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Memória Roda Viva

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Roberto Da Matta

24/5/1999

Ao longo de sua trajetória como historiador e antropólogo, Da Matta elaborou explicações sobre o heroísmo, a corrupção e o chamado "jeitinho brasileiro"

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Paulo Markun: Boa noite. Ele diz que o Brasil é o país que escolheu não escolher, que é o país do número três, do mediador. Entre o branco e o preto tem o mulato; entre o inferno e o céu tem o purgatório; entre a esquerda e a direita tem o centro. E está exatamente no centro do Roda Viva desta noite o antropólogo mais polêmico do Brasil, Roberto Da Matta. Formado em história e com mestrado e doutorado em antropologia na universidade americana de Harvard, Roberto Da Matta leciona há mais de doze anos na Universidade de Notredame, em Indiana, nos EUA. Já publicou onze livros, trabalhos que se tornaram marcos do pensamento antropológico brasileiro e referência para o estudo e compreensão da nossa realidade. A malandragem, o heroísmo, a corrupção, o futebol, a casa e a rua, as leis e os costumes. Traços da alma brasileira que compõem nossa intrincada teia social. O seu último livro, Águias, burros e borboletas, baseado na tese da antropóloga Helena Soares, é um mergulho no mundo mágico e profundamente brasileiro do jogo do bicho. O tema não poderia ser melhor.

[Comentarista]: Numa cultura em que todos ou quase todos sonham no máximo ganhar sem o menor esforço, o jogo do bicho entrou fácil na vida brasileira. Tudo começou no final do século passado, no Rio de Janeiro. O Barão de Drummond, dono do primeiro jardim zoológico no Brasil, teve uma idéia para atrair mais visitantes e garantir a manutenção do empreendimento. Cada ingresso vinha com uma figura de um animal, era sorteado um bicho por dia e o ganhador recebia um prêmio em dinheiro. A idéia pegou e em pouco tempo o que era sorteio virou aposta, dando origem a um jogo que se expandiu rápido, alimentado pelo sonho de se ganhar muito apostando pouco. Há mais de cem anos, o brasileiro vem fazendo a sua "fezinha" nesse jogo de azar proibido desde 1944, mas que se solidificou ainda mais na ilegalidade. Jogo ingênuo passou para a contravenção e se envolveu com o submundo do crime. Bicheiros espalharam sua influência por toda a sociedade, numa rede de corrupção que envolveu até mesmo autoridades e políticos, revelando uma face nada exemplar do cotidiano brasileiro. Por tudo isso o Brasil sem o jogo do bicho não seria o mesmo. Como o carnaval, o jogo ajudou a formar a identidade nacional na análise de Roberto Da Matta, que há trinta anos vem olhando a nossa gente, nossos malandros e nossos heróis, procurando explicar um país que aprendeu a apostar em águias, burros e borboletas, que aprendeu a apostar no capital especulativo da ciranda brasileira, mas que ainda não aprendeu a apostar em si mesmo.

Paulo Markun: Para entrevistar o antropólogo Roberto Da Matta, nós convidamos o carnavalesco Joãosinho Trinta, da Escola de Samba Unidos do Viradouro, do Rio de Janeiro; o professor Renato Janine Ribeiro, titular de filosofia da Universidade de São Paulo; a professora Paula Monteiro, diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e Pesquisa; o jornalista Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes; o repórter da TV Cultura de São Paulo Hélio Alcântara, que vai apresentar aqui as perguntas enviadas por você por telefone ou por fax e pela internet, e o jornalista Fernando de Barros e Silva, editorialista e crítico de TV do jornal Folha de S. Paulo. Este programa é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Professor Roberto Da Matta, boa noite.

Roberto Da Matta: Boa noite.

Paulo Markun: Queria começar pelo seguinte: mexendo aí, um pouco, com o jogo do bicho. O senhor acha que um dia ainda vai dar Brasil na cabeça?

Roberto Da Matta: A pergunta é óbvia: é claro que vai dar, já está dando. Eu acho muito interessante a pergunta, porque ela mostra, ela é uma pergunta recorrente que a gente sempre faz, não é? E ela mostra uma maneira de ver o Brasil, uma leitura do Brasil que é uma leitura curiosa, que em outros países não acontece, que é assim: o Brasil perdeu o trem da história, o Brasil é um país que pode dar certo. Eu acho que essa pergunta para uma sociedade é uma pergunta que talvez não caiba fazer, porque as sociedades existem e independem da gente.

Paulo Markun: O que a gente faz?

Roberto Da Matta: Depende da maneira como a gente lê. Se você achar que o Brasil está muito errado, então tem-se que fazer alguma coisa. Se você acha que é uma sociedade que tem coisas certas e erradas, quer dizer, é uma combinação e tem tido um processo histórico particular, enfim, com altos e baixos etc, mas que, evidentemente está chegando a uma certa modernidade, que também tem as suas singularidades etc, então a resposta seria: está dando na cabeça, não tem jeito, se não está dando na cabeça, está dando na nossa cabeça, isso que é o certo. Que é o que a gente vai tentar fazer um pouco um exercício coletivo aqui, porque quem sou eu para fazer um exercício individual?

Fernando de Barros e Silva: Você diz "uma sociedade com altos e baixos". O grande "baixo" dessa sociedade é a exclusão social. Ela se modernizou, [mas] ela tem características arcaicas ainda, tem coisas muito modernas, é uma sociedade basicamente industrial. Mas tem uma questão: grande parte da população não foi incluída no mercado, na cidadania etc. Esse, acho, é o ponto central quando o Markun pergunta se vai dar Brasil na cabeça. O senhor acha que, sob esse aspecto que eu acho decisivo, vai dar Brasil na cabeça? Há ainda essa possibilidade de essa sociedade ser menos excludente?

Roberto Da Matta: Fernando, deixa eu fazer um reparo à tese. Eu tenho analisado o Brasil distinguindo duas coletividades. Uma é o Estado nacional. Eu acho que o Estado nacional realmente tem excluído. O outro é a sociedade brasileira, é uma outra coletividade, é organizada em termos de outros princípios, tem uma lógica que é um pouco diferente. E as expectativas de quem fala da sociedade também são diferentes. Nesse sentido, mesmo mantendo uma hierarquia, ela tem incluído, ela não é exclusiva, ela é uma sociedade híbrida, ela junta, ela tem na ambigüidade um valor. Então é preciso ver como a gente lê essas coisas. O interessante, no caso brasileiro, é exatamente o fato de você ter duas lógicas, você ter essas duas coletividades e a leitura, a maneira como você se sente em relação a essa totalidade que a gente chama Brasil. Essa "realidade", com aspas, que é construída, não é uma coisa como uma pedra. Ela é construída por todos nós, é um diálogo, está certo? Existe uma recorrência de imagens, depende muito da maneira como você vê. Eu acho que esse é o grande desafio, a grande vergonha do Brasil é essa exclusão, quando você fala do Estado Nacional. Entretanto, eu acho que, nos últimos dez anos, eu acho que isso tem, quer dizer, a consciência da exclusão é muito grande. Eu acho muito difícil que o Brasil entre no século XXI com os mesmos mecanismos sistemáticos de exclusão [com] que ele entrou no século XX. A saída para o século XXI e a entrada no século XX é até um dado interessante para comparar. O pessimismo da entrada no século XX e um relativo talvez otimismo, uma certa esperança muito grande no século XXI, é muito tempo, mas toda as sociedades têm os seus pontos cegos. Eu aprendi nos últimos doze anos... eu aprendi, talvez, a ter um pouco mais de paciência com o Brasil.

Paula Monteiro: Você diz num artigo de 1998, um artigo de jornal, que algumas medidas políticas voltadas à modernização podem gerar exatamente o inverso, podem gerar efeitos antimodernos. Então eu te perguntaria se você acha que o governo Fernando Henrique [presidente do Brasil entre 1994 e 2002] se esqueceu de convidar o povo no seu modelo de transição democrática?

Roberto Da Matta: O Gilberto Freyre tem uma frase na passagem do Ordem e progresso (1957) que eu acho que vale a pena invocar. Ele diz assim: "a República, os republicanos mudaram tudo, mudaram os portos, os canais, o exército, a marinha, [mas] se esqueceram de preparar a sociedade para essas mudanças". Eu acho que, até certo ponto, isso vale para o governo Fernando Henrique. Eu acho que existe uma certa inércia relativamente ao poder. Eu acho que no Brasil é preciso fazer uma crítica e quem tem que fazer essa crítica são as pessoas que ocupam os cargos que são os cargos eleitorais, as pessoas que são os representantes, fazer uma crítica do que significa, inclusive, a categoria governo, menos talvez do que a categoria Estado. Porque a categoria Estado é uma categoria importada. A categoria governo, ela é ativa, o povo não fala de Estado, o povo fala de governo, ele não fala "o Estado nacional", ele fala "o governo é ruim", "o governo é bom" etc. Eu acho que precisava fazer isso, precisava fazer uma crítica. Eu acho que há uma certa inércia, no sentido de que as práticas do governo, as práticas das pessoas que se transformam em governo são práticas que precisam dar uma sacudidela, precisavam dar uma mexida. E o problema é dito por os jornalistas e por uma série de pessoas da comunicação. Entretanto quem sou eu para ser conselheiro do governo? Eu não tenho, eu não tenho a vontade de ser, eu não tenho a competência para ser, eu apenas posso dizer, isso é uma coisa que você pode sentir. Você evita uma dialética negativa se você comunica mais, isso é uma pressuposição, talvez seja uma pressuposição ingênua de a gente fazer, mas eu acho que é uma pressuposição que conta, porque se você não tem... se você não tem muita consciência, se você não aborda, no fundo é a questão da cultura, é a questão de que os antropólogos tratam, que eu mexo com isso, que é uma questão importante, que é uma questão da cultura. Se ela existe, se ela é considerada como alguma coisa que tem uma realidade concreta nas suas várias dimensões, com os seus limites, com a sua capacidade de iluminar determinados aspectos da realidade ou não, é um aspecto do simbolismo. Na pesquisa que saiu, eu vi rapidamente hoje, na revista Época, é muito interessante o papel do presidente. Tem muitos dados que são perturbadores, mas tem um dado curioso lá, que o papel do presidente como uma figura importante...

Paulo Markun: Quase 76%.

Roberto Da Matta: Exatamente. O papel do presidente é extremamente importante. Então, é uma questão... quer dizer, você olhar e ver o que você vai fazer e tomar as decisões, aí tem todo o problema das alianças políticas, que só uma pessoa que está naquela posição pode dizer.

Fernando Mitre: Roberto, você, muitas vezes, aliás, na segunda pergunta aqui neste programa você quase separou o Estado da sociedade, talvez até por questão de análise, e isso faz muito sentido, principalmente num país como o Brasil, onde o Estado é um Estado para poucos, é um Estado semiprivatizado. Já foi mais, mas é um Estado que não atende a todos, um Estado que muitas vezes confunde aquela fronteira entre o público e o privado, onde a figura do malandro costuma ganhar uma dimensão tão grande, porque nós temos o malandro simpático, o malandro do carnaval, o malandro da capoeira... Mas temos também aquele malandro que vive ali, entre a ordem e a desordem,  já numa relação pública-privada, se aproveitando do público como se fosse privado e privatizando o público. Nós temos aí tantos momentos em que isso fica tão claro. A CPI dos "anões" [ou CPI do Orçamento], por exemplo, foi o momento mais óbvio. Mas, afora esse momento, temos muitos outros. Recentemente, se discute muito essa questão do público e do privado também no setor financeiro: o que é público e o que é privado? Aquele trânsito quase livre por ali, onde se fazem fortunas etc... Uma questão de sistema, porque o sistema permite essas coisas. Mas eu pediria a você que fizesse uma avaliação do que deve ser o Estado brasileiro, do que se espera do Estado brasileiro, agora, nessa fase de modernização. A globalização está aí, problemas sociais tão graves e, no entanto, a redução do Estado é uma proposta que está na moda. Como é que você vê essa situação, quer dizer, o tamanho do Estado, a presença do Estado e a sua relação tão problemática com a sociedade?

Roberto Da Matta: Eu acho que uma das coisas que... quando a gente está falando em público e privado, aliás, eu não gosto dessa palavra, "privado", eu acho que a gente deveria falar em público e íntimo. Quando a gente está falando em privado, nós estamos falando em impessoalidade. Eu acho que continua, ainda, no Brasil, uma divisão relativamente radical... bastante difícil fazer uma ponte entre o pessoal e o impessoal, entre o particular e o universal, aquilo que vale para todos e aquilo que vale para mim ou que vale para todos, mas no meu caso é especial. Eu acho que o que se espera do Estado é que construa essa ponte. E uma das críticas que se pode fazer ao governo Fernando Henrique, e aí é culpa e não é, porque o governo do mundo está nas mãos da economia, a disciplina que controla o mundo é uma coisa que se chama economia. O Marshall Sahlins [professor emérito de antropologia e ciências sociais do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago], que é nosso colega na Universidade de Chicago, ele diz que no pessimismo sentimental, nós fomos expulsos do paraíso na nossa cosmologia, os homens são pecadores, são miseráveis. O Renato [Janine] não me deixa mentir, a visão do [Thomas] Hobbes [(1588-1679) teórico político, autor do livro Leviatã (1651)] é a pior possível. As paixões... se deixar o homem entregue às suas próprias forças, vai ser uma guerra de todos contra todos, aí, uma coisa terrível. Mas aí Marshall Sahlins diz: "Mas Deus foi caridoso, ele inventou uma disciplina chamada economia, nos deu a economia para melhorar essa coisa toda" [risos]. E a economia é exatamente parte desses pressupostos, e a economia, a partir do século XVII, passou a ser um instrumento fundamental do Estado moderno. Isso que existe hoje e que fez um monte de coisas espetaculares, quem sou eu para dizer que não existe isso, seria considerado o mais reles cavernal da história brasileira se não dissesse isso. Isso é a idéia de progresso e não posso contestar, mas a gente precisa balizar isso. Mas como? Tem que ter uma... digamos assim, uma consciência, tem que ter uma sensibilidade, porque o que o governo Fernando Henrique está propondo e que é revolucionário é uma passagem de um Estado patrimonial, onde o privado era englobado pela hierarquia, onde o impessoal e o universal não existia, o que existiam eram grandes personalidades, carismáticas ou não, os grandes malandros, que eram os grandes patrões ou que se transformavam em patrões... Uma visão do mundo inteiramente personalizada, onde nenhuma instituição tinha vida própria ou autonomia, porque tudo podia ser atribuído a uma pessoa, tanto para o bem quanto para o mal. Ou uma sociedade onde você tem uma coisa chamada economia de mercado, que é autônomo, que é auto-suficiente e atende às características do mercado moderno. E isso acaba se projetando para toda a sociedade. É uma moeda estável, você pode contar com ela como se fossem as palavras de uma língua, a gente não inventou. Eu não posso inventar a gramática portuguesa cada vez que eu falo português, então a idéia do liberalismo moderno é exatamente isso. E essa é uma transição cultural extremamente complicada e que várias vezes foi tentada no Brasil, o projeto de modernização da sociedade brasileira através do Estado sempre foi feito. Eu acho que tem que se colocar um pouco de consciência dessa mudança na sociedade, preparar a sociedade, idéia do Gilberto Freyre. Por que não disseminar determinados problemas para preparar a sociedade para enfrentar determinadas turbulências que virão com isso? Porque, afinal de contas, nós não estamos falando de um usurpador do poder, o sujeito foi eleito duas vezes com maioria absoluta, isso é importante lembrar sempre, maioria absoluta. Se nós somos favoráveis a esse projeto, as virtualidades, as implicações simbólicas desse projeto, o significado desse projeto no plano cultural, ele tem que ser colocado. O que se espera desse Estado é que ele seja mais justo, mais impessoal, que seja mais equilibrado em relação a certas pessoas. Eu fico, eu e mais milhões de pessoas ficamos estarrecidos, quando a gente lê o depoimento do diretor da Receita Federal dizendo que os bancos não recolhem imposto renda...

Fernando Mitre: 42%.

Roberto Da Matta: ...quando todo mundo paga. Então, qual é a resposta para isso? Essa resposta é importante, isso tem que vir de algum lugar. Nos Estados Unidos, que é uma sociedade onde você tem uma cultura liberal que está estabelecida há muito tempo, não há essa possibilidade. O presidente da República está presente, isso não se chama demagogia, há uma cultura da demagogia no Brasil exatamente quando você personaliza isso. Mas eu acredito que você pode fazer isso sem personalizar, sem cair na demagogia. Entretanto, eu não sou presidente da República e não sou assessor do presidente e nem tenho o direito de falar isso do presidente. O presidente é o presidente, ele faz o que acha que tem que fazer. Essa é uma visão, uma opinião. Eu acho que um dos problemas maiores é este: o que se espera do Estado? Há uma série de problemas técnicos que eu não tenho nem capacidade e nem competência para falar. Agora, uma das coisas que se espera é exatamente em relação à imagem do Estado, aos dramas que o Estado tem representado. Um deles é o que o povo chama de impunidade, que tem a ver com corrupção etc. O que o povo espera, nessa virada de século, é que você tenha um Estado que seja mais justo, mais forte, mais duro com os fortes e mais justo com os fracos, com aquelas pessoas que têm uma posição subordinada, acho que é essa a expectativa geral.

Renato Janine Ribeiro:  Professor, posso puxar um pouquinho para a sua obra?

Roberto Da Matta: Deve.

Renato Janine Ribeiro: Enfim, há uma pergunta que o Peter fez a você há 12 anos, quando foi para os Estados Unidos. É oportuno e um pouco maldoso da minha parte retomar esta pergunta, mas você, como cidadão e como cronista semanal, você defende essa melhora do país, cidadania, limpeza, uma idéia de cidadania muito voltada ao Primeiro Mundo, muito [calcada] nos modelos que deram certo. Mas eu acho que a sua contribuição importante como antropólogo foi uma reavaliação daquilo que aparece como desordem no país, a malandragem, o jeitinho, a Dona Flor [e seus dois maridos. Livro famoso de Jorge Amado analisado por Roberto Da Matta em sua obra A casa e rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil] que escolhe não escolher entre os seus dois maridos. E a pergunta que eu faço a você, aliás, retomando o Peter Fry [professor de antropologia da UFRJ] é: como você concilia essas duas coisas? De um lado você, como antropólogo e no seu trabalho original, você revaloriza tudo isso, de uma maneira de que, eu, pessoalmente, gosto muito. Você, como cidadão, faz uma outra leitura. Eu me pergunto se isso não tem a ver também com as perguntas que eu tenho feito a você nas outras conversas, por que nos Estados Unidos? Quer dizer, eu acho muito curioso, que a antropologia, que é uma das ciências sociais, talvez aquela que pede mais a proximidade do objeto, a residência perto do objeto, você sendo antropólogo, você esteja morando nos Estados Unidos. Eu pergunto se não é porque esse objeto – a malandragem, o jeitinho, a desordem brasileira– se tornou um objeto muito interessante para estudar, desde que seja a distância, um objeto insuportável de conviver com ele. Quer dizer, de certa forma há toda uma coisa que era muito interessante, a malandragem era uma coisa muito fascinante no Brasil, antes de ela, de certa forma, se generalizar, de certa forma, se universalizar no país a tal ponto, que se tornou insuportável? Como fica isso para você? Como você concilia a sua condição de cidadão, de cronista semanal, criticando isso e a sua posição de pesquisador e que você valoriza?

Roberto Da Matta: Não tem contradição. Não tem. Aí eu escrevo muito. Eu tenho defeito, eu escrevo muito. Basta você ler. Pelo contrário, quer dizer, eu acho que comecei com uma visão muito mais quadrada, porque quando escrevi... Carnavais, malandros e heróis é um livro que reúne insights de épocas diferentes. Foi um livro escrito durante a ditadura militar, então era um livro que tinha um diálogo, porque eu passei por isso, era contra a direita e outro contra a esquerda. Contra a esquerda não no sentido banal, trivial do termo, mas contra uma determinada maneira de analisar o Brasil que dizia, por exemplo, que é até muito curioso isso, porque o mundo dá muitas voltas... e as pessoas diziam que o Brasil não podia ser analisado, a não ser que você falasse das famosas classes sociais. Eu fiz um livro inteirinho que hoje está aí em não sei quantas edições, traduzido para o francês, inclusive, que é uma língua que consagra, traduzido para o inglês, para o japonês e que é lido por gerações e gerações em que eu não analiso através das classes. Eu digo: "classe social não é o ponto importante para entender o Brasil. Segmentos, sim, é importante". É um país que reúne uma ética dúplice, porque é um país hierárquico, mas ao mesmo tempo incorporou os ideais liberais da igualdade, da fraternidade e da liberdade que vieram com a Revolução Francesa e, sobretudo, com a Revolução Americana, a chamada Revolução Americana [também conhecida como Independência dos Estados Unidos], e que, até hoje, entretanto, fez isso.  E os Carnavais, malandros e heróis, entretanto, que é uma obra de jovem, eu oscilo entre a compreensão desse fenômeno de uma maneira positiva e falo: "esse é o nosso caminho". Você tem razão. Uma visão crítica. É isso, é uma pergunta do Peter Fry. Agora, hoje, eu não tenho a menor dúvida de que o hibridismo é vantajoso para o Brasil, o hibridismo é importante, ele não deve ser sufocado por um neoliberalismo que as pessoas estão aplicando. Na economia funciona, mas tem que ser preservado. Eu não quero que o Brasil se transforme nos EUA de jeito nenhum, porque eu moro lá há 12 anos. Eu não quero que as pessoas tenham vizinhos de 10 anos, como eu tenho, que não dão "bom dia" para as pessoas. Eu não quero que as pessoas vivam uma sociabilidade, como é o caso americano, que é um peso. Você não consegue convidar uma pessoa para jantar, você não consegue bater papo. Não existe a expressão "jogar conversa fora" nos Estados Unidos, porque teoricamente, nos Estados Unidos ninguém pode jogar nada fora, está todo mundo sempre trabalhando. E a hipocrisia é uma coisa dominante. Quer dizer, a vertente dominante é a hipocrisia, o culto da violência que existe nos Estados Unidos, eu prefiro um culto relativamente sofisticado e carnavalizado do erotismo, como a gente tem no Brasil, ao culto que a gente tem nos Estados Unidos. Então...

Paulo Markun: É melhor Carla Perez [dançarina brasileira do grupo É o Tchan, que ficou famosa pelo rebolado] do que Schwarzenegger [ator norte-americano, de origem austríaca, famoso pelos músculo que exibiu em vários filmes, também político tendo sido eleito governador do estado da Califórnia]? [risos]

Roberto Da Matta: Por favor, eu não quero perder o fio da meada. Então, a obra evoluiu e o que eu estou escrevendo hoje, semanalmente, no Jornal da Tarde, se você pegar, eu tenho que reunir os artigos dos últimos dois anos, a visão é muito mais positiva. Porque eu acompanhei, por exemplo, o escândalo [Bill] Clinton. A relação do Clinton com a Mônica Lewinski é extremamente interessante, porque eles resolveram, nos Estados Unidos, dar em "pizza", que é um assunto que nós achamos muito ruim [Clinton quando presidente dos EUA teve uma relação com a estagiária da Casa Branca que, por denúncia da mesma, provocou um processo que, após esta entrevista, acabou provocando a renúncia de Clinton]. As coisas darem "em pizza" é muito negativo. Mas, ao mesmo tempo, não é negativo, porque, se os americanos não tivessem feito uma espécie de uma contrafação hipócrita do seu legalismo calvinista, a República ia às "brecas" [ia parar; ficar parado] e o mundo talvez fosse com ela. Porque você já imaginou o Clinton destituído do poder, defenestrado, saindo da presidência: o que não aconteceria com as bolsas? Isso tudo foi medido. Eles resolveram que o melhor era dar "em pizza". Absolveram o homem integralmente, contra uma série de evidências que, na cultura americana... para nós pode ser besteira, mas lá não era, não é, deu "em pizza". Eu fiquei calculando, olha aí, é interessante para nós que a gente vê tudo como negativismo, mas um pouco de hibridismo, uma capacidade de um certo cinismo positivo, como diria o Nelson Rodrigues [(1912-1980) importante e polêmico dramaturgo brasileiro, autor de várias peças, entre elas Vestido de noiva, Engraçadinha, Perdoa-me por me traíres], uma pusilanimidade humana ajuda. O que me preocupa é a destruição de determinados padrões de comportamento, determinados valores que fazem parte de uma sociedade, que, talvez, no século, são poucas, talvez no mundo... é uma sociedade que está mais preocupada com a misericórdia, onde a solidariedade humana é tão importante quanto a justiça social. Eu acho que isso é um ponto a ser considerado. Não existe, com exceção de um teórico, que é um rapaz, um senhor morto, grande teórico, chamado Marcelo Mauss, que escreveu um livro chamado Ensaio sobre a dádiva, [forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1924)] que é a única pessoa que coloca o problema do dar e do receber que tem a ver com solidariedade. E, se você quiser estender um pouco mais e permitir essa extensão com misericórdia, que é um pacto social diferente do pacto contratualista, que propõe um pacto social diferente... A sociedade não começa com um contato, ela começa com uma troca entre as pessoas. O dar-receber-e-retribuir é tão fundamental ou mais fundamental do que o contrato entre indivíduos. São duas ficções, mas uma ficção se aproxima mais do caso do Brasil, o que eu acho que a gente não pode perder é isso, compreende? O resto a gente vai maneirar com instituições – é a polícia, é a universidade e não sei e tal –, mas isso é a base. E a minha visão do malandro não é bem o malandro, o problema é a malandragem, o problema é uma loja de navegação social. Eu não estou preocupado com o malandro, porque eu não sei quantos malandros existem no Brasil, eu não estou fazendo um trabalho de sociologia empírica, colada na realidade, não contei malandros, não fiz isso, é uma falta do meu trabalho, é uma ausência e eu fiz propositadamente. Eu escrevi um ensaio em que eu tentava discernir uma modalidade de lógica social, em que você... tanto a lei quanto à extensão dessa lei no seu limite, quase na passagem para aquilo que seria ilegal, é uma maneira, digamos assim, é uma prática social corrente, faz parte da prática social brasileira. Isso que eu coloquei no Carnaval, malandros e heróis. E tanto isso é interessante, que você pega essa pesquisa da Época e você vê os heróis brasileiros que estão lá. A dificuldade que a gente tem em falar em herói, porque herói aparece jogador de futebol, aparecem muitos cantores populares e aparecem alguns políticos, não aparece um escritor, não aparecem os heróis da sociedade burguesa clássica, um francês teria heróis obviamente diferentes, o público americano também, mas o brasileiro é difícil. E quando se pergunta o que é ruim no Brasil, a lista é tranquila, o que tem de ruim. Mas o que tem de bom? Tem 24% ou mais que não sabem, isso realmente é doloroso. Eu, com 62 anos de idade, com tudo o que a elite brasileira já estudou, que já foi para a França, já se gastou de dinheiro de Capes, de CNPq  e tal, e a gente não aprendeu a gostar do Brasil. Isso é uma coisa que me preocupa. Ainda é hoje uma babaquice, um sinal de catalepsia mental e intelectual declarar: “eu amo o Brasil, acho o Brasil um país maravilhoso. Apesar de tudo, eu gosto do Brasil”. E a elite brasileira não se encontrou em relação a isso até hoje. Nós estamos vivendo isso nos jornais, não temos modelo para o Brasil, não tem modelo para universidade, não tem modelo para coisa nenhuma, a economia está debatendo se eu sou desenvolvimentista ou se eu não sou, se sou desfavorável à sociedade. Ora, tenha a santa paciência, como se as duas coisas fossem exclusivas! Nós somos intelectuais, não é, Renato? Nós sabemos que esse negócio é uma questão de você dar um passo para trás, você vê a floresta toda. E, se você for reto, você não vê nada, só vê árvores. É o debate, é o grande debate nacional de desenvolvimento ambíguo ou não. Quer dizer, eu acho que há algumas maneiras talvez mais eficazes, mais imaginativas de atacar o governo, mas não dessa maneira.

Paulo Markun:  Roberto, nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes com o segundo bloco de Roda Viva.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com Roda Viva, hoje entrevistando o antropólogo Roberto Da Matta [...] O Joãosinho Trinta ia fazer uma pergunta, mas antes eu vou passar a palavra para o Hélio para ele fazer perguntas dos telespectadores.

Hélio Alcântara: Professor, aqui as perguntas giram mais em torno da violência na sociedade brasileira. Agora tem duas aqui muito interessantes. Uma do Fabrício Romani, não sei de onde ele é, é um e-mail, ele perguntou: "como você vê a figura do malandro e do otário em relação à consciência da nossa realidade e da nossa cultura?" E uma outra do Hélio de Lima Carvalho, ele é de São Paulo [e] pergunta: "Macunaíma é um retrato ou apenas uma caricatura da alma brasileira?"

Roberto Da Matta: Eu sugeriria que os dois, com a permissão, a devida vênia das pessoas que não são narcisistas, mas eu não consigo ser completamente, que leiam o meu livro Carnaval, malandros e heróis, porque eu usei a questão do malandro, eu fiz essa oposição de três tipos ideais: o malandro, o "caxias" e uma outra figura, que eu considerei importante, que é o renunciador, o renunciante, a pessoa que sai completamente das regras. O caxias, completamente do lado de dentro, o cara que obedece a todas as regras, não é a toa que o caxias é patrono do exército, é um termo da razão da prática popular, do vocabulário popular. O malandro fica no meio, manipulando até certo ponto o sistema e todos nós, e o renunciador, que todos nós somos, praticamos essas três coisas. Tem determinados momentos em que você está completamente fora da sociedade. Por exemplo, no enterro de um amigo, quando morre o Dias Gomes [(1923-1999) escritor, teatrólogo/dramaturgo (autor do famoso O pagador de promessas - filme e peça de teatro) e autor de telenovelas de formato revolucionário, como O bem amado que ficaram famosas na Rede Globo, foi casado com Janete Clair, também importante novelista], que a gente fica naquela posição de "poxa vida, não vale nada." A malandragem, você manipula as regras de um jeito, faz parte dessa malandragem, é o lado, digamos assim, violento, você querer ultrapassar a lei etc. E o outro lado, que é o aspecto, eu analisei isso, equacionei três formas de ritualizar o Brasil que eram nacionais, o carnaval, as paradas militares e as procissões, e construí um modelo representativo do Brasil. Uma coisa que, ao mesmo tempo, tem um certo poder evocativo é também um esquema de uma fragilidade muito grande, eu sou o primeiro sujeito a ter consciência disso. Na época em que eu escrevi e falava disso, na década de 1970, eu tinha um entusiasmo muito grande, eu achava que estava realmente... Hoje, mais velho, o tempo passou e tal. Entretanto, eu acho que serve como um modelo que se aproxima muito de certas concepções brasileiras, no sentido de que elas são populares, de que elas permeiam várias camadas. Elas não são modelos de um segmento só, ela tem uma penetração muito grande. Eu diria que o Macunaíma é um livro extremamente importante. Eu acho que meu esquema ajuda a desvendar o Macunaíma, ajuda a desvendar outros hérois da sociedade brasileira. Muitos heróis de Machado de Assis [(1839-1908) maior escritor brasileiro do século XIX, fundador da Academia Brasileira de Letras. Suas obras mais importantes são os romances Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899)], exatamente porque o Macunaíma tem esse aspecto do herói que não tem nenhum caráter, que seria o protótipo do modelo, o paradigma do malandro, do sujeito, desse herói que é capaz de fazer qualquer coisa, com todo o lado positivo que vem dessa posição e com todo o lado negativo. Você pode dizer para mim, o telespectador: mas isso existe em todas as sociedades? Não existe, porque quando você começa a percorrer outras sociedades, sobretudo aquelas que foram capazes de realizar melhor esses modelos que nós estamos perseguindo com tanta ânsia há tantas gerações, que é esse modelo da modernidade – modelo burguês em que a sexualidade é reprimida–, essas figuras se transformam. O malandro nos Estados Unidos é simplesmente um absurdo. Se você falar nos Estados Unidos que você é malandro, você pode até ser denunciado depois, pode ser preso, pode perder o emprego, não existem nos Estados Unidos essas figuras de retórica, esses tropos culturais, porque lá ou é ou não é. A figura do mulato não existe nos Estados Unidos. Eles não são cegos, mas não existe: ou você é preto ou você é branco. Se você for gay, você tem que dizer que é gay e, provavelmente, depois que você falou, entrar num clube e não pode sair mais do clube. No Brasil não é assim, existe uma maleabilidade maior, existe menos essencialismo nas definições. A pergunta que a gente deve fazer é: qual será o grande desafio para a elite brasileira nesse século? Será que a gente pode construir isso como uma vantagem? Será que essa é a mensagem do Brasil ou não? A que nós viemos? Tem 500 anos o troço, não 50 anos. O Brasil não é um país novo, jovem, eu estou ouvindo isso desde que eu era garoto. Então, essas perguntas são as perguntas que eu fiz, eu não tenho uma resposta definitiva, eu tenho muito mais perguntas do que respostas.

Joãosinho Trinta: Roberto, no livro Carnavais, malandros e heróis, você faz uma pergunta "por que o mundo brasileiro não se transforma incessantemente num carnaval? Não dos perpétuos desfiles, mas o do intenso gozo da criatividade, do encontro e, sobretudo, da liberdade?" A pergunta que eu faço é a seguinte: quantos políticos, quantos intelectuais, quantos empresários ou quanto alguns leram e entenderam essa sua pergunta?

Roberto Da Matta: Eu fico feliz que você esteja aqui. O Joãosinho tem uma frase que é lapidar: "quem gosta de miséria são os intelectuais". No momento em que ele falou isso, absolutamente perfeito, não sei se hoje esta frase ainda teria o mesmo impacto.

Joãosinho Trinta: Tem, tem sim.

Roberto Da Matta: Eu não sei, eu acho que essa pergunta você tem que fazer... eu vou dizer uma coisa, a minha autopercepção é uma autopercepção muito curiosa. Eu sou um professor, eu gosto muito de escrever. Aliás, eu preciso escrever por uma questão de sanidade mental, porque se eu não escrever eu enlouqueço. Então, toda semana... Eu dou graças a Deus que o Mitre foi uma pessoa que me propôs escrever para o Jornal da Tarde, depois ele saiu, voltou e saiu de novo...

Fernando Mitre: Não, estou lá ainda, só que como colunista.

Roberto Da Matta: Como colunista. O Mitre me convidou e é bom, porque eu sou obrigado, toda semana, eu tenho que praticar uma coluna, tenho que escrever uma coluna. Então eu escrevi muito, escrevi essas coisas. Eu não sei por que a penetração do meu trabalho entre determinadas... eu não sei. Porque uma coisa é você... o editor falar para você "eu estou muito feliz, o seu livro vendeu, estourou em tal edição" e a leitura, porque comprar o livro é uma coisa, ler o livro é outra, meditar sobre o livro é outra coisa mais complicada. Quem se deu ao trabalho de escrever o livro – e algumas pessoas que estão aqui nessa Roda Viva já fizeram esse exercício – sabe bem disso. E o primeiro livro que a gente escreve é muito curioso. O primeiro livro que a gente escreve, a gente acha que vai mudar o mundo, que todo mundo vai ler e, depois que você escreveu quatro, cinco, você chega à conclusão que é exatamente esta: o escritor, seja ele ficcionista ou não, ensaísta, sociólogo, seja ele quem for, o escritor que tem os seus livros debatidos, não só lidos, comprados, mas lidos e debatidos, que levam as pessoas a fazer uma reflexão, é um homem feliz, é o equivalente àquele cara que diz que não tinha camisa, é o cara que é o mais feliz do mundo [Da Matta se refere à fábula em que, para curar um rei doente de melancolia, médicos indicam que o monarca vista a camisa de um homem feliz. Quando, porém, a comitiva real encontra, no campo, um homem que se considera feliz, descobre que ele não tem camisa nenhuma]. Eu não sei dessa penetração. Eu, na área das ciências sociais, eu sei, porque eu faço conferência, tenho uma presença, graças a Deus, muito grande, muito forte aqui no Brasil, sou convidado para falar para platéias de universitários, falo muito para universitários. Vejo a reação dos jovens em relação ao meu trabalho: é muito positiva, lêem, discutem. Em relação aos, digamos assim, aos meus pares, sou muito respeitado, não tenho do que reclamar. Mas, se você me perguntar como as pessoas entenderam essa pergunta, eu não sei. O exercício que eu fiz com o carnaval... e é bom que você esteja falando nisso, eu não sou especialista em carnaval, eu nunca fiz uma pesquisa sobre carnaval, como o carnaval se organiza etc, outros colegas meus estão fazendo isso melhor do que eu. Eu acho que eu fiz uma coisa importante, eu chamei atenção, eu dei, digamos assim, estatuto intelectual e discuti as implicações culturais e políticas de um fenômeno nacional que, até a publicação do meu livro Carnavais, malandros e heróis, não tinha sido devidamente investigado pela academia brasileira, pelos universitários brasileiros. Tinha sido falado aqui e ali e era objeto de uma reflexão que a gente chama de "folclórica", embora respeitável, não era uma reflexão tão respeitável assim, e de alguns "historiadores" com aspas, que eram mais jornalistas do que historiadores. Eu fiz uma reflexão tentando não repetir isso. E, depois, tem algumas pessoas que me acusam de não ter feito uma história do carnaval. Ora, era exatamente o que eu não queria fazer. O que eu queria era chamar atenção e tentar demonstrar no meu livro era que havia determinados enredos coletivos, havia determinadas ocasiões de congraçamento coletivo – e o carnaval era uma das mais importantes, no caso brasileiro – que eram cíclicas, eram recorrentes e eram muitos fortes. E, obviamente, era uma janela importante para você entender isso que se chamava de Brasil. Então, em vez de usar a formação histórica do Brasil, a economia brasileira, a literatura, que são áreas nobres, digamos assim... Se a gente considerar que a sociedade é um castelo, uma casa, são as portas principais, eu entrei pela chaminé, melhor ainda, entrei pelo porão, porque o carnaval não deveria ser levado à sério, porque é assim que nós consideramos o carnaval e eu levei o carnaval à sério e com isso eu acho que eu descobri algumas coisas interessantes e abri portas para outras pessoas, que, inclusive, corrigem de maneira muito correta o meu trabalho, mostrando defeitos, mostrando lacunas. Mas fizeram isso depois que eu mostrei que o carnaval valia a pena ser pensado. Valia a pena refletir sobre ele. Então, é isso. O que o carnaval representa? O carnaval é a utopia brasileira. O carnaval, certamente, é a maneira mais inocente, é a maneira mais espontânea, se é que tem alguma coisa espontânea, mas com aspas, né, é a maneira mais explícita que nós falamos de nós mesmos positivamente, onde a criatividade se abre, onde você tem uma comunicação aberta, direta entre os porões da sociedade brasileira e as elites. E você tem inversões maravilhosas, porque você tem as autoridades naqueles camarotes que são patrocinados por multinacionais vendo as empregadas domésticas desfilando. Eu estava vendo, em alguns desfiles a que eu assisti, porque eu fiz pesquisa e assisti obrigatoriamente a alguns desfiles, tomando nota e etc. E um amigo meu, um assistente me disse: “Escuta, mas esse pessoal que está na bateria, eles estão brincando ou estão trabalhando?” Isso é uma pergunta interessante. Evidentemente que eles estão brincando, porque eles não estão trabalhando para o patrão, eles estão trabalhando para o seu grupo social. O carnaval tem a capacidade de deslocar esses eixos hierárquicos, esses eixos organizacionais que organizam e sociedade brasileira e que fazem parte de um cotidiano massacrante para a maioria dessa população. Como o Fernando falou, o carnaval provoca um exercício de inclusão cósmica, criativa etc. E qual é a importância disso? Porque o Brasil tem o aval sociológico cultural de ser o grande, o Brasil encarna, o Brasil é o porteiro de tradições que vieram da idade média, que têm uma história profunda na mentalidade acidental. O Brasil tem todas as vertentes carnavalescas que foram populares na Europa e que hoje, na Europa, existem em apenas alguns países. Eu tive a sorte, o privilégio de ver o carnaval em Nice [Paris], estive lá em Nice, convidado pela prefeitura de Nice, a quem eu até hoje agradeço, e fiz uma conferência lá em Nice e depois de assistir ao carnaval de Nice. Eu, às vezes, eu falo muito, né? [risos] Então, é um problema. Então me perguntaram: como é que é o carnaval no Brasil? E eu falei assim: uma procissão em São João Del Rei é mais animado do que o Carnaval em Nice. E nunca mais me convidaram, eu nunca mais fui à Riviera.

Joãosinho Trinta: O bojo dessa minha colocação, o que eu gostaria de saber mesmo foi o que o Janine me antecedeu, porque eu imaginava que, talvez, a não-ressonância de todas as suas idéias no Brasil tenha lhe transferido para os EUA. Então eu me perguntava: será que o Roberto não está cometendo um pecado de omissão? É uma das cabeças mais brilhantes que nós temos aqui e está nos Estados Unidos, quando aqui o Brasil está precisando de homens brilhantes!

Hélio Alcântara:  Aliás, professor, só pegando uma carona, uma telespectadora aqui pergunta se a paciência que o senhor tem com o Brasil é porque tem o pé nos Estados Unidos, se tivesse os dois pés aqui já teria perdido a paciência. [risos]

Roberto Da Matta: Eu fico exatamente assim, eu fico impaciente. Bom, eu vou lhe dizer. Olha, Estados Unidos, primeiro ponto, nós somos, agora eu tenho que atacar com uma outra teoria. Primeiro ponto... primeiro, eu não acredito, eu comecei a desmistificar, eu não acredito muito nesse negócio de que o Brasil precisa das pessoas, entendeu? Eu ponho um grão, um grão, não, eu ponho uma tonelada de sal. Esse negócio de dizer: "o maior antropólogo"... Nós temos uma discussão no Brasil que é secular: quem é o maior político brasileiro, quem é o maior jornalista brasileiro? Eu acho que está na hora de enterrar esse negócio. Esse troço já acabou. O mundo hoje não é mais o Brasil. Eu vou dizer outra coisa também interessante: eu, hoje, exatamente pelo fato de fazer a ponte entre Estados Unidos, onde eu trabalho, e o Brasil, onde eu também trabalho quando venho, mas exatamente por estar situado na intersecção dessas duas sociedades e culturas eu me sinto mais brasileiro do que eu jamais me senti quando eu estava só aqui. Por isso estou falando, nos últimos 12 anos a minha percepção mudou muito em relação a uma série de fenômenos. Por exemplo, esse negócio da paciência é o seguinte: o Brasil é um país terrível, tudo dá errado, e os Estados Unidos? Eu moro lá e quantos meninos de 17 anos compram armas e atiram nas escolas e você vê na televisão, o desespero é o mesmo. Tem gente que acredita, você está lá fora, as pessoas não sofrem. A inveja acadêmica, que o Renato conhece bem, a Paula conhece bem, a inveja do sucesso nas academias existe nas universidades americanas. A patronagem, o clientelismo de você colocar um colega na universidade aqui e fazer uma carta de recomendação ali, o sistema universitário americano é só isso, são um conjunto... são redes de simpatias e de antipatias. As resenhas são tão injustas quanto aqui. E lá é pior ainda, porque, como o sistema é mais integrado, o sistema é mais perfeito. O sistema é aquele sistema que nós, nas nossas idealizações, gostaríamos que tivesse [no Brasil]. Se um jornalista, digamos, da Folha de S. Paulo americana levasse um "pau" de um professor acadêmico de Princeton, ele acaba com a carreira desse jornalista. Ele fica desmoralizado, mas ele não fica desmoralizado por um, dois, três meses como é aqui. Não, ele se desmoraliza de vez, porque a autoridade está na universidade mesmo e os americanos acreditam nisso. O diretor é o cara mais inteligente enquanto ele é diretor. Agora, no dia seguinte ele não é mais nada, são culturas diferentes. Então, quando você está lá, você faz essa experiência de ir para esse lugar e experimentar e ter essa vivência. Não como estudante, que eu fui, não como turista, porque o turista, nós sabemos, o turista, na realidade, ele não sai de São Paulo, porque o turista fica num grupo em que todo mundo fala português. Vai, obviamente, à Disneylândia, compra aqueles bonecos de Mickey Mouse e Pato Donalds, relógio Cássio, aquele tênis Nike, traz aquelas sacolas de coisas para o Brasil e acha que conhece os Estados Unidos. E fala "eu não posso mais beber água de São Paulo, porque a água de Miami, o papel higiênico de Miami é uma maravilha" [risos]. Quer dizer, é diferente de você trabalhar lá. O que acontece quando você trabalha lá? Você trabalha lá, você está no cotidiano, você começa a ver: o negócio é diferente. Há igualdade, sim, mas existe uma coisa chamada preconceito que tem aqui também. Mas lá também tem, eu sou “spanish”, eu não sou americano, eu não tenho olhinho azul e sou loiro, eu não tenho nome... O meu nome termina em vogal, o Frank Sinatra [cantor] dizia: "o meu problema é que o meu nome termina numa vogal". Nos EUA é complicado, se terminar em consoante é melhor. Prat é melhor que Sinatra, o meu nome é Da Matta, o cara olha para mim, aí eu falo inglês com sotaque. Você, numa conferência, falando uma língua estrangeira, tem certas palavras que são difíceis. Dá nervoso, imagine esse problema em inglês ou em francês? É difícil e você ficaria mais enrolado, você é um "peixe fora d’água", eles te pegam por aí, entendeu? E existem os fenômenos da competição e aqui no Brasil existe competição, a gente quer que tenha mais competição, é importante a competição. Lá só tem competição.

Fernando de Barros e Silva: Teria várias perguntas, eu vou pegar uma que eu acho importante, eu gostaria que você retomasse e explicasse, não sei se todos os telespectadores sabem que você apoiou a monarquia durante o plebiscito. O que te levou a apoiar... porque isso, em São Paulo, não havia nenhum intelectual em São Paulo que não fosse republicano, isso seria um disparate e no Rio não. Eu queria saber em que medida [essa atitude] está ligada a uma tradição acadêmica do Rio, o José Murilo de Carvalho [historiador, autor de Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, livro que trata da ausência do povo na proclamação da República. Os populares teriam assistido "bestializados" ao movimento, algo que parece ter conseqüências contemporâneas sobre a forma como o poder é exercido no país], um intelectual monarquista...

Renato Janine Ribeiro: Não, o Murilo não era monarquista e desmentiu isso há pouco tempo. Ele propôs a discussão, mas ele disse que não estava defendendo a monarquia.

Fernando de Barros e Silva: Era... enfim, deixou em aberto a posição. Aqui era uma coisa muito identificada com a TFP [Tradição, Família e Propriedade, grupo de direita vinculado à Igreja Católica, radical nas propostas de comportamento reliogioso e social, que promoveu apoios à ditadura militar e continuou atuando mesmo depois da abertura política. Um de seus membros famosos é da família real brasileira] e com a extrema direita. Não estou defendendo São Paulo, não, só estou tentando caracterizar o debate. Por que a sua defesa da monarquia e em que medida está ligada com a sua obra teórica? Eu acho que, em alguma medida, está, porque tem uma defesa da tradição, uma certa visão da tradição e eu acho, talvez, que essa defesa da tradição é um pouco idealizada, na medida em que a escravidão não tem muito espaço na sua reflexão. São 300 anos de escravidão, já que você falou em 500 anos de Brasil. Enfim, são várias questões aí, e em que medida essa idealização leva você a adotar... por exemplo, levou você a adotar a defesa da monarquia em 1992, 1993?

Roberto Da Matta: Primeiro, eu não sou monarquista. Segundo, não fui monarquista, mas eu fiz uma experiência cultural. Resolvi escrever defendendo a monarquia para ver o que ia acontecer. E, realmente, aconteceu muita coisa, porque o teste da liberdade individual...

Fernando de Barros e Silva: Muita gente defendeu a monarquia.

Roberto Da Matta: Como você está dizendo, escandalizou em São Paulo, né? Agora, se você está falando que eu idealizei a tradição e que tal idealização da tradição democrática ou da tradição socialista é a mesma [daquela] feita por alguns intelectuais de São Paulo? É a mesma baboseira da outra. Só que a minha, pelo menos, tinha, digamos assim, fundamento em ré, para usar uma linguagem clássica. Por quê? O que eu defendia? Eu defendi o seguinte: eu achava que, se a sociedade brasileira realmente tinha uma vertente hierárquica, e os eventos, depois, não me deixam mentir que tem. Ou não tem? Tem, a gente gosta. Por que um cara como o Antônio Carlos Magalhães [(1927-2007), empresário e político baiano com influência muito grande em seu estado, figura de sustentação dos governos militares, marcado pela pecha de usar métodos coronelistas na aquisição e condução do poder, continuou influente nos governos pós-abertura política] faz sucesso? Essa é a pergunta. A gente gosta do personalismo, a gente gosta do durão e tal. E qual é a cobrança em cima do Fernando Henrique? É que ele não faz isso, ele se recusa a fazer isso, porque o presidente é isso, porque o presidente é aquilo, todo mundo fica... porque a gente gostaria de ter um presidente que fosse democrático e autoritário, no sentido de que ele demonstrasse que ele sabe realmente para onde o Brasil vai e não faz isso, ele se recusa a fazer, não sei quais as razões – tem que perguntar a ele. Mas foi isso que eu fiz: uma experiência de liberdade. Porque eu fiz um teste e foi junto com o Otávio Velho, com o José Murilo, com o Luiz Fernando Duarte, colegas meus do museu. Uns apoiavam mais, cada um tem uma personalidade diferente, tem motivações diferentes, não me cabe falar em nome deles.

Paulo Markun: O senhor votou a favor da monarquia?

Roberto Da Matta: Sabe que eu não me lembro? O problema para mim não era... Você está entendendo? Porque, no Brasil, este que é o ponto: você é isto ou é aquilo. E não se trata disso. Para mim, era um debate público, é interessante. Entendeu? Então, a resposta que eu posso te dar é essa. Você pode me dizer: "meu Deus do céu, que horror".

Fernando Mitre: Roberto, se discute no Brasil atualmente – atualmente não, já há anos – a reforma política e ela não anda, está parada. Eu gostaria de fazer uma pergunta sobre um dos itens da reforma política proposta, que é o voto distrital?.Voto distrital é aquele que aproxima o eleito do eleitor e isso pode criar vários tipos de relação, digamos. Pode [fazer] voltar um mando coronelista em certas regiões ou pode criar perspectivas de críticas mais fortes entre o eleitor e o eleito. Mas o fato é que atualmente nós temos um sistema que não funciona, o eleitorado e os eleitos não têm um diálogo, isso não funciona. Há um paternalismo em véspera de eleição, há uma deformação completa da idéia da representação e o sistema já provou que é muito ruim. Quando se trata de votar matéria importante no congresso é uma coisa horrorosa, uma briga terrível, aquela coisa da compra de votos, são episódios que nós conhecemos. O que você acha dessa questão da reforma política? O que você acha desse sistema político nosso? O modo como se vê o político no Brasil, como o eleitor e o eleito se relacionam. Você acha que nós temos possibilidade de aperfeiçoar isso através da mudança do sistema ou temos que mudar o comportamento ou esse comportamento leva mesmo a essa deformação? Como é que você vê isso? Você tem mesmo uma idéia da deformação crítica dessa questão?

Roberto Da Matta: Eu não tenho uma visão fechada sobre isso, eu não sei. Eu realmente não sei. Eu posso desenvolver, mas não tenho idéia, eu acho que uma coisa que eu sinto, que eu acho que é patente, é que a gente faz muita experiência. Aliás, quem diz isso melhor do que eu, diz com mais autoridade do que eu, é Alberto Richard num artigo interessante. Na América Latina, uma das características do sistema político latino-americano é a quantidade de sistemas políticos que a elite foi capaz de fazer. Eu acho e comentei isso em Contos de mentiroso, um livrinho pequeno que escrevi, quando eu falo da inflação e cultura da inflação, eu acho que as elites podem fazer essas experiências todas, exatamente, porque a sociedade é muito forte. Razão pela qual eu faço, eu acho que é importante, heuristicamente, para propósitos analíticos distinguir a sociedade moderna, que uma é a coletividade moderna. O Estado nacional e a outra, que é a sociedade, que não é moderna, evidentemente, mas, enfim, então, eu acho que é uma impaciência muito grande, um "mundancismo" muito grande, que evidentemente atende a determinados interesses de determinadas pessoas. E eu acho que tem que ficar um pouco em certos modelos para ver. Eu esperei passar uma, duas, três gerações, mas, mais importante do que isso, é justamente o bojo dessa discussão que você está colocando. O que é isso? É justamente preparar a sociedade para essas coisas. Um dos choques que eu tenho, quando eu faço a transição e volto para o Brasil depois de dois meses, depois de menos de dois meses que eu venho para o Brasil, é o trânsito. E o que é o trânsito, senão um problema profundamente democrático? Eu estou até pensando em escrever um livro sobre isso. O que é a miséria do trânsito brasileiro, senão a total ausência de comunicação entre legisladores e o povo que tem automóveis? Nós, que temos automóveis, porque o trânsito coloca um problema essencial e fundamental que nós estamos debatendo aqui, tudo o que falamos aqui, porque você tem a isonomia perante os sinais, teoricamente perante os pedestres, perante os outros automobilistas, o fluxo de trânsito, mas na cabeça dos povos que estão dirigindo não existe essa percepção, porque eu sou superior ao outro, eu tenho um carro melhor do que o dele – "olha o imbecil" –. Você faz isso, eu faço isso e nós fizemos um Código de Trânsito novo e não houve... Alguns anúncios de televisão, assim, poucos, mas não houve um debate nacional, não se aproveitou a oportunidade para se preparar a sociedade relativamente para isso. No fundo, é um problema de como ocupar o espaço público, que é uma questão fundamental da sociedade moderna e da sociedade democrática. Se a gente ler sobre modernidade, justamente o que caracteriza a modernidade é a ocupação espacial, entre outras coisas, do espaço público, porque o espaço público não pode ser ocupado, evidentemente, por alguns: ele é de todos. Nos Estados Unidos tem uma coisa curiosa: é proibido por lei, em muitos lugares, você ficar parado conversando. Você não pode ficar parado conversando, você tem que ficar em fluxo, as ruas são usadas como meios para fins, o que distingue uma rua americana de uma rua brasileira e do mundo mediterrâneo. Não estou dizendo que tem que acabar com isso, não, porque isso tem aspectos simbólicos importantes, as praças, a gente sentar para tomar um chopp, isso é importantíssimo, mas quando se trata de fluxo de automóveis e, sobretudo, de respeito à vida, da proteção à propriedade e de criar uma sociedade que seja mais tranqüila e, portanto, mais "civilizada", com aspas, o trânsito é fundamental. Nós vivemos um debate e não foi problematizado. Eu, quando escrevi na Folha de S. Paulo, criei um personagem, inventei um personagem, chamado Richard Monvert,que era especialista em trânsito. Escrevi dez artigos e esses artigos foram a base desse livro, em que eu dialogava, porque eu estava falando muito de Brasil, como sempre, e eu botei na boca de um americano e recebi telefonemas curiosos, porque eles queriam conversar com o Richard Monvert, não queriam conversar comigo. Eu tenho a impressão de que, se o pseudônimo do meu livro fosse em francês ou em inglês, eu teria vendido um pouquinho mais [risos].

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo e o Roda Viva daqui a instantes está de volta.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o antropólogo Roberto Da Matta. O Hélio começa com perguntas de telespectadores.

Hélio Alcântara: Estou com perguntas aqui de tudo que é lugar do país, estou com perguntas de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Ceará, Rio de Janeiro também, e eu vou tentar resumir aqui três numa só, que é em relação aos seus livros e, especificamente este: Águias, burros e borboletas. A Cláudia Rodrigues, de São Paulo, diz o seguinte: "seus livros são lidos somente por elites e como faremos para que o povo entenda o conhecimento com a linguagem a que [dá] acesso?" Essa é uma. E a outra: Carlos Magno, de Fortaleza, Ceará, é estudante de ciências sociais e diz: "Todos os trabalhadores do jogo do bicho estão na marginalidade por conta da ilegalidade. O que o senhor pensa de loterias estruturalmente semelhantes, [mas] que são legais, como ele cita a loteria dos sonhos lá no Ceará?" E uma terceira, que é do Cláudio Martins, aqui de São Paulo, Interlagos: "O seu último livro se chama Águias, burros e borboletas, águias sabemos que são os bicheiros, burros são os que jogam. E as borboletas, quem são?"

Roberto Da Matta: Burros ali são os que falam, são as pessoas que têm sensibilidade, que têm uma alma sensível. Eu não sabia desse jogo, o que é interessante do caso do jogo do bicho, desse livro que eu fiz com a Helena Soares – escrevemos o livro a quatro mãos, pena que ela não esteja aqui também para falar desse livro, porque deveria estar –, é o seguinte. É um exemplo... é humilde, porque o jogo, inclusive, é ilegal, então "exemplo humilde" no sentido clássico da expressão, se você começar a pensar no jogo do bicho dessas relações entre o Estado e a sociedade, o jogo que é proibido, quer dizer, o jogo que foi inventado, literalmente inventado pela sociedade brasileira. O Gilberto Freyre tem uma expressão curiosa que diz o seguinte: é um brasileirismo, quer dizer, é uma instituição realmente nacional. Foi proibido, foi colocado na ilegalidade, porque havia a competição com a loteria federal, o governo republicano queria instituir uma loteria federal e, quando você coloca na ilegalidade, seria como colocar na ilegalidade o carnaval, o futebol, alguma coisa desse tipo, uma instituição que tem uma força muito grande. Se vai para a ilegalidade ele acaba sendo dominado por pessoas que têm a capacidade de serem os donos da ilegalidade, então acontece aquilo que nós sabemos, você passa a ser um contraventor e, evidentemente, de uma contravenção para outra é fácil, é o mesmo mundo, né, é a mesma área. Nós não falamos disso, nós falamos da interpretação, do sistema interpretativo, que configura, de fato, de um lado um sistema interpretativo popular. Há uma pergunta importante, a primeira que foi feita, que é como é que a gente pode fazer com que esses livros cheguem ao morro? Educação, acabou, não tem que falar mais nada, educação universal, educação ampla, resolver o problema do professor primário no Brasil, como os alemães resolveram no século XVIII, discutir o que é ensinar no Brasil, onde... o que significa ser professor no Brasil? Eu não conheço essa discussão. O que significa ser intelectual no Brasil? Porque no Brasil tem um ditado terrível: "quem sabe faz, quem não sabe ensina". Isso é válido, é bom? Até onde nós podemos entrar no século que é o século da informação, que é o século do domínio tecnológico, se nós temos um país grande? Nós vamos ter que desenvolver universitários de alto nível com esse tipo de idéia de que os professores são um bando de débeis mentais que ficam na universidade dando aula? Quem é aquele cara ali? Essa pergunta já foi dirigida a mim. Quem é aquele cara que está dando aula? Sou eu que estou dando aula. Então, discussão, isso é um tema importante, é um tema importante e eu sou um sujeito orgulhoso de pertencer à universidade e de ser professor, nunca quis ser outra coisa, me orgulho disso. Então, são debates como esse que a gente tem que fazer também. O que significa isso? Nós somos impostores, nós somos repetidores de teorias estrangeiras? É possível realmente inventar uma ciência política brasileira? Essas são perguntas importantes que estão contidas nessa pergunta que essa telespectadora me fez.

Renato Janine Ribeiro: Tem uma idéia, uma das suas principais idéias é a diferença da casa, do íntimo, da rua e do público [refere-se ao trabalho A casa e rua, de Roberto Da Matta]. E, relendo você agora, é interessante que você fala em rua, e não em praça. Tradicionalmente, se fala da praça, a praça é do povo [como o céu é do Condor], como dizia o poeta Castro Alves [(1847-1871) poeta conhecido por participar do movimento abolicionista, autor de diversos livros de poesia, entre esses: Espumas flutuantes (1870), Os escravos (1883), Navio negreiro (1869)]. Você fala da rua, a praça é o lugar em que as pessoas param, ficam, é o lugar em que elas decidem, votam, a rua é o lugar de passagem. Você não transforma um pouco esse espaço em logradouro público? Quando você está pensando em fazer, quando você está pensando em estudar o trânsito, você não está um pouco despolitizando o espaço público, pensando não como mais um lugar de passagem, mais como um logradouro por onde as pessoas passam do que como um lugar onde elas decidem?

Roberto Da Matta: Você tem duas perguntas, uma [é] por que eu não falei em praça. Não falem em praça, porque a categoria no mundo cultural brasileiro...

Renato Janine Ribeiro: Está sumindo.

Roberto Da Matta: ...quer dizer, eu nunca ouvi falar em praça, nunca ninguém falou, a rua engloba. Se fosse na Itália certamente seria praça, seria praça e casa...

Renato Janine Ribeiro: Menino de rua, né?

Roberto Da Matta: Exatamente, menino de rua, "vá para o olho da rua", "mulher da rua". Então, foi isso que eu fiz. Essa é a primeira pergunta. Agora, no caso do trânsito, não se trata tanto do espaço, é da maneira de pilotar os automóveis. Tem que se colocar em debate a maneira como, o que acontece com cada um de nós quando a gente entra dentro de um automóvel.

Paulo Markun: É pedestre contra motoristas?

Roberto Da Matta: Exatamente, quer dizer, aquele que está destituído daquela máquina poderosa que é um automóvel. O que significa você ter a capacidade de dirigir um objeto que pesa algumas toneladas, sobretudo quando ele está acelerado, e que te dá uma sensação de poder? É uma espécie de uma armadura, enfim, isso tudo é um mundo, quer dizer, o significado do automóvel na cultura brasileira. A gente vai pescando, porque esse é um arquivo que eu tenho, a gente vai colocando coisas ali. Casos que vão do grotesco ao mais... à coisa mais assim terrível. Uma empregada doméstica foi atropelada numa daquelas avenidas do Rio que ligam a zona Sul, na Barra, em que os automóveis passavam, e eu fiz uma crônica emocionada no Jornal da Tarde, a mulher praticamente... o corpo da mulher sumiu no asfalto, quem era essa mulher? Era uma anônima que foi tentar atravessar a rua e desapareceu, porque a gente perde completamente a noção de humanidade quando está dentro.... Não era transformar, nem lidar com esse aspecto da rua, do logradouro, era simplesmente o seguinte: no momento em que você deixa a calçada e entra no terreno onde passam os automóveis, mudar esse pacto. O pacto que existe é um pacto hierárquico, aqueles que têm automóveis se consideram obviamente superiores e se permitem fazer coisas com os que não têm automóveis, e vai numa graduação, porque aqueles que têm bicicleta também se permitem fazer coisas contra aqueles que não têm bicicleta, e a coisa vai numa hierarquia. É muito nítido. A mentalidade, os valores da hierarquia que estão inscritos nos nossos corações, como diz o Tocqueville [historiador francês do século XIX], se apropriaram dessa modernidade toda dos automóveis. E nós não dirigimos como os franceses dirigem. E é muito interessante porque todas as pessoas que visitam a Europa e visitam os Estados Unidos voltam falando de lugares... a civilização, finalmente, por quê? Porque um dos índices de civilização de que todas as pessoas falam é o fato de que você, na França, em Nova Iorque, pisou na rua os automóveis param.

Paula Monteiro: Roberto, queria voltar um pouco a seu trabalho. Como você pensa o Brasil? Como você faz a antropologia do Brasil? Eu gosto muito da sua idéia, da sua defesa do hibridismo, acho uma idéia boa e acho bom que você tente fazer, pensar como é que o brasileiro navega nas suas relações sociais. Mas eu acho que, na sua tentativa de fazer um modelo de interpretação do Brasil, você essencializa a cultura brasileira. Na concepção de Gilberto Freyre você diz: o Brasil é. E, com isso, cria um determinismo que trava toda a análise, porque, se a gente é assim, não vai mudar e assim seremos para sempre. Eu vou te dar um exemplo do modo como você trata o futebol. Por exemplo, você diz que no futebol o povo vive um Brasil melhor, porque é um Brasil mais justo, um Brasil que tem regra. Então, ele se projeta nesse ideal do Brasil e essa seria a cultura do Brasil. Mas, se você abre um pouco o ângulo da perspectiva, em vez de olhar o campo e a bola, e abre um pouco mais, você começa a ver a violência da torcida, a compra dos juízes, o resultado dos dopings, a relação dos jogadores com a publicidade, o mercado... essa imagem de Brasil se desfaz. Então, eu acho que esse modelo que você constrói para pensar o Brasil, ele reedifica a cultura brasileira e esquece que existem conjunturas históricas e sociedade que determinam os modos de ser e de não ser brasileiros.

Roberto Da Matta: Primeiro, um ponto, digamos assim, epistemológico. Se você me apresentar uma interpretação que não... a palavra essencialismo é uma palavra perigosa... quem não essencializa alguma coisa, eu dou um doce bem grande. Se você me apresentar algum modelo, alguma análise sociológica ou culturológica de algum objeto cultural, de um objeto que não está constituído e que não tenha um mínimo de um essencialismo... Eu desqualifico essa palavra. Essa palavra não está no meu vocabulário. Então, primeiro ponto. O segundo ponto. O que eu fiz com o futebol não foi falar de cultura brasileira. Eu falei de experiências que o futebol facultava a parcelas da população brasileira, que eram experiências que, provavelmente, a maioria da população qualificava como experiências essencialistas. O que não exclui essas de que você falou, que são um outro lado da medalha ou... como o porão do carnaval. Eu falei de algumas: por que o carnaval, por que o futebol se tornou popular no Brasil? E nós sabemos que houve uma luta para introduzir futebol no Brasil, houve uma liga contra o futebol. O futebol triunfou, é um esporte que veio com as elites, passou, se generalizou, por quê? Eu falei três palpites, três hipóteses: o futebol faculta a experiência da justiça social, porque as regras não mudam, é uma hipótese, literalmente uma hipótese. Ou, se você quiser, uma fantasia. O futebol faculta a experiência da vitória para as camadas destituídas da população, que não têm vitória nenhuma, mas se associando ao Flamengo ou ao Corinthians ou ao Palmeiras ou ao Brasil... Como foi o meu caso de garoto: ver o Brasil ganhar da Inglaterra, para mim, eu chorava de alegria, porque eu tinha, inclusive, um professor inglês, uma delícia, que era um inglês típico.  Aliás, tão típico, que dizem na Inglaterra que não existia [lá] uma pessoa tão típica como ele. Ele teve um dor de cabeça terrível em 1970, porque eu assisti o jogo junto com ele, quando o Brasil ganhou de um a zero. Maravilha! E o Brasil, o futebol brasileiro era apropriado por determinados elementos que faziam parte do sistema de categorias nativas. Não falei que a cultura brasileira é imutável, nada nesse mundo é imutável, nós somos antropólogos e sabemos disso. Quer dizer, aquele negócio do Hobsbawm [historiador britânico de orientação marxista que fez grandes estudos sobre classe social e cultura, autor de obras importantes como Era dos impérios, Era das revoluções e Era dos extremos, entre outros], aquele negócio de que a tradição é inventada é muito bom, mas não é para mim, não é uma lição para mim [refere-se ao livro A invenção das tradições, do mesmo autor]. Agora, mudar de que modo? [Karl] Marx [(1818-1883) teórico do socialismo e revolucionário alemão, autor, entre outras obras, de O capital, sua obra prima e referência até a atualidade. O conjunto de idéias filosóficas, econômicas, políticas e sociais, elaboradas por Karl Marx e Friedrich Engels, deu origem ao marxismo] fez essa pergunta muito antes de mim, não fui eu que fiz essa pergunta, não, e eu não sou marxista. Em que condições a gente faz a história? Eu acho que essa pergunta é importante, por quê? Porque você se repete se você não fizer essa pergunta. Você faz uma das perguntas que acho que... eu acho que... Quem foi? O Renato que fez essa pergunta? Você acaba criando a anti... Ou foi você que fez? Você quer criar a democracia e você acaba fazendo o contrário. Então, me permita. Eu acho que, outro dia, eu fui acusado por uma historiadora que escreveu sobre o carnaval dizendo que eu essencializo. E como é que eu essencializo um carnaval de Nova Orleans se todo o foco teórico do artigo é desconstruir a idéia de carnaval como uma coisa essencializada, porque o carnaval de Nova Orleans é baseado em princípios estruturais que são opostos aos do carnaval do Rio, na minha concepção, era um exemplo modesto disso. No Carnaval de Nova Orleans você criava um movimento extraordinário hierarquizando numa sociedade igualitária e, no Brasil, se fazia justo o oposto. No Brasil, nós ritualizamos pouco. Outro dia eu assistia à entrega do prêmio multicultural do Estadão [jornal O Estado de S. Paulo], eu e o Renato. E é curioso, a ritualização foi mínima. Por quê? Hipótese: a sociedade brasileira já é ritualizada.

Paulo Markun: Aliás, a propósito disso, o senhor escreveu um artigo na Folha de S.Paulo [em] que, se eu entendi bem, o senhor apresenta aspectos positivos do clientelismo, dizendo que o clientelismo de alguma forma funciona. Estou correto ou não, na sua visão?

Roberto Da Matta: Não. O que eu estava tentando dizer é o seguinte: se a gente analisar o patrocinato, a patronagem, o clientelismo dentro do contexto da sociedade brasileira, como sociedade hierarquizada... uma sociedade escravocrata, como lembrou o Fernando [Mitre], eu não falei disso, porque eu não sou especialista dessa área, não fiz trabalhos sobre, não sou especialista. Mas essa coisa está na minha cabeça, uma sociedade escravocrata, uma sociedade que teve um rei, é um caso único na história mundial. Quer dizer, quando as pessoas falam no regime colonial brasileiro, tem que qualificar esse regime colonial, porque é diferente do colonialismo indiano...

Renato Janine Ribeiro: Teve rei e parlamentarismo.

Roberto Da Matta: Sim, mas na época em que me formei não era assim. Quando se falava em colônia, se colocava dentro dessa caixa, inclusive, todo mundo, inclusive o Brasil, então, primeiro passava pela fase colonialista e depois a gente chegava na fase do imperialismo. Então, quer dizer, cada vida, cada biografia, cada trajetória intelectual, ela está contextualizada, está numa rede de significados. Eu tenho a minha história. Então, esse é o debate. Está engajado e eu fazendo a antropologia que eu aprendi 40 anos atrás – que também envelhece, que os jovens já não fazem mais. Então, o que eu dizia é o seguinte: nesse contexto, em que os nobres eram nobres e tinha imperadores, que era uma "ilha de tranqüilidade", com aspas, porque era uma sociedade hierarquizada, cada um sabia o seu lugar num mar de intranqüilidade que era a América Latina. Era assim que a elite brasileira via o Brasil e era assim que os observadores viam o Brasil e reforçavam a visão interna. E a visão externa era coerente. Muito bem, quando você passa e institui uma República, ou seja, quando você adota uma instituição igualitária, nessa sociedade, você não mudou...

Paulo Markun: Na marra, né?

Roberto Da Matta: Pois é. E adotou um plano jurídico, no plano formal, no plano político, uma Constituição em que os homens são todos iguais, quer dizer, a prática social não diz isso, ela não comprova isso, mas é assim. O clientelismo não é uma idéia totalmente desabusada, irracional nesse meio, porque ela é a única maneira de sobreviver, porque o clientelismo faz justamente a ponte entre os elementos hierárquicos da prática social e a nova legislação, que diz que todos são iguais perante a lei. O clientelismo, pelo fato de ele ser móvel, é uma substituição que fica entre essas duas coisas, ele faz essa ponte. Então, visto desse ângulo, ele tem uma positividade, foi nesse sentido que eu falei, porque era a única saída e, assim, o Brasil caminhou.

Fernando de Barros e Silva: [Vou] Falar de um caso concreto, desculpa, não sei se interrompo. O senhor falou do caso concreto dos automóveis e eu queria falar dos aviões da FAB [Força Aérea Brasileira]. Recentemente vários ministros foram flagrados, aí, fazendo viagens pessoais para Fernando de Noronha e para outros lugares e tal. Alguns ficaram indignados de que fossem investigados etc, alguns disseram que iriam pagar e as repercussões não foram boas, de modo geral. O próprio presidente Fernando Henrique, nesse mesmo programa, lá em Brasília, ficou constrangido na hora. Como você analisa esse episódio, sendo que veio de professores universitários, tucanos [partidários do PSDB, partido de Fernando Henrique], gente considerada progressista? Como você lê, como antropólogo, esse episódio dos aviões da FAB e dos ministros tucanos?

Roberto Da Matta: Eu li da seguinte maneira, eu acho que... e, justamente por isso respondi uma pergunta do Mitre que parecia com isso, essa questão sobre o governo, eu acho que Paula também, uma pergunta que parecia com isso. Eu acho o seguinte: eu acho que isso aí é um dos melhores exemplos do que os antropólogos do meu time e da minha tribo, chamam de cultura. Não é uma coisa essencializada, não é uma coisa eterna, mas é uma coisa que a gente tem que se ver com ela, porque é uma prática do governo. O último domínio, a última esfera aristocrática da sociedade brasileira hoje, certamente está no Estado. Nem as multinacionais, os diretores e presidentes têm as mesmas mordomias que o Estado. Quando você se transforma num governador, quando você se transforma num presidente da República no Brasil, você entra literalmente num palácio, você fica cercado de assessores, você é... mais cedo ou mais tarde, você é obrigado a se comportar de uma determinada maneira, não por aquilo que você foi eleito. Esse é um paradoxo [para] que eu constantemente tenho chamado atenção em entrevistas e artigos, quer dizer, nunca escrevi seriamente sobre o assunto, mas tenho chamado a atenção. Por quê? Porque eu tenho a impressão de que você pode dizer: é uma coisa ibérica, talvez, os portugueses tinham uma instituição, que era uma instituição interessante, que era a de juiz-de-fora. O que era juiz-de-fora? Era um juiz itinerante, porque os portugueses sabiam que a sociedade era fortemente clientelista e hierárquica e que, muitas vezes, havia o risco de uma injustiça quando o juiz local julgava uma causa local. Então, o juiz de fora fazia uma espécie de desobriga jurídica, ele ia de cidade em cidade, de município em município, e revia alguns casos. Eu tenho a impressão de que essa mentalidade da justiça, da isenção, ela permeia um pouco as práticas e o estilo de governar do Brasil. Então, as pessoas se divorciam da sociedade. O vínculo entre o eleitor e o eleito há um corte. Uma das conseqüências disso é que, no final de quatro, cinco, seis anos, os governos ficam todos muito parecidos, porque as pessoas desencarnam, encarnando nos seus cargos, elas desencarnam dos pressupostos sociopolíticos que as levaram a ocupar aqueles cargos. É um paradoxo importante, se é que a gente pode levá-lo adiante. Então, o uso dos jatinhos, o que caracteriza? Não estamos tratando de um governo, não se trata de um governo de militares, não se trata de um governo de pessoas que não tiveram militância universitária e intelectual extremamente importante. Mas se trata, isto sim, de como, na realidade, a cultura nos engloba em muitas situações da nossa vida e tem que haver uma unidade. Para fazer a crítica tem que haver uma unidade. O estilo do Brasil é um estilo... Usaram esse benefício sem pensar na contradição [a] que isso levaria, em comparação às propostas de economia de enxugamento do Estado, que eles mesmos estão fazendo diariamente quando falam nas televisões etc, aliás, de maneira brilhante e justa. Então, eu diria: é culpa deles ou é um problema que tem que ser debatido no livro [no sentido de academia, nas universidades] que os antropólogos antigamente chamavam e chamam de cultura. Significa que o Brasil jamais vai mudar? Não. Se a gente não fizer a crítica vai mudar com mais dificuldade. São essas contradições, essas tragicomédias, porque isso é uma tragicomédia. As mesmas coisas acontecem nos pequenos holocaustos que acontecem no Brasil atualmente, como o Museu Nacional caindo aos pedaços. De quem é a culpa? Não é de ninguém. Os holocaustos são todos assim. Afinal de contas, um beneficia o outro. A partir do momento em que você estabelece uma cadeia de hierarquia do mal, de quem é a culpa, afinal de contas? De quem é a culpa se a gente consegue destruir as instituições brasileiras, os grandes museus, as grandes universidades? Os professores têm que ir embora das universidades, porque as universidades estão "às baratas" [abandonadas], a experiência não é uma experiência positiva. Fulano não assinou um convênio, o outro não fez isso, o outro não fez aquilo, quer dizer, isso é um problema que eu chamaria classicamente um problema cultural, um problema de estilo. Esse caso que você me perguntou seria dentro dessa dimensão.

Fernando Mitre: O senhor nota alguma mudança, professor?

Roberto Da Matta: Evidente, isso é um pente fino. O que está acontecendo no governo Fernando Henrique é um pente fino. Porque denunciar ministros que estão usando uma coisa é uma prática tradicional, oficial, sempre se fez isso. Hoje, esses ministros estão constrangidos em responder, em se confrontar com a prática, é um sinal de mudança, é um sinal [de] que você está passando de um Estado que era governado, senão na prática ou na teoria ou nos dois, por uma mentalidade inteiramente de patrocinato, de clientelismo, de hierarquia, para uma cultura liberal. Porque o liberalismo não é só um problema de... é um estilo de vida, esse é o problema, o liberalismo não nasceu na cabeça de dois ou três professores da Universidade de Chicago inominados, é um estilo de vida.

Hélio Alcântara: A Claudia Alencar, de São Paulo, diz: "Emprego, violência, empresas fechadas e corrupção não são ingredientes para a sociedade se rebelar? O povo brasileiro vai agüentar tudo isso pacificamente? E o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra], poderá contaminar outros segmentos insatisfeitos, como o povo vai suportar tudo isso por mais tempo?" Quer saber a opinião do senhor.

Roberto Da Matta: A minha opinião é solidariedade com os oprimidos. Enfim, ela sabe a resposta, ela não precisa da minha opinião. Eu acho que a gente teria que qualificar tantas coisas nessa pergunta, que eu respeito, é uma pergunta importante, mas é programa inteiro para responder.

Paulo Markun: Para finalizar, nós estamos aí virando os 500 anos do Brasil. Esse tipo de data sempre facilita uma reflexão, sempre coloca de alguma forma essas viradas, quer dizer, como se, efetivamente, ao virarem 500 anos as coisas mudassem efetivamente. Ainda nessa perspectiva, o senhor acha que nos próximos 500 anos o Brasil, digamos assim, vai chegar lá? Não se trata de otimismo necessariamente.

Roberto Da Matta: Prometo que, quando eu voltar para outra Roda Viva, não de 500 anos, mas eu vou consultar os meus oráculos. Eu acho que o Brasil é um país extraordinário, eu acho que o Brasil faz... o Brasil, dentro do mundo ocidental, seria o outro ocidente, o Brasil é o contraponto da sociedade burguesa, o Brasil tem elementos contra-hegemônicos importantíssimos na construção de um mundo de uma cultura verdadeiramente global, tem que ser necessariamente uma cultura baseada na experiência com dois, três códigos de comportamento, com uma compreensão do outro, uma simpatia pelo outro muito grande, com uma solidariedade carnavalesca. No sentido clássico da palavra, uma sociedade que tem uma visão de si própria, que é extremamente crítica, que agora está começando a aparecer nos Estados Unidos... A autodesapreciação, ela tem um papel positivo. Então, eu acho que esses elementos são elementos que vão permitir que [se] acabe chegando, não digo chegando lá, porque não se chega a lugar nenhum, mas chegando, vendo o Brasil, lendo o Brasil, experimentando o Brasil de maneira mais serena, eu acho que esta é a palavra: de maneira mais serena. Terminamos?

Paulo Markun: Terminamos.

Joãosinho Trinta: Eu posso fazer uma reclamação?

Paulo Markun: Claro.

Joãosinho Trinta: O tempo é muito curto com a presença do Roberto. Estendam mais, porque é preciso.

Paulo Markun: É o tempo de um desfile, Joãosinho. Mas vamos fazer um outro desfile com o Da Matta. Boa semana a você, obrigado a todos e até a próxima semana, às 10h30 da noite. Boa semana e até lá.

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