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Memória Roda Viva

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Celso Furtado

9/2/1987

Economista renomado, Furtado diz porque foi para o Ministério da Cultura do governo Sarney, além de discutir assuntos como a censura, e explicar a lei de incentivo ŕs atividades culturais

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Rodolpho Gamberini: Boa noite. Nós estamos começando neste momento mais um Roda Viva, o programa de entrevistas e debates da TV Cultura de São Paulo. Esta noite nosso entrevistado é o ministro Celso Furtado, ministro da Cultura. E para participar do Roda Viva esta noite com o ministro Celso Furtado, estão conosco no estúdio da TV Cultura: José Mindlin, empresário; Fernando Bicudo, diretor de ópera do Teatro Municipal do Rio de Janeiro; Mílton Coelho da Graça, jornalista de O Globo; Irene Ravache, atriz; Matinas Suzuki, editor de economia da Folha de S. Paulo; José Celso Martinez Correa, diretor do Teatro Oficina; Etevaldo Dias, chefe da sucursal da revista Veja em Brasília; Jorge Wilheim, presidente da Fundação Bienal; Marcos Augusto Gonçalves, editor da Folha Ilustrada [suplemento de cultura do jornal Folha de S. Paulo]; e Marco Antônio Lacerda, editor do Caderno Dois [suplemento de cultura] do jornal O Estado de S. Paulo. [programa ao vivo] Ministro, para nós começarmos a conversa desta noite, desta segunda-feira, eu lhe perguntaria o seguinte: o senhor é ministro da Cultura, mas é um dos economistas mais renomados do país. Eu sei que por razões éticas o senhor certamente não deve gostar muito de falar de economia neste momento no Brasil, mas o senhor olhando a economia brasileira do jeito que ela está hoje, um tanto confusa - realinhamento de preço, gatilho, descongelamento, recessão, estagflação [termo de economia que significa situação em que há simultaneamente estagnação e inflação] - o senhor tem vontade de mudar de pasta, ou tem vontade de dar alguns palpites para esses colegas de ministério?

 

Celso Furtado: Nem uma coisa, nem outra. Eu estou na pasta da Cultura por convicção, e certo de que o trabalho que estou realizando é relevante. E creio que é mesmo a pasta onde eu poderia dar o melhor de mim mesmo. A experiência que adquiri no Brasil e fora do Brasil, pela percepção que tenho da cultura de vários ângulos, pelo fato de que compreendo a cultura na sociedade como forma de vida e, portanto, como qualidade de existência. Finalmente, por múltiplas razões, eu considero que chegou o momento no Brasil de se pensar no que é qualitativo - e quem diz qualitativo, diz cultura. Como as dificuldades econômicas do Brasil não são hoje muito diferentes de que foram já no passado - minha longa experiência me autoriza dizer isso. Quiçá a única diferença é que hoje temos mais recursos para enfrentar os problemas. Evidentemente que temos problemas, mas temos problemas no quadro de uma economia que cresceu rapidamente e que se mantém com alto dinamismo, que tem uma capacidade de resposta muito grande e que, evidentemente, possui problemas, como vi em muitas partes [do mundo]. Eu estou convencido de que o governo saberá enfrentá-los e responderá às expectativas do povo brasileiro. Portanto, eu estou na Cultura, e na Cultura ficarei - pelo menos este é o meu propósito.

 

Mílton Coelho da Graça: Ministro, o seu primeiro ato, o mais importante ato seu no Ministério da Cultura até agora foi um ato que exigiu um pouco de seu conhecimento de economia, que foi a Lei Sarney.  A Lei Sarney me parece um pouco confusa para a maioria dos brasileiros, mas, na experiência que o senhor tem até agora, está lhe parecendo que os recursos que a Lei Sarney está conseguindo captar das empresas estão sendo encaminhados mais para quais setores da cultura brasileira?

 

Celso Furtado: Milton, permita-me completar minha observação anterior. Eu sou ministro da Cultura não completamente por acaso, porque um grupo de duas centenas de intelectuais brasileiros - de pessoas do mundo da cultura, das artes cênicas, do cinema, das artes, dos livros, de todos os setores - solicitaram ao presidente da República que me convidasse para ser ministro da Cultura. E a razão que me deram eles, particularmente aqueles que me procuraram carinhosamente em minha casa, que era gente de teatro, cinema, etc, era a seguinte: era a de que na Cultura o dinheiro é muito importante, e é preciso alguém na Cultura que saiba lidar com os problemas, com as dimensões econômicas, financeiras desses problemas, e, portanto, por isso, “você que vive também no mundo da cultura, que é escritor, que escreveu tantos livros etc, poderá realmente dar à Cultura, ao Ministério da Cultura uma dimensão nova.” Foi com essa convicção, portanto, eu tenho um compromisso com todos esses que me convidaram para ir para o Ministério da Cultura, que me incitaram ao Ministério da Cultura. A Lei Sarney se insere perfeitamente. Posso terminar? [dirige-se a algum entrevistador] A questão dele é sobre a Lei Sarney, e eu ainda não disse nada. A Lei Sarney é exatamente uma instrumentalização desse meu ponto de vista, porque cultura, se tem uma dimensão econômica, não é economia. As coisas essenciais em cultura valem por si mesmas, ao passo que na economia tudo vale como um meio. São duas lógicas totalmente diferentes, as lógicas dos meios e as lógicas dos fins. E a Lei Sarney veio para, não propriamente para canalizar recursos para a cultura, mas para incitar a sociedade a assumir a iniciativa no plano da cultura. Porque a tendência deste país é tudo esperar do governo, inclusive na cultura, e a Lei Sarney, diz o seguinte: “Vocês, instituições culturais da sociedade civil, grupos, etc, tomem a iniciativa, busquem recursos, controlem os recursos”. E o Estado está aí para apoiar essas iniciativas, mas não para substituir a sociedade.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, aproveitando aqui a deixa que o senhor me deu, o programa não é um programa jornalístico de informações, mas eu gostaria de anunciar aqui, dar uma informação muito importante: o ministro trouxe hoje à tarde para a TV Cultura, e eu vou mostrar agora para vocês que estão em casa assistindo, o certificado de cadastramento da Fundação Padre Anchieta, da RTC - Rádio e Televisão Cultura - como uma entidade de caráter cultural que poderá receber patrocínio e doações que são 100% dedutíveis. Daqui a pouquinho o ministro vai explicar para a gente como é que é esse mecanismo de dedução. Vamos andar um pouquinho mais para frente conversando sobre a Lei Sarney. Eu gostaria que o senhor respondesse agora a pergunta do Marco Antonio Lacerda.

 

Marco Antônio de Lacerda: A minha pergunta tem exatamente a ver com a Lei Sarney. Ministro, quando é que essa lei vai ser colocada em prática ao nível popular? Não como um empresário - um grande empresário sabe como se beneficiar da Lei Sarney e como apoiar a cultura através da Lei Sarney -, mas como é que o quitandeiro ou dono do supermercado lá na minha vizinhança, como é que ele pode se beneficiar da Lei Sarney, ou seja, saber que aplicando em cultura ele estará tendo algum lucro, para que de alguma forma ele possa se interessar, eventualmente [em] patrocinar, investir num livro que eu eventualmente queira escrever?

 

Celso Furtado: Bem, para participar da Lei Sarney é necessário que a pessoa seja contribuinte do imposto de renda. Digamos que esse seu quitandeiro seja contribuinte do imposto de renda. Ele precisa, portanto, ser educado nessa direção, é necessário que ele compreenda que uma iniciativa cultural que diz respeito a sua própria vida também passa a depender dele. Se ele está numa cidade pequena, por exemplo, e necessita de um espaço cultural que não existe - de uma biblioteca, de um setor, um lugar onde, por exemplo, se possa ter cinema amador, apoiar grupos de teatro local, qualquer atividade cultural -, ele pode tomar a iniciativa e se reunir com um grupo de pessoas e contribuir com seus próprios recursos para a efetivação desse projeto.

 

Marco Antônio de Lacerda: Ou seja, essa é exatamente a minha pergunta: como é que o senhor pretende fazer com que a idéia da Lei Sarney chegue até essas pessoas?

 

Celso Furtado: Isso aí depende muito do mundo da cultura. Porque a Lei Sarney é um desafio ao mundo da cultura. Nós queremos é que na cidade onde está esse quitandeiro, as pessoas que fazem teatro, as que se interessam por cinema amador, as que se interessam por qualquer forma de vida cultural, que essas pessoas se organizem, apresentem seus projetos e façam uma campanha dentro de sua própria comunidade - como se diz, “passem um pires” - e digam: “Olha, você que vive aqui, não quer melhorar as condições de vida dessa comunidade?” Pois nos organizemos.

 

Matinas Suzuki: Eu só queria fazer, mantendo o assunto, é o seguinte: nós sabemos que o “leão” [do imposto de renda] não vem muito manso por aí, o “leão” vem muito bravo, deve vir muito mais bravo de o que se pensava. O senhor não acha que é contraditório o governo ter uma lei de incentivo fiscal à cultura num momento em que todas as pessoas, a maior parte dos trabalhadores do Brasil, vão ter que arcar com um imposto de renda muito alto este ano? Não é narcisismo da área da cultura tirar esse dinheiro de áreas essenciais do país - nós temos cálculos extra-oficiais nos quais o país esteja com quase trinta milhões de analfabetos... [interrompido]

 

Celso Furtado: Vou lhe dar um exemplo, vamos quantificar isso... [interrompido]

 

Matinas Suzuki: Só para ajudar, eu tenho aqui uma reportagem na qual vários especialistas calculam que o governo deixa de arrecadar quase trinta bilhões por causa dos incentivos, das isenções e das reduções. A Lei Sarney vai criar mais mecanismos...

 

Celso Furtado: Perdão, esses trinta bilhões vão para o salário-alimentação, para o salário-transporte, em grande parte voltam para a classe trabalhadora. Mas eu vou me ater à Lei Sarney. O Ministério da Fazenda calculou que, este ano, as contribuições no quadro da Lei Sarney alcançariam novecentos milhões de cruzados. Ora, novecentos milhões de cruzados são menos de 0,2%, ou menos de um quinto de 1% da despesa programada do governo federal este ano. Portanto, não tem relevância como peso, se eu tirasse esse pequeno um quinto de 1%, e quisesse matar a fome das crianças do Brasil, que clamorosamente necessitam de ajuda, isso não resolveria nada. O que resolveria de verdade é se o governo, se a sociedade aceitasse outro sacrifício. Se aqueles todos que comem demais, que tem uma vida [boa], que tem duas ou três casas, etc, compreendessem que o Brasil precisa resolver o problema da miséria, e aceitassem o princípio de uma legislação fiscal de outra ordem, imposto da riqueza, e etc, aí você poderia tocar, enfrentar o problema da miséria e das crianças. Mas não vai ser com esse número, esse número de 0,2%, um quinto de 1%. Ora, agora esse um quinto de 1% pode ter um enorme efeito na qualidade de vida de muita gente, inclusive da gente pobre, da gente simples, porque vai permitir que a qualidade de vida dessas pessoas se modifique na medida em que está orientado para a massa da população. Que organizemos em cada cidade do Brasil um espaço cultural que a população aí se encontre para a vida cultural e apresente aí a sua criatividade, que o teatro amador tenha significação real etc. Portanto, eu diria que se algo pode ser feito que qualitativamente tenha uma significação no Brasil hoje em dia - com pouquíssimo dinheiro - é no campo da cultura.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, por favor, a próxima pergunta que eu gostaria que o senhor respondesse é da atriz Irene Ravache, que está ali na bancada exatamente atrás do senhor.

 

Irene Ravache: Senhor ministro, o senhor disse no início do programa que está na hora de pensarmos no que é qualitativo. O que é qualitativo no Brasil? O que tem qualidade? Essa qualidade é mensurável? Ela tem pesos e medidas diferentes nas regiões brasileiras? Como essa qualidade é vista pelos seus outros companheiros ministros?

 

Celso Furtado: Bem, a qualidade evidentemente é uma coisa subjetiva, é um julgamento de valor, não é nada que se possa medir propriamente. Só os fantasistas imaginam que possam fazer uma matemática da qualidade. Eu sou economista e sei perfeitamente quais são as limitações do que se mede com os instrumentos de medida, mas a qualidade é tudo que é essencial para o homem. Qualidade são os fins, são os valores últimos. Nós estávamos discutindo sobre a criatividade, não é? Ali onde, por exemplo, o ato de criatividade é único, a qualidade é tudo. Não se pode de nenhuma maneira multiplicar aquilo por dez nem por cem. Ali onde um ato criativo tem um suporte técnico, ele pode ser na verdade multiplicado. Você vê como a qualidade é uma coisa alusiva e que tende a ser cada vez mais valorizada na sociedade. Ora, os meus colegas de ministério, evidentemente aqueles que estão preocupados com o transporte, eles sabem que têm de trabalhar com técnicas muito definidas; outros que estão trabalhando com saúde, eles têm as estatísticas de saúde, veja aí a problemática brasileira, não é? Tudo isso tem também uma dimensão qualitativa e, quando nós discutimos, evidentemente que eu trato de chamar a atenção para o lado qualitativo das coisas. E tenho autoridade para fazê-lo, porque durante toda minha vida me preocupei com a economia, com planejamento, com técnica de medição, etc. Portanto, não tenho nenhuma dúvida de que hoje no governo do presidente Sarney existe uma preocupação central com o social - e isso quando você diz social, diz qualitativo: necessidades fundamentais do homem que são julgadas por cada comunidade, e é evidente que no Nordeste é um pouco diferente daqui de São Paulo, isso é verdade. Mas existem também certas coisas em torno das quais os homens estão todos de acordo, são qualitativas sobre as quais nos colocamos de acordo com o consenso imediato. Todos sabemos que, por exemplo, a liberdade é uma qualidade, é um atributo qualitativo da vida do homem a qual nós não renunciamos. Em todos os pontos de vista nós estamos de acordo. Portanto, se nós começarmos do mais elementar, e começarmos a subir, veremos que há muita coisa em torno da qual o qualitativo se explicita, e por isso é possível ter uma política a respeito dele, porque se o qualitativo dependesse do julgamento de cada pessoa, não poderia haver política.

 

Mílton Coelho da Graça: Mas ministro, é evidente que todos brasileiros tenham louvado o que o senhor está falando, [bem como] o projeto da Lei Sarney, mas todos sabemos que somos um povo com uma alta percentagem de espertinhos, e em relação à Lei Sarney já começam a aparecer os espertinhos, os corretores. O senhor, por exemplo, propõe que as pessoas interessadas em cultura em qualquer cidade lutem para que aquela cidade tente obter recursos: os seus industriais, os seus comerciantes, e tal, usem os 2% do imposto de renda. Mas as pessoas não são suficientemente informadas, e já aqui em São Paulo começam a surgir firmas de corretores da Lei Sarney. Como é que o Ministério da Cultura encara a quentão da corretagem dos incentivos?

 

Celso Furtado: Mas, Milton, pela primeira vez há uma lei de incentivos fiscais no Brasil que diz taxativamente que é proibida toda forma de corretagem. Eu sou do metier, eu vi as leis que fiz de incentivos fiscais no Nordeste, que fui quem as iniciou, como foram desviadas em certos momentos. Não é defeito da lei, da administração da lei, mas há uma possibilidade legal de se fazer esse desvio. Agora, você tem pela primeira vez uma lei que diz: “Toda forma de corretagem”. Portanto, quando você encontrar alguém fazendo corretagem por aí, peço-lhe que denuncie ou que envie uma comunicação ao Ministério da Cultura, para que nós possamos trilhar. Nós vamos saber quais são os projetos que estão saindo desses processos de corretagem, e nós saberemos como glosá-los lá no Ministério da Fazenda.

 

Etevaldo Dias: Ministro...

 

Rodolpho Gamberini: Só um segundinho, Etevaldo. Eu gostaria de passar a palavra ao presidente da Bienal, Jorge Wilheim. Em seguida, você.

 

Celso Furtado: Fale Jorge.

 

Jorge Wilheim: Eu não acho tão ruim que exista tanta corretagem, embora eu ache que ela deva ser proibida, porque é corretagem no campo da cultura, o que é um fato novo. Esse fato novo acho que [é] causado principalmente pelo surgimento da Lei Sarney. Lá na Fundação Bienal existe uma longa tradição de ir buscar dinheiro na sociedade civil, uma vez que os poderes públicos sempre têm alcançado ao máximo 10%, 15% dos custos de organização de uma Bienal. Então existe certa tradição de ir buscar esse dinheiro, e nós temos atualmente utilizado a Lei Sarney nesse sentido. Eu queria - fazendo uma pergunta ao senhor ministro - reproduzir uma pergunta que nos é feita quando vamos encontrar essa ou aquela empresa e pedir uma colaboração, um apoio cultural. Temos encontrado, por exemplo, a seguinte afirmação, com a qual eu não concordo, mas que o senhor, mais do que ninguém, poderá responder: “A Lei Sarney seria uma forma pela qual o governo federal cria um pretexto para diminuir os seus próprios investimentos no campo da cultura, deixando que a sociedade assuma essas despesas e omitindo-se de investimentos maiores.” O que o senhor teria a responder?

 

Celso Furtado: Quando programamos o orçamento do Ministério da Cultura para este ano, nós conseguimos que suas dotações fossem aumentadas em 30% em termos reais. Essa foi na verdade uma decisão do presidente da República. Eu apresentei a ele, mostrei que era indispensável que o governo federal aumentasse sua própria contribuição. O que a Lei Sarney nos permite é concentrar em aquilo que realmente é abandonado, porque, por exemplo, uma região como São Paulo é muito bem atendida, há muitos projetos. Das setecentas organizações culturais que já estão cadastradas no Ministério da Cultura, uma grande parte vem de São Paulo. Então a Lei Sarney nos permite de alguma maneira que nossos próprios parcos recursos do governo federal se concentrem em setores onde a deficiência é muito maior, onde a população às vezes nem sequer paga imposto de renda, não tenha nem acesso à Lei Sarney. Isso é uma dimensão, mas outra é de que a Lei Sarney vai de alguma forma deixar certos vazios. Se houver grande interesse da sociedade civil em teatro, por exemplo, nós teremos mais dinheiro para a dança, e estaremos com monitores observando tudo isso. E como a iniciativa da Lei Sarney não cabe ao governo, [mas] cabe à sociedade, nós poderemos perfeitamente aplicar com mais eficácia os nossos recursos na medida em que conheçamos a própria vocação e as demandas da sociedade. Portanto, esse argumento de que o governo vai se omitir, você esteja tranqüilo de que estamos aumentando a participação dos gastos públicos em cultura este ano.

 

Rodolpho Gamberini: Desculpe Mílton, eu gostaria de passar a palavra ao Fernando Bicudo, diretor de ópera do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

 

Fernando Bicudo: Ministro, em 1974 eu estava em Nova Iorque quando a cidade - eu também sou economista - foi decretada falida, e naquela época me parece que a dívida de Nova Iorque era algo semelhante à dívida externa brasileira. O prefeito de Nova Iorque, naquela oportunidade, pegou os recursos - os poucos recursos que tinha - e investiu exatamente na cultura, porque ele achava que a cultura tinha a demanda mais elástica de todos os investimentos que ele poderia proporcionar para a cidade. O resultado disso foi que ele conseguiu, através dos investimentos na Broadway e no Lincoln Center, fazer com que o turismo viesse para Nova Iorque. Com isso, [vieram também] as grandes companhias financeiras, as convenções, e os recursos daí fizeram com que a cidade saísse da falência e a... [interrompido]

 

Irene Ravache: A própria economia.

 

Fernando Bicudo: A própria economia, sem dúvida, revitalizou-se. Então [se] nós pensarmos que o prefeito de Nova Iorque pegou o que sobrava do fundo do cofre e investiu integralmente na cultura - nós estamos falando de 0,2% da despesa do governo -, eu acho realmente até muito pouco. Eu acredito que a cultura é algo muito sério até para ser considerada como uma coisa infinitesimal dentro do orçamento brasileiro, porque a cultura é a única coisa que fica na nossa história e é por aí que o Brasil vai realmente demonstrar a sua presença no século XXI. Mas não era sobre isso que eu queria falar. Eu acho que o ministro da Cultura nos dá a direção, pois todo o artista necessita de um campo para poder criar. Vamos amenizar um pouco a coisa, falar de amenidades. As pessoas amargas e frustradas, elas não se sentem muito à vontade nos movimentos de vanguarda, porque elas não se sentem [bem], não têm como acompanhar. Qual é a opinião do ministro em relação aos movimentos de vanguarda? O senhor ministro acha que isso [essa frustração com o movimento de vanguarda] é fruto de falta de cultura, de falta de sensibilidade, ou amargura e frustração? Qual a opinião do ministro em relação aos movimentos jovens de vanguarda?

 

Marcos Augusto Gonçalves: Ministro, só completando a pergunta do Fernando - porque eu acho que tem a ver com isso -, muito teatro no Brasil anda às moscas, [inclusive espetáculos de] dança, enquanto os palcos onde os espetáculos de rock acontecem estão superlotados. Rock é cultura? Quais são seus grupos de rock favoritos?

 

Celso Furtado: Eu começaria pela questão da cidade de Nova Iorque. Se nós obtivéssemos as condições que a cidade de Nova Iorque obteve no refinanciamento da sua dívida, nós sairíamos rapidamente do nosso problema. Não vamos entrar nesse problema. Agora, Nova Iorque teve também o afluxo enorme das atividades financeiras. Portanto, toda cidade se reciclou, e a cidade que havia sido vítima, em grande parte tem situação social muito mais avançada, e atraiu gente de todos os Estados Unidos. Portanto, não se podia jamais fazer um paralelo entre Nova Iorque e o Brasil, nem imaginar que foi a atividade cultural sozinha que levantou Nova Iorque, porque houve muitas outras coisas. Mas eu estou totalmente de acordo de que é por esse caminho que uma cidade como o Rio de Janeiro terá que encontrar um futuro, uma vocação nova para ela. É uma cidade com enorme vocação para atividade cultural, e, portanto, poderá ser um grande centro de atividades culturais que produzam empregos, que produzam renda, que produzam fluxos de visitantes de toda ordem. Agora, com respeito à sua questão, à segunda questão, eu diria o seguinte: eu estou profundamente convencido de que cultura tanto pode ser vista como uma coisa - para falar como economista - você é economista - a linguagem [na economia] é mais precisa -, [a cultura pode ser vista] como um estoque ou como um fluxo . A riqueza nacional é um estoque e a renda nacional é um fluxo. Então, quando nós olhamos a cultura como herança do passado, nós vemos como um estoque. Quando nós vemos a cultura como criatividade, nós vemos como um fluxo. Agora, como ligar as duas coisas? Mesmo em economia você sabe que uma das coisas mais difíceis é fazer uma ligação entre um estoque - uma coisa estática - e uma coisa dinâmica. Mas o que nós não temos nenhuma dúvida é de que na criatividade é que está o valor da cultura, e que só nos interessa guardar o passado se ele nos alimenta para recriar o futuro, se ele é um alimento real, não como sendo uma coisa morta. Portanto, o processo de criatividade que me preocupa como ministro da Cultura - e o processo de criatividade está essencialmente, queiramos ou não, nos jovens, porque criatividade é ruptura - é saber dar descontinuidade em todo processo, e é natural que aí esteja, que a juventude seja... Eu não vou aprofundar isso. Em primeiro lugar, porque ela tem menos compromisso com o passado, então ela se desliga mais rapidamente, ela aceita mais rapidamente os desafios e, portanto, só há cultura quando há uma forte participação da juventude. E quando penso em vanguarda, penso nesse sentido, em processo de renovação, processo de ruptura, de ampla participação dos jovens. Agora, quando me fala do rock, eu sou um grande admirador do rock. Eu não vou [aos shows], não danço rock porque não tenho tempo [risos], mas eu admiro o rock e acho que o rock é uma coisa maravilhosa. E é preciso vê-lo tal qual ele é, pelo fato de que o rock não é apenas um espetáculo musical, é um espetáculo quase que de comunhão, de ampla participação. Todos se sentem vivendo o rock. Não é uma coisa passiva [em] que eu estou aqui sentado numa cadeira olhando. Na verdade, eu vivo o rock. É assim que a juventude sente. Portanto, é um traço de uma cultura, como a [da] nossa [cultura] hoje em dia, uma civilização que busca desesperadamente fugir da solidão, que é a marca de toda vida moderna - é isolar uns dos outros, encaixotar cada pessoa e desligar as pessoas dos outros por todas as formas. E o rock é comunhão. Portanto, eu sou admirador do rock.

 

Mílton Coelho da Graça: Ministro, essa é outra questão. Há uma questão fundamental na cultura de um país de Terceiro Mundo, como o nosso, um país em desenvolvimento que, de um lado ele tem necessidade de ser cosmopolita - de ser aberto, de incorporar em si as correntes, o pensamento científico, tecnológico, a cultura que há no mundo -, e ao mesmo tempo preservar aquilo que é seu, aquilo que ele criou com a sua história. Como que o Ministério da Cultura, como o senhor vê hoje a dosagem entre favorecer essa interação com a cultura do mundo, e ao mesmo tempo defender, preservar aquilo que é nosso? Como é que o ministério... [interrompido]

 

Celso Furtado: Isso é um tema que nos preocupa muito, porque... [interrompido]

 

Mílton Coelho da Graça: O senhor falou em rock, rock é um modelo disso.

 

Celso Furtado: O Brasil é um país onde houve uma grande ruptura com o seu passado. Se você estuda história cultural do Brasil, você verá que o século XVIII foi um século profundamente criativo, e criativo de uma maneira a partir de dentro, endogenamente, como se diz. E tanto mais interessante é que a criatividade do século XVIII, quando estava em torno da arte sacra, por exemplo, da escultura, da arquitetura, etc e da música, era na verdade “inter”, e trazia para si toda uma comunicação interface, uma fusão de todas as classes sociais. Portanto, tudo que se criava em Ouro Preto, ou que se criava nas grandes cidades barrocas do Brasil pertencia a todos, e essa era a cultura brasileira. O século XIX nos desligou disso e nos projetou para a Europa, e criou esse fenômeno de obsessão com o que vinha de fora - olhar para Paris todo tempo -, que as nossas elites adotaram no século XIX. E isso na verdade fez com que a criatividade brasileira perdesse o contato com as suas raízes. E foi a Semana de Arte Moderna de 1922 que deu um grito contra isso.

 

Etevaldo Dias: Ministro, aqui internamente ocorre algo parecido com que o Mílton se refere no mundo. Aqui a cultura que está sendo difundida no Brasil hoje é do eixo Rio-São Paulo. É através da Rede Globo de Televisão, é através dos eixos que estão situados aqui nessas duas grandes cidades. É possível o Ministério da Cultura fazer alguma coisa para quebrar isso, para ter uma cultura nacional sem essa maciça exportação “globiana” de cultura - do pool de rótulo de cultura - para o resto do país?

 

Celso Furtado: Sem desprezar a forte criatividade que existe no Rio e São Paulo, a preocupação nossa maior é ampliar o espaço. Em teatro, por exemplo, a política do [...] no Ministério da Cultura é exatamente fortalecer grupos de teatro fora desse eixo. Em música, é evidente há muita criatividade musical fora desse eixo.

 

Etevaldo Dias: Mas só têm êxito quando vem para o eixo, porque se continuar lá no Ceará ninguém conhece.

 

Celso Furtado: Mas êxito como indústria cultural, não como cultura de massa, que evidentemente é algo que temos que ter em conta e respeitar, mas que não esgota o mundo da cultura.

 

Mílton Coelho da Graça: O "fricote" e o "deboche" estão fazendo sucesso em Salvador, prescindindo do sucesso em São Paulo, por exemplo. Mas o "deboche" é um sucesso na Bahia... [interrompido]

 

Etevaldo Dias: O "fricote" já é nacional. [Luiz Caldas, em meados da década de 1980, com sua música "Fricote" (famosa pelo seu início: “Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear...”), juntamente com outros grupos tais quais Chiclete com Banana, Asa de Águia, Banda Reflexu´s, Sarajane, Gerônimo, etc, lançaram um gênero musical denominado deboche (ou ainda fricote, em virtude desta música de Luiz Caldas). O deboche/fricote foi o embrião da axé music]

 

Celso Furtado: Evidentemente hoje em dia com a revolução tecnológica que houve no suporte da arte, não se pode pensar, hoje em dia, em espaços isolados da arte.

 

Mílton Coelho da Graça: Mas eu fico pensando no problema do [Fernando] Bicudo. Por exemplo, a questão da ópera, como é que o ministério vê a questão da ópera? Seria favorecer mais a vinda de grandes conjuntos internacionais para que nós conheçamos, ou de outro lado fazer com que surja uma ópera brasileira?

 

Celso Furtado: Olha Milton, a ópera é um desafio em todos os países modernos, porque a ópera é o mais caro dos espetáculos modernos. Vou te dar uma idéia: somente a Ópera de Paris tem por ano um subsídio que representa a metade do orçamento do nosso Ministério da Cultura - somente para se ter uma idéia de o que custa a grande ópera hoje em dia, um grande espetáculo de ópera como se apresenta hoje em dia na Alemanha, na França, na Itália. Então há evidentemente uma opção a fazer, saber até que... [interrompido]

 

Etevaldo Dias: Ópera não tem nenhuma prioridade nesse sentido. Em um ministério que funciona com verba do país todo, a ópera então não pode ter prioridade?

 

Irene Ravache: Ópera é de elite.

 

[sobreposição de vozes]

 

Etevaldo Dias: Não há como colocar uma ópera no subúrbio, não tem condição.

 

Celso Furtado: Evidentemente que a ópera do Rio de Janeiro está numa cidade rica, e ela pode-se pagar o luxo de ter uma grande ópera. A sociedade local, quer dizer, a prefeitura, o Estado subvenciona, e é natural que eles possam ter.

 

Fernando Bicudo: Mas em São Paulo não foi a prefeitura [e] nem o Estado, foi mesmo a iniciativa privada. Nós levamos Aída [ópera do compositor italiano Giuseppe Verdi] para a Quinta da Boa Vista [um parque localizado na cidade do Rio de Janeiro], para meio milhão de pessoas, sem um tostão do Estado.

 

Celso Furtado: Aí é diferente, porque já nem é ópera propriamente. Isso é um espetáculo de ópera adaptado ao grande público – portanto com transmissão eletromecânica.

 

Fernando Bicudo: Desculpa ministro, mas nós levamos com cenário, igualzinho [ao original].

 

Celso Furtado: Exato, mas no momento em que você faz um espetáculo de ópera no microfone, aquele que ama a ópera já sabe que aquilo não é ópera. [alguns risos]

 

Irene Ravache: Cada país vê a ópera conforme pode, não é senhor ministro? Tem isso também.

 

Celso Furtado: Exato. O que está salvando a ópera moderna é a ligação com o cinema. Eu vi a Tetralogia de Wagner lá na Europa toda em cinema - que é uma verdadeira maravilha. [Wilhelm Richard Wagner compôs quatro óperas, baseadas na mitologia nórdica, para serem assistidas em conjunto, durante quatro noites seguidas: O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos deuses. Este conjunto é denominado O Anel do nibelungo, ou ainda Tetralogia] E vocês viram as várias versões da Carmen. [ópera de Georges Bizet] Portanto, a ópera hoje em dia está se ligando a outras linguagens culturais, e vai evidentemente sobreviver dessa forma. Mas a ópera viva, na medida em que ela dependa apenas dela mesma como espetáculo, ela tem de ser subvencionada amplamente e será sempre uma coisa de sociedades ricas.

 

Jorge Wilheim: Inegavelmente a ópera é muito popular, e é muito fácil que se torne popular, pela [sua] riqueza de expressão. Mesmo no Brasil.

 

[sobreposição de vozes]

Rodolpho Gamberini: Espera um pouquinho. Esta “ária” da “nossa ópera” está um pouco confusa. O ministro quer..., a Irene pediu para contar uma história, o Jorge tem uma opinião, o Etevaldo tem outra. Eu vou seguir aqui a ordem das inscrições de quem pediu para falar - o Marcos Augusto Gonçalves, da Folha de S. Paulo. Se ele sair do assunto, depois o Fernando tem todo direito de voltar a ele.

 

Marcos Augusto Gonçalves: Eu vou sair talvez um pouco do assunto. [Em] uma série de mecanismos da história da formação do Brasil, há uma presença muito forte do Estado em diversas áreas, e também na cultura. Com a criação do ministério - e mesmo antes, isso é uma coisa que existe, a presença do Estado - ele gera uma relação com os produtores culturais, que é uma relação que existe no Brasil de uma grande expectativa, por parte de quem produz cultura, em relação ao que o Estado vai lhe possibilitar. Enfim, eu acho que é uma relação [na qual] houve certo paternalismo há algum tempo. De uma maneira mais moderna talvez essa relação paternalista ainda perdure, na medida em que as pessoas esperam que o Estado venha a resolver o problema. Como o senhor disse para o Bicudo: que talvez seja melhor de fato resolver com a iniciativa privada de que ter essa expectativa de que o ministério vai conseguir resolver esse ou aquele problema, investir nisso ou naquilo. E isso causa problemas. É o caso, por exemplo, da inoperância de certos organismos do Estado. O caso recente da Embrafilme, que fez um relatório de prestação de contas para acionistas, e a Folha publicou uma reportagem mostrando que as contas estavam totalmente erradas - isso foi há coisa de dez dias. Até agora a Embrafilme ainda não conseguiu apresentar contas certas, [e] está ligada ao ministério com um economista no cargo [de ministro]. O senhor acha que isso é uma incompetência que faz parte da administração pública do Brasil de maneira geral, ou na cultura a questão da administração é mais precária de que em outras áreas? Ou seja, na hora de lidar com o dinheiro, enfim, na hora de ser eficiente empresarialmente o setor cultural está aquém de outros? [Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima. (1969-1990). Fomentava a produção e distribuição de filmes brasileiros]

Celso Furtado: Não, primeiramente eu diria que a cultura é questão do Estado. Estamos hoje vivendo um esforço enorme para sair dessa mentalidade paternalista. Essa é que é a verdade, nós estamos hoje em dia com uma lei que transfere a iniciativa para a sociedade, que estimula a organização de grupos culturais e, portanto, dá as costas a essa coisa do passado, que o Estado faça tudo. É um pouco da tradição brasileira, não só no campo da cultura, mas em todos os outros campos. Agora, com respeito à questão da ineficiência, eu não creio que o problema gerencial em cultura seja exatamente o mesmo [problema] gerencial em outras atividades - porque quando nós dizemos gerência, nós queremos dizer racionalidade formal, cálculo econômico, etc e isso nós temos, está ligado ao que é quantitativo. Quando eu vou para um campo - como é a ópera -, imaginar que eu vou aumentar a produtividade de uma ópera, essas coisas são uma ilusão completa. Portanto, os critérios gerenciais podem até ser prejudiciais se forem levados muito longe, o que não impede que se possa ter uma boa gerência. Com respeito à Embrafilme eu diria o seguinte: no Ministério nós encontramos uma Embrafilme que vem de uma história passada de complicações de toda ordem, que já é sabida, não é? E que vinha se realizando um esforço. O Carlinhos estava realizando um esforço para pôr ordem em tudo aquilo. [Carlos Augusto Calil, diretor geral da Embrafilme, interinamente entre o final de 1984 e início de 1986, e em definitivo no ano de 1986. Deixou a direção no final de 1986 alegando descontentamento com a política de esvaziamento da Embrafilme promovida pelo entrevistado] Finalmente ele nos deixou, e foi preciso fazer uma substituição de direção. Essa substituição se fez exatamente no sentido de dar operacionalidade. Eu pus gente competente em gerência lá na Embrafilme. Essa conta errada que surgiu foi um resultado de que a administração que saía da Embrafilme - muito na carreira, no apagar de luzes, enquanto terminava, “fechava as gavetas” -, resolveu fazer um relatório para mostrar que tinha feito tudo direitinho, etc, etc. Na verdade pecaram, porque um relatório complexo, como o da Embrafilme, com tantas complicações num passado de dez anos de vida evidentemente poderia levar a esse tipo de equívoco. A nova direção, com muita razão, com a prudência de quem entende de gerência disse: “Nós estamos estudando tudo isso e oportunamente apresentaremos os dados corretos.” E eu não tenho nenhuma dúvida de que esses dados absolutamente corretos serão apresentados dentro de pouco tempo à opinião pública brasileira. [Fernando Ghignone assume a direção geral da Embrafilme ao final de 1986. Demite-se ao final de 1987]

 

Mílton Coelho da Graça: Mas ministro, já que o senhor está falando em cinema, há três manifestações culturais que têm problemas endêmicos nesse país. Uma é o teatro, que carece de recursos desde que ele surgiu no Brasil, e tem o cinema e a música, que vivem acossados pela influência estrangeira. O nosso cinema e a nossa música são claramente encurralados pela maciça presença das obras estrangeiras beneficiadas por grandes programas de marketing, por um mercado muito maior do que o nosso. E o teatro, por seu turno, é muito difícil para o teatro se realizar sem uma forte presença, forte auxílio, quer da iniciativa privada, quer do Estado. Ele é caro, o teatro é caro. Então eu pergunto ao senhor: o ministério da Cultura vai receber esse dinheiro da Lei Sarney - alguns casos têm programas específicos -, mas o senhor conseguiu 30% de aumento [no orçamento do Ministério]. Nesses três casos, que eu acho que a maioria dos brasileiros tem interesse - sem querer menosprezar a ópera do Bicudo, porque eu gosto -, eu digo [que] são as três manifestações de massa mais importantes. Quais são os planos mais específicos do Ministério da Cultura para atender a esses problemas do cinema, teatro e música?

 

Celso Furtado: Eu diria que não são somente esses, o livro também é a mesma coisa. Hoje em dia... [interrompido]

 

Mílton Coelho da Graça: Mas o livro já virou uma indústria próspera no Brasil.

 

Celso Furtado: Mas é exatamente por isso. Quanto se põe hoje em dia em propaganda para fazer um best seller. E o dinheiro, a quanto está hoje em dia? Hoje, o que se coloca? É preciso primeiramente ter idéias claras. Eu digo o seguinte: eu sou uma pessoa com uma boa experiência em administração, em governo. Fui ministro há trinta anos, e vivi em muitos países. A coisa mais complexa no Ministério da Cultura, seu maior desafio, é a conceitualização: saber o que é realmente o Ministério da Cultura. Como que eu posso ter uma política de teatro sem querer [também] fazer teatro? Porque eu poderia fazer como na França, uma Comedie Française, que está bem, o governo produz cultura. Então, a nossa tese: nós sabemos perfeitamente que o teatro é uma linguagem essencial e universal e muito viva do Brasil - porque você não chega numa cidade pequena do Brasil onde não haja pelo menos um grupo de teatro.

 

Mílton Coelho da Graça: Um “mamulengozinho”, não é?

 

[Mamulengo é o teatro de bonecos tradicional no Nordeste. Difere-se dos demais, sobretudo por sua estrutura dramática, semelhante a commedia dell'arte (forma teatral originada na Itália do século XVI, baseada na improvisação, onde os personagens  - estereotipados - são os mesmos, mudando a história) e na forte influência da cultura africana, visível no ritmo e na expressividade. Por não possuir texto, o mamolengo se baseia na comunicação direta com o público. além disso, a força dos personagens é outra marca típica dessa arte, pois, embora mudem os lugares da apresentação e o público, os personagens permancem os mesmo, atravessando gerações] 


Celso Furtado: Um mamulengo, uma coisa. Cheguei outro dia numa pequena cidade do Nordeste e havia três grupos de teatro amador. O teatro é uma coisa viva, permanente no Brasil. Agora, o ministério vai tentar o quê? Resolver esse problema a que você se referia. A tendência é [de] os custos do teatro, como no circo - se você não tiver um terreno para o circo baixar, ele não pode nem baixar no chão, fica “voando”, como se diz. Assim o [que no] teatro nos preocupa é em reduzir seus custos operacionais. Custos de aluguel de casa, que é o mais importante, custo de transporte, custo de alojamento para as pessoas de teatro. E dessa maneira conseguir reduzir [o custo]. Se você conseguisse reduzir substancialmente os custos de operação do teatro no Brasil - e esse é o objetivo do ministério -, nós teríamos imediatamente muitos teatros que estão [em] potencial - que estão em estados menores -, [e que] passariam a circular. Você veria que não é só em São Paulo e no Rio que há teatro; as coisas são dessa forma. Agora, quando você vai para cinema, que é uma grande indústria hoje em dia no mundo inteiro, você não vai pensar que o governo pode resolver isso apenas com os meios que atua no teatro. É necessário que se pense em cinema como indústria. Cinema é o quê? Bem ou mal vão cem milhões de pessoas verem cinema no Brasil. Se o senhor tiver em conta que se liga a televisão aí é muito mais. Faturamento entre vídeo e cinema no Brasil grosso modo chega a 600 milhões de dólares. Passa a ser uma coisa grande. Como é que atuamos em cinema? É de verdade apoiando a cinematografia onde há criatividade.

 

Mílton Coelho da Graça: O senhor tem que ser um “Rambo”. [refere-se ao personagem principal de uma série de filmes. Interpretado por Sylvester Stallone, Rambo é um estadunidense veterano de guerra que age sozinho, provocando destruição e guerra para atingir seus objetivos]

 

Celso Furtado: Ali onde a cinematografia exige apoio público de verdade, que é na formação de quadros, na animação, nos investimentos mais baratos nas salas de cinema, etc. Mas o cinema tem de se encaminhar também como indústria para se financiar no sistema financeiro. Assim nós pretendemos que o cinema - todo filme - comece com um projeto, com seu roteiro sendo apreciado por uma organização financeira, bancária - que pode ser do governo. Mas os bancos dizem logo: “Não, eu não posso financiar cinema, porque o risco é muito grande.” Mas quando o risco é muito grande a sociedade assume parte desse risco. Assim se viveu no Brasil, [por exemplo, como] na agricultura brasileira.  Os riscos são muito grandes, mas, no dinheiro do governo, de 10% emprestado a agricultura, depois a compensação, a absorção, é dada na verdade pelo governo. É assim que nós pretendemos fazer no cinema. Mas queremos sim que a mentalidade empresarial domine naquilo que é verdadeiramente indústria. E o que for curta metragem, cinema de arte e ensaio, o cinema experimental, etc, tudo isso tenha pleno apoio do governo.

 

Mílton Coelho da Graça: O senhor está feliz com a idéia de Gilberto Gil [cantor e um dos fundadores do movimento Tropicalista. Desde 2002 é o ministro da Cultura] como secretário de Cultura de Salvador? Com essa efervescência que está surgindo com a democracia?

 

Celso Furtado: Muito, muito - esteve comigo esta semana. Porque é um rapaz culto, é um rapaz de grande experiência e com a visão extremamente clara dos problemas da cultura.

 

Mílton Coelho da Graça: O senhor acha que ajuda a presença de artistas em postos de comando cultural do país em todos os níveis?

 

Celso Furtado: Se tiverem o gabarito, se tiverem as qualidades de Gilberto Gil, não tem a menor dúvida, porque ele não é apenas um... Tenho em conta que ele é uma pessoa que tem a percepção clara de o que é uma empresa.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, eu gostaria de dizer ao senhor - avisar o pessoal que está aqui também – que, além de todas as pessoas que estão aqui, outras pessoas gravaram perguntas ao senhor. Eu gostaria que o senhor respondesse agora uma pergunta gravada pelo professor Miroel Silveira, da Escola de Comunicação e Artes da USP. As perguntas entram por aqueles monitores ali [aponta para a tela onde será apresentada a pergunta].

 

[VT de Miroel Silveira]: Nosso estado elegeu um candidato a governador, que vai se empossar proximamente, e que tem na sua figura duas correntes sociológicas históricas muito importantes: o caboclo do interior e o imigrante europeu - no caso, o italiano. Isso nos faz ter muita esperança, porque em geral os governantes pertencem à classe dominante, e essa classe dominante só se tem preocupado em termos de cultura com as classes A e B. Ministro, eu acredito que esse novo governador de repente possa decidir fazer uma política a favor do povo, assumindo o seu direito ao insumo cultural. O insumo quer dizer o contrário do consumo: o desejo de mostrar o que sabe e de aprender o que não sabe. Se isso acontecer, nós iremos ao caminho de duas coisas: a cultura caipira, que é a única cultura nacional - foi feita pelo tropeirismo e pelos bandeirantes - e, por outro lado, uma internacionalização sem nenhuma subserviência às multinacionais que hoje empestam a nossa cultura. Ministro, como vê essa hipótese? O ministro seria capaz de pegar também de uma viola, e juntamente com o governador Orestes Quércia fazer uma dupla e cantar um novo hino nacional? Não sei se sabe que temos dois hinos nacionais: o oficial e o outro, o do povo. O do povo é assim: [cantando] “Sou caipira Pirapora, Nossa Senhora de Aparecida...”

 

Celso Furtado: Eu não sou caipira, mas eu sou sertanejo, e nós temos um profundo sentimento de ligação ao que é nosso, de fé no que é nosso. Estou certo de que os caipiras de São Paulo se comunicarão com muita facilidade comigo. Não tenho nenhuma dificuldade em me comunicar com aqueles que, em várias áreas do Brasil, se sentem ligados as suas raízes e as valorizam. Estou certo de que o governador Orestes Quércia fará um belo governo, porque tem demonstrado muita fé na comunicação, no relacionamento com a massa da população paulista, e sei também que São Paulo já dispõe de um esplêndido dispositivo no campo cultural. O que São Paulo fez, por exemplo, em matéria de bibliotecas municipais é modelar no Brasil. Todas as cidades do estado de São Paulo têm espaços culturais a partir de unidades de bibliotecas. Portanto, no estado de São Paulo já existe hoje em dia uma base importante de preservação de cultura local. Eu visitei casas de cultura no interior de São Paulo, em que toda comunidade se reunia aí, todas as manifestações de cultura estavam juntas. Portanto, nós, de outras regiões do Brasil, olhamos para São Paulo como um caso modelar de política cultural e de mais possibilidades de desenvolvimento. Agora, eu diria uma palavra sobre essa questão das transnacionais. Nós vivemos num mundo de interdependência. O que resta saber é se nós temos força para participar desse mundo, porque se nós tivermos medo das grandes correntes de transformação do mundo moderno, na verdade ficaremos atrás. Nós teremos que ocupar um espaço nesse mundo. Eu que vivi em tantas partes, tantos anos no estrangeiro, não tenho nenhuma dúvida em afirmar que a nossa capacidade criativa e a nossa capacidade inovadora é suficiente - são suficientemente fortes para nos dar um espaço nesse mundo. Portanto, não se trata de tirar daqui alguma coisa, mas, sim de estar presentes no mundo inteiro com a nossa própria criatividade, as nossas próprias organizações.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, os telespectadores estão telefonando bastante para cá. Eu vou apresentar dois assuntos dos telespectadores ao mesmo tempo. Um assunto diz respeito a essa discussão que o professor Miroel colocou, é uma pergunta que acho que não vai lhe tomar muito tempo respondendo. O outro é interessante, os telespectadores fugiram absolutamente de todos os temas focados até agora. O tema que mais atraiu telefonemas é o tema da censura [censura no regime militar]. Então eu vou depois ler rapidamente algumas perguntas sobre censura - algumas contra, outras a favor, para o senhor fazer um apanhado geral. Mas a pergunta sobre a questão do caipira é a seguinte, do senhor Marcos Mendes, de Jundiaí - aliás, nasceu perto da cidade do Quércia: “Por que o senhor ministro não apoiou a excursão da dupla [de cantores sertanejos] Milionário e José Rico para a China? O senhor é contra esse tipo de cultura?”

 

Celso Furtado: Pelo contrário, eu aprecio muito esse tipo de cultura e acho esplêndido o trabalho que eles realizam, mas acontece que eles são milionários [risos] e há tanta gente pobre - o pouquinho de dinheiro que nós temos...

 

Rodolpho Gamberini: Não era o caso então deles irem até a China? [fala em tom de humor] Ministro, sobre a questão da cultura. Eu vou ler várias perguntas de telespectadores. Gilmar Marçal, de Pirituba, [bairro de São Paulo]: “Por que o ministro não censura mais as novelas de televisão?” Essa pergunta que eu vou fazer agora é do senhor Eliseu Alves, da Bela Vista, [bairro de São Paulo]: “Qual é a sua influência como ministro e o que o senhor poderia fazer para liberar o filme de [Jean-Luc Godard: Je vous salue Marie?” Outra pergunta sobre censura [censura no regime militar], Roberto Alves, de Pinheiros, [bairro de São Paulo]: “Como é que o Ministério da Cultura vai enfrentar a tesoura da censura, sobretudo com relação às diversões públicas?” Outra de censura, José Fernando Pereira, da Vila Sônia, [bairro de São Paulo]: “Que benefício a censura traz à cultura?” O senhor Renê Santana, do Butantã, [bairro de São Paulo]: “O senhor não acha que um país tão sem cultura como o Brasil é um disparate que livros importados paguem mais imposto do que revistas pornográficas...” - livros didáticos, ele certamente está se referindo a livros didáticos - “... e escolas paguem mais imposto do que motel?” [risos] Mais uma pergunta sobre censura e cultura. Marco Antonio Scavassa, do Jaguaré, [bairro de São Paulo]: “Por que é...” Ah não, essa aqui não tem nada a ver com cultura, é com censura. Eu estava fazendo uma confusão aqui.  De maneira geral, nós vimos aqui gente que defende mais censura, e gente que abomina a censura, que condena a censura. Qual é a sua posição, o que é que o senhor pensa a respeito da censura?

[O filme Je vous salue Marie faz uma polêmica atualização da história de José e Maria, lidando com o processo de gravidez da mãe de Jesus. O filme foi censurado após pressão da Igreja Católica. Só pôde ser exibido no Brasil anos depois do previsto, com o título Eu vos saúdo, Maria]

 

Celso Furtado: Bem, o Ministério da Cultura não tem nenhuma responsabilidade, nenhuma atuação no que se chama censura, não é? E, portanto, nunca coube a nós opinar ou decidir sobre isso, nunca fomos sequer consultados. Mas observando de fora a coisa lá no “ministério da censura”, eu vejo que... [interrompido]

 

Rodolpho Gamberini: Ministério da censura não, da Cultura. [risos]

 

Celso Furtado: Ministério da Cultura, eu quis dizer no governo em geral. A partir dos órgãos que fazem a censura, veja o seguinte: o grande problema de censura que hoje se coloca é a questão da pornografia. Porque não há outros problemas. Por exemplo, não vejo filmes políticos censurados. Não há - inclusive filmes, por exemplo, que ofendam os pruridos patrióticos brasileiros. Digamos que entrem nesse assunto. Filmes - como há em outras partes - que são considerados como propaganda de uma droga; tudo isso não vejo no Brasil. Portanto, é sempre a questão da pornografia. Uma questão da pornografia que eu vejo...

 

[...]: Não só da pornografia...

 

Rodolpho Gamberini: No caso de Je vous salue Marie também, não é?

 

Celso Furtado: Sim, mas eu chego lá. No caso da pornografia, nesse caso eu vejo todo dia essa censura [ser] em grande parte contornada pela questão das liminares de um mandado de segurança. A verdade é que, na prática, não se aplica a censura.  Então, o único caso que existe de censura [censura no regime militar], que ocorreu antes de eu chegar ao Brasil foi esse do filme de Godard...

 

Matinas Suzuki: E de alguns minutos do Rambo, não é?

 

[sobreposição de vozes]

Rodolpho Gamberini: E há uma música de Caetano [Veloso]. Há uma música de Caetano também.

 

Celso Furtado: De música, bem...

 

Rodolpho Gamberini: Aliás, músicas há mais de uma, não só do Caetano Veloso. Vários grupos de rock têm letras censuradas.

 

Celso Furtado: Mas eu quero dizer o seguinte: a partir da experiência de outros países, países democratas de verdade, o que a gente pode fazer se o Brasil tem pouca experiência de democracia? Como é que se pode saber se faz isso ou faz aquilo? Fazendo, tentando: um puxa para um lado, outro puxa para o outro - vamos aprender a nossa democracia. Eu vivi em muitos países democráticos há uns tempos, vivi nos Estados Unidos, vivi na Inglaterra, vivi na França. Então o que acontece é o seguinte: eu só vi a censura de letra de música nos Estados Unidos quando ela, digamos, prega uso de drogas. Então eu via isso lá. Vi [uma] censura muito sutil, do ponto de vista ideológico político, na Alemanha, na França, em toda parte, quando se toca em problemas da honra nacional ou de certos valores. Por exemplo, a questão dos filmes nazistas na Alemanha, que são censurados completamente - a própria Constituição não permite. Quando se trata, na França, sobre a guerra da Argélia; até hoje quando se toca nesses assuntos [de] susceptibilidade é censura. Agora, quando se trata de problema de caráter religioso, na maior parte dos países não há censura. O filme de Jean-Luc Goddard, um filme que - eu não vi o filme - se diz que agrediria a sensibilidade religiosa apenas dos católicos, [foi] censurado [ou] semi-censurado em alguns países da Europa. Quando me perguntaram sobre o que eu achava, eu nunca tinha visto o filme, como eu ia saber? Isso de censurar, de tirar de circulação do cinema... - na televisão [a censura] é muito mais comum, não é? Em qualquer parte - eu digo do cinema, do teatro não vi, não há censura nenhuma. Teatro hoje em dia é uma coisa liberada, exceto se for coisa, por exemplo, que entra em problema de segurança, quando, por exemplo, ameaçam [com] bombas. Se eu fizer, por exemplo, um filme anti-semita na Europa, na verdade vão lá e quebram o cinema. É esse tipo de coisa, então por questão de segurança pública [se censura]. Fora disso, o que eu via é que todas as sociedades sempre têm certos mecanismos de autodefesa. O que se discute muito hoje em dia é: quem faz essa censura? Não é se vai haver [censura], alguma tem que haver, porque não há nenhuma sociedade que não tenha isso. Quem faz [a censura]? Nos Estados Unidos você sabe e você se recorda que antigamente era a autoridade local, como era na Itália, por exemplo. Dois casos extremos, porque a Itália há muito mais censura. Na Itália era a autoridade local; houve uma reforma constitucional [que] transferiu a censura para o nível do primeiro-ministro, o serviço de censura [está] ao lado do primeiro-ministro. Na França tem [censura] dos dois lados. Tem “lá em cima” e “lá embaixo”, e se combinam os dois. E nos Estados Unidos, em realidade, há uma autocensura, porque a American Motion Picture [é a associação de produtores e distribuidores de filmes] faz censura, mas tem a censura de autoridade local. Dessa maneira a coisa está mais ou menos pelo mundo inteiro, vive-se assim e assado.

 

Mílton Coelho da Graça: Mas a questão mais controvertida, ministro, é a da violência, porque em 1946 nós tivemos uma Constituição democrática e essa Constituição proibiu a propaganda de guerra. Hoje, quando se censura um filme como o Rambo, que tem cenas explícitas de propaganda de violência e [propaganda] de guerra, uma parte da sociedade protesta e diz que não deve haver censura nenhuma. Qual é a posição do ministro em relação a isso?

 

Celso Furtado: Bem, a minha posição é a seguinte: quem julga [o que deve ser censurado] é importante para mim. Porque eu não vou me colocar acima da sociedade. Dizer que é bom, porque se faz nesse país ou naquele - porque eu não sou ingênuo [em] imaginar que, tudo que é bom para um país, seja bom para o outro. Eu estou partindo da idéia de uma sociedade democrática, completamente democrática. Quem é que pode imaginar o que ela vai decidir? Por exemplo, um filme anti-racista, um filme contra o negro, que pregue um desprezo aos negros no Brasil, nós aceitamos? É capaz de nós quebrarmos o cinema, não é isso?

 

Mílton Coelho da Graça: Só que independentemente de quebrar ou não... [interrompido]

 

Celso Furtado: É a nossa sensibilidade. Portanto deve haver limites para apresentações de idéias. Quando [se] fere uma minoria religiosa, por exemplo, há sabidamente uma reação muito forte em todos os países. Então o que nós temos de discutir é como estabelecer o controle social disso. E a minha opinião é que deveria ser um órgão ligado ao parlamento, um órgão representativo da sociedade - não um grupo de burocratas trancado dentro de um ministério, não uma coisa ligada à policia, mas que houvesse um órgão responsável junto ao parlamento, representando a sociedade, e que esse órgão na verdade diga se esse filme ou aquele outro serve, estabeleça parâmetros. É isso, quem vai decidir. Porque dizer ingenuamente, como muita gente diz: “acabemos com toda forma de censura...”, até o dia que você fala mal da mãe dessa pessoa.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, eu gostaria de pedir a sua licença e de todos que estão participando do Roda Viva, porque  nós vamos fazer um pequeno intervalo e volta daqui a pouquinho e continua com a nossa conversa. Até já então. Nosso intervalo, por favor.

 

[intervalo]

Rodolpho Gamberini: Nós voltamos então com o Roda Viva, programa de entrevistas e debates da TV Cultura de São Paulo, lembrando que quem está em casa pode participar da entrevista desta noite com o ministro Celso Furtado, ministro da Cultura, telefonando para 252-6525, telefone da TV Cultura, e eu faço a pergunta de você, que está em casa, para o ministro. Antes do intervalo nós demos uma rodada bastante geral, mas por enquanto duas pessoas ficaram sem fazer as suas perguntas ao ministro. A primeira delas eu gostaria que fizesse agora a sua participação, o empresário José Mindlin.

 

José Mindlin: A minha pergunta pode parecer um pouco terra-a-terra depois da veemência das discussões da primeira parte, mas, como um entusiasta da Lei Sarney, eu acho que ela representa um passo muito importante na difusão de cultura do país. Há uma coisa que me causou perplexidade. O objetivo da lei, segundo me parece, foi de incorporar mais e mais a sociedade civil como um todo no financiamento da cultura, proporcionando o incentivo fiscal para pessoas físicas e para pessoas jurídicas. Nesse caso de pessoas jurídicas, limitando a 2% do imposto a pagar como incentivo possível em cada [apoio]. No entanto, há outro dispositivo que permite às empresas que não tenham projeto específico que entreguem dinheiro ao Ministério da Cultura, para o fundo de promoção cultural - que descontem até 5% do imposto.  Não lhe parece que devia ser ao contrário? Porque isso é um incentivo para mais recursos para o Estado. Enquanto no Ministério da Cultura está o Celso Furtado e sua equipe, tudo bem - temos muita confiança na sua atuação -, mas o serviço público por natureza é mutável e não sabemos o que pode haver mais tarde.

 

Celso Furtado: Primeiramente, o dinheiro que vai para o Ministério - como diz a lei, para o Instituto de Formação Cultural -, irá geralmente, ou na grande maioria dos casos, irá já com destino certo do próprio setor privado. Se a firma “tal” quiser dar um apoio a um projeto cultural no Amazonas, de um tipo ou de outro, poderá dar através do Ministério...

 

José Mindlin: Mas a lei diz: “a empresa que não se utilizar no decorrer do período dos benefícios concedidos pela lei poderá optar pela dedução de até 5% devido para a destinação ao Fundo de Cultura.” Isso aumenta o poder do Estado de dirigir o futuro.

 

Celso Furtado: Sim, mas no regulamento se diz que esse dinheiro poderá estar marcado, quer dizer, destinado, não fica no Ministério. O Ministério é um repassador apenas. Mas isso é um aspecto, o senhor dirá... [interrompido]

 

José Mindlin: Seria interessante saber qual é a idéia de administração do Fundo de Promoção de Cultura.

 

Celso Furtado: Exato, vou dar um exemplo concreto. O Banco do Brasil, por exemplo, fez uma doação de cinco milhões, dentro desse espírito. Ele fez destinado a um projeto que ele escolheu: “eu quero o projeto da orquestra sinfônica no Brasil” - 15 orquestras sinfônicas. O dinheiro então é somente repassado pelo Ministério. Portanto, isso não quer dizer... Mas vamos voltar ao essencial. Quando se fala em 2%, é com respeito àquela segunda parte do valor fiscal, porque primeiramente pode haver a simples dedução como gasto operacional, portanto, é naquela faixa. Segundo lugar, quando fala em 5%, a lei não diz que é sem prejuízo de qualquer outra coisa. Portanto, isso pode concorrer com outras aplicações feitas para outras formas de incentivo fiscal.

 

José Mindlin: Bom, mas a minha preocupação é a desproporção entre aquilo que a empresa privada pode deduzir, quando tenha um projeto específico - e o que se desejaria é que todos tivessem projetos específicos, quanto mais, melhor -, e aquele que não quer se preocupar e simplesmente entrega ao Ministério o dinheiro.

 

Celso Furtado: Então vamos a um caso concreto. A empresa X tem um projeto Z. Se ela quiser se beneficiar dos 5% ela dá ao Instituto de Promoção Cultural para o fim desse projeto Z.

 

José Mindlin: Ah, mas isso não está claro na lei.

 

Celso Furtado: Mas está no regulamento.

 

Matinas Suzuki: Aí se torna acessório o projeto. Se todo mundo vai entrar nesse caso, se torna acessório o projeto.

 

[sobreposição de vozes]

José Mindlin: O regulamento diz exatamente a mesma coisa que a lei, poderá deduzir até 5% do imposto para destinar ao Fundo de Promoção Cultural gerido pelo Ministério da Cultura. E isto aí é que é uma preocupação.

 

Celso Furtado: Sim, mas suponhamos que a firma tal dê, como deu o Banco do Brasil... [interrompido]

 

José Mindlin: Ah, se fizer isso tudo bem, mas se não fizer isso?

 

Celso Furtado: Mas é o que está acontecendo todo dia, não é? Inclusive o Instituto faz o seguinte: faz um catálogo do projeto e oferece às firmas.

 

Matinas Suzuki: Não há como pôr na lei para nos resguardarmos de tempestades futuras?

 

Celso Furtado: Não, não tem tempestade futura, porque se a firma X quiser doar para o projeto Z através do Instituto, ela diz: “É só para esse fim”. E o Ministério não poderá jamais desviar o dinheiro.

 

Marco Augusto Gonçalves: E se ela não quiser doar para o projeto Z, ela quiser apenas doar para o fundo? Sem destinação me parece que é nesta linha a pergunta. Quem administra essa... [interrompido]

 

Celso Furtado: Poderá fazer sim, aí é o Fundo. Porque geralmente - como o fundo tem um catálogo de projetos - a firma diz assim: “Eu quero, prefiro este ou aquele outro, etc.” Normalmente a firma faz uma opção. Agora, ela pode dizer: “Não, eu queria que o Ministério indicasse. O senhor tem critério. Apliquem bem.” Aí nós destinamos geralmente para as regiões mais pobres, aos projetos mais desvalidos.

 

[Rodolpho Gamberini]: Há prioridade para universidade?

 

Celso Furtado: Sim, há prioridade para universidades.

 

Eduardo Bicudo: E então por que a diferença de porcentagem, ministro?

 

Celso Furtado: É que no segundo caso, de 5%, isso concorre com outras formas de incentivo, por isso tinha que ser maior. Ao passo que na primeira, a grande vitória foi os 2%, não foi os 5%, porque se fosse 5% concorrendo com todas as formas de incentivo que existe, nós iríamos disputar dentro da mesma pista com o salário-alimentação, salário-educação, salário-transporte - tudo isso que os empresários já conhecem -, ao passo que a grande vitória dos 2% é que ele não concorre com ninguém. Você pode independentemente de todos os outros incentivos, foi isso que marcou a lei.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, por favor, a próxima pergunta é de José Celso Martinez Correa.

 

Celso Furtado: Fale Celso.

 

José Celso Martinez Correa: Eu ainda acho muito difícil sentir a Lei Sarney, porque, por exemplo, o senhor se refere a uma sociedade civil democrática, etc, mas nós estamos saindo de vinte anos de uma ditadura - não saímos ainda. Uma atividade, que é a minha, foi obrigada a recuar diante de toda uma violência muito grande que nós todos sofremos. Muito bem, então existe uma desproporção muito grande nesses vinte anos de o que acontece conosco, dos que trabalham a cultura, na invenção, com a cultura que é a cultura dominante hoje. A ditadura foi feita no Brasil para que vencesse esse tipo de capitalismo que atualmente tem até certa necessidade de abertura, de democracia, que existe no Brasil. Uma sociedade de empresários, uma sociedade em que a cultura que domina é a cultura de marketing, não é? Eu acho que se não houver, ao lado da Lei Sarney, um movimento político e cultural muito forte, nós vamos criar não um boom cultural, mas uma cultura subproduto de departamento de marketing de grandes empresas. Eu acho [que] a lei, em sua base, é maravilhosa. Mas ela precisa exatamente de uma prática política, de uma prática cultural. Eu acho que o teatro tem que estar em cena “a mil”, a toda, e nós temos todos que estar em cena. Eu sinto que uma das coisas que eu tenho pensado, uma das soluções é a realização de um grande festival de teatro brasileiro. Um festival que reúna, que chame - “Iô! Iô!Iô!” [faz uma gesticulação tal qual estivesse laçando gado] – o teatro todo do Brasil para que nós todos possamos realizar nossos sonhos, os mais absurdos - porque são esses que interessam. Sem nenhuma censura, para que se possa dar sem que se exija nada de troca, como no amor. A cultura é igualzinha ao amor, não tem diferença nenhuma. Você dá, mesmo se você não é amado, mesmo sem você aceitar nada em troca. Senão, brocha - a coisa não acontece. [Deve ser] um território absolutamente livre. Se você vai à cultura mercadológica, você sai castrado, não dá nada. Você abre os jornais, você vê mil coisas patrocinadas, eu não tenho vontade de ver nada, eu não tenho vontade de ir a lugar nenhum, ninguém tem. É o dar que completa. Tudo que é in atualmente é out, do ponto de vista de o que o país quer, de o que o país precisa. Eu tenho a impressão [de] que o festival tornaria possível isso. De repente nós possamos fazer uma arte de o que vem [pela frente] - não a que a Rede Globo quer que a gente faça, não... Mas o que nós queremos fazer, o que a Irene quer dizer, o que eu quero dizer, o que os atores querem dizer, o que as atrizes querem dizer, e o que o povo quer dizer. Diariamente, essa atitude diária, essa coisa diária, de segunda, terça, toda noite lá “mediunizando” essa situação do Brasil. Você vê, é anormal, não existe isso. Você abre os jornais e não tem nenhum teatro “mediunizando” aquele acontecimento fantástico que foi a morte de Tancredo, “mediunizando” a Constituinte - essa palhaçada que é a Constituinte -, exatamente fazendo a réplica dessa palhaçada em cena. Isso não é normal, isso é doença, isso é tão doença quanto aids, é tão doença quanto dengue, isso é um fenômeno de marasmo, de morte, de dark. Então, se o Estado não tomar partido, se quiser resolver o problema exclusivamente do ponto de vista técnico, com uma discussão entre especialistas, entre nós aqui, etc. – Veja você, abriu um pouquinho o telefone [para os telespectadores], vem [o assunto sobre] censura. Só se fala de censura. Há que [se] respirar, e para respirar é preciso que o teatro - acho que o teatro é uma coisa ecológica - volte em cena. Para o teatro voltar em cena, o que o teatro brasileiro tem que dar não cabe nas casinhas da titia, nos teatrinhos bonitinhos que ganharam na salinha de visita, na festinha de living room, naquela “coisa”. Não cabe nisso. Eu fui formado pela sua geração, você foi engenheiro de toda uma série de coisas. Você, o Darci Ribeiro [político e antropólogo - ver entrevista Roda Viva], a Lina [Bo] Bardi [arquiteta que projetou o Museu de Arte Moderna de São Paulo], vocês todos mostraram que o Brasil podia ter um caminho em relação ao mundo todo, um caminho próprio, e isso foi cortado em 1964. Muito bem, em cima dessa coisa cortada nasceu essa cultura de consumo, essa bobagem, essa coisa mercadológica, esse subproduto que divide tudo: rock de um lado, música caipira de outro, não sei o que de outro. O teatro é o campo da mixagem, é o campo da mistura. Nós temos no Brasil uma cultura que é uma das culturas mais ricas do mundo, são as primeiras músicas que Oswald de Andrade descobriu na antropofagia. [Oswald de Andrade, poeta e escritor, um dos ícones do movimento modernista brasileiro] Realmente ele superou essa falsa discussão: o senhor [ministro] gosta de rock. É claro que ele gosta de rock, quem que não gosta? Assim como ele gosta de samba, todo mundo gosta de tudo, o que é bom todo mundo gosta. E o teatro tem essa possibilidade de misturar tudo no corpo, numa noite, como um grande acontecimento cívico, um grande acontecimento público. Eu acho que o ministério devia fazer como na Grécia: “Olha, quais são os casos da Lei Sarney que têm potencial?” “Esse, esse, esse.” “Quem são os mais ricos do Brasil?” Na outra época eram os mais “fuziláveis”. [risos] Pega “os mais fuziláveis” e substitui [por “os mais ricos”]. Então os mais fuziláveis são os colegas que vão ter a honra de pegar o seu dinheiro e investir em grandes produções teatrais nas quais a Irene possa contracenar. Não sozinha, ou só com outro ator - numa peça de dois -, ou numa peça liderando toda uma companhia de segundo, terceiro, quarto [escalão] - aquela hierarquia toda -, mas com os grandes artistas e com o povo todo brasileiro em tudo que ele tem que dar. Porque é um absurdo, o país com o potencial que tem, de riqueza - inclusive eu discordo dele [aponta para um entrevistador] quando diz: “Mas como vai investir em cultura?” E concordo totalmente com ele [aponta para outro entrevistado]. Eu acho que o grande tesouro no Brasil não é a indústria de guerra - que é a sexta do mundo, é a cultura. Mas toda [setor de] cultura é desempregada, porque ainda domina a ópera - que não foi “comida”. A ópera precisa ser “comida”, a ópera tem que incorporar as coisas que estão no Brasil, essa cultura negra fantástica, essa cultura índia [indígena] fantástica. Não é possível ficar importando coisa amanhecida, coisa que já veio, que a vovó viu, que a vovó gostou. Não! Chega! Nós estamos vivos! O Brasil é um dos raros países do mundo que tem exatamente essas condições sociais de [se] aproveitar e não fazer uma arte popular boba - como é que se diz? -, messiânica, “bom-mocista”. Não! Eu acho [que se deve fazer] uma arte sensual, vigorosa, bonita, forte, complicada, entende? E realmente foi o que aconteceu, nós estamos fazendo vinte anos de Tropicalismo, que é a mesma coisa para mim que antropofagia, que é a mesma coisa que modernismo, são nomes diferentes de coisas. E o Brasil como sempre tem: 15 anos “sim”, 15 anos “não”. Nesses 15 anos “não” venceu essa bobagem, essa coisa que já está fora, que é out mesmo, essa coisa mercadológica. Ora, se nós continuarmos na discussão desse nível, não vai acontecer nada. O máximo que eu consegui na Lei Sarney até agora foi umas latas de vinho com [...], que eu não quis beber, porque eu estou fazendo As bacantes [peça do grego Eurípedes, encenada pela primeira vez cerca de 405 a.C.] e eu não vou beber vinho com... Eu quero vinho o melhor possível. Eu quis trocar. E mais nada. Então eu acho que se não houver uma tomada de posição como tem o Gil na Bahia - O Gil é importante na Bahia porque é uma posição. Você sabe que lá a sociedade civil democrática não vai ter o direito de ser racista contra os negros. Não vai ter esse direito. Lá vai dominar um contato com a África, lá vai dominar um contato com a cultura dessa mesma linha antropofágica, com tudo isso. Então eu acho que é necessário acoplar a Lei Sarney principalmente com o teatro. Eu privilegio o teatro porque eu acho que o teatro é uma área da economia brasileira totalmente desprivilegiada, mais que o povo, mais que o operário. Realmente operário, o teatro virou bico. Se o cara não está na televisão ele não tem condições de fazer teatro. Não tem condições de se reunir ao seu semelhante e ensaiar. É uma profissão que não existe no Brasil, não está sendo praticada. Para ela se praticada é necessário um [...], um preconceito, mesmo uma tomada de posição do Estado! Sou a favor disso. Todos meus projetos, livros, as utopias, a Universidade de Brasília, tudo aquilo foi frustrado - 1964, tudo bem. Mas agora nós estamos vivos, é 1987, vamos investir no corpo vivo, esse corpo vivo que foi para as passeatas fazer diretas, esse corpo vivo que vende mercadoria na televisão, esse corpo vivo que faz novela. Esse corpo vivo que, paradoxalmente, não tem direito de se reunir em grandes espetáculos para fazer aquilo que quer, entendeu? Então, realmente, eu realmente... [interrompido]

 

Mílton Coelho da Graça: Será que o ministro não quer patrocinar o festival?

 

José Celso Martinez Correa: Eu acho que não só o ministro - o [Milton] Coelho tem razão - nós todos. Porque o festival é a prática concreta da Lei Sarney - e de uma maneira revolucionária. Porque é ridículo no Brasil, na situação que o Brasil está vivendo hoje, você ficar masturbando essa cultura, essa cultura mercadológica, essa coisa que ninguém gosta, que é a cultura do insucesso. Basta uma obra poder ter sucesso, mexer com as pessoas, causar qualquer coisa, ela é recusada pela censura das grandes empresas, que é muito pior do que a censura dos militares. Não tem nem comparação.

 

Rodolpho Gamberini: Vamos saber qual é a opinião do ministro sobre o festival?

 

Irene Ravache: Ah, vamos bater palmas [para o José Celso]? [várias pessoas batem palmas para José Celso Martinez Correa]

 

Mílton Coelho da Graça: Primeira dionisíaca brasileira! [falando de Irene Ravache]

 

Celso Furtado: Primeiramente eu faria uma afirmação peremptória: toda iniciativa que se manifeste em um festival, que se traduza em um festival, terá todo o nosso apoio.  Nós apoiamos o FestRio [Festival Internacional de Cinema, Televisão e Vídeo do Rio de Janeiro (1984-1988), realizado sempre no Hotel Nacional, bairro de São Conrado. Não confundir com o Festival do Rio, iniciado em 1989], Gramado, tudo que existe no Brasil como festival. [O Festival de Cinema Brasileiro e Latino é realizado anualmente desde 1973 no Palácio dos Festivais, na cidade gaúcha de Gramado. Originariamente “Festival de Cinema Brasileiro, desde 1992 inclui também filmes de origem latina] Agora eu queria fazer dois comentários, o primeiro é o seguinte: você fala de tomar decisões, por exemplo: “Faça isso, faça aquilo, faça aquilo outro.” Esse é o grande desafio no campo da cultura. Porque eu não creio que possa uma repartição, um ministério, um indivíduo, ainda que fosse um rei filósofo de Platão sentado aqui, na posição de ministro, dizer: “Isso é bom; isso é ruim em matéria de cultura”. Não pode. Posso dizer: “Esse teatro é melhor do que aquele.” Então que fazemos nós? Como já faz o Inacen hoje em dia. [Instituto Nacional de Artes Cênicas (1981-1987), depois Fundacen – Fundação Nacional de Artes Cênicas, e desde 1990 é denominado Ibac – Instituto Brasileiro de Artes Cênicas] É que reúne a comunidade de gente de teatro e faz com que essa comunidade tome decisões. Ela, digamos, faz essa arbitragem. Essa é a natureza do ministério da Cultura. O ministério da Cultura por um lado atribui à sociedade a iniciativa, [em] segundo lugar, quando ele aplica recursos públicos, ele decide em consenso com a própria sociedade, com o mundo do teatro. Eu jamais irei fazer a coisa diretamente com o teatro, irei fazer sempre através do mundo do teatro, através do mundo do livro, de qualquer campo da cultura. E, portanto, se surge um festival, o nosso Instituto Nacional de Teatro estudará o caso, e nós analisaremos com ele, etc.- e parto do princípio, do preconceito favorável de que daremos todo apoio. Agora, outra coisa que eu dizia é que eu tenho uma fé tão grande neste país, que creio que essa criatividade a qual você se refere, ela sempre esteve presente. Eu admirei muito Villa-Lobos, porque eu o conheci bem de perto. Porque na minha época, na minha primeira juventude - como dizem hoje -, eu fui amador de música e gostava muito de música. Então sentia aquele homem que, sozinho, quando chegou da Europa em 1930 não tinha [nada] para comer, não tinha nada, não ganhava um tostão de direito autoral e já tinha feito as obras geniais dele. Ele só não tinha feito as Bachianas, mas até os Choros [escritos entre 1920 e 1929] todos ele já tinha composto, já tinha composto todas as sinfonias. Tudo já tinha feito, o essencial da obra de Villa-Lobos. Pois ele chegou aqui e não tinha emprego público. Então andava atrás [de emprego], veio para o estado de São Paulo para arranjar emprego público no estado de São Paulo, faz uma turnê aqui e vai para o governo. Liga-se a Getúlio, vai fazer aquele “fascistóide” de Getúlio. Porque no fundo ele precisava de emprego. Você já o imaginou, não obstante todas essas dificuldades, ele deixou a mais importante obra de tradução de uma linguagem cultural, dos anseios mais profundos da alma brasileira. Então eu creio que... [interrompido]

 

José Celso Martinez Correa: Mas ele teve apoio explícito do Estado.

 

Celso Furtado: Bem, ele teve... [interrompido]

 

José Celso Martinez Correa: Esporádico, mas teve. Tem até a piada famosa que diz assim: “Getúlio, que vergonha, todos os países do mundo têm corais, menos o Brasil.” Aí [ele] põe [o coral] em um decreto e assina. “Getúlio, meus parabéns, é o primeiro país do mundo que tem corais.”

 

Celso Furtado: Nessa época ele já havia composto toda grande obra dele...

 

José Celso Martinez Correa: Aliás, é o primeiro país que pode não ter censura, por que não?

 

Celso Furtado: É, por que não? Bem, [como] eu dizia, ele chegou de volta ao Brasil. Toda sua vida ele se manteve fiel. Não houve indústria cultural que veio depois em cima dele. Quando ele foi aos Estados Unidos, [havia] música para filmes, e quiseram envolvê-lo em tudo isso. Nunca ninguém conseguiu alterar a força e a direção do seu gênio, continuou sendo fiel a ele mesmo. Portanto, eu continuo convencido de que o extraordinário da ditadura é que ela pretendeu no Brasil cooptar tanta gente. E foi muito hábil, criou instituições culturais para distribuir dinheiro, cooptar gente daqui e acolá. Mas não conseguiu de nenhuma maneira criar uma ideologia e nem criar uma arte dela, nem criar artistas que se solidarizassem com ela, porque a sociedade brasileira tem uma força tão grande que repudiou tudo. Na verdade voltei ao Brasil, e encontrei o Brasil com uma força em todos os planos, no teatro - estou vendo hoje em dia as iniciativas de todos os lados -, no seu caso mesmo voltando com toda força ao teatro [referindo-se a José Celso Martinez]. Então todo mundo fez a [sua] parte. Agora mesmo estamos levando o grupo Macunaíma à França para mostrar o que é o teatro, porque o teatro francês está lá, fingido, um pouco endurecido. O que é um teatro inventivo... [interrompido]

 

Matinas Suzuki: Ministro, foi bom tocar nesta questão: quais são os critérios que o Ministério está usando para cadastrar essa ou aquela empresa? O senhor acha que isso devia ser uma coisa em primeiro lugar transparente para o público cultural? Quer dizer, você manda o pedido de registro para a sua empresa. Aquilo vai para uma comissão do ministério e essa comissão decide. Ninguém de fora sabe quais são os critérios que essa comissão está usando para cadastrar essa ou aquela empresa - o que aumenta o poderio do Estado. A outra coisa é o seguinte: que a lei vá beneficiar instituições como o Masp [Museu de Arte de São Paulo], a [Fundação] Bienal [de Arte], fundações, etc,  é plenamente justificável. Agora, que a lei vá beneficiar galerias, editoras, produtoras de filmes, produtoras de disco, etc. que são empresas, que no regime de mercado deveriam estar criando um mercado, num país em que o mercado é incipiente, é outro lado que eu acho que deveria ser explicado. Porque algumas empresas conseguem e outras não? E por que o Ministério [também] cadastra empresas, e não apenas instituições [e] fundações?

 

Celso Furtado: Perdoe-me, o ministério só cadastra uma empresa quando é para investimento. Para patrocínios, [e] para doações, não [cadastra]. Agora eu vou tomar pelo começo: as portarias do ministro estabelecem todos os critérios - evidentemente que é mais difícil encontrar, nem sempre é muito fácil encontrar a mão isso -, mas eu vou lhe dar o essencial da coisa, que eu creio que é importante para os telespectadores. Se uma organização, uma empresa, uma instituição cultural de natureza cultural quer se cadastrar - como esta aqui em que nós estamos -, manda as informações ao ministério. O que é que o ministério pede? Primeiramente o estatuto, para saber se o seu estatuto está dedicado de verdade ao mundo cultural. Segundo, o seu relatório do que fez no último ano, e se isso representou atividade cultural de verdade. Terceiro lugar, e o mais importante: um atestado da Secretaria de Cultura do seu estado, que tem um contato direto com essa instituição, afirmando categoricamente que é uma instituição de natureza cultural. Então somente nesse caso é que o Ministério dá o cadastro. E já deu a setecentas instituições. E, portanto, não há nenhuma discriminação, nenhuma dificuldade em obter esse cadastro. Agora, com respeito a uma empresa que só pode se cadastrar para efeito de investimento, a coisa é um pouco diferente.

 

Matinas Suzuki: Que na verdade é um abatimento. Um investimento que é um abatimento na verdade.

 

Celso Furtado: Que é um abatimento, exato. Aí é diferente o caso. Porque em realidade no caso, [para] que o governo [conceda], basta que a empresa demonstre. A empresa, por exemplo, produz instrumento de música. Demonstra lá: produz instrumento de música, etc. A lei permite que se dê incentivo a essa indústria [que] produz, digamos, instrumentos para material de pintura, pincéis, e tudo isso, etc. Isso é muito fácil de examinar, não é? Agora eu tenho em conta quando você se revolta contra dar incentivo à indústria do livro. É que a indústria do livro viveu um ano muito bom - este ano -, mas na verdade, [se] você pegar um ano atrás de outro, é muito dura a vida de um industrial do livro aqui, e em qualquer parte do mundo. Ou são grandes grupos atuando internacionalmente, ou eles têm uma rentabilidade muito modesta. Se o governo dá um apoio, por exemplo, à industria florestal, [é] porque sabe que ela tem uma maturação  longa. Dá-se apoio a agricultura - quase todo crédito agrícola no Brasil é subsidiado. Por quê? - porque se sabe que os riscos na agricultura são muito altos. Não se pode calcular como em outros setores. Assim é a indústria cultural. Portanto, em casos especiais, também se dá algum incentivo. Isso não é nenhuma novidade, você encontrará em muitos países uma política de apoio a investimentos que criem emprego no setor cultural.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, a Irene está inscrita.

 

Irene Ravache: Senhor ministro, eu estou inscrita, mas eu só queria pedir para o senhor fazer assim no seu paletó para tirar um bichinho, a gente está vendo a trajetória dele. [a câmera se aproxima do ombro do entrevistado para mostrar uma pequena aranha que perambula por sobre ele – ouve-se risos]

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, nós estamos falando bastante [por] aqui de recurso e aplicação e tal. Nós temos aqui um telefonema de uma telespectadora, Ilda de Castro, da Móoca [bairro de São Paulo]. Ela pergunta ao senhor o seguinte: “Por que o senhor gastou aproximadamente oitocentos mil cruzados para redecorar o seu gabinete em Brasília?” [Celso Furtado ri] E aí ela disse: “Essa notícia foi divulgada amplamente...” - segundo ela – “... inclusive pela Voz do Brasil. Por que o senhor gastou esse dinheiro?”

 

Celso Furtado: Eu quero tranqüilizar a dona Ilda de Castro [diz rindo]. O meu gabinete, se tem alguma característica - e algumas pessoas daqui já estiveram lá -, é de ser o mais modesto gabinete, eu creio, de um ministro - pelo menos há muitos anos no Brasil, inclusive é um gabinete que está abaixo - no subsolo de num edifício comercial. Isso choca muita gente, que seja [o gabinete] o que é. Se se gastaram oitocentos mil cruzados, não foi [somente] no gabinete, foi em toda uma obra que foi preciso fazer para aproveitar o subsolo, em um edifício cuja inclinação em que era possível aproveitar uma superfície de subsolo. Então foi preciso dividir para colocar as condições necessárias de trabalho e, portanto, os oitocentos mil cruzados foram para tornar habitável um subsolo ou um porão no qual eu tenho o meu gabinete. Ela está convidada a visitá-lo [entrevistado ri] e se informar diretamente da modéstia com que nós vivemos. Eu sou alguém que, quando exerço um cargo público, a primeira coisa que faço é cortar todos os gastos de representação. Eu fui ministro já há trinta anos, e não tive nem sequer verba de representação. No meu ministério é praticamente a mesma coisa. Nós nunca gastamos um tostão, por exemplo, em publicidade. Eu creio que [já] é alguma coisa, eu tenho um grande respeito pelo dinheiro público, eu sou alguém que na verdade dediquei toda a minha vida à coisa pública.

 

Rodolpho Gamberini: O senhor acha errado o governo gastar dinheiro em publicidade?

 

Celso Furtado: Bem, eu acho que o governo tem que pensar muitas vezes, e fazê-lo com muito critério quando aplica dinheiro em publicidade. Mas muitas vezes é essencial.

 

Rodolpho Gamberini: Quando, por exemplo?

 

Celso Furtado: Por exemplo, agora ele está dizendo: a Lei Sarney precisa ser conhecida. Não seria nada extraordinário que o Ministério fizesse uma campanha de apoio, para difundir o que é a Lei Sarney, porque é uma coisa de interesse coletivo. Nós não fizemos até hoje, estamos discutindo... [interrompido]

 

Rodolpho Gamberini: O senhor pensa em fazer isso?

 

Celso Furtado: Eu penso em fazer, mas provavelmente sem nenhum dinheiro do governo, penso em conseguir patrocinadores [entrevistado ri] que façam a coisa.

 

Rodolpho Gamberini: Usar a Lei Sarney para que ela seja... [interrompido]

 

Celso Furtado: É. Patrocinadores que cubram isso, porque nós não pretendemos tirar nenhum tostão.

 

Rodolpho Gamberini: Eu gostaria que o senhor respondesse agora a pergunta da Irene Ravache.

 

Celso Furtado: Vai, dona Irene.

 

Irene Ravache: Pois é, senhor ministro. Bem próximo aqui de o que o José Celso falou, e um pouco ali pelo que o Matinas iria perguntar para o senhor - aliás, ele chegou a fazer a pergunta - se dever-se-ia dar incentivo para galerias. Eu imagino [que], se eu estiver errada - você me corrija -, é porque a galeria por si só já tem seus próprios incentivos e ela vende seus quadros, então ela pode se pagar. Seria isso? Talvez não precisasse tanto.

 

Matinas Suzuki: Eu acho que tem um mercado de cultura no país e, se a Lei Sarney drena toda uma possibilidade de uma criação de um mercado que tenha existência autônoma, ela pode ter um efeito nocivo em longo prazo.

 

Irene Ravache: Sei. Bom, depois eu vou dizer porquê vem tudo junto. Eu estou com vinte e cinco anos de profissão na área de teatro. Fiz agora uma viagem pelo Brasil e estou absolutamente convencida de que nenhum movimento cultural - é horrível essa frase “absolutamente convencida”, dá um “peso” - poderá vingar num país da dimensão do nosso se vier totalmente divorciado dos meios de comunicação. Porque nesses vinte anos, se o governo não nos ajudou, nos prejudicou barbaramente. Nós tínhamos vontade de dizer: “Olha, não ajuda, mas também não prejudica.” E ele conseguiu fazer. Villa-Lobos hoje provavelmente teria uma grande dificuldade em fazer sua composição, não porque ele não teria hoje o talento que tinha, mas porque é muito difícil você ter ouvido acostumado a ouvir a beleza de Villa-Lobos, se você está massacrado - agora não é mais do Oiapoque ao Chuí, mas, enfim, nas nossas fronteiras - de manhã, de tarde e de noite por uma mídia direta em cima de que: “É esta música que você vai ouvir, é esta música que você vai consumir.” Então nós não temos mesmo mais uma cultura regional. E nós tínhamos, porque nós tínhamos uma produção regional que foi ceifada, porque não interessa. Essa produção fica muito mais barata se ela for feita no Rio, se ela for feita em São Paulo, e vendida e mandada em fitas cassetes por todo Brasil. Há uma lei em vigor que fala sobre isso, sobre essa produção cultural usando pessoas de cada região. Enfim, se você vai fazer [produção cultural], Recife não seria apenas uma receptora, uma transmissora, mas ela produziria os seus programas. Aí o senhor vai dizer: “Então você está falando de televisão?” Não, não estou falando de televisão. Estou falando de uma coisa chamada divulgação. Porque, sem o auxílio da divulgação, os meios culturais ficam atrelados. Porque a dona Irene bate na porta lá da firma X, e a firma X abre, sabe por quê? Porque o dono é [meu] fã, não porque o meu projeto é bom. Ele nem viu o meu projeto. Ele é fã porque ele me viu em televisão. Eu batia nas mesmas portas das mesmas firmas, e antes de eu ter a minha imagem vinculada nacionalmente, através de televisão, dificilmente eu era recebida. E [hoje] ele me recebe sem saber qual é o meu projeto. Ele está interessado em me receber. Claro que se você faz uma montagem teatral - e leva para Recife, leva para Fortaleza -, e ela é ruim, ela não tem um conteúdo, e com nomes televisivos, ela vai ter na primeira noite a casa lotada, na segunda noite a casa lotada, na terceira já diminui, na quarta diminui, provavelmente na quinta ela vai ter muito pouca gente. Mas o inverso também se dá. E isso acontece em todos os meios de comunicação. Por exemplo, você abre um jornal como a Folha, e eu fico muito espantada - porque eu acho que o primeiro caderno da Folha não tem nada a ver com o segundo caderno -, estão falando de dois países diferentes. O primeiro caderno o que faz? “Vamos valorizar o que é nosso” - denuncia toda espécie de paternalismo, fala de corrupção. O segundo caderno você só tem - e quem está falando, vamos abrir um parêntese, é uma pessoa absolutamente acarinhada inclusive pela Folha. A Irene Ravache é muito acarinhada pelos jornalistas, ela tem matéria -, mas por que a Folha pode ter uma matéria de página inteira com uma atriz norte-americana, que ninguém conhece, que até mesmo [dentre] os iniciados na classe poucos conhecem, e ela não pode ter uma matéria sobre uma atriz nordestina que é ótima e que está louca que alguém vá vê-la? Então, como é que a gente vai poder, desvinculado dos meios de comunicação, fazer uma revolução cultural, se nós temos um padrão? Se o padrão diz assim: “Não, eu quero aquilo que a tia viu.” É verdade, você sabe por que hoje está muito difícil montar um espetáculo com mais personagens? Porque todos nós viramos protagonistas, porque senão nós não temos verbas para montar um espetáculo pequenininho, de dois personagens. Não temos mais atores coadjuvantes, não podemos mais aceitar nenhuma produção inviável. O ator coadjuvante - o que é um ator coadjuvante? É aquele que vai fazer um papel pequenininho. E isso está vinculado aos meios de comunicação. Claro, o pessoal, só porque me conhece e provavelmente [me recebe] porque a mulher dele diz assim: “Ah, ela é legal, recebe ela...” Como é que fica esse casamento da produção cultural com os meios de comunicação? Desculpe-me, eu fui tão longa [na pergunta].

 

Celso Furtado: Realmente a senhora tem toda razão. É necessário um grande esforço para quebrar o eixo Rio-São Paulo, descentralizar e dar vida real a toda criatividade nacional, [em] toda parte. Nós temos no Ministério uma divisão, uma secretaria somente para apoiar a difusão. Tudo que seja, como nós dizemos, [para] democratizar o acesso à cultura, [em] toda a parte, isso para nós é muito mais importante de que qualquer outra coisa. Contudo, eu não posso ignorar que nós vivemos num mundo em que a tecnologia que penetrou profundamente no suporte da arte, condiciona grande parte da nossa própria vida. Eu chego em casa, lá tenho meu compact laser, tem a melhor música do mundo. Isso é o aspecto positivo, a melhor interpretação, o melhor da tecnologia. Por outro lado, essa tecnologia que cria isso, ela massifica e mesmo brutaliza uma grande parte da população, transformando em estrita consumidora passiva de cultura. Esses são os grandes desafios da sociedade moderna, por isso é que nós estamos discutindo aqui para enfrentá-los. E uma instituição como esta, que abre espaço e mostra o que a televisão pode ser, estar a serviço da cultura, já é um passo adiante muito grande. Agora eu diria à senhora uma coisa, que em todas as épocas houve os obstáculos [que] foram enormes àqueles que queriam inovar em cultura, ou que queriam ter legitimidade em cultura, ter uma cultura legítima. A senhora falou, por exemplo, de Villa-Lobos. Villa-Lobos aqui, nessa cidade de São Paulo, em 1922, quando foi apresentada a música dele, foi vaiado de todas as formas, porque quem tinha “ouvidozinho” acostumado a ouvir Chopin e outra música convencional da Europa da época, não podia nem suportar. E foi um escândalo, sacudiram até ovo podre para os que interpretaram violão aqui na cidade de São Paulo. Não era a grande indústria cultural, era o instinto natural de toda essa cidade de ser conservadora. A contrapartida disso - por isso que havia a ruptura, que se dava [a ruptura], por quê? Porque havia um homem de coragem, porque na cultura também é importante a coragem - como na política e tudo mais - para inovar, e não se deixar envolver e acomodar. Portanto, essa luta sempre existirá enquanto a cultura for uma coisa viva.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, uma pergunta de telespectador que foge também bastante [dos temas] - o senhor está olhando para o relógio, vamos rodar a roda mais rapidinho. Luis Carlos de Oliveira, da Associação de Alta Moda Brasileira: “Por que o governo brasileiro não apóia o estilista nacional, o desenhista de moda? O senhor acha que moda não é cultura?” E ele diz aqui: “Em todos os países, inclusive em Cuba, a moda já é considerada cultura, e a exportação dessa própria moda pode gerar recursos para o país.”. O que o senhor acha disso?

 

Celso Furtado: Eu tenho um grande respeito pela moda. Não é sem razão que eu vivi vinte anos na França e considero que uma das formas de expressão mais importantes de qualquer cultura é a vestimenta de seu povo. Quando nós olhamos nos povos, nas artes plumárias no Brasil, a maravilha que estava na vestimenta, era a forma de expressão mais significativa da criatividade, e hoje em dia isso [ainda] existe. Nesse campo, nós do Ministério da Cultura temos que estar preparados para apoiar qualquer iniciativa. Se surgir uma iniciativa cultural no campo da moda, nós daremos todo apoio.

 

Mílton Coelho da Graça: Ministro, o senhor falou ainda há pouco em livro, e me ocorreu uma coisa: existe um editor - não vamos mencioná-lo - mas existe um editor que tem agido junto a algumas estatais querendo usar a Lei Sarney para a compra de seus estoques de livros encalhados. E ele tem conseguido, segundo eu soube, ele tem até um certo sucesso junto às empresas estatais, porque as empresas estatais também têm direito a usar a Lei Sarney. E aí se cria uma diferença, porque a empresa do doutor Mindlin vai ter o seu julgamento, mas o julgamento do dirigente da estatal é um julgamento político. O ministro liga para ele: “Olha, ajuda esse editor aí que é meu amigo e tal.” Aí ele pega três milhões de cruzados e compra livros. Se o sujeito é amigo do ministro, é amigo do presidente, enfim amigo de grandes figuras da República, ele pode conseguir. O senhor tem mecanismo do Ministério para impedir esse tipo de tráfico da influência, essa má utilização da Lei Sarney?

 

Celso Furtado: Bem, eu não posso impedir as pessoas de terem amigos, inclusive de terem amigos poderosos, não é?

 

Mílton Coelho da Graça: Mas a má utilização da Lei Sarney, a má utilização dos amigos... [risos] [interrompido]

 

Celso Frutado: Vamos ver concretamente o que pode acontecer. Por exemplo, os editores doam livros ao Ministério da Cultura, ao Instituto Nacional do Livro. Agora, se a doação vem diretamente do editor, ou se vem de outra empresa - isso [pela] Lei Sarney -, nós não podemos discriminar, excluir um caso ou outro. O próprio editor pode fazer uma doação, ou então o senhor Mindlin pode dar um milhão de dólares a vários editores, comprar livros de vários editores e doar. O que nós não admitimos é que o preço seja o preço de rua. Primeiro: o preço terá que ser o da produção. Por exemplo, retiramos dele o preço de distribuição e, portanto, o livro de verdade é ao custo de produção. Segundo: não pode ser qualquer livro, tem de serem livros que tenham um interesse cultural - isso é um critério do Instituto Nacional do Livro. Mas se os livros são bons, que são ao preço de produção, e são doados para as bibliotecas públicas brasileiras, se isso é o resultado de amizades de A com B, não nos cabe examinar.

 

Milton Correa da Graça: Porque há uma diferença, ministro. O doutor Mindlin, quando tomar a sua decisão, ele está tomando a decisão do seu dinheiro, mas quando o presidente da estatal tomar essa decisão, está a tomando com o nosso dinheiro. Então é diferente essa decisão. Por isso eu pergunto se não há, se não vai haver um mecanismo de fiscalização diferente para as estatais em relação às empresas privadas, porque é uma tentação para a empresa estatal... [interrompido]

 

Celso Furtado: Ah, sim. Isso sim é outro problema. Por exemplo, o Banco do Brasil é uma empresa em que o governo tem a maioria das ações, mas é uma empresa regida pela Lei das Sociedades Anônimas. Ele tem lucros, nos procurou, e disse: “Nós temos X lucro de cinco milhões de cruzados disponíveis pela Lei Sarney. Dê-nos um bom projeto.” Nós demos as orquestras sinfônicas; eles apoiaram imediatamente. Não podemos evitar que eles apliquem na Lei Sarney, é uma empresa regida pelas leis das sociedades anônimas. Agora, se o governo mudar... Só o parlamento poderia modificar isso.

 

Rodolpho Gamberini: Nós estamos chegando ao final do Roda Viva, mas eu gostaria de fechar o programa com uma pergunta de telespectador que, depois da censura - aquela hora que eu lhe disse que era o tema preferido dos telespectadores -, o segundo tema colocado na preferência do público pelo telefone, foi o tema com o qual eu abri o programa, a economia. O senhor e a economia brasileira. Tem várias perguntas aqui, mas há duas que eu gostaria que o senhor respondesse de maneira sintética, por favor. O senhor Marcos Antonio Scavassa, do Jaguaré, [bairro de São Paulo], ele pergunta: “Por que o senhor é conivente com a política econômica atual, sendo o senhor um crítico de economia de governos passados, sabendo que a política econômica atual é tão cheia de falhas?” E uma segunda pergunta que sintetiza praticamente todas as outras. Senhor Homero Moreira, do Jardim Paulista, [bairro de São Paulo]: “Como ex-ministro do Planejamento, como é que o senhor vê a situação econômica do Brasil hoje?”

 

Celso Furtado: Bem, a primeira questão eu serei claro. A política do governo atual tem sido uma política de desenvolvimento, de crescimento, de emprego, de defesa da soberania nacional, e nunca no Brasil houve também uma política de distribuição de renda tão audaciosa como a do governo atual. Eu me orgulho de estar neste governo, porque conseguiu de verdade pela primeira vez unir desenvolvimento e distribuição de renda. As turbulências que se observam do momento atual, na verdade são turbulências que não ocorreram apenas agora, ou somente no Brasil. Evidentemente é preciso ser ingênuo para imaginar que uma economia moderna não atravessa por período de turbulência, exigindo novas decisões que terão de ser tomadas no governo brasileiro - pelo governo brasileiro para enfrentar essa situação. Portanto, eu digo categoricamente que estou num governo que pela primeira vez fez crescer e distribuir renda no Brasil, e que aumentou o emprego como nenhum outro, e que defendeu a soberania nacional lá fora nitidamente. Aí está a primeira pergunta. Agora, a segunda: não é um problema hoje em dia ser julgado do ponto de vista de planejamento. O Brasil tem hoje em dia uma economia que enfrenta problema de ajustamento internacional, esse é o problema maior que enfrentamos hoje. Temos uma economia muito fechada - isto é, com um coeficiente, uma participação do comércio exterior relativamente pequena -, [e] possui um forte desequilíbrio financeiro externo – a palavra comum [é] um serviço de dívida muito alto a realizar, servir. Portanto, esse é um grande problema que se coloca no Brasil de hoje. Não um problema de planejamento, que seria um problema de adequação de fins a meios. Portanto, esse problema o governo vem enfrentando com muita habilidade, tratando de negociar e de modificar as condições de negociação, mas encontrando enormes dificuldades externas. Essas dificuldades são reconhecidas por todos, até o Papa já saiu para dizer que essa é uma situação grave, e é mundial - não é apenas do Brasil. Portanto, o que nós esperamos é que a comunidade financeira e econômica internacional compreenda, assuma as suas responsabilidades e que saiba perfeitamente que criar mais e mais dificuldades ao [um] governo como o Brasil não é o caminho - nem racional, nem sensato, nem sequer justo.

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, o senhor acha que - na área econômica do governo brasileiro - o senhor aplaudiria um governo que, na área econômica, faz o seguinte com o país: toma o país em fevereiro de 1985 com uma inflação de 400% ao ano, baixa a inflação para zero durante alguns meses, e um ano depois a inflação está em 17%, segundo o ministro Funaro, ou em 25% segundo os banqueiros internacionais. [Dilson Funaro, ministro da Fazenda entre 1985 e 1987, e responsável pelo plano de estabilização econômico denominado “Plano Cruzado”] O senhor acha que a economia brasileira está bem?

 

Celso Furtado: Olha aqui, os banqueiros internacionais não têm nenhum direito, critério para dizer qual vai ser a inflação do Brasil. Porque eles, na verdade, são beneficiários dessa inflação, como são os banqueiros locais também. E a nossa inflação em grande parte é inflação de especulação. Portanto, aqueles que estão falando nesses coeficientes de inflação, nesses índices de inflação, são aqueles que realmente estão ganhando com a inflação - é o “Partido da Inflação”. E a luta a dar neste momento é contra o “Partido da Inflação”, porque a inflação evidentemente levará o Brasil à recessão. Esse é um problema a ser enfrentado, um problema de hoje.

 

Marco Antonio Lacerda: Ministro, o senhor está falando de política externa. Eu gostaria de perguntar ao senhor uma coisa: eu acabei de voltar de Cuba e constatei uma coisa muito interessante. Roberto Carlos é um ídolo mais popular em Cuba de que Fidel Castro. E voltando de Cuba fui ver o show de Roberto Carlos no Canecão, perguntei se ele gostaria de cantar em Cuba. Ele disse que sim, mas existem implicações. Conversando com empresário dele, o empresário disse que o maior público de Roberto Carlos no exterior são justamente os cubanos que vivem em Miami - os cubanos exilados. Se Roberto Carlos se apresentasse em Cuba provavelmente ele teria um boicote muito grande. Qual é a posição do senhor em relação a isso, neste momento que o Brasil está reatando relações com Cuba? O que deveria prevalecer nesse momento: a vontade do artista...

 

Celso Furtado: Perdão, trata-se de um problema pessoal dele e do seu gerente particular, do seu balanço no fim do ano, de quanto ele vai ganhar ou não. Nem eu e nem o Ministério da Cultura tem nada a ver com isso. [risos]

 

Rodolpho Gamberini: Ministro, muito obrigado pela sua participação neste Roda Viva. Muito obrigado a todos vocês que participaram. O Roda Viva volta segunda-feira que vem às nove e vinte da noite. Boa noite e até lá.

 

Celso Furtado faleceu, em sua casa, no Rio de Janeiro, em 20/11/2004, vítima de parada cardíaca. O presidente Lula decretou luto oficial por três dias.

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