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Memória Roda Viva

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José Goldemberg

12/3/2007

Com ampla experiência em energia, o físico insiste que o álcool é uma alternativa mais interessante para o Brasil, do ponto de vista econômico e ambiental, do que a energia nuclear

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Programa ao vivo

Paulo Paulo Markun: Boa noite. O acordo entre Brasil e Estados Unidos na área de biocombustível abre nova perspectiva para o álcool ser reconhecido no mundo como energia alternativa. Os americanos vão aumentar a mistura de álcool na gasolina e isso deve elevar em 90% o consumo de etanol nos Estados Unidos até 2012. A Europa também planeja usar a mistura, e o Brasil, que é o segundo maior produtor, e o maior exportador de álcool combustível do mundo, começa a despertar para esse mercado. Só o consumo interno, cada vez maior, está desencadeando uma série de novos investimentos. O país vai construir uma nova usina de álcool por mês durante os próximos seis anos. Para discutir o futuro do biocombustível e da busca de energias alternativas, o Roda Viva entrevista esta noite o físico José Goldemberg, professor da Universidade de São Paulo e um reconhecido estudioso da energia e do meio ambiente. O professor José Goldemberg tem um envolvimento de mais de 25 anos com sustentabilidade e energia. De acadêmico, pesquisador da área de física nuclear, passou para a vida pública, onde se tornou um nome presente no debate nacional em torno da conservação ambiental.

[Comentarista]: Físico formado pela Universidade de São Paulo, o professor Goldemberg tem longo currículo na vida acadêmica e pública. Foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), reitor da Universidade de São Paulo, onde ainda é professor, presidente da Companhia Energética de São Paulo, secretário de Meio Ambiente, da Ciência e da Tecnologia, e ministro da Educação do governo Collor [Fernando Collor de Melo, presidente entre 1990 e 1992, renunciou ao cargo após ser instaurado um processo de impeachment, devido às denúncias de corrupção em seu governo], e secretário de Meio Ambiente de São Paulo, do governo  [Geraldo] Alckmin [governou São Paulo entre 2001 e 2006 e foi derrotado na campanha presidencial em 2006]. Tornou-se conhecido, nos anos 1980, pela oposição pública que fez ao acordo nuclear Brasil-Alemanha, assinado no governo [Ernesto] Geisel [presidente de 1974 a 1979]. Desde então, passou a se dedicar mais à área de energia e de meio ambiente. Antigo defensor da busca de energias renováveis, José Goldemberg considera que a experiência brasileira com o álcool combustível, o etanol, pode servir como um modelo mundial, reduzindo a emissão de gases do efeito estufa, e a dependência do petróleo, cada vez mais caro, escasso, e, geralmente, produzido em países politicamente instáveis. Recentemente, o presidente George Bush pediu aos americanos uma economia de 20% de gasolina nos próximos dez anos, através de sua substituição pelo etanol e outros biocombustíveis. Os Estados Unidos já usam a mistura etanol-gasolina, mas é muito pouco comparado com o Brasil. Aqui, de uma frota de vinte milhões de veículos, dois milhões são a álcool, e 2,7 milhões são flex. O etanol está, portanto, presente em 23% da frota brasileira. Nos Estados Unidos, de um total de 238 milhões de veículos, apenas cinco milhões usam a mistura, o que representa só 2,1% da frota. Para atingir a meta, eles vão precisar de muito mais álcool. Embora planejem triplicar a produção nos próximos dez anos, terão de ocorrer à importação. O Brasil, o segundo maior produtor mundial e o maior exportador, tem tradição e tecnologia de produção e uso do etanol. Nos anos 1970, com a crise do petróleo, o Proálcool [Programa Nacional do Álcool criado em 1975 para substituir os derivados de petróleo e evitar o aumento da dependência externa durante as crises do petróleo] mudou o cenário com o motor a álcool, que chegou a 85% da frota brasileira no final dos anos 1980. Mas, com a queda do preço do petróleo, nos anos 1990, veio a crise do álcool. O combustível caiu em descrédito e só recuperou espaço mais recentemente com os motores flex. A previsão de crescimento interno e aumento das exportações abrem um horizonte favorável ao etanol brasileiro, que tem vantagens, por exemplo, sobre o etanol americano. Aqui ele é extraído da cana-de-açúcar; nos Estados Unidos é tirado do milho. A cana é muito mais produtiva: rende seis mil litros de etanol por hectare, enquanto o milho rende só 3,5 mil. O etanol brasileiro tem custo de 22 centavos de dólar por litro; o americano,  trinta centavos de dólar. O álcool brasileiro é mais competitivo. Ainda restam as barreiras alfandegárias, que no caso americano, taxam o etanol brasileiro em trinta centavos de reais por litro. Mesmo assim, os investidores estão apostando no combustível tido como a principal alternativa energética viável a curto prazo. A nova onda do etanol, com o aumento de sua produção, deve elevar de 336 para 409 o número de usinas a álcool no Brasil até 2012, o que dá a conta de uma usina nova por mês, durante os próximos seis anos. Um meganegócio de cerca de 15 bilhões de dólares, com possibilidade de crescer com a padronização internacional do etanol e a transformação do biocombustível em commodity. Mas a corrida do etanol também traz preocupações. Os críticos lembram os problemas já criados pela monocultura canavieira, e alertam que a expansão descontrolada dos canaviais pode aumentar a poluição atmosférica pela prática das queimadas e o possível avanço da cana sobre a floresta amazônica e o cerrado.

Paulo Markun: Para entrevistar o professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, o ex-secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, José Goldemberg, nós convidamos: Washington Novaes, jornalista e supervisor do quadro biodiversidade do programa Repórter Eco, da TV Cultura; convidamos também José Carlos Cafundó, editor do suplemento agrícola do jornal O Estado de S. Paulo; Tatiana Bautzer, repórter especial do jornal Valor Econômico; Cristina Alves, editora de economia do jornal O Globo; Cláudio Ângelo, editor de ciência do jornal Folha de S. Paulo; e Alexandre Machado, comentarista de política da TV Cultura. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. Boa noite professor.

José Goldemberg: Boa noite.

Paulo Markun: Hoje o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, disse que até o final de 2008, o consumo de álcool no Brasil vai ser igual ao da gasolina. Ele falou isso depois que o presidente Bush foi embora, alguns dias depois. E eu pergunto ao senhor o que é mais importante para o Brasil: se é efetivamente alguma perspectiva que o mercado americano ofereça ou efetivamente o mercado interno, para que etanol brasileiro avance?

José Goldemberg: Eu acho que essa meta vai ser atingida, efetivamente, até 2008. Hoje, [o] etanol substitui 40% da gasolina, que seria usada. Isso porque etanol é usado sob várias formas no Brasil. Existem cerca de dois milhões de carros que ainda funcionam com álcool puro, e são, digamos, uma espécie em extinção, são automóveis antigos que não são mais fabricados. E existem os flex fuel [ou bicombustível] que aceitam qualquer mistura de gasolina e etanol e que estão sendo preferidos pelas pessoas que compram carros novos. Acontece que há um terceiro componente: não existe gasolina no Brasil, acabou a gasolina no Brasil. Toda a gasolina vendida no Brasil é batizada, ela tem 25% de etanol. De modo que o total do álcool usado na gasolina não é 25%, que seria o caso se fosse só gasolina batizada, cerca de 40%. Em uma etapa, 50% eu não creio que seja nenhum problema. Agora eu acho que atender o mercado nacional obviamente é a primeira prioridade e...

Paulo Markun: Mas sobra alguma coisa eventualmente para avançar sobre o mercado americano ou depende daquela questão da sobretaxa, o que acontece?

José Goldemberg: No momento, com sobretaxa e tudo, cerca de 15% da produção está sendo exportada através de vários métodos. Um dos métodos é mandar para a Jamaica, com um pouco de água, vai hidratado, e lá ele passa por um tratamento simples, que é desidratar e aí é exportado para os Estados Unidos sem tarifa, porque a Jamaica faz parte do acordo dos Estados Unidos com o Caribe. Na realidade há exportação. Eu acho que até seria desaconselhável se os Estados Unidos derrubassem a tarifa de um momento para o outro, porque se ela desaparecesse subitamente, o que não vai ocorrer, haveria uma sede tremenda pelo álcool brasileiro, o que provocaria faltas aqui no Brasil. Aí eu acho que seria necessário um período de transição. Acontece que o presidente Bush, que normalmente não é uma pessoa muito cordial, cortou esse assunto pela raiz. Ele disse que a taxa não vai cair antes de 2009 e não deu nenhuma esperança de que isso vai ocorrer. Eu fiquei um pouco surpreso com isso porque introduzir etanol dentro dos Estados Unidos não é apenas de interesse dos exportadores, e o Brasil seria o maior exportador, seria de interesse do próprio povo americano, que poderia reduzir as suas emissões de carbono. Isso foi posto de lado pela postura pouco abrupta do presidente Bush.

José Carlos Cafundó: Mas professor, esta questão da taxa não estaria ligada ao Congresso americano e não à posição do presidente? Não foi por isso que ele deu essa resposta brusca de que não vai mexer na taxa? Até porque é o Congresso quem decide, ele não tem esse poder.

José Goldemberg: Foi, mas é preciso conhecer um pouco os Estados Unidos para lembrar que o presidente desse país tem um enorme poder de convencimento. É verdade que o Bush já não tem mais agora, ele agora é, como é que se diz? Um pato manco. Mas, se ele tivesse no começo do mandato dele, ou até em um período melhor, ele poderia dizer: “De fato, o Congresso americano introduziu essa sobretaxa para proteger os agricultores de Iowa e etc, mas eu encaminharei uma lei nesse sentido”. Ele não fez nada disso. Ele simplesmente não quer abrir mão de uma parte do eleitorado que ele ainda tem. Por outro lado, a ênfase que ele deu em valorizar o etanol, provavelmente, foi feito para melhorar um pouco a barra dele com os ambientalistas americanos. Aliás, no [The] Economist [revista semanal inglesa] desta semana, como de hábito, está ótimo; mesmo quando ele erra politicamente, ele é ótimo, e o inglês do [The] Economist vale à pena ler porque a gente aprende...

José Carlos Cafundó: Por falar em ambientalismo, o senhor acha que todo esse crescimento da cana no Brasil, que hoje ocupa seis milhões de hectares, para aumentar a produção de etanol, a gente vai avançar em cima de áreas degradadas de pastagem? Ou a Amazônia corre perigo?

José Goldemberg: Não, eu acho que a Amazônia não corre perigo, por enquanto. Por duas razões: as variedades de cana-de-açúcar que se usa hoje não se prestam para a Amazônia. Mas é possível que a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] desenvolva espécies que se dêem melhor na Amazônia. Mas isso não foi feito ainda e vai demorar.

Washington Novaes: Mas já vai começar a primeira usina no Acre...

José Goldemberg: É, eu vi com surpresa essa notícia. Agora, o que acontece é o seguinte. No momento, a grande expansão ocorre no estado de São Paulo. E na Secretaria do Meio Ambiente, nós licenciávamos essas usinas, uma por uma. E a expansão estava se fazendo de maneira ordenada em cima de pastagens altamente degradadas, aumentando um pouquinho a densidade do gado naquela área. Veja, a densidade de gado aqui no Brasil é, de fato, muito baixa. Esse gado está extremamente confortável. É uma cabeça por hectare, aproximadamente. Aumentar esses dez milhões de hectares de pastos em São Paulo, aumentar essa densidade em 20% liberaria dois milhões de hectares para a expansão.

Washington Novaes: Mas, professor, já está avançando em outros lugares também, em Goiás já há 35 novas usinas licenciadas, todas com incentivos fiscais pesados, conflitos com a soja, o prefeito de Rio Verde - que é a região maior produtora de soja em Goiás, e que abastece toda a indústria da carne, a Perdigão e outras, e os produtores que fornecem à Perdigão - baixou um decreto restringindo a 10% a área de agricultura do município a possibilidade da expansão da cana porque começou o conflito com a soja. E a indústria ligada à produção de carnes entrou em alerta. É uma expansão violenta da cana-de-açúcar e mais: uma grande parte dessa expansão hoje está sendo feita pelos grandes grupos que já dominam o comércio de commodities e de insumos químicos, tanto em Goiás como em outros lugares. O próprio embaixador Rubens Ricupero [jurista e diplomata de carreira desde 1961, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos de 1991 a 1993] botou isso em um artigo dele recente, quer dizer, o risco de acontecer em outros lugares o que já aconteceu em São Paulo, da cultura da cana expulsar as culturas de alimentos e outras culturas, com as conseqüências que tem nos preços e nos transportes, parece que é muito grave.

José Goldemberg: Olha, Washington, eu acho que é uma questão de ver o problema em perspectiva. Existem no Brasil cerca de sessenta milhões de hectares sendo cultivados, aproximadamente. Acho que é isso, não é? [dirige-se a José Carlos Cafundó].

José Carlos Cafundó: 66 milhões, fora o reflorestamento.

José Goldemberg: 66 milhões. E cana ocupa um pouquinho menos que 10%. Sabe, esse tipo de consideração que você está fazendo é verdadeira, mas podia ser dita do café e de outras coisas também. Eu acho que se é para pegar no pé de novidades que vêm por aí, precisava pegar no pé dos países produtores de petróleo também, porque o petróleo faz isso também. Há custos e benefícios. De fato, o etanol como substituto da gasolina, vindo da cana-de-açúcar, é uma boa idéia. Não é do milho. Sob esse ponto de vista, os Estados Unidos têm uma desvantagem, os seus gráficos iniciais eram muito bons, mas está faltando um: é que para produzir um litro de álcool, de etanol de milho, é preciso colocar 0,7 litros de combustível fóssil, quer dizer, o rendimento energético é muito baixo. Ao passo que o álcool brasileiro, vindo de cana-de-açúcar, tem o que a gente chama de balanço energético muito bom. Ou seja, você coloca um litro de combustíveis fósseis, e você fabrica oito litros de álcool, ele é praticamente renovável. O álcool com o qual a gente abastece o carro no posto é praticamente energia solar. O álcool americano não é assim. É claro que na cidade onde o álcool é usado, em Los Angeles, ele ajuda a reduzir a poluição, mas onde ele é produzido, em Iowa, Illinois, ele está emitindo uma quantidade considerável de gases de efeito estufa. Ou seja, o etanol tem vantagens e, sobretudo com as preocupações crescentes do efeito estufa, é isso mesmo. Eu acho que se houver uma disputa entre soja e etanol, é conveniente restringir soja um pouco, porque soja cresce bem na Amazônia e está avançando, é uma coisa que está ocorrendo...

Washington Novaes: Não seria melhor um zoneamento para tudo?

José Goldemberg: Washington, nem me fale disso! Como secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo, tentei introduzir o zoneamento, alguns dos seus colegas aqui presentes sabem disso. E as pessoas não queriam ouvir isso. A Secretaria de Meio Ambiente, na prática, fazia um zoneamento, porque ela tem uma reputação junto com a Cetesb [Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental] de ser tão enjoada e exigente que, no fundo, correspondia a uma espécie de zoneamento, porque nós fazíamos muitas exigências. Eu vejo com inquietação essa história do Acre e essas facilidades que alguns outros estados podem oferecer. Em compensação, Washington, essa expansão, em Minas e em Goiás está empurrando a produção de etanol para mais longe. E aí a economia ajuda.

Tatiana Bautzer: Eu queria fazer uma pergunta em relação à competitividade americana. Quando a gente conversa com funcionários do governo que defendem a tarifa, porque o milho claramente não é competitivo em relação à cana-de-açúcar, o que eles parecem estar esperando, num prazo de três a cinco anos,  é que comece a produção comercial de etanol celulósico, formas de biomassa que não competiriam com a produção de alimentos e que poderiam sair com um custo baixíssimo. Existe já alguma pesquisa que demonstre eficiência de produzir etanol a partir de serragem ou outros tipos de biomassa, e quanto custaria esse etanol? E isso não pode prejudicar a competitividade do álcool brasileiro produzido de cana?

José Goldemberg: Se a produção de etanol a partir de celulose funcionar bem. Teoricamente deveria funcionar, porque celulose é simplesmente uma cadeia de açúcares, as fibras que tem na celulose são fibras que têm dez mil moléculas de açúcar. Então se quebrasse essas moléculas, teria açúcares. Isso se tentou no passado, inclusive aqui no Brasil houve uma experiência que não foi levada completamente ao fim. E o professor Moreira, que trabalhou comigo nessa ocasião, esteve envolvido nesse projeto, que era um projeto chamado Coalbra [Coque e Álcool da Madeira S.A] - algumas pessoas lembram - que era um processo tecnológico de fazer isso. É difícil quebrar as cadeias da celulose. E agora, então, há toda uma onda nos Estados Unidos de pesquisas, um novo ataque que, inclusive, pode até envolver organismos geneticamente modificados, [e] vai deixar uma porção de amigos nossos insatisfeitos, para acelerar o processo. O que há é que essas enzimas não conseguem quebrar essas cadeias. Até que eu tenho acompanhado bem isso porque um colega meu, nos Estados Unidos, que é diretor de um grande laboratório do departamento de energia, o Laboratório de Berkeley, lutou muito para conseguir uma doação da British Petroleum [companhia petrolífera com sede na Inglaterra].

Tatiana Bautzer: Parece que as empresas estão apostando muito, não é?

José Goldemberg: Ele estava tentando conseguir quinhentos milhões de dólares para um programa de dez anos, e esses grandes capitalistas da área de informática [...] e outros que têm capital de risco, têm colocado dinheiro nisso. Eu acho que é uma via muito interessante. Mas Tatiana, sendo um cientista, eu só acredito em pesquisa e desenvolvimento, depois que ela der resultado. Os cientistas têm procurado miragens, há muito tempo algumas miragens não se concretizam.

Alexandre Machado: Professor, o Brasil fez uma boa lição de casa nessas últimas décadas e tem uma dianteira tecnológica. Sabe-se que, entrando um parceiro como os Estados Unidos nessa parada, essa dianteira poderá ser perdida se não houver um programa de desenvolvimento tecnológico que seja compatível com a dimensão de toda essa oportunidade que está surgindo. Qual é o tempo que nós temos em relação a isso? Eu li, ainda ontem, que os Estados Unidos estão determinando no seu orçamento alguma coisa em torno de  hum bilhão e meio de dólares para a pesquisa só de biocombustíveis. Nós temos condição de fazer o quê diante disso?

José Goldemberg: Eu posso lhe dar duas informações. A primeira é a seguinte: nós temos uma vantagem tecnológica importante, sobretudo, devido ao trabalho do centro tecnológico da Copersucar [Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, Açúcar e Álcool do estado de São Paulo, fundada em 1959, sendo considerada em 2008 uma das maiores produtoras de açúcar e álcool do mundo], em Piracicaba [interior do estado de São Paulo], que foi explorando as vantagens naturais do Brasil, quer dizer, espécies melhores, em suma, usando tecnologia convencional, não a tecnologia do futuro. E, como você sabe, a produtividade de etanol no Brasil cresceu 3% ao ano durante vinte anos. É uma coisa extraordinária. Isso não está esgotado ainda, ainda há progressos a serem feitos. E a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] está lançando agora um programa de aproximadamente 150 milhões de reais para estimular esse tipo de atividade. Acho que é muito oportuno esse novo programa da Fapesp. Tenho visto muito pouco noticiário sobre esse programa, mas é um programa interessante porque eles pretendem fazer não apenas um programa acadêmico, mas um programa em associação com empresas. E aí, de fato, é preciso envolver empresas, porque o problema não é a bioquímica do processo. Vocês viram essas fotografias, esses filmes [referindo-se ao vídeo inicial sobre o assunto da entrevista]. A cana-de-açúcar é uma coisa vultosa, não é só uma coisa de bancada de laboratório. Precisa realmente fazer isso em grande escala. E sobre isso a Fapesp está lançando um programa que eu vejo com bons olhos.

Paulo Markun: Eu queria registrar que várias questões aqui abordadas correspondem a perguntas enviadas pelos telespectadores, como Jefferson Valadares, do Rio de Janeiro; Tiago Rocha, de São Paulo; Felipe Amaral, de Porto Alegre; César Augusto Barão, de Curitiba; Cezínio Neto, de Belo Horizonte; Fábio Martins, de Vitória da Conquista; Marco Antônio Nunes, de Belo Horizonte; Michelangelo, de São Paulo; Vanderson Douglas, de Santa Luzia, Minas Gerais; Alberto Figueiredo, Recife; Joelmir Gomes, de Eldorado, São Paulo; José Eduardo Vitor, de Jaú, São Paulo. Todos eles abordando mais essa questão da preocupação em relação ao crescimento da cana na esteira do etanol. E nós voltamos, dentro de instantes, com o Roda Viva, que hoje tem na platéia o professor Oswaldo dos Santos Lucon, assessor técnico da Secretaria do Meio Ambiente do estado de São Paulo e pesquisador da USP; a professora Suani Teixeira Coelho, professora da USP e coordenadora do Centro Nacional de Referência em Biomassa (Cenbio); professor Jose Roberto Moreira, professor aposentado do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e consultor das Nações Unidas para Mudanças Climáticas.

[intervalo]

Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva, que hoje entrevista o físico José Goldemberg, professor da Universidade de São Paulo e há anos envolvido com estudos sobre energias renováveis e equilíbrio ambiental. Professor, o diretor nacional do MST, Movimento dos Trabalhadores [Rurais] Sem-Terra, João Pedro Stédile, tem uma pergunta para o senhor, vamos acompanhar:

[VT de João Pedro Stédile]: Meu caro Goldemberg, o senhor nos ensinou que o Brasil tem enormes potencialidades de terras agricultáveis, de água e de energia solar. O senhor acha que é melhor utilizar esses recursos para produzir alimentos e renda para o nosso povo, ou seria melhor produzir agrocombustíveis para abastecer os carros americanos?

José Goldemberg: Olha, senhor Stédile, não há contradição entre produzir alimento e produzir combustíveis. Sabe, o Al Gore [Albert Arnold Gore Junior, vice-presidente na administração de Bill Clinton, entre 1993 e 2001. Em 2000 concorreu à presidência dos Estados Unidos, mas perdeu a eleição para George W. Bush, passou a fazer campanha ambientalista, lançou um livro e um documentário sobre mudanças climáticas, onde faz um alerta dramático sobre o aquecimento do planeta e seus prejuízos à saúde, à economia e ao ser humano], que ganhou o prêmio Nobel [da paz, 2007] há pouco tempo atrás, acabou mostrando que não está faltando alimento no mundo. O que há é que o alimento está muito mal distribuído. Há um problema de distribuição de alimentos. Essa idéia de que existe fome no mundo é um artifício de barreiras econômicas e de uma distribuição inadequada. E o Brasil, com a área que tem, tem espaço para os dois. É claro que, se nós fôssemos transformar o Brasil em um canavial, é claro que nós vamos prejudicar a produção de comida, mas nós não chegamos lá ainda. Quem está chegando lá são os americanos. Com o milho, eles já estão começando a ter problemas. Quer dizer, a conversão de milho em etanol está prejudicando a utilização de milho para ração animal ou a produção de tortilhas no México.

Paulo Markun: A força do mercado norte-americano, se eventualmente ela se fizer valer sobre o etanol brasileiro, não vai significar um estímulo extra à produção de cana que leve a essa coisa? Aliás eu faço a pergunta também de José Eduardo Vitor, de Jaú, ele diz o seguinte: o brasileiro não corre o risco de ver o preço do álcool disparar no mercado interno se os americanos importarem o produto em larga escala?

José Goldemberg: Eu acho que sim, ele tem razão. Aí, Markun, vai ser preciso...

Paulo Markun: Aquela lei que ninguém consegue revogar, que é a da oferta e procura.

José Goldemberg: É. Mas aí, naturalmente, o que o governo vai ter que fazer é limitar a exportação, quer dizer, atender primeiro às necessidades nacionais, que é mais ou menos o que está dizendo o Furlan.

Washington Novaes: Mas até hoje isso não foi feito...

Cristina Alves: Quais são os riscos efetivamente de uma crise de desabastecimento daqui a alguns anos em relação ao álcool brasileiro? Há pouco tempo a associação dos fabricantes de veículos, a associação das montadoras, fez algumas projeções do crescimento dos veículos a álcool e flex fuel, para os próximos anos, e, ao mesmo tempo, de área plantada e o que isso podia representar. E aí realmente havia sinais preocupantes, não só da demanda interna, de atender à demanda interna, como sobra para a exportação. Qual é realmente a chance do consumidor brasileiro ter problemas de abastecimento, nos próximos cinco ou dez anos?

Washington Novaes: Se a Cristina me permite acrescentar, no final da década de 1980, o carro a álcool representava quase 90% do mercado brasileiro de automóveis, e morreu do dia para a noite porque os produtores preferiram exportar cana-de-açúcar que estava em um altíssimo preço. Em 2003 nós diminuímos a porcentagem de álcool na gasolina no Brasil  [...] para poder exportar para o Japão e para poder exportar para a Suíça [...] é nesse governo que está aí. Então esse risco está presente. Quer dizer, não há uma ação de governo voltada para essa questão de proteger o mercado interno.

José Goldemberg: Olha, esse assunto tem sido discutido ao longo do tempo não só para o álcool como para gasolina também, para petróleo também. Agora como a Petrobras [Petróleo Brasileiro S.A] atingiu quase a auto-suficiência, esse problema diminuiu muito, mas alguns anos atrás, o Brasil ainda importava petróleo e havia oscilações fortes de preço. E a resposta existe, você sabe, é fazer estoques reguladores. O governo tem que fazer estoques reguladores.

Washington Novaes: Mas os produtores não aceitam.

José Goldemberg: Pois é. Exatamente. Mas parece que a Petrobras é sensível a estoques reguladores, mas não quer gastar dinheiro.

Tatiana Bautzer: A questão é quem financia.

José Goldemberg: Olha, o que me disse em uma ocasião o Malan [Pedro Sampaio Malan, ministro da Fazenda durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)]... Em uma ocasião, no final do governo Fernando Henrique, fui membro do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). E lá o Malan disse, uma ocasião, que havia uma lei em vigor, uma dessas leis que não pegam, de criar um estoque regulador, o que custaria hum bilhão de dólares. Isso vai ser necessário fazer...

Washington Novaes: Mas não fazem nem com alimentos mais, acabaram com o mercado com o estoque de alimentos, quanto mais o de combustível...

José Goldemberg: Eu diria o seguinte, assediado por pessoas preocupadas com a produção de alimentos, com a competição do mercado americano e com a minha própria experiência, diria o seguinte: a produção atual de etanol no Brasil, que se concentra aqui em São Paulo - tem agora essa perturbação de Goiás e Minas Gerais, mas ela ainda está concentrada em São Paulo - pode dobrar sem grandes perturbações de natureza ambiental, talvez triplicar. Além disso, eu tomaria muito cuidado, mesmo porque, Cristina...

Cristina Alves: Em que prazo?

José Goldemberg: Dez anos. Ela pode dobrar ou triplicar em dez anos sem risco. Mesmo porque se ela aumentar muito, como alguns colegas têm defendido, e pegar todo o cerrado e transformar em canavial, os europeus vão introduzir barreiras não alfandegárias. Há uma discussão grande na Europa. O parlamento holandês criou uma comissão oficial do parlamento para estabelecer critérios de sustentabilidade, a fim de que a Holanda - e isso vai contaminar, evidentemente, a comunidade européia toda - não importe etanol que esteja destruindo a Floresta Amazônica.

Cláudio Ângelo: Em 2006, essa comissão, em agosto, publicou um estudo mostrando que o custo do álcool brasileiro pode crescer entre 24% e 56% se os critérios europeus de sustentabilidade forem todos aplicados. Quer dizer, não é um pouco artificial essa competitividade do álcool brasileiro?

José Goldemberg: [fica pensativo por um momento] Não sei responder. Talvez o Cafundó me ajude. O mesmo argumento não poderia valer para carne ou para outros produtos?

José Carlos Cafundó: Pode valer para outros produtos também. Eu acho que a grande questão aqui é que nós conseguimos alta produtividade por hectare a um preço relativamente baixo...

Washington Novaes: Se tirar os subsídios de impostos...

José Carlos Cafundó: Você tem razão, veja nos Estados Unidos que a produção de álcool a partir do milho tem sido "gravosa"; mesmo no balanço energético, ela não é recomendável. Agora, o Brasil tem condição de produzir ainda álcool por um preço baixo, relativamente aos combustíveis existentes hoje – a grande maioria à base de petróleo...

Washington Novaes: Com os subsídios que tem...

José Carlos Cafundó: Com os subsídios que tem. É por isso que a representante do governo Bush, hoje, disse ao nosso ministro das Relações Exteriores que só topa negociar a questão de Doha, o destravamento, se todos colocarem na mesa cartas abertas. Então nós vamos ter que tratar disso também, dessa questão dos subsídios embutidos naquilo que nós produzimos.

Alexandre Machado: Professor, os ambientalistas têm chamado atenção do senhor para os problemas que o mundo vem sofrendo, e por não serem muito ouvidos, é que nós chegamos a essa situação crítica em que estamos. Chegamos a uma situação dramática em relação ao planeta Terra e, quando surge uma expectativa brilhante como esta para o Brasil - de poder expandir a sua produção de cana e ter mais recursos vendendo etanol -, e tudo isso [...], não seria um aumento que os ambientalistas, vistos sempre como sonhadores, deveriam aproveitar com a cumplicidade do governo para começar a pensar em outros sistemas de transportes, ao invés de só substituir a gasolina por álcool, que se pensasse mais em transporte coletivo, que se reduzisse um pouco a utilização do transporte individual e que esse momento não fosse apenas de substituição de uma coisa por outra, mas que fosse uma mudança de comportamento do mundo?

José Goldemberg: A resposta é sim e tem um bocado de gente tentando, com pouco sucesso, essa é que é a verdade. O século XX nos viciou completamente nesse produto maravilhoso que são os combustíveis fósseis. Todo esse conforto e liberdade individual que nós temos se originam no fato de os combustíveis fósseis serem disponíveis, baratos e usados de uma maneira extremamente ineficiente, predatória. O que está ajudando, Alexandre, e eu acho que vai ajudar logo, são três coisas. É que essas reservas de combustíveis fósseis são uma espécie de "herança da tia", é uma vez só que tem. Esses recursos estão se tornando mais escassos e, portanto, vão ficar mais caros. Há toda uma discussão de que a gente vai transformar xisto em gasolina, e não sei o que mais... É até verdade, mas isso vai sair cada vez mais caro. Então, não há dúvida de que a época fácil dos combustíveis fósseis acabou. Esse é o primeiro problema. O segundo é que os problemas ambientais estão ficando reais. Eu nunca fui uma pessoa da área ambiental, eu sou uma pessoa da área de energia, mas logo que você começa a estudar energia, logo vê que, realmente, os problemas são reais. Beijing [capital da China] é uma cidade intolerável. Aliás, os chineses estão pagando um preço caríssimo agora para limpar Beijing por causa das Olimpíadas que vão acontecer lá.

Washington Novaes: Por que o Brasil não consegue sequer implantar o programa de inspeção e controle de emissão de poluentes por veículos? Isso está aí há vinte anos, com os estados e prefeituras disputando quem fica com a taxa e, enquanto isso, não tem inspeção de veículos. E essa frota de vinte ou trinta anos que o Brasil tem, emitindo uma loucura. As motocicletas agravando o quadro muito mais e não se faz sequer isso, que é uma coisa que já existe, um programa que já existe, teoricamente...

José Goldemberg: Você é testemunha de como eu lutei para introduzir isso. Está nas mãos do governo federal, porque o estado de São Paulo foi manietado e não pode fazer nada.

Washington Novaes: São Paulo chegou a implantar um posto aqui, o primeiro posto piloto...

José Goldemberg: Mas, olha aqui. Então tem o problema da exaustão, tem o problema das conseqüências ambientais que estão ficando sérias, e tem o problema que vai ajudar muito, Alexandre, que é a segurança de suprimento. Isto é, o mundo está ficando tão complicado com o Oriente Médio, com o Iraque e etc e tal, que as pessoas estão procurando sua auto-suficiência. Sob esse ponto de vista essa é uma ajuda grande para as energias renováveis. Sob esse ponto de vista o etanol é um avanço de vida.

Paulo Markun: Porque o senhor é mais reticente - eu já o entrevistei sobre isso e já li várias declarações do senhor - em relação ao biodiesel? O senhor é um adepto do etanol, mas quando se fala em biodiesel, o senhor diz: “Ah, isso não é bem assim”. Por quê?

José Goldemberg: É verdade. É pelo seguinte. O biodiesel que está sendo produzido no momento no Brasil é produzido a partir de soja e ele usa metanol, que é um produto que tem origem em combustíveis fósseis. E, portanto, ele não é um programa de energia renovável.

Paulo Markun: Mas não tem o biodiesel da mamona e de outras produções?

José Goldemberg: Tem, pois é. Envolve 1% da produção, são todas coisas muito mais em estágio de experimentação e com componentes folclóricos. Mas, na prática, quando você chega na prática, você pergunta quem é que está comprando biodiesel, é a Petrobras, basicamente é o único comprador, a preços subsidiados, ainda fortemente subsidiados...

Cristina Alves: Por que não tem escala no biodiesel brasileiro? O senhor realmente não acredita ou o programa está mal formulado?

José Goldemberg: Ele está mal formulado. O programa que existe é um programa que utiliza soja como fonte do óleo, e metanol para fazer uma operação química...

Washington Novaes: Já estão começando a usar muito o dendê e a mamona no Nordeste, mas expulsando a agricultura familiar.

José Goldemberg: Mas não estão usando muito, estão usando um “ipsilon”. E é um programa de agricultura familiar, não é um programa de...

Washington Novaes: Não, já expulsaram a agricultura familiar, são megausinas que apenas compram a matéria-prima.

José Goldemberg: Não é o que me contaram... Pois é, mas aí, eu vou me socorrer na Tatiana, as leis econômicas... As megausinas têm economia de escala, né, Tatiana?

Tatiana Bautzer: Não me parece que o biodiesel tenha escala hoje em dia.

José Goldemberg: Não, não tem. Eles acham que estão atropelando. Álcool tem, tem um problema de economia de escala. Você sabe que no começo do programa do álcool se tentou fazer mini-destilarias, e aí, de fato... aí é um fato da vida...

Washington Novaes: O senhor não acha que nesse terreno todo de etanol e biodiesel a gente está voltando... No começo da década de 1970, eu me lembro de uma entrevista coletiva do então ministro [Antônio] Delfim Neto [economista, ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento durante o regime militar, e embaixador do Brasil na França], quando começava a destruição do cerrado pelo pólo do centro e pelo pólo do noroeste, e começavam as denúncias: que estavam derrubando tudo, correntão. E eu fiz uma pergunta a ele, eu disse: "Ministro, o governo não vai fazer nada"? Ele disse: "Você quer inverter a ordem dos fatores? Primeiro vem o faroeste, depois é que vem o xerife". Você não pode inverter a ordem. E de novo, parece que a gente caminha na mesma direção.

José Goldemberg: No biodiesel eu acho que nós estamos mais ou menos por aí, mas no álcool até que ficou mais ou menos ordenado. No intervalo eu estava dizendo uma coisa, que eu quero dizer ao vivo: o programa do etanol não começou como um programa de energia renovável, começou como um programa que dava dinheiro...

José Carlos Cafundó: Para substituir petróleo que estava faltando, na crise do petróleo.

José Goldemberg: Exatamente. E permitiu regularizar o fluxo de caixa das usinas, pois quando o preço do açúcar caía no exterior, eles produziam álcool. Colegas nossos, e nós, inclusive, chamamos atenção para o fato de que, além de ele ser uma fonte de recurso, de dinheiro, ele era uma fonte de energia renovável. E eu acho que nós temos que voltar aos fundamentos. Por isso que eu acho que o biodiesel produzido de soja, que está avançando pela Amazônia, usando metanol, que não é um combustível renovável, é uma coisa desaconselhável.

Cláudio Ângelo: Não é o preço do pioneirismo, professor? Não tem que haver um momento inicial de investimento nesse negócio para a tecnologia se estabelecer?

José Goldemberg: Tem. Eu estou ouvindo coisas contraditórias aqui, quer dizer... Outro dia tentaram me vender essa agricultura familiar, em termos altamente elogiosos... Ela está afastando a agricultura familiar? Disseram que essa criação de mamona é uma maravilha, parece essas cooperativas do Rio Grande do Sul, etc...

Cristina Alves: Ganhou escala e o senhor não sabia, né?

Paulo Markun: O estado de São Paulo tem uma política específica para o etanol diante desse novo cenário? O governo do estado?

José Goldemberg: O governo do estado está... A política que o governo tinha... É um pouco desagradável defender governo aqui...

Paulo Markun: Mas é o principal produtor nacional, não é?

José Goldemberg: A política, na prática, era a política da Secretaria do Meio Ambiente. Não era o lugar correto até. Quem devia fazer isso é a Secretaria de Agricultura e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico. E eu insisti várias vezes com meus colegas que era preciso um zoneamento ecológico-econômico para empurrar a cultura para os lugares onde provocassem menos danos ambientais. O argumento que eles usavam comigo - eu olho para a Tatiana e lembro do Valor Econômico - é que o mercado decide isso, porque a terra é mais barata, é não sei o quê, etc. Não tem nada de terra mais barata, tem que fazer um zoneamento ecológico-econômico. Nós fizemos um zoneamento ecológico-econômico, da Secretaria do Meio Ambiente, para o Litoral Norte, eu acho que você deve ter acompanhado isso. Não pode construir marinas em alguns lugares. Tem uns ricaços aqui em São Paulo que estão com ódio de mim até hoje, porque eu destruí os portos onde eles colocavam iates deles para fazer pesca submarina. Zoneamento ecológico-econômico funciona. Ele não foi feito para o etanol. Ele foi feito na prática, a Secretaria do Meio Ambiente criou dificuldades para colocação delas em lugares inadequados. Agora, com as informações que você me dá, do Acre, Goiás, etc e tal, o Ministério do Meio Ambiente precisa efetivamente acordar para isso, porque senão as questões que a comunidade européia está levantando vão se tornar mais agudas. Se eles [colocarem] em funcionamento, de fato, aqueles critérios que os holandeses discutiram, vai custar caro. É uma lista de... Você viu a lista de...

Cláudio Ângelo: Sim. É um monte de coisa. A gente tem opção, se não seguir os critérios, tem isso também.

José Goldemberg: É vai aumentar os impostos. Eu acho que é preciso políticas mais proativas dentro do governo para fazer. Eu acho que aqui no estado de São Paulo - é por isso que eu estou embaraçado, estou defendendo minha própria gestão - nós fizemos isso em grande medida. Mas é uma política não explícita. A informação que eu tenho agora, recentíssima, é que o governo estadual está acordando para o problema, a Fapesp está lançando esse programa de desenvolvimento tecnológico, que eu acho que é uma coisa boa, e o governo está pensando em medidas um pouco mais ambiciosas nesta área - o que seria ótimo, efetivamente.

Paulo Markun: Vamos fazer mais um rápido intervalo. O programa aqui hoje é acompanhado na platéia por: Bruno Fucci Júnior, empresário; Carolina Bartolomeu, advogada; Alexandre Capobianco, professor de economia da Faculdade Paulista de Pesquisa e Ensino Superior (Fappes) e diretor do Instituto Paulista de Educação Continuada (Ipec).

[intervalo]

Paulo Markun: O Roda Viva discute hoje biocombustíveis, energia, meio ambiente, e nosso convidado é o físico José Goldemberg, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (IEE/USP). Professor, o vice-presidente da Federação das Indústrias do estado de São Paulo, e diretor do Departamento de Meio Ambiente da Fiesp, Nelson Pereira dos Reis, tem uma pergunta sobre demanda de energia. Vamos acompanhar.

[VT de Nelson Pereira dos Reis]: Professor Goldemberg, com as metas propostas pelo PAC [Plano de Aceleração do Crescimento], como o senhor vê a questão da demanda de energia? É possível conciliar o aumento da produção de energia elétrica com o meio ambiente? Estamos enfrentando o problema com o licenciamento das usinas da Amazônia. Seria a energia nuclear uma alternativa viável para suprir as nossas demandas futuras? Os riscos da energia nuclear poderiam ser superados? Ou o senhor acredita que deveríamos insistir mais nas fontes renováveis como, por exemplo, as fontes eólicas, solar, e outras novas tecnologias que estão cada vez mais sendo faladas e discutidas no meio científico? É possível que as fontes renováveis, como etanol, possam contribuir também para que a nossa matriz energética permaneça uma das mais limpas do planeta?

José Goldemberg: Olhe, dr. Nelson, energia nuclear não vai resolver o problema energético do Brasil, e o dr. Nelson colocou o problema energético como um problema de eletricidade. Quer dizer, o que o Brasil precisa de eletricidade são quatro mil megawatts por ano. Se nenhuma grande desgraça ocorrer, o sistema precisa crescer cerca de quatro mil megawatts [o que equivale a] quatro grandes reatores nucleares por ano. Isso não vai acontecer mesmo que se decidisse seguir por esse caminho, levaria-se de oito a dez anos para construir esses reatores. A solução que existe é efetivamente a solução hidroelétrica, e eu não conheço em detalhes, porque não era minha responsabilidade cuidar disso, mas eu fui presidente da Cesp [Companhia Energética de São Paulo] no passado e sei algumas coisas sobre hidroeletricidade. Acho que alguns desses aproveitamentos na Amazônia são licenciáveis, não todos, mas alguns.

Washington Novaes: Antes de o Brasil fazer um programa de conservação de energia, a Unicamp diz que pode diminuir em 30% o consumo.

José Goldemberg: Eu sei. Isso eles devem ter usado algum trabalho que eu devo ter escrito alguns anos atrás. [risos] Acontece que os agentes envolvidos são completamente diferentes. Quer dizer, quem conserva energia são milhões e milhões de pessoas, são donas de casa, são pessoas desse tipo...

Washington Novaes: Mas conservou no apagão, nós conservamos exatamente 30% da energia, ninguém teve prejuízo.

José Goldemberg: É, exatamente, mas sem torturar metade da população.

Cristina Alves: Tem alguma tortura à vista de novo? Há um risco de um novo racionamento, com as metas que estão no PAC? A gente pode crescer...

José Goldemberg: Olha, se nenhuma dessas hidroelétricas forem licenciadas, há um risco de apagão...

Paulo Markun: O Cláudio fez uma pergunta que o Washington apartou, que é importante, que é a seguinte: quais são as usinas que podem ser licenciadas?

José Goldemberg: O único projeto que alguém me trouxe um dia para eu olhar, foi o de Belo Monte [projeto de implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na região conhecida como Volta Grande do rio Xingu, na altura dos municípios de Altamira e Anapu, no Pará. A obra, uma das mais polêmicas já projetadas no país, pode afetar diretamente a vida de nove povos indígenas da região e suscitou mobilizações e intensos protestos de lideranças indígenas locais], que era um projeto grandioso, etc, era da época até que eu estava no governo federal. Depois reduziram as áreas que iriam inundar... O que eu aprendi, na Secretaria do Meio Ambiente, é o seguinte: qualquer coisa que você faça tem impactos ambientais. Você precisa é fazer um compromisso entre os impactos ambientais e as vantagens que aquela obra traz, e fazer compensações ambientais. Eu acho que se você adotar a postura de que, de fato, aquela região é intocável...

Washington Novaes: Mas a Belo Monte não precisa de mais três usinas acima para regularizar o fluxo para que ela possa funcionar o ano todo?

José Goldemberg: Eu não sei, até é possível que precise.

Washington Novaes: Ela sozinha não é capaz.

José Goldemberg: Um processo de licenciamento é um processo que dá uma mão de obra infernal. Eu sei disso porque nós licenciamos o Rodoanel [auto-estrada construída na Região Metropolitana de São Paulo na tentativa de aliviar o intenso tráfego nas duas vias marginais da cidade, Pinheiros e Tietê. O licenciamento da obra foi adiado devido às ações implementadas por moradores das áreas atingidas, bem como por comitês de gestão das águas e organizações ambientais que alertavam para o impacto da obra nas áreas de mananciais. Em 2006 o Consema aprovou a licença prévia da obra, mas  os participantes do movimento consideraram que as reinvindicações não foram atendidas] - eu espero que nenhum de nós aqui tenha que licenciar algum outro Rodoanel - porque é uma mão de obra terrível. Eu acho que o pessoal que está trabalhando nessa área não está trabalhando o suficiente. Os empreiteiros por um lado... Eu me lembro de ter aparecido em uma ocasião no Conselho [Nacional] de Política Energética, o primeiro projeto de Belo Monte. Era um projeto extremamente inadequado, ele não levava em conta que precisava uma linha de transmissão de três a quatro mil quilômetros.

Washington Novaes: Como várias hidroelétricas na Amazônia. Por isso que precisa de outras rio acima.

José Goldemberg: Precisa trabalhar para fazer essas coisas. E o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] precisa ser proativo também. Essa idéia de que órgãos licenciadores são como juízes togados, que ficam sentados lá e simplesmente esperam os pedintes apresentarem os pedidos, é completamente incorreta. Quer dizer, eu acho que os órgãos licenciadores têm que ser proativos, porque, o que eu aprendi também, é que as empresas de consultoria na área ambiental não se estruturaram de uma maneira adequada, porque elas são pequenas...

Washington Novaes: Elas não atuam para apontar os impactos, elas atuam para conseguir licenciamento.

José Goldemberg: Pois é.

Cláudio Ângelo: Você acha que o Ibama tinha que entrar no licenciamento, nos estudos de impacto para o licenciamento dessas obras de interesse do Estado?

José Goldemberg: Ele tinha que ser proativos. É claro que ele não vai ajudar os empreiteiros a fazer, mas ele [o Estado] tem que sentar e conversar com eles e chamar atenção deles. Porque o tipo de conhecimento que os licenciadores têm - o pessoal que cuida disso - é muito grande. E, freqüentemente, essas consultorias não são tão informadas quanto são os licenciadores.

Paulo Markun: Por que o senhor é contra a energia nuclear? Quando há vários cientistas e até gente ligada aos movimentos ambientalistas que, recentemente, têm escrito dizendo que “diante da crise é preciso repensar as posições, a energia nuclear não é tão ruim assim”...

José Goldemberg: Olha, Markun, não é que eu seja contra a energia nuclear, e ponto final. Eu sou um físico nuclear, inclusive, convivi com radioatividade durante vinte ou trinta anos da minha vida...

Paulo Markun: Talvez por isso seja contra?

José Goldemberg: É, talvez. Não, eu não sou uma pessoa angustiada com a radioatividade, eu tenho uma visão balanceada dos perigos da radioatividade. O que há é o seguinte: alguns países estão de fato nessas condições, como a França, que não tem outras opções, ou como o Japão, que não tem outras opções. O Brasil tem outras opções. Eu acho que trazer energia nuclear em grande escala aqui para o Brasil é simplesmente inverter a equação. É uma solução exógena. Nós temos que procurar soluções internas. Uma das soluções - e respondendo ao dr. Nelson, inclusive - é que as usinas de álcool são grandes produtoras de eletricidade. Esse é um aspecto interessante das usinas de álcool brasileiras, elas são auto-suficientes na produção de energia, por causa do bagaço, e elas estão exportando energia elétrica. Outro dia eu vi numa projeção, destas projeções para 2015, se o programa expandir, como as pessoas acham que vai expandir, o setor de cana-de-açúcar estaria produzindo 14 mil megawatts. 14 mil megawatts é uma Itaipu, ou seja, o equivalente a 14 reatores nucleares, isso lá pelo ano 2015, 2020. Ou seja, nós temos opções que são renováveis.  Eu acho que trazer energia nuclear em grande escala para o Brasil vai trazer problemas que nós não temos agora.

Washington Novaes: Professor, e no nível mundial, por exemplo. Essa discussão foi reacesa por James Lovelock [renomado cientista ambiental, é membro da Royal Society, do Reino Unido; em 1979, lançou a hipótese Gaia, de que o planeta se comporta como um organismo vivo], o autor da teoria de Gaia, que nesse último livro dele, A Vingança de Gaia [lançado em 2006], levanta essa questão. Ele diz que o impacto de mudanças climáticas já é de tal ordem irreversível, que se não houver um esforço dramático em um prazo muito curto, não tem como evitar uma coisa muito indesejável. E que a única fonte capaz de fazer isso em um prazo relativamente curto, embora ele tenha lutado a vida inteira contra ela, seria a energia nuclear. Eu também acho que o Brasil não precisa, não tem que pensar, mas no plano global, o senhor acha que ele tem razão?

José Goldemberg: Não, eu não acho não. Eu acho que o Lovelock é um desinformado. Eu vou dar dois argumentos para mostrar isso. Para que a energia nuclear tivesse um impacto importante para reduzir os problemas de aquecimento global, seria preciso instalar, pelo menos, três mil reatores nucleares nos próximos vinte ou trinta anos. No momento, existem no mundo quatrocentos reatores nucleares, aproximadamente. Instalar três mil reatores significa um reator por semana. É uma coisa que simplesmente não vai acontecer. Vai criar um problema de espalhar produtos potencialmente perigosos pelo mundo todo. Vai criar um problema de resíduos radioativos e que os Estados Unidos não conseguem resolver com o parque que eles têm agora.

Cláudio Ângelo: Mas a França e o Japão conseguem razoavelmente dar conta com essa história de reprocessamento de boa parte do combustível gasto.

Washington Novaes: Mas não o lixo nuclear.

José Goldemberg: Isso com os reatores que têm agora. Se você multiplicar por dez o número de reatores, os problemas vão ser completamente não manejáveis. Já existe só nos Estados Unidos, que tem cem reatores nucleares, 25% da capacidade mundial. Existem setenta mil toneladas de resíduo altamente radioativo que eles não sabem onde colocar. Esse grande reservatório, que seria construído em Nevada, Yucca Mountain, não vai para frente...

Washington Novaes: Está embargado pela justiça, eu estive lá.

José Goldemberg: Exato. Por quê? Por causa do "not in my backyard" [“não no meu quintal”], quer dizer, ninguém quer no seu quintal. Parece o aterro sanitário aqui em São Paulo...

José Carlos Cafundó: Mas, por pior que seja, nós temos que discutir essa questão, até porque, para aumentar um milhão de hectares - hoje nós temos o álcool saindo de três milhões de hectares - para aumentar hum milhão de hectares, vai ter dano ambiental, sem dúvida. Nós levantamos aqui a questão, por exemplo, de o Brasil não ter gente suficiente até para entender esse mecanismo de aumento da questão da cana. Eu gostaria de saber se o senhor, como professor, o que o senhor diz para os seus alunos, que o senhor forma na universidade. Como fazer certificação, como fazer zoneamento? Nós temos aí uma certa prática, aqui no estado de São Paulo, principalmente, mas saiu fora daqui, é muito difícil. Tanto é que estão plantando cana lá no centro-oeste, como lembrou o Washington Novaes, em condições precárias para a produção do etanol. Temos áreas melhores para fazer isso.

José Goldemberg: Essa é minha resposta, quer dizer, o Ibama precisa acordar. Essa é a resposta, quer dizer...

José Carlos Cafundó: Mas o Ibama abre um recurso e entram aqueles rapazes, jovens, que não têm uma formação do que seja ambientalismo mesmo, não é?

José Goldemberg: Mas, Cafundó, veja. O sistema ambiental de São Paulo tem aproximadamente de duas a três mil pessoas, fora a polícia ambiental. Temos duas ou três mil pessoas trabalhando no sistema ambiental. E nós estamos conseguindo recuperar, conseguimos recuperar, discretamente, a cobertura florestal do estado de São Paulo. De vez em quando alguém me pergunta...

José Carlos Cafundó: Estamos falando do estado de São Paulo, não é?

José Goldemberg: Pois é, se espalhasse a experiência do estado de São Paulo para o resto do Brasil. Essa é a única resposta. E agora você vê, como é que nós temos conseguido recuperar a cobertura florestal do estado de São Paulo? Porque não há uma árvore que seja derrubada que não dê origem a alguém reclamando. Inclusive infernando a vida do próprio secretário, não é mesmo? É assim, viu. E o que eu reparei é que a classe média ascendente ajuda na conservação. É claro que os mais pobres, para eles o meio ambiente não tem nenhum significado especial. Os mais ricos não estão nem aí, porque eles vão para Miami, eles vão para Campos de Jordão, etc, mas a classe média ascendente liga para isso. Sob esse ponto de vista, acho que quem capturou muito bem isso foi o governador [Geraldo] Alckmin [governador do estado de São Paulo de 2001 a 2006], isso ele capturou. A importância que ele dava para parques, por exemplo, é uma coisa importante, porque a classe média adora isso. Ricos têm os clubes para ir, mas o pessoal da classe média tem que ir para locais públicos.

Paulo Markun: Professor, na questão do aquecimento global, o senhor uma vez me mostrou uma foto daquelas neves do Kilimanjaro [vulcão extinto, localizado no norte da Tanzânia, na fronteira com o Quênia, é o ponto mais alto da África, com uma altitude de 5.895 metros], já bastante desmanteladas - aquilo foi até uma foto na capa do jornal O Estado de S. Paulo naquele dia - o senhor disse que aquilo ali tinha sido mais eloqüente do que muitos discursos de ambientalistas. Então eu faço uma pergunta um pouco em relação a essa anterior. Quem o senhor acha que pode ser essa classe média ascendente, que hoje reclama da árvore que cai, em relação ao aquecimento global? Existe algum país ou algum setor da opinião pública que possa fazer com que os governos se mobilizem?

José Goldemberg: No Brasil não, ainda, mas da União Européia, sim. A União Européia, sob a direção da Angela Merkel [primeira mulher a presidir o governo da Alemanha, foi eleita em 2005], o que me impressionou muito favoravelmente, adotou uma posição altamente progressista. Isso ainda vai ter uma mão-de-obra danada, porque a decisão da União Européia precisa ser ratificada por cada governo participante; eles decidiram que, no ano de 2020, 20% da energia vai ser renovável...

Washington Novaes: Ou 30% se os outros países, como os Estados Unidos, aderirem também.

José Goldemberg: Exato, se os outros aderirem. Então está se criando, efetivamente, na Europa, um movimento muito forte nesse sentido.

Paulo Markun: Mas o senhor é pessimista? Nessa mesma conversa o senhor disse que acha que antes da coisa mudar, nós vamos sofrer, a humanidade vai sofrer. O que ela vai sofrer? Que tipo de coisa pode sofrer a humanidade?

José Goldemberg: É preciso ver o filme do [Al] Gore [Uma verdade inconveniente (2006), documentário sobre as conseqüências do aquecimento global]. É preciso ver a primeira parte do filme do Gore, eu já assisti três vezes ao filme do Gore, porque me convidam para ir assistir o filme e depois comentar. A primeira parte do filme do Gore, em que ele conta o desenvolvimento das pesquisas e o que ocorreu até agora, é cientificamente correto. Onde ele extrapola um pouco é na segunda parte, quando ele diz que as correntes marítimas vão desaparecer, o Gulf Stream [uma das mais fortes correntes oceânicas do mundo, nasce no Golfo do México, passa pelo estreito da Flórida e segue pela costa oriental dos Estados Unidos antes de cruzar o Oceano Atlântico] vai sumir, etc e tal, aí é mais especulativo. Mas, em relação ao que ocorreu até agora, ele descreve com perfeição. E há um número, então, que eu vi outro dia, eu procurava esse número e finalmente achei: nos últimos cinqüenta anos o nível do mar no Brasil, o nível do Oceano Atlântico, subiu quarenta cm. É um dado concreto. Está nesse trabalho do [José A.] Marengo [pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, participou do colegiado de cientistas que ajudou a desenvolver o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC)]. O Marengo esteve aqui outro dia num desses programas. A subida do nível do mar é de quatro milímetros por ano. Pode não parecer muito, mas em cem anos é quarenta centímetros. Isso aqui no Brasil não vai ter conseqüências muito graves, porque não tem grandes populações que vivam ao nível do mar mesmo. Mas em Bangladesh, vai cobrir um terço do território, a subida do nível do mar, quer dizer, a primeira conseqüência...

Washington Novaes: Trinta países-ilhas desaparecerão.

José Goldemberg: A primeira conseqüência do efeito estufa, a meu ver, a mais grave, vai ser a elevação do nível do mar. As temperaturas naturalmente vão subir também, vai afetar a agricultura, esse tipo de problemas que a gente ouve o tempo todo. Mas ter duzentos milhões de refugiados ecológicos vai ser realmente uma situação...

Cristina Alves: O que efetivamente o Brasil pode fazer de contribuição para conter o aquecimento global que o senhor acha que não esteja sendo feito?

José Goldemberg: Olha, o Brasil está fazendo, na prática, uma coisa boa, que é o programa do etanol. O programa do etanol economiza hoje nove milhões de toneladas de carbono por ano.

Washington Novaes: Mas estamos emitindo 1 bilhão por ano.

José Goldemberg: Mas isso por causa da Amazônia. O que o programa do álcool faz é equivalente a nove reatores nucleares, usando o argumento do Lovelock. Precisaria de nove reatores nucleares no Brasil para reduzir as emissões que o programa do álcool está fazendo. O programa do álcool está ajudando. O que há é que o governo brasileiro, simplesmente, em relação à Amazônia, fica na retórica. E não ajuda nas negociações internacionais...

Washington Novaes: E o argumento que o Brasil está usando agora que conseguiu reduzir o desmatamento na Amazônia e com isso evitou tantos milhões de toneladas, quer dizer, o Brasil desmatou, o último número na Amazônia, 13.400 km quadrados. Esse é o mesmo nível de desmatamento que tinha em 1994, quando é a base dos inventários das emissões brasileiras, que ele emitia 1 bilhão de toneladas. Então nós estamos no mesmo lugar, em relação ao inventário, nós estamos no mesmo lugar.

José Goldemberg: E, Cristina, o que eu acho que é perverso, é que o Brasil com essa atitude de se opor à adoção de medidas mais sérias por parte da China, da Índia, ela acabou nos colocando em uma posição de imobilismo. Nos Estados Unidos, o Senado americano decidiu, acima dos presidentes, que os Estados Unidos não aderirão ao Protocolo de Quioto, que é o que limita as emissões, se a China, a Índia e o Brasil não participarem. A Índia está em uma posição extremamente confortável, porque ela usa exatamente o mesmo argumento; a China é o segundo emissor mundial, os Estados Unidos emitem 23% das emissões mundiais.

Washington Novaes: E o Brasil é o quarto.

José Goldemberg: E o Brasil é o quarto. E a China, 17%. Daqui a dez anos, a China vai ultrapassar os Estados Unidos e ela não é limitada nas emissões. O que é preciso - respondendo a sua pergunta - nas renegociações sobre a extensão do Protocolo de Quioto - porque o Protocolo de Quioto acaba em 2012 - é preciso que os países em desenvolvimento assumam o compromisso, e o Brasil pode assumir, e são compromissos fáceis.

Washington Novaes: Uma tese dele mesmo, o Brasil apresentou aquela tese de cada país reduzir proporcionalmente a sua contribuição para o aquecimento.

José Goldemberg: Pois é. Mas a ação no Brasil é na Amazônia. Essas ações é que são indispensáveis.

Cristina Alves: E a China? O senhor falou que a China é um péssimo exemplo desse processo...

José Goldemberg: A China é um péssimo exemplo.

Cristina Alves: O que pode ser feito, politicamente, no mundo em que a gente sabe hoje que a energia pauta a diplomacia no mundo. O que pode ser feito em relação à China?

José Goldemberg: Olha, a eficiência energética da China é péssima. Eu vou dar um exemplo que cruzei com esse número outro dia. A China gera grande parte de sua eletricidade em usinas termoelétricas, usando carvão. A eficiência energética das usinas, da média das usinas, na China é 23%. A média mundial é 28%, e as melhores usinas, que estão sendo construídas nos Estados Unidos e na Europa, são de 42%. Ou seja, a China está usando usinas que têm a metade da eficiência que elas poderiam ter. Seria preciso que o Brasil abandonasse essa posição de apoiar a China, apoiar os países africanos, e dizer: "Nós chegamos tarde no desenvolvimento, e nós queremos liberdade de poluir". A liberdade de poluir é um tiro no pé, nós vamos sofrer como os outros. Não adianta dizer que os culpados são os Estados Unidos, a Inglaterra, etc e tal. Isso foi no passado, é como dizer que os espanhóis acabaram com os astecas no México e tinham que pagar por isso. Isso não é o mundo real, não é?

Cláudio Ângelo: Quando o senhor propôs em Johannesburgo [África do Sul], o governo brasileiro propôs uma meta de 10% de renováveis, se não me engano, até 2010, a proposta foi derrotada justamente pelo G77 [grupo de setenta e sete países em desenvolvimento, do qual o Brasil faz parte]. O Brasil, por um lado, é um entrave nas negociações, mas por outro, ele está amarrado pela posição do bloco da qual ele precisa?

José Goldemberg: É isso mesmo. Eu acho que ele deveria tomar uma posição mais proativa. Agora eles estão começando as negociações para a renovação do Protocolo de Quioto, aliás, é interessante. O Senado Federal vai começar agora debates sobre esse assunto. Foi criada uma comissão sobre mudanças globais, no Senado. E ele vai começar a debater esse assunto, o que eu acho ótimo. Eu acho que é oportuno que o Senado Federal faça o que fez o Senado americano, apesar de o Senado americano ter feito o contrário. Eu acho que o Senado brasileiro poderia empurrar o Itamaraty para uma posição mais proativa. E proativa, nessa questão, é Amazônia.

Washington Novaes: Ele deve assumir um compromisso.

José Goldemberg: E os compromissos não precisam ser em relação ao PIB [Produto Interno Bruto] - para deixar a Tatiana mais tranqüila - são setoriais, Tatiana?

Tatiana Bautzer: Eu queria fazer uma pergunta em relação ao plantio de cana-de-açúcar. Se há perspectiva do mercado aumentar e aumentar a área plantada, não deveria haver alguma contribuição com essa redução de emissão, um pouco mais de restrição a queimadas? Quando você espera aumentar essa...

José Goldemberg: Esse problema das queimadas foi disciplinado por uma lei que a Assembléia Legislativa de São Paulo aprovou há uns três ou quatro anos atrás e criou um cronograma...

Paulo Markun: Mas é meio longo, não é?

José Goldemberg: É meio longo. É um cronograma longo e foi quando eu aprendi como é que é o... Eu já devia [saber] como é que era o mundo real, mas tive que aprender de novo. Claro que eu queria um cronograma mais rápido, é um cronograma lentíssimo, né.

José Carlos Cafundó: Mas a indústria de máquinas disse que não tem máquina para colher toda essa cana...

José Goldemberg: Mas acontece o seguinte. Eles estão cumprindo... O atual cronograma é lento, mas eles estão cumprindo. A minha ex-secretária adjunta está aqui, a Suani, os 20% que valiam até 2005 foram cumpridos religiosamente. Não é verdade? E agora deve ser 30%. Bom, tem que subir para 40%, deve atingir o valor satisfatório em 2011. É lento, é o que se conseguiu.

Washington Novaes: Satisfatório é quanto?

José Goldemberg: Satisfatório é todas as terras com inclinação que permitam o uso de máquinas não terem mais corte artesanal.

Paulo Markun: Vamos fazer mais um intervalo. Voltamos daqui a pouco com a entrevista, que hoje é acompanhada em nossa platéia por: Flávia Seixas Martinez, estudante de jornalismo; Valdeci Fernandes Gomes, consultoria em informática; e Tássia Fusel, estudante de relações públicas.

[intervalo]

Paulo Markun: Bem, estamos de volta com o Roda Viva, entrevistando o físico José Goldemberg, uma das vozes mais presentes no debate sobre energia e meio ambiente, no Brasil, nas últimas décadas. Professor, no próprio documentário, Uma verdade inconveniente, dirigido e apresentado pelo Al Gore, ele apresenta uma tese que é a questão de que todos nós podemos fazer alguma coisa. Confesso que eu fiquei um pouco na dúvida se nós podemos fazer tanta coisa quanto, por exemplo, pode fazer o governo norte-americano, ou a União Européia. Mas eu pergunto ao senhor: no caso dos brasileiros, o que o cidadão comum pode fazer, se é que pode, em relação a essa questão do aquecimento global, da emissão de gases?

José Goldemberg: Olha, eu tive a mesma reação que você quando assisti ao filme, porque realmente são medidas macro que poderiam reduzir o problema. Por exemplo, gerar energia elétrica na China de maneira mais eficiente teria um impacto maior do que centenas de milhões de pessoas trocarem as lâmpadas que elas usam. De modo que a contribuição individual das pessoas pode funcionar como funcionou no apagão, mas é preciso realmente você criar um espírito de crise que movimente as pessoas. O que está ocorrendo, está ocorrendo com a Agenda 21. É que as cidades e os municípios estão fazendo o que o... era o [Geraldo] Vandré [cantor e compositor brasileiro], eu acho, que falava:  “quem faz a hora, não espera acontecer”. Qual era a frase?

Washington Novaes: "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer..." [trecho da música Pra não dizer que não falei de flores ou Caminhando lançada em 1968 e considerada um hino de resistência, foi censurada pelo governo militar].

José Goldemberg: O que está ocorrendo é que existem líderes de cidades, no mundo todo, em que os prefeitos começam a fazer coisas. A prefeita de Barcelona, eu creio que é uma prefeita em Barcelona, né? Ela tem um excelente programa de Agenda 21 que é feito lá. O prefeito de Londres é ótimo. Ele inventou essa história de proibir tráfego de automóveis no centro da cidade, colocou pedágio e não sei mais o quê, e com isso reduziu o o congestionamento e fez uma porção de coisas boas e isso está se disseminando. Cubatão fez uma Agenda 21 boa também. Então, está ocorrendo. E no nível dos estados, pouco ocorre e no nível de nação, menos ainda. Eu acho que há um esforço grande para cidades e municípios fazerem. No nível individual, Markun, sei lá, vai ver eu sou positivista demais. Eu acho que essas medidas individuais é como tentar reduzir o aumento da população mundial através da abstinência ou coisa assim [risos]. Precisam medidas mais...

Washington Novaes: Professor, mas no plano macro...  O Kofi Annan, que deixou a Secretaria Geral da ONU [Organização das Nações Unidas], cansou de dizer: hoje nós temos dois problemas centrais - mudanças climáticas e padrões de produção e consumo insustentáveis. São esses dois que ameaçam a sobrevivência da espécie humana. São problemas planetários. Agora, nós não temos nem regras nem instituições planetárias para isso aí. Nós temos a ONU, mas a ONU para resolver qualquer coisa precisa de consenso. Nas conferências, o senhor sabe mais do que ninguém, as coisas não andam exatamente por isso. Basta um lá dizer não e pronto, a coisa não anda. Como é que se vai conseguir criar instituições e regras universais capazes de enfrentar esses problemas?

José Goldemberg: O Protocolo de Quioto é um bom exemplo. Agora...

Washington Novaes: Não foi cumprido...

José Goldemberg: Não foi cumprido. Acontece que a eliminação do buraco de ozônio foi cumprido. O que é surpreendente é que há uns acordos que são cumpridos. Isto é, com o ozônio as pessoas ficaram tão alarmadas que efetivamente o CFC foi eliminado.

Claudio Ângelo: Mas o custo de transição era baixo. O custo de banir os CFCs, para indústria, era quase zero.

José Goldemberg: Isso mesmo. E os países ricos fizeram, no caso, o dever de casa. Eles pagaram para os países pobres substituirem suas fábricas.

José Carlos Cafundó: O senhor acha que o petróleo pode ter ainda uma sobrevida, até paradoxalmente, por causa do derretimento de calotas polares onde podem existir grandes reservas de petróleo ainda?

José Goldemberg: Sabe, esta é uma questão discutida o tempo todo, e o petróleo está se tornando cada vez mais difícil. Tem uns números muito interessantes.

José Carlos Cafundó: O senhor acha que está na hora da virada, quer dizer, politicamente ele não sobrevive, mesmo que ele exista fisicamente...

José Goldemberg: Exatamente, e cada vez vai ficar cada vez mais caro. É o que a Petrobras nos ensina. Nós fomos para a plataforma continental e conseguimos produzir petróleo. Mas é cada vez mais caro. Tirar petróleo a quatro mil metros de profundidade no mar não é brincadeira. Você tira petróleo na Arábia Saudita por um dólar o barril e aqui é 15 dólares, ou vinte dólares. Isso vai ocorrer daqui para frente.

Alexandre Machado: Professor, nós estamos falando de metanol, de etanol, qual é a perspectiva que o senhor vê da alcoolquímica do etanol [segmento da indústria química que utiliza o álcool etílico, no lugar dos derivados de petróleo, para fabricação de diversos produtos químicos como, por exemplo, o eteno, matéria-prima para resinas], de desenvolver um espaço no país para agregar valor em relação a essa produção?

José Goldemberg: Ela é muito boa, e eu me lembro que algumas indústrias nos procuraram, na ocasião, eu creio que a Basf [empresa de origem alemã, que produz químicos para uso industrial e na agricultura, plásticos, óleo cru e gás natural] e outras, e estavam realmente empenhadas nesse tipo de coisa. Eu acho que é uma idéia excelente. Uma coisa que as pessoas estão começando a fazer agora, como não conseguiram resolver o problema da celulose ainda, é fazer uma refinaria de madeira. Quer dizer, você não consegue quebrar as cadeias de celulose - não é que não consegue quebrar, mas custa caro, demora, etc. - mas outros produtos você pode fazer. Tem agora uns projetos que é uma refinaria de madeira. Vaporiza-se a madeira, no vácuo, não sei em que condições, e aí saem aqueles gases, que são complicados, deve ter uns aldeídos até, você vai quebrando e os recombina. Eu acho que é magnífico, e, de fato, agregaria valor ao etanol. Eu acho que responderia um pouco ao Stédile que acha que usar agricultura para mover automóveis é uma coisa não muito interessante.

Cristina Alves: Como é que você avalia a entrada da Petrobras na produção de cana, quer dizer, uma “Canabras”, como se chegou a especular? O senhor acha que tem sucesso, é possível conseguir?

José Goldemberg: Olha, pelo que eu sei dos usineiros, com quem eu tinha que lidar por motivos profissionais, eles vêem isso com extremo ceticismo. A entrada da Petrobras, pelo que eu entendo, poderia fazer uma coisa que não existe agora. Atualmente, todas as transações de etanol são spot [termo usado nas bolsas de mercadorias para se referir a negócios realizados com pagamento à vista e pronta entrega da mercadoria, em oposição aos mercado a futuro e a termo], o mercado spot. Ninguém assume um contrato de longo prazo. Por quê? Porque o preço é variável e o indivíduo não quer se comprometer a fornecer...

Washington Novaes: Quer dizer, seria a Petrobras assumir o risco?

José Goldemberg: E a Petrobras assumiria o risco. Isso a Petrobras poderia fazer como sendo uma grande empresa. Eu acho que isso ajudaria. Outro dia quem me disse foi o [Luiz Fernando] Furlan [empresário e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo do presidente Lula de 2003 a 2007], que a Suíça estava interessada em introduzir etanol, desde que – as empresas brasileiras – fizessem um contrato de fornecimento por dez anos, o que eu acho que ninguém faria, né, porque teria que ficar especulando como é que seria a evolução de preços. Mas eu acho que a Petrobras poderia fazer isso. Mas ela entrar como um competidor, me parece uma coisa estranha, seria uma coisa da linha da reestatização numa área em que até o setor privado funcionou bem. A Petrobras poderia construir álcool-dutos, poderia contribuir na infra-estrutura.

Washington Novaes: Já vai fazer. Ela vai fazer o de Goiás.

José Goldemberg: Está fazendo. Entrar e ser dona de destilarias, eu acho que seria forçar um pouco.

Paulo Markun: Vou fazer uma última pergunta, o nosso tempo acabou. Aquela pergunta meio bizarra: o senhor, se fosse investidor, diante de tudo o que foi dito aqui, investiria em uma usina de álcool no Brasil?

José Goldemberg: Sim. Mas eu não sou investidor, eu sou professor universitário [risos], jamais terei condições de fazer isso.

Paulo Markun: Ok. Professor, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores, a você que está em casa.

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