, dos engenheiros, dos empreendedores, e também da participação do público, pois nosso futuro e as opções de nossos filhos estão em jogo.

Paulo Markun: Mister Rifkin, o nosso tempo está acabando. Eu vou fazer uma última pergunta que é a seguinte. Normalmente as análises e interpretações similares a que o senhor apresenta vêm acompanhadas de um outro dado que não foi apresentado aqui e que contradiz em um certo sentido, muitas das previsões da ficção científica, que é a questão de se mudar o modelo de sociedade de consumo em que nós vivemos. Quer dizer, em primeiro lugar nós temos hoje no mundo, eu não sei se existe na história da humanidade, uma situação em que haja pessoas tão ricas, tão absurdamente ricas no planeta, em relação a uma grande massa que ganha muito pouco ou quase nada. E, em segundo lugar, nós temos na classe média um consumo absurdo de produtos. O senhor acha que é necessário haver essa mudança no modelo de consumo da sociedade?

Jeremy Rifkin: Nunca houve esse abismo entre os que têm e os que não têm. Algumas pessoas têm muito acesso, e outras têm pouco. Nos períodos paleolítico, neolítico, na história antiga, na Idade Média, isso nunca aconteceu. As 356 pessoas mais ricas do mundo cabem nesta sala. Seus bens correspondem à renda anual de 40% da humanidade. Os três mais ricos do mundo têm bens que correspondem à renda anual de 940 milhões de trabalhadores do mundo. Por isso existe tanta instabilidade, o abismo é muito grande. Nossa espécie não deveria ser assim. Acho que a era do combustível fóssil contribuiu muito para esse abismo. Já havia um abismo antes, mas combustíveis fósseis existem em poucos lugares - carvão, petróleo e gás. Há toda uma estrutura política e militar para controlá-los. Essa foi a geopolítica dos séculos XIX e XX. O investimento é grande para obter petróleo, gás e carvão. No século XX, com o regime de energia de cima para baixo, algumas poucas empresas movimentavam a civilização. Agora temos a oportunidade - podemos desperdiçá-la, espero que não - mas temos a oportunidade de distribuir energia a todos. O hidrogênio existe em todo lugar. Precisa ser extraído, mas se conseguirmos extraí-lo usando a luz do sol e a água, com baixo custo, pela primeira vez na História, todos terão acesso à energia e terão poder. Passarão a deter o poder com eletricidade e energia. Pode haver a reglobalização de baixo para cima. A globalização falhou porque deve haver confiança para que ela ocorra. Você vai derrubar fronteiras, eliminar barreiras de comércio, desregulamentar a indústria. É preciso haver confiança social entre as pessoas para derrubar essas barreiras. Com poucas pessoas envolvidas, a confiança social não aumenta, diminui. Quando pergunto aos executivos se teremos mais confiança, eles dizem que teremos menos. A solução é a reglobalização, mas ela não acontece só com pronunciamentos em conferências da ONU e boas intenções. Para que aconteça, todos devem ter eletricidade baseada no hidrogênio para produzir bens e serviços e fazer intercâmbio com o mundo. Vou encerrar com um pensamento estranho. Aqui vocês têm muitos italianos, a Itália é um bom exemplo de modelo a seguir. É a sexta economia do mundo, são 60 milhões de pessoas, mas eles dependem de negócios pequenos e independentes, pequenas e médias empresas, operações familiares que produzem localmente e utilizam cooperativas, como no modelo socialista, para vender seus produtos ao mundo. São negócios pequenos unidos em escala maior para vender para o mundo. No G7 [grupo de países mais industrializados do mundo], só eles são modelo para o mundo em desenvolvimento. Se 60 milhões conseguiram isso com empresas pequenas, tendo acesso à energia e, portanto, ao mundo, qualquer comunidade no Brasil consegue, qualquer comunidade na América, na África e na Ásia. A distância é longa entre dizer que é possível e realizar. Vou deixar uma idéia, uma esperança. Espero que as próximas três gerações tenham firmeza, tenham a determinação de comandar seu próprio destino e essa nova fonte de energia. Eles precisam ter a mesma coragem que as gerações de sindicalistas tiveram quando organizaram o movimento trabalhista o século XX. Sem isso, o capitalismo teria acabado. Foram os trabalhadores que exigiram que os lucros fossem divididos para gerar renda e permitir a aquisição de bens e serviços. Seis gerações de trabalhadores se sacrificaram para organizar o movimento e fazer isso acontecer. As próximas seis gerações de jovens brasileiros precisam fazer esse sacrifício. Este governo ainda é recente e todos estão empolgados, mas agora conta a disciplina. Os EUA são o modelo antigo, o Brasil é o novo modelo. Vocês precisam nos convencer de que podem nos conduzir a esse novo mundo. É a nossa esperança.

Paulo Markun: Muito obrigado, mister Rifkin. Eu penso, às vezes, que a gente quando faz um programa como este, em que nós discutimos coisas aparentemente distantes da realidade das pessoas, a gente está um pouco fugindo do que é o dia-a-dia. Agora, por outro lado, na hora em que eu imagino que este programa aparece ao lado de toda a programação da rede comercial de televisão, onde exatamente essas questões jamais são abordadas, eu tenho certeza que uma TV pública como a Cultura está exatamente cumprindo a sua função ao fazer esse tipo de análise e abordagem. Queria agradecer a sua participação aqui, a participação dos nossos entrevistadores e a você que está em casa.

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