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Carlos Eduardo Lins da Silva: Boa noite! O que a ciência conhece e já pode explicar sobre o funcionamento do cérebro? Os neurocientistas avançam nas pesquisas sobre o sistema nervoso e na busca de respostas que sempre intrigaram o ser humano: do que nosso cérebro é realmente capaz? Como tomamos decisões e somos influenciados por tudo em nossa volta? Por que algumas pessoas são mais inteligentes que outras? Como funciona nossa memória, e porque esquecemos as coisas. Numa outra vertente, que ajuda e esperanças a neurociência pode nos dar no combate a outras doenças, que ainda são desafios para a medicina, como Parkinson [doença degenerativa do sistema nervoso central, lentamente progressiva, idiopática (sem causa conhecida). Se caracteriza pela rigidez muscular; tremor de repouso e instabilidade postural] e Alzheimer [doença degenerativa caracterizada pela perda das faculdades cognitivas]. Esses são alguns dos temas do Roda Viva de hoje, com a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, professora e pesquisadora do Departamento de Anatomia da Universidade do Rio de Janeiro. Além de seu trabalho em pesquisa, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel está envolvida há mais de dez anos em projetos de divulgação científica. É autora de artigos, livros, tem colunas em jornais e uma página na internet, onde busca uma aproximação entre as descobertas da neurociência e a vida cotidiana.
[Comentarista]: www.cerebronosso.bio.br, a página principal do site, anuncia ter de tudo sobre o cérebro: curiosidades, artigos científicos, definições, livros e ensaios sobre as aplicações da neurociência no dia-a-dia. O cérebro nosso de cada dia é uma das frentes de trabalho de Suzana Herculano-Houzel, neurocientista empenhada desde 1999 em trazer ao público não-especializado os conhecimentos que a neurociência gera sobre o ser humano e examinar como eles se aplicam na vida cotidiana. Suzana Herculano é carioca, formou-se em biologia e fez pós-graduação em neurociência nos Estados Unidos, França e Alemanha. Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lidera um laboratório onde investiga as regras que a natureza emprega para construir cérebros de tamanhos diferentes. Suzana desenvolveu um método de contagem de células cerebrais para ampliar os estudos sobre a diversidade das espécies. Mapear células e neurônios, conhecer como se relacionam as partes que formam o cérebro e entender como tomamos decisões e como somos influenciados por informações são alguns desafios que estão colocados à neurociência. Nos últimos vinte anos, houve um salto nas descobertas sobre o órgão mais complexo do corpo humano. O avanço da informática e das técnicas de ressonância magnética tornou possível capturar imagens do cérebro, analisar melhor seu funcionamento e também compreender melhor as complexas relações entre cabeça e corpo. Parte desse conhecimento já foi reunida e traduzida em artigos na imprensa e em cinco livros publicados por Suzana Herculano: O cérebro nosso de cada dia, uma edição de 47 ensaios da autora; Sexo, drogas, rock'n roll e chocolate, sobre o cérebro e os prazeres da vida cotidiana; O cérebro em transformação, que analisa mudanças de comportamento nos adolescentes; Por que o bocejo é contagioso? que reúne curiosidades da neurociência; e o último deles, Fique de bem com seu cérebro, que trata de sensações e sentimentos relacionados ao funcionamento do cérebro e ao bem-estar. Suzana Herculano escreve que o ser humano é um bicho duplamente curioso: faz e sente coisas intrigantes e ainda fica intrigado com elas. Encontrar sentido em informações aparentemente desconexas é uma das maiores especialidades do cérebro. Entender como isso ocorre é montar o quebra-cabeça que revela como somos e como funcionamos.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Para entrevistar a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, convidamos: Gláucia Leal, psicóloga, psicanalista e editora-chefe da revista Mente & Cérebro; Mariluce Moura, diretora de redação da revista Pesquisa Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo); Maurício Tuffani, jornalista especializado em ciência e meio ambiente e assessor de comunicação da Universidade Estadual Paulista; Fabiane Leite, repórter da seção Vida &, do jornal O Estado de S. Paulo; Claudia Collucci, repórter de saúde do jornal Folha de S. Paulo e mestre em história da ciência pela PUC de São Paulo; Graça Caldas, jornalista, professora e pesquisadora da Universidade de Campinas e da Universidade Metodista e diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Científico; Luiza Moraes, repórter do núcleo de jornalismo da TV Cultura, que traz para a entrevista as perguntas enviadas por telespectadores e internautas. Temos também a participação do cartunista Paulo Caruso, sempre registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional de televisão para todo o Brasil. Boa noite, professora.
Suzana Herculano-Houzel: Boa noite.
Carlos Eduardo Lins da Silva: A senhora se dedica à divulgação científica há dez anos. Existe sempre uma certa tensão entre os cientistas e os divulgadores cientistas. Os tempos da ciência e da divulgação são diferentes. O tempo da divulgação, do jornalismo, da comunicação é mais rápido do que o da ciência. Existe sempre o risco de cair no sensacionalismo ou na supersimplificação e, pela minha própria experiência, eu sei que existe uma tensão entre o divulgador e o cientista. A senhora sente essa tensão? Se não, como a senhora tem conseguido superar essa tensão?
Suzana Herculano-Houzel: Eu acho que essa tensão tem origem histórica. Quando, em torno da Primeira e Segunda Guerra, começou a haver uma separação muito grande entre o que os jornalistas faziam e o que os cientistas faziam, como uma maneira de proteger e valorizar o cientista, no começo do século XX, houve um movimento e uma pressão, mesmo por parte dos cientistas, para que os cientistas falassem com os seus pares e não com o público. Era uma maneira de criar uma aura, inclusive, de valor maior ao redor da ciência. E o problema, eu acho, que a gente sente hoje é decorrência disso. O cientista que tem a minha idade, ele não teve uma formação, ao longo da sua formação científica, ele não aprendeu a falar com o público. Ele não aprendeu a apresentar suas descobertas de uma maneira que seja acessível, que seja agradável, que seja interessante, que faça sentido para o público. A gente aprende a escrever artigos para os nossos pares numa linguagem que, é claro, tem as suas características, tem o seu jargão, tem o seu formato. Mas, então, acabou havendo, realmente, de um lado, a especialização do cientista, do outro a especialização dos jornalistas e cada um falando a sua língua.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Como a senhora supera isso? Porque eu imagino, quando a senhora coloca em artigos curtos temas complexíssimos da ciência, especialmente de uma ciência como a sua, imagino que alguns cientistas devem dizer: “isso é bobagem, isso é supersimplificação”. Isso já ocorreu? Como a senhora resolveu o problema?
Suzana Herculano-Houzel: Não, eu acho que boa parte do problema se resolve quando você, primeiro, tenta de fato, quando você se empenha em comunicar a sua ciência, o resultado do seu trabalho para o público. Os cientistas têm um desencorajamento a mais, que vem da nossa formação já, que é acreditar que o público só vai se interessar pela ciência que tiver alguma aplicação médica, clínica, imediata, direta. A gente ouve isso dos nossos amigos, familiares, até quando a gente está na faculdade e [os amigos] descobrem: “Ah, você está estudando biologia, puxa, que bacana! Você faz estágio? Qual é a doença que você está estudando?” É muito difícil, então, vencer esse primeiro obstáculo. Então, a gente já vem desde o começo da formação em ciência com essa expectativa dos outros, de que só vai ser interessante se falar de saúde, de doença, de remédios, de tratamentos. E, então, eu acho que a primeira coisa é a gente... o primeiro grande encorajamento ao cientista para fazer a divulgação científica, para vencer essa barreira é acreditar que o que ele faz pode, sim, ser interessante para o público. E a segunda coisa eu acho que é se colocar no lugar do público e tentar... o que é difícil para a gente? Porque a gente passa, justamente, toda uma formação aprendendo a pensar sempre com todo o conjunto de dados científicos, para ver onde o novo se encaixa. E o leitor, o público não-especializado é justamente o contrário. A gente precisa se colocar no lugar desse leitor que não tem nenhuma obrigação de conhecer aquele assunto, né? Então, você imaginar o que será que a pessoa precisa saber para entender, de fato, o que eu quero falar, essa mensagem.
Fabiane Leite: Nós, divulgadores científicos, às vezes sofremos de um problema, né? Fazer muito o discurso da prevenção. E a gente sabe que, muitas vezes, quer dizer, você fala...
Suzana Herculano-Houzel: Você fala em prevenção da saúde.
Fabiane Leite: Prevenção em saúde, no seu último livro, Fique de bem com o seu cérebro, você traz várias dicas práticas para o leitor, para ele tentar melhorar a sua capacidade mental, enfim. Eu queria te perguntar um pouquinho, quer dizer, na verdade é um pouco mais difícil do que... Às vezes, mudar hábitos é uma coisa muito complicada. Quer dizer, como a neurociência, eu fiquei pensando isso ao ler o teu livro... Quer dizer, você traz várias sugestões para que as pessoas envelheçam melhor, preservem a sua capacidade mental. Mas eu fico me perguntando por que, para o ser humano, é tão difícil mudar. Então, acho que seria útil para as pessoas ouvir um pouquinho: por que é tão difícil mudar? Quer dizer, passar a comer melhor, como você ensina no teu livro, passar a fazer exercício, passar a se preocupar com a saúde.
Suzana Herculano-Houzel: Eu, quanto mais leio, mais eu acredito mesmo que, por trás disso tudo, a chave é a motivação, é o que move a gente, literalmente. É a razão que a gente tem para levantar da cama de manhã, para procurar essa comida e não aquela, para fumar ou não fumar, para fazer exercício ou não. E a grande diferença é a informação só pela informação e a motivação que você associa, pessoalmente, àquela informação. Pega o caso do fumo. Todo mundo sabe, hoje em dia, a gente tem informação maciça de saúde pública, de educação, campanhas de educação e tudo mais. Então, todo mundo sabe perfeitamente que fumar faz mal de várias maneiras. Mas usar essa informação para mudar a sua vida exige motivação. Depende da sua motivação. Porque a pessoa que tem a informação, mas não acha que aquilo é, de fato, relevante ou que pode... a pessoa que acha que vai ter uma vida melhor se continuar a fumar, ela não tem, de fato, nenhum estímulo, nenhuma motivação para parar de fumar enquanto ela continuar acreditando que aquilo é bom, de certa forma, para ela.
Mariluce Moura: Eu gostaria de falar sobre essa questão de motivação, quando você trata nesse livro. A divulgação científica, ela é bastante exigente num certo sentido. O discurso da ciência, a produção de resultado da ciência, às vezes, se dá efetivamente numa linguagem difícil, porque são conceitos extremamente complexos. E é um desafio muito grande para o jornalista, para o divulgador de ciência tentar fazer essa tradução daquilo que é o resultado da ciência para uma linguagem do senso comum, uma linguagem inteligível por todos, sem fazer uma verdadeira traição àquilo que está...
Suzana Herculano-Houzel: Sim.
Mariluce Moura: ...posto como conhecimento naquele determinado momento, num avanço, numa descoberta ou mesmo num fracasso da pesquisa científica. Preocupou-me um pouco, lendo o seu livro, esse último, Fique de bem com o seu cérebro, se ele não joga um pouco aquilo que deveria ser a divulgação científica para um clima de auto-ajuda. E, ao jogar para um clima de auto-ajuda, se isso não coloca toda a questão do debate da ciência – aquilo que ainda são avanços, mas que podem ter discussões, debates possíveis, divergências –, se não coloca no plano das certezas absolutas. E, aí, as pessoas teriam uma informação, como se não houvesse nenhuma dúvida mais sobre aquele campo e, em seguida, que elas podem, de fato, atuar. Atuar facilmente para se livrar da dependência de drogas, para se livrar de maus hábitos, enfim, não há uma excessiva "facilitação", entre aspas, que você propõe com esse livro?
Suzana Herculano-Houzel: Não. Eu acho que não. É claro que o tom da linguagem tem que ser adequado e tem que deixar claro o que é, digamos, hoje, considerado fato. Ênfase no hoje, porque isso muda, inclusive. E o que é uma interpretação bastante razoável que a gente pode... O que é resultado de pesquisa, o que é interpretação, o que é especulação em cima desses resultados. Mas deixa eu voltar para o começo da sua pergunta. Eu não vejo problema na idéia de auto-ajuda. Pelo contrário, eu acho que esse é, no final das contas, o propósito da divulgação científica, que as pessoas possam usar os conhecimentos da ciência, que não deve, de modo algum, ser domínio exclusivo do pesquisador, né? E, mais do que isso, elas possam usar aquele conhecimento em benefício próprio. A ciência é especialmente interessante para a gente, para cada um de nós, cidadãos, pessoas na medida em que ela se torna útil de alguma forma. [Quando] ela pode explicar alguma coisa, trazer algum consolo, algum conforto, alguma melhoria de qualidade de vida, de saúde, de relacionamento com os outros. Então, se auto-ajuda é a literatura que apresenta idéias de uma maneira que as pessoas possam usá-las em benefício próprio para melhorar o desenvolvimento pessoal, o nome alternativo da auto-ajuda... Então, que seja. E eu acho que considerar que a divulgação científica tem, sim, um lado de auto-ajuda e pode ser, digamos, a auto-ajuda na sua... no seu ápice, digamos. Ela não reflete simplesmente a opinião de uma pessoa: “a minha receita de vida é beber não sei quantos litros de água por dia, andar não sei quantos quilômetros”. A auto-ajuda que é baseada em divulgação científica de fato, que é o que eu faço, ela tem o intuito, ela tem o objetivo que toda a divulgação científica tem. E, de certa forma, eu fico... quando eu comparo esse último livro Fique de bem com o seu cérebro com os meus livros anteriores, se você olhar com cuidado, o formato do texto principal é exatamente o mesmo. Eu comento descobertas de resultados de pesquisas, como aquilo pode ser interpretado em termos do cotidiano. A diferença é que esse livro, depois de cada texto, traz um bloquinho com sugestões, não verdades absolutas, mas sugestões.
Fabiane Leite: Isso não sobrecarrega o indivíduo? Quer dizer, a gente achando que só... Às vezes, é um pouco mais complexo do que isso, porque nem todo mundo que comer tomate vai ter um benefício para prevenir, por exemplo, o câncer de próstata, sabe?
Suzana Herculano-Houzel: Mas a idéia é justamente essa.
Fabiane Leite: Achar que vai servir para todo mundo...
Mariluce Moura: Suzana, só uma questão, é exatamente esse trechinho que você diz que foi acrescentado nesse formato. São exatamente esses trechinhos que me chamam mais a atenção.
Suzana Herculano-Houzel: Como por exemplo?
Mariluce Moura: Eu peguei ao acaso: “Quando o mundo lhe sorri, você sorri automaticamente de volta e esse simples ato já prepara o corpo para a felicidade. Além disso, como o sorriso é contagioso, a felicidade estampada em seu rosto contamina os seus vizinhos e aumenta as chances que eles têm de sorrir. Assim, se forma um círculo vicioso dos mais saudáveis. Procure estar próximo a pessoas felizes e seja uma companhia feliz para elas também”. Para mim isso parece alguma coisa muito distante da divulgação científica efetiva.
Suzana Herculano-Houzel: Mas é justamente isso. Tem estudos fantásticos que mostram isso que está escrito. Quando você vê uma pessoa sorrindo, as áreas do seu cérebro responsáveis – não a totalidade da felicidade, do sorriso, isso não basta, é claro –... mas as áreas do cérebro envolvidas em fazer você sorrir, quer dizer, na expressão da sua felicidade, do seu sorriso genuíno, espontâneo, elas são ativadas também. Outras [pesquisas] muito bacanas mostram que a gente acha mais bonitas imagens de pessoas que sorriem. Você pode comparar, você pode fazer esse estudo de uma maneira controlada. Você pega a imagem de uma pessoa, a mesma pessoa com a cara séria, né? E depois a pessoa sorrindo com o sorriso genuíno estampado no rosto. Isso é fato, o cérebro da gente responde ao sorriso do rosto dos outros e responde começando a preparar o seu próprio sorriso. O que está escrito aí nesse parágrafo que você leu não é “achismo”. Isso é o que os estudos mostram.
Graça Caldas: Suzana, essa idéia de um guia prático para o bem-estar em 15 passos não traria a impressão de uma visão reducionista da ciência na medida em que o conhecimento deve despertar, para a aquisição de novos conhecimentos, não apenas aqueles 15 passos?
Suzana Herculano-Houzel: De modo nenhum. Mas eu acho que a primeira coisa é o que é reducionista. Se você diz reducionista no sentido de que bastam esses 15 passos... Não, de modo algum. Dizer “olha só, aqui tem 15 coisas que você pode fazer para ter uma vida melhor” é totalmente diferente de dizer “olha, bastam essas 15 coisas para você ter uma vida melhor”. E tem... eu acho que esse livro deixa bem claro que tem um mundo enorme se abrindo para a gente graças à neurociência. Graças à possibilidade que a gente tem de olhar para o cérebro da gente funcionando e usar esses conhecimentos para entender o que é vida saudável, normal, porque eu acho que é um desvio muito feliz da tradição, justamente, que a ciência, como um todo, teve no século XX de se concentrar em patologias. Vamos usar as doenças para entender como o cérebro funciona normalmente.
Luiza Moraes: Eu tenho uma pergunta de um telespectador aqui, aliás, uma telespectadora, Adriana Carvalho, de São Paulo. Todas as perguntas vêm direcionadas para essa questão da aplicabilidade, que é a preocupação do telespectador. Ela pergunta quais são as descobertas recentes sobre o cérebro que podem contribuir para o planejamento de aprendizado de crianças e adolescentes. Falando bem dentro do formato do seu livro, o que você aponta de descobertas e como é que se aplica isso hoje?
Suzana Herculano-Houzel: Nossa, tem tanta coisa. Para começar o entendimento sobre o que é o desenvolvimento, o que é o aprendizado. A idéia básica, digamos, a hipótese de trabalho da neurociência é que o aprendizado tem, por base, a modificação do cérebro. A modificação das conexões entre os neurônios, como eles trocam informações uns com os outros, tanto fortalecimento de conexões quanto o enfraquecimento, a remoção de tudo aquilo que é desnecessário, que não faz sentido. Como se fosse um grande processo de lapidação. Então, tem um conjunto incrível de descobertas sobre esse processo. Como ele acontece no cérebro da criança. Como isso acontece, de novo, no cérebro do adolescente. A adolescência é um período de reorganização do cérebro, de retransformação, digamos, do cérebro. Então, é um novo período de aprendizado, de mudanças, de possibilidades de aprendizado – agora, já, aprendizado numa outra esfera: o aprendizado social. Mas, voltando para o desenvolvimento das crianças, aprendizado. Eu acho que uma das coisas mais importantes é a gente reconhecer o papel da motivação, a importância da motivação. E, na hora que você junta a motivação com a oportunidade, aí você tem de fato uma receita, digamos, para desenvolvimento de potenciais que, em princípio, todo cérebro normal tem. Eu gosto de dizer que, em princípio, todo cérebro pode se tornar um pianista, mas ninguém vai virar pianista se não tiver oportunidade de tocar num piano, de encostar os dedos num piano e se não tiver a motivação, né? Você pode ter todo o contato, mas, se você não tem a sua própria motivação, se seus pais não encorajam, a escola não encoraja, quem vai adiante?
Carlos Eduardo Lins da Silva: Professora, vamos fazer o intervalo agora. Vamos voltar daqui a pouco, que hoje tem na platéia estudantes de rádio e TV da Universidade Bandeirantes. A Alessandra Pereira Silva, Amilton Benetti, Karina de Oliveira Côrrea e Silva e o Fernando Augusto.
[intervalo]
Carlos Eduardo Lins da Silva: Voltamos com o Roda Viva, que hoje entrevista a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora, nós falamos agora há pouco sobre felicidade, sorriso. No entanto, recentemente tem saído na literatura especializada alguns livros que dizem que a infelicidade também é muito importante na vida das pessoas e que, talvez, na nossa civilização contemporânea, haja uma obsessão na busca pela felicidade, muitas vezes, confundida com consumismo, prazer e assim por diante. Qual é o papel da infelicidade para o desenvolvimento do cérebro, para o desenvolvimento da pessoa?
Suzana Herculano-Houzel: Tanto a felicidade quanto a infelicidade têm papéis muito importantes. A tristeza é fundamental para o cérebro, assim como a felicidade, desde que elas aconteçam de uma maneira adequada ao contexto. A felicidade, a satisfação indica para o cérebro que o que você fez é bom, foi bem-sucedido, um bom comportamento [para] buscar de novo. A tristeza, por outro lado, é o sinal de que aquilo é uma situação que você deve evitar a todo o custo. É extremamente saudável e desejável que a gente fique profundamente infeliz quando alguma coisa negativa acontece. Se você perde uma pessoa querida, se você perde o seu emprego, se você sofre violência, maus-tratos de qualquer forma, a resposta saudável do cérebro é a tristeza, é a infelicidade. Então, eu não vejo nada errado em buscar a felicidade. Eu acho que a motivação do sentir-se bem, a antecipação da satisfação é a maior motivação que a gente tem para levantar da cama de manhã, para ir ao trabalho, para querer estar com os filhos, com os amigos. Então, a busca da felicidade em si, como uma motivação, eu acho saudável. Eu acho que o problema está em achar que a gente deve ser feliz permanentemente, o tempo todo, né? Assim como a tristeza adequada é boa e a felicidade adequada ao contexto justificada é boa, a tristeza fora de contexto, a tristeza que não é justificada é uma doença: é a depressão. Mas o que a gente ouve pouco, porque a depressão ganhou muita atenção da mídia, é que o excesso de felicidade, a felicidade desmedida, não-justificada, não-adequada para o contexto, ela também é uma doença: é a mania.
Cláudia Collucci: Vários centros de pesquisas hoje analisam o fenômeno da intuição ou do sexto sentido, inclusive a neurociência. O que a ciência já descobriu sobre esse fenômeno? E você é uma pessoa intuitiva, você acredita na intuição?
Suzana Herculano-Houzel: A primeira coisa é definir o que é intuição. A gente sempre precisa saber de onde está começando. Se a gente pode definir intuição sem qualquer conotação paranormal, espírita, nada disso... Então, se você considerar que o cérebro é uma máquina, digamos, não só de responder aos acontecimentos - isso é a parte mais fácil, o menor do trabalho do cérebro – mas, principalmente, de usar toda a informação que ele já colheu sobre o passado da sua experiência de vida, das regras que você aprende e generalizar para o futuro. E que ele, mais do que qualquer coisa, tenta o tempo todo usar essa informação para prever o futuro, para antecipar o que vai acontecer, guiando, então, o comportamento. A gente pode dizer que a intuição é nada mais do que esse trabalho que o cérebro faz em permanência, de tentar adivinhar o que vai acontecer. Desde o nível mais imediato, mais instantâneo – o que vai acontecer se eu fizer esse movimento com a minha mão ou se eu botar o pé no chão, quando que ele vai encontrar o chão de fato? Até um futuro mais distante. O que eu devo estudar para poder ser jornalista ou cientista no futuro? Ou será que o ônibus que está vindo pela rua vai passar do meu lado em segurança ou será que vem na minha direção? Então, eu acho que o que a gente chama cotidianamente de intuição é esse meio-termo. O que acontece são essas previsões no espaço de poucos segundos sobre o que vai acontecer no futuro. Então, se a gente pensar que o cérebro tenta fazer isso o tempo todo, boa parte das vezes ele vai errar. E essas em que ele erra passam em branco, você não nota. Agora, se a gente considerar que esse trabalho por excelência do cérebro é extremamente importante naquela hora em que ele faz a predição e acerta, de fato, aquilo acontece, é extraordinariamente importante que alguma parte do cérebro chame a atenção para aquela... adivinhação que se cumpriu, que deu certo. É o prêmio para o funcionamento do próprio cérebro, né? Quer dizer: “Olha, você acertou”. Então, faz isso de novo da próxima vez, porque funciona. Então, eu acho que aí a diferença entre ouvir ou não ouvir a intuição está em o que a gente fez com esses avisos, digamos, essas previsões que o cérebro manda para a gente, o quanto você ouve disso e o quanto você respeita essa informação.
Luiza Moraes: Informação, cérebro... O excesso de informações que nós recebemos atualmente alterou o funcionamento dos nossos cérebros em relação, por exemplo, a 20 anos atrás? É a pergunta da Magali, de São Paulo. Muita informação.
Suzana Herculano-Houzel: É claro que internet, jornais, livros, a que a gente tem acesso com tanta facilidade hoje, aumentam a quantidade de informação. Mas eu prefiro pensar que o tempo todo, com ou sem internet, a gente tem muito mais informação do que a gente consegue processar, sempre. Não precisa de internet para isso, né? Isso é uma limitação do próprio cérebro mesmo. A gente só é capaz de prestar atenção em uma coisa de cada vez. Então, a todo o instante, tudo, menos uma coisa do seu mundo, está sendo desprezado, descartado. Ainda mais se você considerar que o tempo não mudou – continuam sendo 24 horas por dia– e não tem como você ter mais de uma informação no mesmo lugar do espaço ao mesmo tempo. Então, se a gente for por aí, talvez o que a gente tenha hoje em dia é uma riqueza de informações que podem ocupar um mesmo lugar no espaço e no tempo a cada instante. Mas, dentre todas as informações ao redor da gente, continuamos tendo a mesma limitação que 20, 100 anos atrás: só conseguimos focalizar em uma coisa.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Como no nosso caso aqui a gente só consegue focalizar em um entrevistador e são 8. Vou passar para o Maurício Tuffani agora.
Suzana Herculano-Houzel: Pois é, a gente fica assim. Mas, é claro que se você tem informação, tudo o que não é foco de sua atenção é um destrator em potencial que você precisa exercer controle atencional para afastar. Você precisa bloquear àquelas informações destratoras para você conseguir se focalizar em uma coisa. Então, nesse sentido, realmente hoje você tem mais coisas acontecendo o tempo todo isso é mais difícil. Mas, a atenção ainda é a mesma.
Gláucia Leal: Suzana, uma das descobertas mais fascinantes dos últimos tempos na neurociência são os neurônios-espelho [descobertos por acaso em 1994 por uma equipe de pesquisadores da Universidade de Parma, na Itália], esses neurônios que estão espalhados pelo cérebro e disparam quando se olha para alguém, se observa o gesto.
Suzana Herculano-Houzel: Isso.
Gláucia Leal: [O neurônio-espelho] Foi considerado inclusive uma chave de entrada na cultura mesmo, porque, por meio do neurônio-espelho, é possível acompanhar desde um sorriso, até mesmo ter um gesto mais empático, uma compaixão mais profunda ou olhar alguém fazendo um salto mortal e, mentalmente, imaginar esse gesto, ainda que não seja possível de fato realizá-lo. O que eu gostaria que você comentasse é: qual a importância e qual a amplidão dessa descoberta? Como você vê as conseqüências dessa descoberta e as utilizações do neurônio-espelho na prática?
Suzana Herculano-Houzel: Eu acho que o mais fascinante no... são várias coisas fascinantes sobre os neurônios espelho, né? Como você falou, a empatia, o aprendizado por imitação, você conseguir intuir a intenção do outro, repetir mentalmente o gesto do outro. Uma das coisas mais fascinantes, com a descoberta dos neurônios-espelho, é notar que uma parte muito grande do nosso relacionamento com os outros, do trato social que a gente imaginava que fosse racional, dependesse exclusivamente de valores culturais aprendidos, transmitidos pela nossa história pessoal, na verdade são respostas automáticas do cérebro. Quando você vê uma pessoa se machucar ou até sorrir, a resposta automática do seu cérebro é imitar aquele gesto, é imitar aquela emoção. O que permite, é claro, que você sinta junto com a outra pessoa, que você sofra junto com a outra pessoa. É a base da empatia, é a base de colocar-se no lugar do outro, né? Mas eu acho que a implicação mais profunda por trás de todas essas... [de] se colocar no lugar do outro é notar que isso acontece, quer você queira quer não. É claro que algumas pessoas são mais empáticas do que as outras, esse processo acontece com mais facilidade, com mais rapidez. Até a imitação do bocejo, quando você vê uma pessoa bocejando e você boceja por imitação. A idéia é que o mesmo processo está envolvido. E isso pega, digamos, mais facilmente em algumas pessoas do que as outras. Pega justamente com mais facilidade nas pessoas mais empáticas. Mas eu acho que descobrir esse processo social, esse fenômeno social de contágio, né, de empatia é uma propriedade automática do cérebro, eu acho isso fantástico.
Maurício Tuffani: Professora, nos últimos anos, surgiram algumas pesquisas, quer dizer, elas vieram ao conhecimento público como sendo pesquisas que teriam trabalhado com o mapeamento de determinadas regiões do cérebro estabelecendo conexões com aquilo que seria chamado de fé. Eu gostaria de saber a sua opinião sobre a pertinência disso. E um aspecto que é interessante é o seguinte: as interpretações foram de que tanto a fé poderia ser completamente reduzida às bases biológicas, como também de que Deus pôs algo ali correspondendo ao que deveria ser a fé.
Suzana Herculano-Houzel: Não é maravilhoso? Pois é.
Maurício Tuffani: Gostaria de saber qual é a sua opinião. Isso é coisa séria, não é?
Suzana Herculano-Houzel: Os resultados são absolutamente sérios e dizem respeito à, como você estava falando, ativação de estruturas do cérebro, sobretudo o lobo temporal, essa região aqui na altura das orelhas, né, [mostra a região] que acontece de maneira especialmente intensa, por exemplo, em crises epilépticas do lobo temporal e que estão associados, quando essas crises acontecem, quer dizer, um excesso de ativação nessas regiões, as pessoas têm auras religiosas, elas sentem a presença de uma pessoa, de uma entidade. Elas ouvem vozes que falam com elas algum tipo de comunicação. Então, a gente pode entender isso como, digamos, um fato científico. Essa correlação entre o excesso de atividade no lobo temporal e esse tipo de experiência, tá? O que, para começo de conversa, não quer dizer de modo algum que toda a experiência religiosa seja resultado de excesso de atividade epiléptica, digamos, do cérebro. Não é isso. Mas, vamos trabalhar com a idéia, então, de que existe essa correlação entre um excesso de atividade no lobo temporal e esse tipo de experiência religiosa. O que eu acho fabuloso é que, dependendo da sua predisposição, você pode interpretar o mesmo achado de duas maneiras radicalmente diferentes: uma é que a experiência religiosa é apenas o resultado do funcionamento, chame-se isso normal ou anormal, mas do funcionamento do cérebro. E outra de que isso é, digamos, é o meio de comunicação, é o canal direto que Deus teria colocado no cérebro de algumas pessoas para falar com a gente.
Maurício Tuffani: E a sua opinião, qual é?
Suzana Herculano-Houzel: Ah, eu acho que a minha opinião não é relevante. É?
Carlos Eduardo Lins da Silva: Claro que é.
Suzana Herculano-Houzel: Eu não sei, porque, veja só, o que eu estava te falando é que o achado é o mesmo. Como você interpreta é diferente. Enquanto essa interpretação for diferente à luz de outros achados científicos, quer dizer, dentro de um conjunto de hipóteses testáveis sobre a função do lobo temporal, se toda a experiência religiosa é acompanhada desse tipo de atividade ou não... Eu acho que aí cabe o que uma pessoa específica acha. Agora, quanto à interpretação desse achado, depende só de crença. E a crença, por definição, não é testável, aí eu acho que isso é do campo do absolutamente pessoal. E, realmente, não vem ao caso o que cada pessoa pensa, porque o achado é o mesmo, nada pode provar, não tem como testar se a minha interpretação é melhor ou pior do que a sua, é mais ou menos válida do que a sua, se ela não for testável. Então, eu acho que aí terminam, digamos, as fronteiras da ciência. Até onde a ciência pode chegar, até onde ela pode investigar e onde começam as crenças pessoais, que são pessoais e devem ser respeitadas? A minha opinião, nesse sentido, é como a de qualquer outra pessoa.
Maurício Tuffani: Mas, dessa forma, o que a senhora está dizendo é que dessas pesquisas não se pode, cientificamente, inferir nem uma coisa nem outra, é isso que senhora está dizendo?
Suzana Herculano-Houzel: Exato. São duas interpretações igualmente válidas, porque elas não podem ser testadas.
Graça Caldas: Suzana, considerando a complexidade do cérebro, apesar dos avanços importantes nos últimos anos, eu gostaria de saber a sua opinião sobre o estágio atual da pesquisa brasileira [para] o desenvolvimento do cérebro comparando com os países de primeiro mundo. E também qual a sua avaliação sobre os investimentos brasileiros para a ciência, seja em recursos financeiros, [seja] em recursos humanos?
Suzana Herculano-Houzel: Eu posso dizer várias coisas diferentes a esse respeito. A primeira é que eu fico, do ponto de vista pessoal e, digamos, da parte da história da ciência brasileira, que eu acompanho pessoalmente, eu fico muito feliz de ver que a gente chegou a um estado muito melhor hoje do que era quando eu era estagiária de iniciação científica e tinha uma dificuldade enorme de ter financiamento. E, quando se conseguia financiamento para comprar equipamentos, você não tinha financiamento para fazer a manutenção do equipamento ou para comprar o material básico para poder usar o equipamento. Hoje isso já melhorou muito. E a gente tem, felizmente, o apoio, recursos que são muito melhores do que já foram na nossa história. O que não quer dizer que eles sejam bons, ideais. Mas eu acho que, mais importante do que avaliar se os recursos hoje são importantes ou se são suficientes, sempre pode ser melhor, né, sempre pode ter mais apoio e recursos para competir, inclusive, no nível semelhante com pesquisadores de outros países. Eu acho que o problema da ciência hoje é que algumas agências começam a dar mais atenção... é o apoio ao pesquisador jovem, ao pesquisador que está começando, porque as agências costumam exigir, quando você faz um pedido novo de recursos para um projeto novo, as agências querem que você já tenha produtividade comprovada naquela área com aquela técnica. E você, por definição, você não tem isso quando é uma linha de pesquisa nova. E o pesquisador jovem, ele também, por definição, ainda não tem produção.
Graça Caldas: Sim, do ponto de vista de política estratégica do governo, o Brasil já perdeu alguns bondes da história como a política nacional de informática, entre outros. Nós estamos com os investimentos necessários, considerando a importância da pesquisa do cérebro para uma série de mudanças, uma série de resoluções de problemas de saúde, por exemplo?
Suzana Herculano-Houzel: Não, certamente não. A gente sempre precisa de mais recursos do que a gente ainda tem. Inclusive.
Mariluce Moura: Agora, deixa eu emendar uma pergunta nessa sua, já que a gente está falando do panorama da pesquisa brasileira em relação ao panorama internacional. Eu gostaria de saber qual é a sua visão sobre essa iniciativa do Instituto de Neurociências de Natal e os trabalhos do Miguel Nicolelis [médico e cientista. Trabalhou na área de neurociência da Universidade Duke (Durham, Estados Unidos). É conhecido por estudar as tentativas de integrar o cérebro humano com as máquinas (neuropróteses ou interfaces cérebro-máquina)] nessa área de interface cérebro-máquina visando às próteses do futuro, comandadas pelo cérebro. Mas, basicamente, em sua avaliação, o que representa esse instituto dentro dessa política voltada para o desenvolvimento da neurociência no país?
Suzana Herculano-Houzel: É difícil dizer, porque esse instituto começou de uma maneira já não-integrada com a neurociência que já existe no país. Então, isso cria um problema, é claro, dentro da sociedade, da comunidade de neurocientistas no país, o que não tem nada a ver com a competência e o valor do Miguel Nicolelis como pesquisador, clara, enorme. Mas eu acho que tem uma série de questões envolvidas aí dentro e a primeira delas é a integração, a valorização do neurocientista que já trabalha no Brasil, que já enfrenta os seus problemas para se estabelecer, de continuar sua ciência aqui, sem ir para o exterior.
Mariluce Moura: Eles estão contratando mais 20 cientistas além dos 20 que já estão trabalhando lá, [estão] fazendo uma chamada, que vai sair num anúncio, aí, geral, para mais 20 cientistas jovens, inclusive, do país todo.
Suzana Herculano-Houzel: Pois é, se eles conseguirem... A proposta do Miguel é muito bacana, é atrair cientistas, sobretudo, neurocientistas brasileiros para terem condições extraordinárias de trabalhar no país. A única coisa que eu lamento é que falte, de fato, a integração com toda a comunidade neurocientífica que já existe no resto do país, tirando o estado do Rio Grande do Norte.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Professora, nós vamos para mais um intervalo. E vamos voltar já com o Roda Viva, que hoje está sendo acompanhado na platéia por três estudantes do curso de psicologia do Centro Universitário São Camilo: Naira Gabriela Santos Pimenta, Hermes Rodrigues e Wilma Maria de Holanda Pinto e também pelo gerente financeiro Ezequiel de Gois Ferreira.
[intervalo]
Carlos Eduardo Lins da Silva: Você acompanha hoje no Roda Viva a entrevista com a professora do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Suzana Herculano-Houzel. Professora, a senhora tem desmentido várias vezes em entrevistas e artigos uma frase do Raul Seixas [(1945- 1989), cantor e compositor considerado pioneiro do rock and roll nacional. Gravou 21 discos. O entrevistador se refere à música "Ouro de tolo": “É você olhar no espelho/ Se sentir/ Um grandessíssimo idiota/ Saber que é humano/ Ridículo, limitado/ Que só usa dez por cento/ De sua cabeça animal...”] de que nós só usamos 10% da nossa capacidade animal, alguma coisa assim.
Suzana Herculano-Houzel: Do cérebro.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Só usamos 10% do nosso cérebro. Mas há outra frase do Raul Seixas que tem sido muito usada na política brasileira pelo nosso presidente da República, de que ele é uma "metamorfose ambulante".
[risos]
Carlos Eduardo Lins da Silva: A senhora desmente também que o homem seja uma metamorfose ambulante – ou alguns são e outros não são? É possível mudar o tempo inteiro? Uma pessoa, o cérebro consegue mudar de opinião e de posições e de vida de uma hora para a outra ou isso é uma coisa difícil que só alguns conseguem?
Suzana Herculano-Houzel: Olha, com sorte, a gente muda, inclusive, de opinião. Eu acho que uma das coisas mais bacanas é a capacidade que a gente tem de ouvir novas informações, inclusive, da divulgação científica. E mudar de idéia a respeito de um assunto. Agora, isso não significa, de modo algum, ser uma metamorfose ambulante. A idéia, o próprio aprendizado passa pela mudança, a base do aprendizado é a mudança do cérebro. Mas, é uma mudança que é consistente. Ela faz sentido com os acontecimentos, com a sua história de vida. Por outro lado, tem o temperamento também de cada pessoa que tem um componente genético. Tem um componente biológico além de, claro, toda a influência da sua educação, das pessoas que lidam com você. Se você é tratado de uma maneira que promova a sua autoconfiança ou se, ao contrário, você é colocado para baixo o tempo todo. Então, eu diria que nós não somos nem uma metamorfose ambulante nem um bloco estático pelo resto da vida. E ainda bem. Mas, a gente precisa viver nesse meio termo.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Nós temos muitas perguntas de telespectadores. Eu quero dizer ao telespectador que as perguntas que não forem respondidas aqui, serão enviadas para a professora que se dispôs a respondê-las por e-mail depois. Então, podem mandar as perguntas mesmo as que não forem respondidas, serão depois respondidas pela professora.
Luiza Moraes: Aproveitar uma para a gente fazer aqui que é bem assim, é uma provocação: “Existe alguma diferença entre o raciocínio do homem e da mulher?” Interessante. Quem manda é a Marli Pedra e o Paulo Santos, aqui de São Paulo.
Suzana Herculano-Houzel: Esse assunto é tão batido e eu gosto de contra-atacar, digamos, de responder com a diferença mais óbvia que está embaixo do nariz da gente, está tão visível que a gente não enxerga. Mas, eu já digo qual é. A história, a diferença do raciocínio entre homem e a mulher, eu acho que ela é, antes de mais nada, se existe uma base biológica, eu acredito que ela seja mínima. O que a gente vê, na prática, são diferenças que têm uma influência cultural e uma influência de expectativa tão grande, que é difícil dizer que elas sejam, de fato, generalizáveis para: “homens pensam assim e mulheres pensam assado”. Existem alguns casos específicos como, por exemplo, as mulheres tendem, de fato, a se orientar no espaço, por exemplo, dentro de um Shopping ou numa cidade usando marcos espacial - lojas, jornaleiros, estandes, essas imagens visuais mais específicas, enquanto os homens tendem a usar mais pistas direcionais, digamos - norte, sul, para a esquerda, 100 metros, são digamos coordenadas mais absolutas. O que não quer dizer, de modo algum que uma seja melhor do que a outra. São apenas duas maneiras de resolver um problema. As diferenças realmente importantes, significativas entre homens e mulheres, que estão embaixo do nariz da gente, dizem respeito a comportamento sexual. 90% dos homens se interessam sexualmente por cérebros femininos, por mulheres. E 90% das mulheres se interessam por homens. Essa é uma diferença gritante de comportamento. E se é uma diferença de comportamento, ela deve ser uma diferença cerebral, se você aceita a idéia de que é o cérebro que produz o comportamento.
Carlos Eduardo Lins da Silva: E a senhora diz que o cérebro do Einstein tinha o tamanho médio de um cérebro feminino?
Suzana Herculano-Houzel: De um cérebro feminino. Pois é, esta é uma das questões que a gente estuda no meu laboratório. Quais são as diferenças entre a construção do cérebro de indivíduos de uma mesma espécie, de espécies diferentes, até que ponto o tamanho do cérebro reflete, de fato, diferenças na quantidade de neurônios que tem naquele cérebro, não é? Mas, eu acho importante considerar que a biologia, a genética dão pontos de partida para o cérebro. Eles definem sim por onde você começa. Qual é o seu estado inicial, digamos. Do que seu cérebro é formado? Quais são as predisposições genéticas, pontos de equilíbrio de vários sistemas retransmissores? Mas o negócio é o que você faz com esse cérebro que você ganha.
Cláudia Collucci: Então, aproveitando esse gancho, no início do ano, nós assistimos uma polêmica sobre aquele projeto de pesquisa no Rio Grande do Sul, envolvendo o estudo de cérebros de jovens homicidas para estudar as bases dessa violência. E gerou uma enorme polêmica, grupos de direitos humanos contrários à pesquisa. O que você pensa sobre isso?
Suzana Herculano-Houzel: Eu penso que é um assunto espinhoso e, na nossa cultura, na nossa sociedade, em especial, é vista com maus olhos qualquer tentativa de explicar, não estou dizendo justificar, mas, explicar comportamentos como, por exemplo, comportamento violento, o comportamento anti-social, como sendo um problema biológico. Como sendo um problema do cérebro mesmo. No entanto, a gente já sabe, graças às pesquisas feitas em outros países que aceitam esse tipo de investigação, que existe sim, uma série de alterações no cérebro que podem modificar o comportamento daquelas pessoas. São os sociopatas [portadores de distúrbio de personalidade dissocial]. Eles têm várias alterações no cérebro, na forma, no funcionamento. Talvez no desenvolvimento de estruturas específicas do cérebro que regulam as emoções. Até que ponto a gente é capaz de se colocar no lugar do outro? De prever ou se incomodar com as emoções do outro? Com a resposta do outro às nossas ações? E o interessante é que esse tipo, essas pessoas que têm esse tipo de alteração no cérebro, os sociopatas, eles florescem, eles se dão extraordinariamente bem em culturas como a nossa que tendem a passar mão na cabeça das pessoas e dizer: “pobrezinho não é culpa dele. Não é genética não é biologia é a sociedade que faz...”
[sobreposição de vozes]
Cláudia Collucci: Mas, o que fazer?
Suzana Herculano-Houzel: Olha, a primeira coisa é uma ajuda extraordinária, não para o sociopata, não para a pessoa que tem alteração e sim para aqueles que convivem com essa pessoa. Porque você reconhecer que todos os problemas de comportamento, desvio de conduta, violência, extorsão, uso de drogas e todos os problemas sociais do seu filho não são culpa sua. Não é porque você não educou direito, ou educou errado, ou não deu as condições que deveria ter dado. E, mais ainda, não tem o que fazer. Não tem como lidar com aquilo.
Fabiane Leite: [Há] já hoje algumas terapias para agressores. Quer dizer, você tem grupos trabalhando com terapia cognitiva comportamental com agressores, por exemplo, agressores conjugais. [Esta psicoterapia parte do pressuposto que o ambiente, as características pessoais de temperamento e o comportamento situacional determinam uma pessoa. Define ainda que o comportamento é um fenômeno dinâmico
Suzana Herculano-Houzel: Antes de mais nada, existe uma diferença entre o agressor ocasional, quer dizer, o que acontece dentro daquele contexto, dentro daquela situação específica e a pessoa que tem uma sociopatia. Quer dizer...
Fabiane Leite: São agressores desde os 20 anos. Por exemplo, existem grupos trabalhando com agressores, pessoas que agridem as mulheres há 20 anos, por exemplo. Quer dizer é uma coisa...
[...]: Reincidente.
Suzana Herculano-Houzel: Isso não, olha só, isso não é uma separação fácil de fazer, tá?
Mariluce Moura: A minha pergunta é exatamente essa. Quando se tenta demarcar na anatomia cerebral os comportamentos socialmente condenáveis, do ponto de vista da violência e tudo isso. Se você não está simplesmente... Quando se vai por essa tendência, não se joga fora tudo o que nós sabemos sobre a questão da cultura, a questão das relações sociais, a questão das interações, o ambiente? Quer dizer, não é uma base biologista demais, reducionista demais no sentido biológico para entender a violência?
Suzana Herculano-Houzel: Não, existe uma diferença incrível. É como a questão das 15 dicas. Se são um conjunto de 15 dicas ou se isso significa que são apenas 15 dicas. E daí, claro, a importância de fazer a divulgação de uma maneira correta.
Mariluce Moura: Porque o medo é que se volte ao Lombroso [Cesare Lombroso] nessa história do sociopata, do cérebro.
Suzana Herculano-Houzel: Aí é que está, a importância de entender a questão como ela é. E é a diferença entre você entender que a sociopatia, ela pode ser o resultado de uma alteração do cérebro, tá? Isso não significa que a cultura não tenha, a maneira como a gente é tratado, educado pela família e tudo o mais, não tenha nenhuma influência. Não é isso. Dizer que a sociopatia é o resultado de alterações no cérebro não é sinônimo, de maneira alguma, de dizer que a cultura é irrelevante. Não é isso, pelo contrário.
Mariluce Moura: Mas, qual é a garantia de afirmar que a sociopatia está fundada na anatomia cerebral?
Suzana Herculano-Houzel: Uma série de razões. Por exemplo, você observa que lesões em regiões específicas envolvidas nessa porção da frente do cérebro, elas provocam... A pessoa tinha comportamento socialmente adequado, normal, ela era sociável, responsável tudo o mais. Até uma lesão acontecer e, a partir da lesão ela perde aquela capacidade.
Mariluce Moura: Mas, isso é um terreno cheio de incertezas, mesmo do ponto de vista da neurociência stricto sensu.
Suzana Herculano-Houzel: Não, de modo algum. A gente não tem tempo tenho rever toda a literatura científica sobre o caso. Eu queria só insistir em um ponto. Ao mesmo tempo em que a gente reconhece que alterações no cérebro são capazes de modificar o cérebro de maneira tão profunda, de modo a tornar o comportamento anti-social. A mesma neurociência.
Mariluce Moura: Lesões traumáticas você está falando?
Suzana Herculano-Houzel: Não, não são só lesões traumáticas, são alterações de fundo genético, acontece daquele jeito, o cérebro foi formado daquele jeito nessas pessoas. A mesma neurociência descobre que ser tratado com violência modifica o cérebro de uma maneira tal que predispõe a pessoa a ter comportamento violento. Agora, olha só. O que acontece no caso da pessoa que tem predisposição genética à sociopatia, que envolve o comportamento violento e cresce, então, nessa família que tem a predisposição [para comportamento violento]. Você une o ruim com o pior ainda, por quê? Se você já tem a predisposição genética e você cresce numa família que te trata mal, com violência. Por exemplo, entre outras razões, porque os seus pais foram maltratados, foram criados em condições adversas com muita, sujeitos à violência e ainda tinham uma predisposição genética desfavorável. O resultado é que você, não só nasce com uma predisposição biológica desfavorável - vinda dos seus pais - como, por causa dela, ainda vai ser tratado com violência. Então, é uma combinação explosiva. Agora, a vantagem é que, ao mesmo tempo, a gente descobre que existe, assim como violência gera violência, porque ela modifica a maneira do cérebro responder às ameaças, a gente descobre que, ao contrário, no outro pólo, carinho gera carinho. Você ser bem tratado faz com que o seu cérebro trate melhor os outros.
Mariluce Moura: Portanto esse determinismo é meio perigoso.
Suzana Herculano-Houzel: Não é determinismo é a combinação das duas coisas. O cérebro, a biologia do cérebro sozinha, em raras ocasiões determina, de fato, o destino de uma pessoa. Doenças genéticas, poucas doenças genéticas fazem isso. Doença de Huntington [doença degenerativa e hereditária, causada por uma mutação genética, que afeta o sistema nervoso central, provocando movimentos involuntários nos braços, pernas e rosto] é uma das que a gente conhece hoje que ainda é determinista . É o que eu estava falando sobre a biologia do cérebro como um ponto de partida. Você começa com aquilo ali. E você tem a possibilidade de mudar o seu cérebro, conforme ele vai sendo, conforme você passa por experiências diferentes, conforme você cresce. Algumas dessas predisposições biológicas inatas - não importa se genéticas ou não - algumas delas são tão fortes que, não importa o que você faça, o seu comportamento será encaminhado, digamos, para aquele lado. Outras não. A gente sabe da existência de pessoas que nascem com uma tendência inata ao pessimismo, a se desvalorizar, a encarar todos os acontecimentos de uma maneira negativa. Isso não quer dizer que essa pessoa vá ser um pessimista para o resto da vida. Ela pode usar o próprio conhecimento do fato de ser pessimista, para criar hábitos diferentes e, então, quer dizer, ela pode, ela consegue mudar a maneira como o próprio cérebro enxerga a sua vida, enxerga o seu próprio funcionamento e mudar. Então, é uma combinação das duas coisas.
Mariluce Moura: Eu só queria dizer que quando eu falei “um terreno cheio de incertezas” estava levantando, na verdade, é que a ciência chegou em um determinado momento, [mas] ela sempre é provisória. Porque a ciência sempre é uma construção permanente. Nesse sentido, eu digo: “A gente está tateando num terreno cheio de incertezas, porque o que você coloca como hoje, amanhã pode ser outra coisa”. A visão da própria ciência a respeito.
Suzana Herculano-Houzel:: Sim, eu sou a primeira a dizer isso. Mas, a questão...
Graça Caldas: Nessa linha de raciocínio, a literatura indica que existe uma predisposição genética de 50% da herança da inteligência. Em que medida a cultura, o aprendizado do cérebro pode ser estimulado, pode fazer com que as pessoas que não tenham essa herança genética possam se tornar inteligentes ou socialmente [inteligentes]. Como inteligência emocional, [ou outras] diferentes inteligências constatadas?
Suzana Herculano-Houzel: Pois é, esse geneticamente é o que eu chamo de ponto de partida. Então, a partir desse cérebro que cada um de nós ganha quando nasce, o que faz com que você se torne um concertista, jogador de futebol o que for?
Graça Caldas: Muita transpiração?
Suzana Herculano-Houzel: Muita transpiração. Muita transpiração, motivação é fundamental, mas oportunidade... É a história do piano, ninguém vira concertista se nunca tiver oportunidade...
Graça Caldas: Exercitar.
Suzana Herculano-Houzel: ... de encostar a mão no piano para descobrir que gosta daquilo ou que não gosta, que precisa fazer outra coisa.
Graça Caldas: É necessário exercitar o cérebro?
Suzana Herculano-Houzel: É, esse é um dos princípios básicos, digamos, do funcionamento do cérebro. Se a gente considerar que o cérebro custa caro. E ele custa caro, não só em investimento, que é o investimento que a gente faz ao longo de toda a vida, mas custa caro em termos de energia, daquelas duas mil quilocalorias que vêm na tabela nutricional dos alimentos. Um quarto daquilo, 500 quilocalorias por dia, é destinado exclusivamente ao seu cérebro. O cérebro da gente custa caro. Então, a idéia de que você só mantém o que funciona...
Maurício Tuffani: Agora, pegando na linha desse tipo de investimento mesmo. Apareceram, recentemente, muitos trabalhos dessa suposta área, aí, programação neurolinguística [programa de auto ajuda criada em 1973 por Richard Bandler e John Grinder. Baseia-se na hipótese de que a interação programada e direcionada da mente, corpo e linguagem podem aumentar a percepção individual sobre o mundo, de forma a modificar sua atual situação]. Eu, até, antes de vir ao programa fiz uma pesquisa e a impressão que dá é de que não existe suporte científico para muitas dessas coisas que se diz, de toda essa literatura que tem aparecido, inclusive de investimentos empresariais, de treinamento de executivos. A senhora poderia comentar a respeito disso?
Suzana Herculano-Houzel: O que eu posso comentar é que programação neurolinguística não é neurociência. Não é, digamos, um conjunto de investigações organizadas, sistemáticas. Até onde eu entendo, a programação neurolinguística é uma proposta de usar algumas observações sobre, por exemplo, em que direção as pessoas olham quando se lembram do passado, quando fazem projeções para o futuro, tudo mais para melhorar, digamos, o comportamento ou o rendimento. Então, nesse sentido, ela é uma proposta. Mas ela não é neurociência. Eu ouço muito isso. São três coisas a neurolinguística, a programação neurolinguística e a neurociência. A neurolinguística é um ramo da neurociência que estuda a linguagem em todas as suas formas relacionadas, quer dizer, como elas estão relacionadas ao funcionamento do cérebro. A programação neurolinguística é um mundo à parte.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Professora, vamos para mais um intervalo. Vamos voltar daqui a pouquinho com a entrevista de hoje que também é acompanhada aqui no Roda Viva pelos estudantes do curso de psicologia do Centro Universitário São Camilo Felipe Bezerra Anton e Bianca de Gois Ferreira e também pelo jornalista Gustavo Pinheiro. Não deixe de acompanhar, de segunda a sábado, o Jornal da Cultura, sempre às 10 da noite, sempre além da notícia. Até já!
[intervalo]
Carlos Eduardo Lins da Silva: Você acompanha no Roda Viva de hoje a entrevista com a professora Suzana Herculano-Houzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora, a senhora diz, em alguns de seus livros, ou em um de seus livros, que a adolescência é um período da vida muito desejável, muito agradável e não devia ser estigmatizado pelos pais e pelos adolescentes. A senhora não tem filho adolescentes ainda.
Suzana Herculano-Houzel: Ainda não.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Como a senhora vai tratar os seus quando eles começarem a ficar entediados, chatos, aborrecidos, querendo sair de casa? O que a senhora vai fazer com seus filhos?
Suzana Herculano-Houzel: Pois é o livro é dedicado a eles com a promessa de se lembrar de tudo o que eu escrevi no livro, quando eles forem adolescentes.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Ao contrário de um certo...
[risos]
Suzana Herculano-Houzel: Mas, a idéia é justamente essa. A adolescência é um período de transformação do cérebro e essas transformações produzem o comportamento característico do adolescente. Que a gente tem a primeira resposta, o primeiro ímpeto é considerar o comportamento adolescente indesejável, inoportuno, desagradável. E, ao contrário, eu acho que a gente pode entender isso de outra forma, quando aceita[m] que isso vem de transformações necessárias do cérebro. Esses comportamentos fazem parte da transição da infância para o adulto. É preciso ficar entediada, é preciso parar de achar graça em tudo o que fazia parte do mundo da infância, para que a gente consiga [se] soltar daquilo e voltar os nossos interesses para o mundo adulto, buscar outras pessoas, expandir o nosso horizonte social. Porque eu acho que, acima de tudo, a adolescência é o período de aprendizado social. A gente, depois de ter aprendido as regras do convívio em família, em pequenos grupos, a adolescência é o período em que o cérebro aprende a lidar com uma sociedade maior.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Telespectador.
Luiza Moraes: Bom, muitos telespectadores fazendo perguntas sobre um assunto, que é hoje em dia um grande problema da humanidade. Como lidar com o estresse, não deixar que ele afete o dia-a-dia das pessoas, não atrapalhe? Essa pergunta específica vem da Maria da Guia, aqui em São Paulo.
Suzana Herculano-Houzel: Pois é, o estresse, é claro, é uma das grandes preocupações e ele aparece em três ou quatro capítulos do livro, justamente, com uma série de dicas que não são exaustivas, não quer dizer que não tenham outras coisas que você possa fazer. Mas, que certamente podem ajudar a lidar com o estresse, né? A primeira é reconhecer a diferença entre o estresse agudo e o estresse crônico. O estresse agudo é aquela resposta, agora, a uma coisa que você tem que fazer, um problema que aparece, uma situação que exige uma resposta sua. A resposta do cérebro ao estresse agudo, ela é formidável. Ela ajuda a gente. Ela que deixa a gente aceso, que faz com que responda, pense rápido. Enquanto ela não for extrema, que é paralisante de fato. O problema do estresse é o estresse crônico. E aí tem uma série de dicas, que a neurociência, hoje, oferece para ajudar a gente a lidar com o estresse crônico. Evitar o estresse crônico, lidar com a ansiedade, que é a antecipação do estresse crônico. E, sobretudo, a importância do exercício físico para ajudar o cérebro a ter uma resposta mais saudável ao estresse. Dormir bem também é fundamental.
Mariluce Moura: Eu gostaria de ouvir as novidades na sua pesquisa, que começou comparando o cérebro de roedores, depois cérebros de primatas. E, agora, chegou já ao homem?
Suzana Herculano-Houzel: Isso. Nós criamos um método novo no laboratório que permite, em 24 horas, a determinação do que é feito o cérebro de um animal, quantos neurônios, quantas células gliais e qual a relação entre esse número de neurônios e o tamanho daquele cérebro [Células gliais tem a função de dar sustentação aos neurônios e auxiliar o seu funcionamento. Constituem cerca de metade do volume do encéfalo]. Então, a gente fez um primeiro estudo comparativo entre várias espécies de roedores, do camundongo até a capivara com 40, 50 quilos. E isso permitiu que a gente descobrisse como o cérebro dos roedores cresce, o que torna o cérebro de um roedor maior. Feito isso, a gente passou para os primatas. Então, nos roedores a gente viu que, conforme o cérebro ganha neurônios, esses neurônios, em média, se tornam maiores. O resultado é que o cérebro cresce muito mais vezes do que ele ganhou [em] neurônios. Então, o cérebro de um roedor com dez vezes mais neurônio, ele se torna cerca de 40 vezes maior. É uma maneira muito pouco econômica de fazer cérebros maiores, né? Em contraste, o que a gente descobriu é que o cérebro dos primatas, ele é construído segundo uma regra linear. [Significa] dizer que, conforme o cérebro de um primata ganha neurônios, ao longo da evolução, esses neurônios mantêm o tamanho médio - quer dizer, eles não crescem. O resultado é que um cérebro de primata, que tem dez vezes mais neurônios ele é exatas dez vezes maior. Comparado à maneira de construir cérebros de roedores, à regra, digamos, que a natureza usa para construir cérebros de primatas é extraordinariamente econômica. Porque é uma maneira de você condensar um grande número de neurônios dentro de um cérebro, que não se torna proibitivamente grande. Proibitivamente em termos de energia, de funcionamento, [e] em termos de conseguir nascer também. Porque aquele cérebro tem que sair do corpo da mãe, se ele fica grande demais, vai morrer ali mesmo. Mas, acho que, uma das implicações mais interessantes, um dos desdobramentos mais interessantes disso é o que a gente acabou de mostrar; se você pegar essas regras na pré-construção de um cérebro de primata, você pode estimar quantos neurônios seriam feito o cérebro de um primata com 70 quilos - pelo menos no meu caso - e um cérebro de um quilo e meio, mais ou menos, de massa, é realmente bacana. Isso é um trabalho que a gente fez em colaboração com o grupo de estudos e envelhecimento da USP. A gente descobriu que o cérebro humano, ao contrário do que sempre se imaginou, porque a literatura sempre disse que nós somos extraordinários, especiais, o nosso cérebro é cinco, sete vezes maior do que deveria ser para o corpo que a gente tem. A gente mostra que não. Não tem nada disso. A gente tem o cérebro que tem o número de neurônios esperado para um primata do nosso tamanho, com o cérebro do nosso tamanho. Então, nesse sentido, a gente pode mostrar que nós somos apenas primatas. O grande primata, o primata que tem o maior cérebro dentre os primatas vivos hoje. E talvez seja simplesmente isso que permita que a gente esteja aqui, e não nas árvores ou em algum lugar ainda. Quer dizer, o fato de ser primata, o cérebro é construído de uma maneira super econômica e dentre os primatas ter o maior cérebro, o que significa ter o maior número de neurônios para fazer tudo o que a gente gosta de fazer.
Fabiane Leite: Suzana, Alzheimer e Parkinson, o que a neurociência tem a dizer? Quer dizer, há esperança com a pesquisa [que está] sendo feita? Quer dizer, há a possibilidade de o cérebro buscar outros caminhos, se regenerar. As pesquisas estão mostrando alguma coisa nesse sentido?
Suzana Herculano-Houzel: Cada vez mais. E a gente descobre, inclusive, caminhos novos dentro da neurociência a respeito dessas doenças. São doenças degenerativas. O que quer dizer que elas envolvem, elas surgem, elas progridem com a perda progressiva de neurônios dentro do cérebro. Hoje em dia, se considera que essas doenças têm o componente inflamatório muito importante, o que abre todo um novo horizonte para tratamento envolvendo drogas antiinflamatórias também além de todo o tratamento que já se usa. E, é claro, tem toda a perspectiva, agora, de desenvolver, de pesquisar tratamentos com células-tronco que tenham a capacidade de repovoar as regiões do cérebro que são destruídas nessas doenças.
Graça Caldas: Suzana, eu gostaria de saber, na sua opinião, como os meios de comunicação influenciam o cérebro na tomada de decisões? Como resistir aos diferentes apelos, principalmente consumistas e tomar decisões acertadas?
Suzana Herculano-Houzel: Eu estava conversando ontem com alguém que estava me dizendo: “Ah a gente não consegue mostrar”... Meu vizinho estava falando “é muito difícil você transmitir para alguém o sabor de uma bebida, né?” Qual o prazer, de fato, de alguma coisa. Então, o que a propaganda faz é explorar, já que não dá para mostrar pela televisão, pela mídia qual é o gosto daquilo, que sensação aquele produto dá. Vamos mostrar, então, o prazer que aquilo pode proporcionar a alguém. E aí entram os neurônios espelho, entram toda a capacidade que o cérebro tem de se colocar no lugar do outro. De antecipar, por imitação, inclusive: “Ah, se fulano fica tão feliz dirigindo esse carro, quem sabe eu também fique feliz dirigindo esse carro”.
Graça Caldas: Como fazer o cérebro resistir a esses apelos?
Suzana Herculano-Houzel: Pois é, eu acho que uma das lições, digamos, mais úteis da neurociência recente é a recomendação - o pessoal do cartão de crédito vai me detestar - mas, deixe o seu cartão de crédito em casa! Porque o cérebro da gente foi feito para lidar com custos e benefícios reais, palpáveis. E o cartão de crédito bota isso abaixo. O benefício continua ali, na sua frente, e o custo é parcelado em dez vezes. [Risos] Então, tem esse lado. Tem o lado de entender a base da propaganda, que é o despertar a motivação no cérebro do outro, né? E a gente, conhecendo como usam isso, a gente pode responder pelo menos.
Cláudia Collucci : Suzana, remédios para a memória funcionam, não funcionam?
Suzana Herculano-Houzel: Eu acho que o melhor remédio para memória é usar a memória. Perto disso, eu acho que, antes de dizer que qualquer remédio funciona ou não funciona, a gente precisa considerar que todos, sem exceção, têm efeitos colaterais. Têm a possibilidade, pelo menos, de causar efeitos colaterais. Eu prefiro considerar que “em time que está ganhando não se mexe”. O cérebro tem um trabalho danado para manter o equilíbrio dele de um jeito que funcione, que seja adequado, ajustado às necessidades de cada um. Então, se funciona bem e considerando, sobretudo, que o que faz a memória da gente ser boa, atender às nossas necessidades é o simples fato de se usar a memória, exigir [dela]. Tentar lembrar os números de cabeça, ao invés de colocar tudo na agenda do telefone. Eu prefiro pensar que tem tantas outras coisas que a gente pode fazer pela nossa memória, que qualquer remédio para a memória, sobretudo dadas às possibilidades de eles terem efeitos colaterais, que a gente ainda não sabe, é preferível não usar. O que é muito diferente de dizer que a gente não deve usar medicamentos para o cérebro, quando eles são necessários, de modo algum. Os medicamentos têm a sua função e quando eles têm benefícios, quando eles podem trazer benefícios que são maiores do que os efeitos colaterais ou do que os custos possíveis ou prováveis daquele medicamento, a idéia do medicamento é justamente tornar a vida da gente melhor. Eu preciso de um medicamento para o meu coração e eu não me importo de dizer enquanto eu puder tomar esse medicamento todos os dias, isso me mantiver saudável, feliz e longe do pronto-socorro, eu estou achando ótimo.
Maurício Tuffani: Uma das suas linhas de pesquisa é a avaliação do analfabetismo neurocientífico da população. Qual é a dimensão desse analfabetismo neurocientífico da população?
Suzana Herculano-Houzel: Ele só faz sentido se colocado em questões específicas. Então, eu descobri, com essa pesquisa, por exemplo, que boa parte do público tem idéias incorretas sobre os vários estágios do sono, ou a relação entre a base do aprendizado e a mudança do cérebro. São conhecimentos específicos que faltam. Mas, eu prefiro salientar o que a gente descobre de bacana com esse tipo de pesquisa. Primeiro, que o público tem um interesse enorme pela pesquisa que diz respeito ao cotidiano e não necessariamente tratamentos, doenças e tudo o mais. Segundo, a maior parte do público, quando eu fiz essa pesquisa, era mais de 80% das pessoas, aceitam que a nossa mente, o nosso comportamento é resultado do funcionamento do cérebro. Isso é, antes de mais nada, é a base para a neurociência andar. É base para a gente aceitar que todas essas descobertas da neurociência podem voltar para a gente, podem ser úteis para o nosso comportamento. E, acima de tudo, para a gente se entender, né? Quem somos, como o cérebro faz para funcionar.
Gláucia Leal: Algum tempero impensável a aproximação entre psicanálise [Freud] e neurociência, embora o próprio Freud fosse neurologista. E hoje o que se vê é que representantes importantes das neurociências no mundo, enfim, uma série de neurocientistas se volta para o estudo da psicanálise. Eu gostaria de saber a sua opinião sobre a possibilidade de aproximação dessas duas formas de olhar o ser humano, compreender a mente...
Suzana Herculano-Houzel: Duas histórias paralelas. A psicanálise nasceu e se desenvolveu e se mantém até hoje absolutamente à parte da neurociência, sem precisar da neurociência e sem usar, sem se preocupar em usar esses conhecimentos. E, do seu lado, a neurociência também cresceu, se desenvolveu à parte da psicanálise. É claro que existem hoje pessoas que procuram um paralelo, e eu acho que, antes de mais nada, não é mais possível para um psicanalista continuar ignorando totalmente tudo o que a gente já descobriu, tudo o que a gente já entendeu sobre o funcionamento do cérebro. Então, eu acho natural que exista, antes de mais nada, por parte dos psicanalistas um interesse. Agora, eu não acredito que exista uma neuropsicanálise. Existe neurociência, existe psicanálise, e acima de tudo, a psicanálise não depende da neurociência e a neurociência não depende da psicanálise. Agora, é claro, um diálogo entre as duas pode ser sempre interessante, os dois lados têm a ganhar.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Freud não morreu, então?
Suzana Herculano-Houzel: Freud não morreu, ele morreu e as pessoas continuam mantendo ele vivo, então.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Ainda bem. O Roda Viva está chegando ao fim. Queremos agradecer muito a sua presença, professora.
Suzana Herculano-Houzel: O prazer foi meu.
Carlos Eduardo Lins da Silva: A bancada de entrevistadores. E principalmente a você, telespectador que nos mandaram tantas perguntas, a professora Suzana gentilmente resolveu recebê-las e vai respondê-las por e-mail mais tarde.