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Carlos Eduardo Lins da Silva: Boa noite! Ele corre o mundo representando o Brasil. Negocia tratados, acordos, abre frentes para o comércio do Brasil nos outros países e marca a presença brasileira nos fóruns multilaterais e bilaterais. É uma tarefa complicada num mundo cheio de turbulências e que, recentemente, viu brasileiros serem novamente barrados na Europa [a partir de fevereiro de 2008, causou impacto na imprensa national notícias sobre brasileiros que iam a congressos científicos ou fazer cursos na Europa e que foram barrados em Madri, onde faziam apenas escala, confinados por dias no aeroporto e mandados de volta para o Brasil] e três vizinhos do Brasil ficarem em pé de guerra. O Roda Viva entrevista hoje o encarregado das questões internacionais do Brasil: o ministro das Relações Exteriores, diplomata Celso Amorim. Você vê a entrevista num instante.
[intervalo]
Carlos Eduardo Lins da Silva: Esta é a segunda vez que Celso Amorim ocupa o Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Com isso, ele já é o ministro que ficou mais tempo no cargo depois do Barão do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), um dos maiores diplomatas brasileiros; algumas linhas gerais para a diplomacia brasileira que ele estabeleceu são seguidas até hoje], o patrono da diplomacia brasileira e que emprestou o seu nome ao instituto que forma os diplomatas do Brasil, onde Celso Amorim estudou.
[inserção de vídeo]
Valéria Grillo: [em off, enquanto passam imagens de Celso Amorim] Celso Luiz Nunes Amorim terminou o curso de diplomacia no Instituto Rio Branco [que forma diplomatas para o Itamaraty] em 1965. Aos 65 anos de idade e 43 de carreira, é um veterano do Itamaraty e um dos diplomatas brasileiros mais conhecidos no exterior. Em 1993, foi ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco [presidente entre 1992 e 1994]. No governo Fernando Henrique [1995-2002], foi embaixador do Brasil na ONU [Organização das Nações Unidas] e, depois, embaixador brasileiro em Londres. Com a eleição do [presidente] Luiz Inácio Lula da Silva [em 2002], Celso Amorim voltou a comandar o Itamaraty, assumindo uma linha mais independente de atuação do Brasil no exterior. Uma política externa que privilegia a América do Sul, mas que também procura um equilíbrio nas relações com parceiros tradicionais e o aumento do número de aliados comerciais do Brasil no mundo. Desde então, às vezes juntos, às vezes separados, ministro e presidente têm se dedicado a uma maratona de viagens. Rússia, China, Índia e África integram um roteiro novo na busca de novos investidores e na formação de novos blocos econômicos. Uma ação destinada a compensar as dificuldades no continente americano, onde as negociações da Alca, Área de Livre Comércio das Américas [bloco econômico ainda não instituído entre todos os países independentes das Américas, exceto Cuba, articulado pelos Estados Unidos], tropeçam há mais de dez anos e onde o Mercosul [Mercado Comum do Sul, união aduaneira formada por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai], que aguarda a aprovação da Venezuela [pelos parlamentos dos membros do bloco] como novo membro, espera, igualmente, a superação de disputas e o fechamento de um acordo [de livre comércio] com a União Européia [bloco econômico formado por 25 países europeus, dos quais 13 possuem uma moeda em comum, o euro]. No plano político, a diplomacia brasileira também procura ser mais influente. Quer um assento permanente do Brasil no Conselho de Segurança da ONU e trabalha para firmar um papel de liderança na América do Sul. Recentemente, o Brasil teve uma atuação importante no controle da crise [crise entre Equador, Colômbia e Venezuela] criada depois que militares colombianos atacaram um acampamento do grupo guerrilheiro Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia [Farc] dentro do território do Equador. Desrespeito à soberania, combate ao terrorismo, denúncias de envolvimento de governos com guerrilheiros e trocas de acusações entre governantes e vizinhos, que incluíram a Venezuela, inflamaram a discussão, deixando claro que o problema das Farc se tornou regional. Uma dor de cabeça a mais para a diplomacia que, no caso do Brasil, ainda teve que enfrentar, quase ao mesmo tempo, um outro tipo de crise: brasileiros barrados na Espanha. Só na primeira semana de março foram trinta; de janeiro até agora, mais de mil. Autoridades espanholas que apertaram a fiscalização contra a imigração ilegal no aeroporto de Madri alegaram que eles não cumpriram exigências legais para entrar no país. O Itamaraty protestou junto ao governo espanhol e ameaçou usar o princípio de reciprocidade. A imigração brasileira chegou a barrar a entrada de cidadãos espanhóis no Brasil sob a mesma alegação. Após duas semanas de tensões, o ministro Celso Amorim acertou uma espécie de trégua com a Espanha, para que o problema seja discutido e resolvido. O episódio chamou a atenção para o crescente número de brasileiros que são impedidos de entrar em outros países, algumas vezes até sem motivo aparente e outras por suspeita de imigração ilegal, o que também aumentou o número de brasileiros barrados ou deportados do México e Estados Unidos, além da Europa. Pelas estimativas do Itamaraty, entre três e quatro milhões de brasileiros vivem hoje no exterior, muitos deles de forma clandestina. Dois terços dos brasileiros que moram nos Estados Unidos estão em situação ilegal. Na Espanha, é algo em torno da metade.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Para entrevistar o ministro Celso Amorim esta noite nós convidamos: Cláudio Camargo, editor de Brasil, da revista IstoÉ; Marcelo Cavallari, editor de Internacional, da revista Época; Eliane Cantanhêde, colunista do jornal Folha de S. Paulo, Maria Lúcia Pádua Lima, coordenadora de relações internacionais da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas; Lourival Sant’Anna, repórter especial do jornal O Estado de S. Paulo; Demétrio Magnoli, sociólogo, especialista em relações internacionais e editor do jornal Mundo, geografia e política internacional; e Carmem Amorim, repórter do Núcleo de Jornalismo da TV Cultura, que traz para a entrevista perguntas enviadas pelos telespectadores e internautas. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional de televisão e também pela Rádio Cultura AM, em 1200 kHz. Se quiser participar mandando perguntas, pode ligar para o telefone zero, operadora, (11) 3677-1310; se quiser usar a internet, pode enviar suas perguntas, críticas e sugestões para www.tvcultura.com.br/rodaviva. Boa noite, ministro!
Celso Amorim: Boa noite!
Carlos Eduardo Lins da Silva: Ministro, a primeira década do século XXI começou com, aparentemente, um processo de integração acelerado na América do Sul. Houve a primeira cúpula dos presidentes do subcontinente e parecia que havia um projeto de integração física de infra-estrutura e político e econômico. No entanto, nos últimos anos, temos visto uma série de acontecimentos disturbadores dessa ordem que estava se estabelecendo. Argentina e Uruguai brigando por causa das papeleiras [conflito diplomático entre os dois países iniciado em 2005 pela instalação de uma fábrica de papel da empresa finlandesa, Botnia, no lado uruguaio das margens do rio Uruguai, que faz fronteira entre os dois países; os argentinos dizem que a fábrica polui seu território; piquetes apoiados pelo governo argentino já chegaram a bloquear as passagens fronteiriças por meses seguidos]; Venezuela e Peru, por causa das eleições [presidenciais peruanas] em que o presidente [venezuelano Hugo] Chávez apoiava o candidato Ollanta Humala [o que gerou protestos do governo peruano; Humala perdeu as eleições de junho para Alan García]; Bolívia e Brasil, por causa do gás [o “decreto da nacionalização” da exploração do gás na Bolívia, do governo de Evo Morales, em maio de 2006, colocou o país em conflito aberto com a Petrobras, que investia maciçamente no país]; Venezuela e Comunidade Andina [das Nações, CAN], por causa dos acordos [bilaterais] de Peru e Colômbia com os Estados Unidos; Peru e Chile, por causa da fronteira marítima; e, agora, Colômbia, Equador e Venezuela, nesse problema com que o senhor está lidando atualmente. O que aconteceu com a América do Sul? O sonho de integração está adiado, está passando por problemas ou isso são distúrbios naturais da ordem internacional?
Celso Amorim: Olha, claro que não são desejáveis. Alguns que você mencionou são mais graves que outros; alguns são normais. Não se pode esperar... Na União Européia, subsistem problemas, alguns de fronteira, subsistem conflitos sobre a utilização de recursos naturais, subsistem uma porção de conflitos que vão encontrando o seu encaminhamento. A expectativa nossa é que o mesmo ocorra na América do Sul. Eu não quero subestimar a importância do que ocorreu, mas todos esses problemas que você mencionou - alguns deles, principalmente - são mais razões para que nós venhamos a ter mais e melhor - até parodiando um pouco o Tabaré Vázquez, presidente do Uruguai - integração na América do Sul. E ela tem sido muito, muito positiva. Do ponto de vista brasileiro, o nosso comércio com a América do Sul, que era, talvez, 8 ou 9% do total - menos, até - do nosso comércio exterior, hoje está em 16%, 19% da América do Sul. Só América do Sul; América Latina e Caribe, chegam a 26%. Então, isso é uma... Agora, esses problemas ocorrem. E ocorrem, sobretudo, entre países que se relacionam muito. Temos que enfrentá los.
Lourival Sant’Anna: Ministro, vale a pena trazer para o Mercosul, que já tem esses problemas todos, um presidente com uma retórica tão incendiária quanto a do Hugo Chávez? Não só retórica, mas também com ações, como nós acabamos de ver, bastante perturbadoras. O Mercosul, que teria interesse em negociar com a União Européia, negociar com os Estados Unidos... Não fica muito mais difícil com a presença da Venezuela sob Hugo Chávez no Mercosul?
Celso Amorim: Bom, primeiro, que nós não estamos trazendo, necessariamente, o presidente Hugo Chávez, com todo respeito a ele. Nós estamos trazendo a Venezuela para o Mercosul. E acho que isso é muito importante para a região. Quando eu tratei do Mercosul, inicialmente, numa outra fase da minha carreira, antes, ainda, do governo do presidente Itamar Franco, as pessoas confundiram, diziam que o Mercosul era o mercado comum do Cone Sul [região do sul da América do Sul, formada por Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile] - e até hoje se faz a confusão -, quando a idéia não era essa. Com a entrada da Venezuela, nós vamos ver que, no Mercosul, o potencial é ser um mercado comum ou, pelo menos, um processo de integração de toda a América do Sul. Eu acho que isso é essencial no mundo de hoje de grandes blocos. Vejam, a China, em si, é um grande bloco; a Índia é um grande bloco - ela própria com um bilhão de habitantes -; Estados Unidos é um bloco em si; União Européia é um bloco. Nós não podemos ficar isolados. Mesmo um país grande como o Brasil precisa de reforço para poder atuar internacionalmente. E os outros países da América do Sul têm mais razão ainda. Então, eu acho que... Só para terminar um pouquinho aqui, eu acho que a integração é que ajuda a trazer a paz. Acho que essa é a lição da União Européia e nós temos que segui-la.
Demétrio Magnoli: O presidente Chávez declarou, na reunião inicial, quando a Venezuela passou a participar do Mercosul, o seguinte: "O Mercosul, ou o reformamos e fazemos um novo Mercosul, ou também se acabará. Não é um instrumento adequado para a era em que estamos vivendo. Vamos enterrar nossos mortos, irmãos!" Eu pergunto: é verdade, quando se integra a Venezuela, não se está integrando o presidente Chávez; mas não está se integrando a Venezuela sem o presidente Chávez.
Celso Amorim: Não, nem [fala junto com Demétrio, concordando com sua última afirmação].
Demétrio Magnoli: Então, o que eu pergunto é: é normal...
Celso Amorim: O presidente Chávez foi um presidente eleito pela Venezuela...
Demétrio Magnoli: Sim. É normal...
Celso Amorim: ...com 60% dos votos.
Demétrio Magnoli: Claro, claro! É normal a integração, num bloco, de um parceiro que declara que a sua intenção é enterrar o bloco? Que declara que esse bloco não serve? Então, a minha pergunta, na verdade, é a seguinte: nós vamos integrar a Venezuela para enterrar o Mercosul tal como existe na sua origem e criar um outro Mercosul? E Chávez também deixou claro que seria isso. O outro Mercosul é uma aliança bolivariana [referência às propostas de mudanças políticas de Chávez para seu país, batizadas por ele de “bolivarianas”]...
Celso Amorim: Não, não se trata isso...
Demétrio Magnoli: ...que envolve uma integração de tipo bolivariano da América do Sul.
Celso Amorim: Em todo processo de aprendizado, há um processo de aprendizado recíproco. E esse aprendizado está ocorrendo de maneira acelerada. Eu acho que o presidente Chávez está vendo as grandes vantagens que tem o Mercosul em termos de integração industrial. Nós, agora mesmo, estamos abrindo uma agência da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] lá, estamos abrindo um escritório da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. São problemas que preocupam o presidente Chávez. Ele pode, às vezes, na sua retórica - não vou julgar a retórica de um presidente de outro país -, às vezes, talvez, emitir conceitos com os quais certamente nós não concordamos, como esse. Mas eu tenho a certeza que, a médio-longo prazo, a capacidade do Mercosul de influir na Venezuela é maior do que o da Venezuela de influir no Mercosul. Haverá sempre uma influência recíproca, sem a menor dúvida, mas eu acho que a predominância é de nós fortalecermos esse bloco de integração. Eu acho que esse aprendizado vai ocorrendo e vai ocorrendo aos poucos. Algumas retóricas do presidente Chávez podem ser uma reação aos excessos, também, de retóricas opostas que prevaleceram nos anos 90, [pelas quais] tudo era só o livre comércio. Isso é algo que não agrada ele, mas eu tenho a impressão de que, para além disso, há uma percepção de que uma América do Sul integrada, com uma capacidade industrial integrada, com capacidade agrícola integrada, sem barreiras para produção é benéfica para todos e ajudará a melhorar as condições sociais de todos os países. Isso é que é fundamental para atuarmos no mundo de hoje.
Marcelo Cavallari: Paralelamente à integração da América do Sul – que, afinal de contas, é onde nós vivemos, é o nosso vizinho -, o senhor...
Celso Amorim: Me desculpe, mas haviam me perguntado: “Por que vocês se interessam tanto pela América do Sul?”. Aí, eu disse: “Porque a gente mora aqui.” [risos]
Marcelo Cavallari: Eu lembro, fui eu que perguntei.
Celso Amorim: Pois é.
Marcelo Cavallari: Paralelamente a isso, o senhor sempre elogiou, como mudança do foco da política externa do governo Lula, a aproximação com os países árabes, a aproximação com países africanos, a aproximação com Índia, África do Sul e...
Celso Amorim: No segundo dia de governo, se me permite para confirmar o seu ponto, ajudamos a criar o IBAS – [Fórum de Diálogo] Índia-Brasil-África do Sul. Hoje em dia, a [secretária de Estado dos Estados Unidos] Condoleezza Rice fala do IBAS, cita como exemplo, digamos, da boa coordenação de três grandes democracias multi-étnicas, multiculturais.
Marcelo Cavallari: Por outro lado, a aproximação com esses continentes ou blocos - África, árabes - nos põe diretamente em contato com regiões com países muito problemáticos, países quase disfuncionais na África, países ditatoriais ou quase...
Celso Amorim: Quem não quiser problema se esconde no seu quarto e não participa das relações internacionais.
Marcelo Cavallari: Mas o Brasil está preparado para lidar com isso? Quer dizer, aqui, entre os nossos vizinhos, a gente não tem muita escolha; vale a pena procurar?
Celso Amorim: Sempre quando me perguntam... Quando me nomeiam, alguém, para uma função, eu sempre me pergunto: “Mas será que eu estou preparado?” Se os outros acreditam que você está preparado, creia: você está preparado. Eu posso dizer o seguinte: com todos os contatos internacionais que nós temos, todo mundo acredita que o Brasil está preparado. Só no Brasil que, às vezes, se duvida.
Eliane Cantanhêde e Maria Lúcia Pádua Lima: [começam a falar quase simultaneamente]
Maria Lúcia Pádua Lima: Só um minuto, é que eu dei a palavra aqui, por favor. A questão é a seguinte: o senhor estava respondendo a questão colocada aqui pelo Demétrio em relação à Venezuela no Mercosul. Então, pela sua resposta, nós podemos concluir que, em primeiro lugar, o Brasil está preparado para também lidar com questões cada vez mais complexas; inclusive, tem - o Mercosul, com a participação do Brasil -, tem uma função importante, digamos, de neutralizar - não sei se a palavra é muito adequada - a presença do presidente Chávez, considerado por muitos uma presença problemática aqui, na América do Sul? Esse é um papel que o senhor vislumbra, também?
Celso Amorim: Eu não vejo exatamente com essa expressão que você usou, de “neutralizar” o presidente Chávez. Nós temos boas relações com o presidente Chávez. Ele vai visitar o Brasil, aliás, dentro de dois ou três dias. Estará em Recife. Temos relações intensíssimas. A Venezuela ocupou, no ano passado, o quarto ou quinto lugar entre os principais mercados para os produtos brasileiros. Os investimentos brasileiros todos estão muito contentes lá. Ele pode até, digamos, ter uma retórica, uma visão anticapitalista, mas os capitalistas brasileiros que estão lá estão contentes. Essa é a impressão que eu tenho. O Brasil tem exportado muito. Eu acho que nós podemos, a médio prazo, sim, ter uma influência. Uma influência positiva. Nós não queremos neutralizar. Eu acho que ninguém... Eu não acredito numa visão demoníaca do mundo. Eu não acho que o mundo é dividido em bons e maus. Eu acho que os seres humanos e os países são complexos. Então, se você sempre puder atuar no sentido de valorizar as coisas positivas, seja de uma pessoa, seja de um país, você está agindo a favor da paz, a favor da integração. A experiência demonstra claramente que demonizar seja quem for, por mais erros que haja, só conduz a desastre. Deixa eu ouvir a Eliane e volto para você.
Eliane Cantanhêde: Obrigada. Ministro, quando a gente discute a questão da América do Sul, o senhor fala da integração. Mas a América do Sul não está conseguindo nem constituir a Casa [Comunidade Sul-Americana de Nações], que virou Unasul [União das Nações Sul-Americanas], e não está conseguindo sequer fazer a reunião que estava marcada agora para os dias 28 e 29 [a reunião foi cancelada no dia 19 de março porque o presidente do Equador, Rafael Corrêa, recusou-se a pisar em solo colombiano, onde seria o encontro, por causa da crise entre os dois países do início daquele mês] . E, dentro desse contexto todo, se discute uma coisa mais avançada ainda, que é o Conselho Sul-Americano de Defesa [cuja criação foi proposta pelo ministro Nelson Jobim ao governo da Argentina em fevereiro de 2008; em maio, foi tomada a decisão de criá-lo, numa reunião da Unasul; o governo colombiano se opõe]. Se nem a diplomacia está dando conta disso, como a gente vai botar no mesmo saco militares da Venezuela, da Colômbia, da Bolívia, do Equador... Não é um passo muito mais adiante...?
Celso Amorim: Primeiro, eles já estão no mesmo saco na Junta Interamericana de Defesa, onde tem também Estados Unidos, Canadá, Caribe etc.
Eliane Cantanhêde: Ou seja, tem uma parte de neutralização. Sem essa parte de neutralização, como é que vai ficar esse...
Celso Amorim: Não é neutralização, eu não usei essa palavra. Eu acho que há um convívio, há influência recíproca, criação de confiança entre os países. Nada é fácil, Eliane. Se você vai imginar que, depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], fossem criar, dentro de alguns anos, um Mercado Comum Europeu [instituído em 1957], parecia uma coisa impossível. Se você olhar para os problemas, você nunca faz nada. É claro que você tem que reconhecer que existem os problemas. Mas você tem que caminhar em busca de coisas que, estruturalmente, contribuam para a solução. O adiamento da reunião, primeiro, que é um... Para lhe falar a verdade, esse é um processo complexo. O objetivo desta reunião - eu gosto da homenagem que você faz ao nome original que nós demos, que é Casa...
Eliane Cantanhêde: Que é muito melhor do que "Unasul".
Celso Amorim: Enfim, Casa ou Unasul, pouco importa. Mas, de qualquer maneira, essa reunião, o objetivo principal é o acordo constitutivo, é celebrar os... É os presidentes poderem referendar o acordo constitutivo. Faltam poucas coisas, mas ele não está pronto. Eu não posso dizer a você que os acontecimentos das últimas semanas [parece referir-se ao adiamento da reunião da Unasul, mencionado por Eliane Cantanhêde] não foram uma distração. É claro que foram, foram muito importantes. Primeiro, tem que tratar das coisas mais urgentes. Então, esse aspecto, digamos, mais legalista de construir um documento ficou um pouco para um segundo plano. Então, é natural que haja um adiamento. Mas eu tenho certeza de que, até o final do semestre, haverá essa reunião. Depois há, também, cicatrizes que têm que fechar; essas coisas levam tempo.
Eliane Cantanhêde: A minha pergunta estava muito centrada no Conselho Sul-Americano de Defesa porque, até pela lógica, você primeiro organiza a casa diplomaticamente, você cria um ambiente de tranqüilidade, para, depois, você dar o passo seguinte na área militar. Como é que está se fazendo ao contrário?
Celso Amorim: [tentando interromper] Primeiro, eu não acho que é [palavra inaudível, falada junto com Eliane Cantanhêde]
Eliane Cantanhêde: Inclusive, porque o ministro [da Defesa, Nelson] Jobim, o primeiro país que ele vai visitar para discutir o Conselho Sul-Americano de Defesa é, exatamente, a Venezuela, e exatamente sentado com o Hugo Chávez.
Lourival Sant’Anna: É que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. [frase de Carl von Clausewitz (1780-1831), general e estrategista militar prussiano, conhecido por seus livros práticos e teóricos sobre a guerra e a paz]
Celso Amorim: E a paz é a continuação da diplomacia por todos os meios.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Ministro, vamos fazer um intervalo. Voltaremos em um instante com Roda Viva, que tem hoje, na platéia, Mariana Mendicelli, jornalista; Antônio Gonçalves, advogado; Luana Fontana, estudante de Letras da Universidade de São Paulo e de Direito na Universidade Paulista; Juliano Teixeira, estudante de Educação Física na universidade Uni Sant’Anna; Juliana Buralli, estudante de Relações Internacionais da Faap [Fundação Armando Álvares Penteado]; e Tom Canabarro, estudante de Relações Internacionais da Faap. Até já.
[intervalo]
Carlos Eduardo Lins da Silva: Você acompanha hoje, no Roda Viva, a entrevista com o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim. Ministro, [sobre] a questão dos inadmitidos brasileiros na Espanha, parece que foi obtida uma trégua, embora o senhor diga que não tenha sido exatamente essa palavra - mas o senhor interpretou como uma trégua até o final de março, que está acabando essa semana. Quais são as perspectivas para o começo de abril? Que tipo de negociação o Brasil pode fazer com a Espanha que para resolver esse impasse, que mobilizou tanto a opinião pública brasileira?
Celso Amorim: Olha, há uns 15 dias atrás, mais ou menos, ou dez dias atrás, o ministro [Miguel Ángel] Moratinos, o ministro das Relações Exteriores da Espanha, me ligou, preocupado, também, com essa situação. Ele, aliás, fez várias declarações até positivas que eu tenho lido, acompanhando pela imprensa, depois dessa ligação. E, essencialmente, ele propôs que encontrássemos um mecanismo imediato: uma reunião de alto nível entre o secretário brasileiro, o subsecretário que cuida da parte de comunidades brasileiras no exterior e pessoas envolvendo não só Ministério das Relações Exteriores, mas também o Ministério do Interior da Espanha, para encontrar fórmulas que, pelo menos, garantam um tratamento adequado aos brasileiros, que era o que não estava ocorrendo. Agora, esse é um problema que, estruturalmente, vai continuar a existir. Quem morou no exterior sabe que os problemas não ocorrem apenas Espanha - mas, na Espanha, adquiriram uma gravidade especial.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Por enquanto, não se avançou nada?
Celso Amorim: Não, porque é uma reunião... Como o próprio governo espanhol, depois das eleições, está se instalando, é mais eficaz... Por isso que eu falo em trégua até esse momento, para depois procurarmos uma solução...
Carlos Eduardo Lins da Silva: O senhor dizia aqui, um pouquinho antes do início do programa, que tem uma avó espanhola. O senhor não tem cidadania espanhola e não usa sua ascendência como argumento lá?
Celso Amorim: Não tenho cidadania espanhola, não sei, nunca pesquisei e, sinceramente, estou contente com a minha cidadania brasileira. A minha avó, que já não está aqui comigo, também estaria contente só com a minha cidadania brasileira. Isso não influi no meu raciocínio.
Cláudio Camargo: Essa recente crise, que envolveu Colômbia, Equador e Venezuela, ela surpreendeu tanto pelo surgimento dela - que ninguém esperava, foi uma coisa que, inclusive, alguns... o Brasil nem sequer se antecipou a isso, né? Mas, de qualquer maneira, também surpreendeu pela rapidez com que ela foi resolvida. E, também, a posição que os Estados Unidos adotaram no âmbito da OEA [Organização dos Estados Americanos]. Ou seja, uma posição de low profile [discreta] que permitiu, aparentemente, que os países da América Latina pudessem estabelecer, construir uma posição de consenso. O que aconteceu, que houve uma crise tão surpreendente que quase levou muita gente a pensar que os países latino-americanos fossem se envolver numa guerra, e, de repente, conseguir se restabelecer um consenso em que Chávez abraçava o [Álvaro] Uribe [presidente da Colômbia], Uribe abraçava o presidente do Equador? O que houve?
Celso Amorim: Olha, eu acho que houve muito trabalho. Eu não sei com quem eu estava conversando outro dia, falando da questão de sorte, e a pessoa me disse: “Olha, sorte dá muito trabalho, sorte exige muito trabalho”. E foi o que ocorreu para encaminhar positivamente essa situação. Quando cheguei... Eu estava chegando de uma viagem ao Vietnã e a Cingapura e cheguei aqui surpreendido com essa notícia, ao ler a manchete dos jornais, aqui de São Paulo mesmo, os jornais que eu tive que ler ao chegar aqui. E, evidentemente, me comuniquei imediatamente com o presidente Lula. Por orientação dele, em dois dias e meio eu acho que eu dei uns quarenta telefonemas, além dos outros. Para o presidente Lula, eu dei vários. Então, com isso, nós conseguimos, primeiro, ter aquela primeira resolução da OEA que criou aquela comissão. Eu acho que o fato de termos encontrado o leito, digamos assim, para conduzir o assunto desinflou [a crise] um pouco. E a reunião dos presidentes do Grupo do Rio [ou Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política da América Latina e do Caribe] teve aquele desfecho muito positivo. E a reunião seguinte da OEA consolidou isso. Porque a OEA, pela primeira vez - que eu saiba, que eu me lembre; eu, inclusive, trabalhei na missão do Brasil junto a OEA quando era muito jovem -, praticamente absorveu uma resolução adotada pelos latino-americanos, aí incluindo os caribenhos. E fez dessa resolução uma resolução sua. E isso foi aprovado por unanimidade, ou por consenso. Os Estados Unidos fizeram apenas uma ressalva. O que aconteceu? É que eu acho que a disposição para a paz na região é muito grande. Todos sabem que o ônus de nós passarmos por... Uma das grandes vantagens comparativas da América do Sul e da América Latina em geral é que ela é um continente de paz. Pode ter havido conflitos, como há em outros lugares mas, essencialmente, é um continente de paz. E, por ser um continente de paz, tem, inclusive, atraído muitos investimentos estrangeiros, também. De modo que aproveito para mencionar a você que todo esse trabalho nosso para integração e que visa o desenvolvimento, mas visa também a paz, também contribui para que o Brasil - o Brasil, especificamente - seja receptor de tantos investimentos. Agora, basta ver o seguinte: o presidente da Comissão da União Européia veio aqui duas vezes em menos de dois anos. Criamos uma parceria estratégica com a União Européia. O presidente [da França, Nicholas] Sarkozy, que já se encontrou com o presidente Lula uma vez esse ano já na Guiana, volta ao Brasil para fazer uma visita bilateral e para vir, como presidente da União Européia, para continuar essa parceria. Então, eu não estou vendo, absolutamente, esse temor. Esse temor existe muito aqui, nós temos mania de ver fantasmas que outras pessoas não estão vendo.
Demétrio Magnoli: Vamos ver se eu estou vendo fantasma, ministro? Porque o senhor tem a tendência de, quando se coloca a discussão das políticas da Venezuela, dizer que elas são retórica. Eu acho que nós precisamos discutir com os espectadores e com a opinião pública brasileira de uma maneira transparente. O presidente Chávez... Ele qualificou a Colômbia - vou citar entre aspas - como “o Israel da América Latina". Qualificou ainda a Colômbia como, abre aspas: [lendo] "um Estado terrorista subordinado ao governo dos Estados Unidos", fecha aspas. No mesmo pronunciamento, o presidente Chávez disse o seguinte: "o Ayacucho desse século é a Colômbia". Ele se referia à Batalha de Ayacucho, quando os independentistas hispano-americanos, em 1824, derrotaram a Espanha, o general [venezuelano Antonio José de] Sucre [(1795-1830), herói da independência de vários países da América Latina; foi também o primeiro presidente da Bolívia, de 1825 a 1828], em Aycucho [na Bolívia]. Pouco depois, ele fez um minuto de silêncio em homenagem a Raúl Reyes, o número dois das Farc, que foi morto no ataque no Equador, recentemente. Eu não qualifico isso como retórica, eu qualifico isso como uma política...
[Celso Amorim tenta interromper Demétrio Magnoli e os dois falam juntos por sete segundos]
Demétrio Magnoli: Deixa eu fazer a minha pergunta!
Celso Amorim: Mas você está dizendo coisas que eu não disse!
Demétrio Magnoli: Por enquanto, são declarações do Chávez. A minha pergunta é a seguinte. Eu pergunto: isso é ou não é uma interferência de um país sobre um outro país soberano? É ou não é um apoio político da Venezuela à guerrilha degenerada que mata e seqüestra na selva da Colômbia? Será que esse tipo de interferência não exige uma posição do Brasil?
Celso Amorim: Exige uma posição do Brasil. O Brasil, por exemplo, discordou totalmente da posição do presidente da Venezuela em relação às Farc como força beligerante. Nós não concordamos com essa...
Demétrio Magnoli: O Brasil não disse que a Venezuela não deve interferir nos assuntos da Colômbia.
Celso Amorim: Bem, você quer que eu interfira nas palavras do presidente Chávez? Você está sendo contraditório.
Demétrio Magnoli: [interrompendo] Não, eu quero que o Brasil tome uma posição sobre o que está acontecendo.
Celso Amorim: Eu acho o seguinte: o nosso objetivo, aqui, é buscar a conciliação, buscar o diálogo. O presidente Chávez disse muitas coisas com as quais nós não concordamos e disse várias coisas com as quais nós concordamos. Nós preferimos apostar... Aliás, o presidente Uribe também, às vezes, diz coisas com as quais nós não concordamos. O presidente Uribe, por exemplo, defendeu - eu digo isso com muito respeito, porque eu disse pra ele -, ele defendeu a idéia de que o princípio da integridade territorial dos Estados deveria ser matizado.
Demétrio Magnoli: Não, não foi isso.
Celso Amorim: Eu disse que ele disse isso pra mim.
Demétrio Magnoli: [após algumas palavras faladas junto com Celso Amorim] Não, mas eu estou dizendo declarações oficiais.
Celso Amorim: Ele disse pra mim e disse publicamente. Se você tomar o vídeo que existe disponível da conferência, ele se referiu: “Mi caro Celso Amorim” [“Meu caro Celso Amorim” em espanhol] e disse exatamente isso, que não poderia... que o princípio da integridade territorial dos Estados teria que ser matizado. Então, eu não posso, a cada momento, nem o presidente Lula pode, a cada momento, estar discutindo conceitos de um presidente ou de outro. Nós temos que ver como as ações se comportam. O presidente Chávez, nessa reunião que foi mencionada pelo Cláudio Camargo, foi quem deu o primeiro passo em favor de uma solução conciliatória. E digo francamente: Eu não vou entrar nos motivos... Não fazemos processos de intenções. Eu procuro pegar as coisas como elas se apresentam e como elas se refletem na realidade. O presidente Chávez, numa série de discursos muito inflamados, muito fortes, muito contundentes... Tanto o presidente [do Equador, Rafael] Corrêa quanto do presidente Uribe, nessa reunião... Se você for ver o vídeo inteiro, você vai ver: o primeiro discurso - claro, Brasil e México já tinham falado de maneira conciliadora, mas, daqueles que estavam diretamente, digamos, tocados, o presidente Chávez foi o primeiro a fazer um discurso altamente conciliador. Afinal...
Demétrio Magnoli: Ah, então eu não entendi o que ele falou.
Celso Amorim: Não, não foi isso que ele falou nesse dia. Ele disse assim: “Nós vamos resolver isso belicosamente” - num “turbilhão belicoso” algo assim – “ou vamos procurar uma solução pacífica?”
Carlos Eduardo Lins da Silva: Temos uma pergunta do telespectador, aqui. Logo depois, a Maria Lúcia.
Carmem Amorim: Alguns telespectadores passaram e-mails fazendo perguntas sobre o Tibete. Qual a posição do Brasil em relação ao que está acontecendo entre China e Tibete? [referência à repressão violenta do governo chinês a manifestações de monges budistas no Tibete (região anexada pela China em 1950), ocorrida em março] E qual será a atuação do Brasil? Esse telespectador que fez a pergunta é de São Paulo e é o Armando Bonetti.
Celso Amorim: Tudo bem. O governo brasileiro emitiu uma nota hoje sobre a situação do Tibete, de modo que, se a pessoa quiser conferir palavra por palavra qual é a nossa posição, ela poderá conferir nessa nota. Mas eu diria que o Brasil defende a integridade territorial também da China. É uma posição tradicional, não é uma posição só do governo Lula, é uma posição tradicional do Brasil. Agora, o Brasil quer que as coisas sejam resolvidas sem violência. A nossa nota tem esse sentido, em resumo.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Maria Lúcia.
Maria Lúcia Pádua Lima: Ministro, é o seguinte. Em relação a ações práticas - e ainda em referência ao caso Colômbia e Equador -, o senhor chegou a mencionar, em uma entrevista, a possibilidade de nós caminharmos - o Brasil, quero dizer; nosso país - caminharmos no sentido de termos um acordo multilateral que envolva a questão de segurança nacional. Me pareceu uma idéia bastante interessante e, inclusive, eu tive a oportunidade, também, de ver que esta é uma preocupação que está em outros países - inclusive nos Estados Unidos -, de se pensar, da mesma maneira que se tem acordos multilaterais para comércio - principalmente para comércio, mas também para outros assuntos -, que se tivesse [também] no que diz respeito à segurança nacional, uma vez que esta questão está globalizada.
Celso Amorim: Bem. Aproveito a sua pergunta e junto um pouco com a [da] Eliane Cantanhêde. Pois é, porque o Conselho de Defesa tem várias dimensões. Uma dimensão é a cooperação entre as Forças Armadas da nossa região. Eu acho que é pouco, até, inteligível, é pouco compreensível, que exista uma Junta Interamericana de Defesa e não haja um Conselho Sul-Americano de Defesa. No final das contas, somos todos vizinhos, praticamente. No caso do Brasil - com exceção de dois países [Chile e Equador] -, somos vizinhos de todos [da América do Sul]. Mesmo desses outros dois, nós somos muito próximos, não só politicamente, mas mesmo geograficamente. Então, isso já é um aspecto... Agora, quando se fala do Conselho de Defesa, também há essa implicação mais ampla de segurança. Aí, é um assunto essencialmente diplomático, eu diria a você. Como, por exemplo, a União Africana tem. Agora, se você perguntar: “A União Africana resolveu todos os problemas porque criou o [seu] Conselho de Segurança?”. Não, mas pode ajudar. Pode ajudar. Então, eu acho que isso, sim, é algo muito importante. Nós temos a cooperação muito intensa - aliás, reconhecida pelo governo Uribe, pelo presidente Uribe - com a Colômbia, na área de fronteira, reiteradamente reconhecida. E o nosso desejo é que todos possamos ter essa cooperação.
Demétrio Magnoli: O problema da Colômbia são outras fronteiras.
Celso Amorim: Eu não diria que a existência dessa cooperação evitaria todos os problemas que possam surgir. Mas podem diminuir.
Lourival Sant’Anna: Ministro, dois vizinhos do Brasil têm sido flagrados apoiando o terrorismo, apoiando as Farc com palavras e com ações. Eu acho que isso está claro para todo mundo.
Celso Amorim: Eu não concordo com essa sua afirmação nem eles concordam: negam peremptoriamente.
Lourival Sant’Anna: Eles vão negar até o fim da vida. Mas, quer dizer, é óbvio que estão. Todos os tipos de evidências que o senhor quiser. Eu estive lá, a Folha esteve lá, o laptop do Raúl Reyes...
Celso Amorim: Isso aí está com a Interpol [organização policial internacinoal].
Lourival Sant’Anna: ...as declarações do Chávez, a presença das Farc no Equador...
Celso Amorim: Isso [o laptop do Raúl Reyes] está com a Interpol. O presidente Uribe entregou - ou vai entregar, está em processo de entregar - os dados todos que existem sobre o Equador, para que a Justiça equatoriana - [corrigindo-se] para o presidente do Equador, que disse que a Justiça equatoriana e até a oposição equatoriana poderiam fazer a investigação. Eu não vou me pronunciar sobre o conteúdo desses computadores.
Lourival Sant’Anna: Do ponto de vista da legalidade internacional, digamos que fique provado. Tem a resolução 1373, do Conselho de Segurança da ONU [Organização das Nações Unidas], de setembro de 2001, em que o Conselho de Segurança exige que...
Celso Amorim: Cooperação no combate ao terrorismo. Nós estamos totalmente de acordo com isso.
Lourival Sant’Anna: Exige que os países não apóiem o terrorismo, não ofereçam santuários...
Celso Amorim: Nada disso justifica...
Lourival Sant’Anna: ...cai como uma luva para a situação da Venezuela e do Equador, em relação às Farc.
Celso Amorim: [fala algumas palavras junto com Lourival Sant’Anna]
Cláudio Camargo: Qual é o motivo pelo qual o Brasil não classifica as Farc como organização terrorista?
Celso Amorim: Porque o Brasil não classifica nenhuma outra. O Brasil não tem uma classificação de grupos terroristas. É uma coisa muito sutil.
Cláudio Camargo: Mas, eventualmente, tem algum diálogo...
Celso Amorim: Veja bem, é desagradável dar exemplos, porque você acaba entrando em outros países e não é minha função como ministro das Relações Exteriores. Mas vocês, que são pessoas cultas e conhecem a história certamente vão encontrar em muitos países grupos que foram considerados terroristas e que hoje participam de governos, que dialogam com primeiros-ministros. Eu tenho a sensação de que... Eu não acho que a as Farc, hoje, mereçam nenhum status político, porque elas praticam seqüestro, praticam crimes abomináveis. Enquanto elas não abandonarem essas práticas, elas não merecem um status político. Mas pode ser que algum dia elas possam... Pode ser haja algum diálogo. Eu não sei se vai ser possível eliminar fisicamente. Mesmo se...
Eliane Cantanhêde: Tem gente que defende aniquilar as Farc. Os Estados Unidos, por exemplo, defendem aniquilar as Farc.
Celso Amorim: Os Estados Unidos defendem que tem aniquilar várias coisas em várias partes do mundo.
Lourival Sant’Anna: Isso é problema nosso também, não é? A ligação que eles têm com o narcotráfico afeta diretamente a segurança do Rio de Janeiro: um problema brasileiro, também.
Celso Amorim: Vocês, por exemplo, mencionaram acusações. Eu acho, por exemplo, que não foi uma coisa politicamente hábil e certamente terá jogado contra... Eu não estou aqui para defender nem o presidente Chávez nem o presidente Uribe. Nós desejamos a paz e o entendimento entre eles. Achamos que é possível. Os últimos acontecimentos demonstram que isso é possível. Mas também não foi hábil da parte do chamado czar das drogas norte-americano, o general, creio, ou almirante [John] Walters [diretor do Escritório de Política Nacional para o Controle de Drogas dos Estados Unidos], quando esteve na Colômbia, dizer que o presidente Chávez facilitava o narcotráfico, sabendo, como você disse...
Lourival Sant’Anna: Que é verdade?
Celso Amorim: Não. Não, senhor. Sabendo que, digamos, depois do terrorismo a segunda grande ameaça para os Estados Unidos é o narcotráfico. É quase que um convite a dizer que, realmente, o presidente Chávez está ameaçado de um ataque militar.
[vários falam ao mesmo tempo]
Demétrio Magnoli: Vamos voltar ao Brasil.
Eliane Cantanhêde: Eu perguntei sobre anistia. Eu queria saber... O senhor defende a anistia? O senhor defendeu que há exemplos, precedentes de grupos que eram terroristas...
Celso Amorim: Eu não estou defendendo anistia hoje.
Eliane Cantanhêde: ...e foram assimilados.
Celso Amorim: Em algum momento, isso vai ser necessário, indiscutivelmente.
Eliane Cantanhêde: Uma anistia?
Celso Amorim: Não, eu não estou dizendo que hoje... Eu não estou defendendo uma anistia hoje. Hoje, há uma situação...
Eliane Cantanhêde: Hoje; mas uma anistia a médio prazo?
Celso Amorim: Os seqüestros continuam a ser praticados, há muitas pessoas seqüestradas, há muitos reféns que teriam que ser soltos unilateralmente e sem condições. Agora, eu acho que há, no final do processo... O que está acontecendo com os paramilitares? Os paramilitares também não estavam envolvidos com o narcotráfico? Estavam ou não estavam? Pergunto a você, Lourival: estavam ou não estavam? Porque também não estão sendo anti-Chávez?
Lourival Sant’Anna: ...[todos falam ao mesmo tempo] ...com as Farc. Elas é que não querem participar.
Celso Amorim: Em algum momento - pois é, eu concordo -, mas em algum momento, se evoluir positivamente, isso vai ter que ocorrer.
[no diálogo a seguir entre Demétrio Magnoli e Celso Amorim, as falas se superpõem muito freqüentemente e os dois interlocutores interrompem um ao outro em quase todas elas]
Demétrio Magnoli: Ministro, eu não concordo com isso. O problema é outro. O problema é a posição atual, não é o futuro. Porque o Marco Aurélio Garcia [assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República]...
Carlos Eduardo Lins da Silva: Demétrio, vamos dar uma chance para o Marcelo...
Demétrio Magnoli: Só para... porque isso tem a ver com isso. O assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, quando fez parte da comissão que procurava libertar os reféns na Colômbia, declarou textualmente que o Brasil é neutro diante do conflito interno colombiano. Ele declarou a palavra “neutro”.
Celso Amorim: Olha, eu respondi essa pergunta. Eu vou interromper, eu respondi isso antes, no Congresso Nacional.
Demétrio Magnoli: Eu pergunto: o Brasil é neutro?
Celso Amorim: Não, o Brasil não é neutro. Eu não vou julgar se a expressão que o professor Marco Aurélio Garcia usou foi apropriada ou não. Não quero, se ela foi apropriada ou não.
Demétrio Magnoli: O senhor acha que foi retórica?
Celso Amorim: Eu acho que ele quis dizer foi outra... Eu não vou defender o Marco Aurélio Garcia, eu vou dizer o que eu acho, qual é a posição... Embora eu tenha grande amizade pelo professor Marco Aurélio Garcia, o uso da palavra “neutro” pode não ter sido o mais feliz, porque dá a impressão... ele não disse disso.
Demétrio Magnoli: Ele disse isso.
Celso Amorim: Ele diz o seguinte: a pergunta foi “O Brasil classifica as Farc como terroristas?”
Demétrio Magnoli: Não.
Celso Amorim: Isso foi que eu li na entrevista ao [jornal francês] Le Figaro. E ele, na resposta, ele disse assim: “O Brasil é neutro.”
Demétrio Magnoli: É neutro.
Celso Amorim: E neutro. Não, mas não disse que era entre as Farc... Nem classifica como um grupo terrorista...
Demétrio Magnoli: É neutro diante do conflito interno colombiano. É a citação literal.
Celso Amorim: Eu não me lembro de ele ter dito isso. Reveja...
Demétrio Magnoli: Então nós podemos dizer que tudo é retórica.
Celso Amorim: Eu não estou dizendo isso. Você não me deixa falar, Demétrio! Você faz muitas perguntas, faz suposições; talvez você devesse estar sentado aqui eu aí...
Demétrio Magnoli: Não, não! Isso não seria bom para o Brasil.
Celso Amorim: ...mas, enquanto eu estou sentado aqui, me permita responder. O Brasil não é neutro no conflito colombiano. O Brasil condena a ação das Farc. O presidente Lula condenou, disse que o crime de seqüestro é um crime abominável. Várias vezes condenou isso. Não há a menor dúvida sobre isso. O Brasil não é neutro entre as Farc e o governo colombiano.
Marcelo Cavallari: Cumpridas exigências das Farc interromperem os seqüestros, libertarem unilateralmente todo mundo, o Brasil poderia, eventualmente, pensar em considerá-los parte beligerante? Ou é totalmente...
Celso Amorim: Eu acho que esse problema não se coloca. Eu acho que não se coloca a questão de colocá-los como parte beligerante. Porque o Brasil não favorece isso. Isso seria dar... digamos, [seria] já, de alguma maneira, aceitar uma condicionalidade para algo que deve acontecer unilateralmente, que é a libertação dos reféns. Nós não concordamos que as Farc sejam consideradas como uma força beligerante.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Vamos fazer mais um intervalo. Voltamos já, já com o Roda Viva, que é acompanhado, esta noite, na platéia, também por Moacir Assunção, jornalista e professor universitário; Stefani Medeiros, estudante de Jornalismo da Universidade São Judas; Antônio Luiz Rodrigues, advogado; Renata Paccola, advogada e presidente estadual da Sociedade Cultura Latina do Brasil; e Fábio Fukuda, estudante de Relações Internacionais da Faap. Acompanhe de segunda a sábado, às dez da noite, o Jornal da Cultura, sempre além da notícia. Até já.
[intervalo]
Carlos Eduardo Lins da Silva: O Roda Viva entrevista hoje o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim. O Brasil tem procurado uma atuação política de maior destaque no mundo. Um dos assuntos, um dos temas que tem rendido prestígio ao Brasil - mas também polêmico - é o fato do país estar liderando as forças que mantém a paz no Haiti.
[inserção de vídeo]
Valéria Grillo: [em off, enquanto são mostradas imagens das forças de paz da ONU no Haiti] A ONU está no Haiti desde 2004, quando o Conselho de Segurança decidiu pelo envio de uma força de estabilização ao país sob o comando do Brasil. A missão, prevista para terminar no ano passado [2007], foi renovada por mais um ano até outubro próximo. O Brasil tem a principal força militar no país, com o contingente de 1200 homens, e coordena a missão de paz, que tem o objetivo de estabilizar o país, pacificar e desarmar grupos guerrilheiros rebeldes, promover eleições livres e formar o desenvolvimento institucional e econômico do Haiti. O Haiti viveu um momento de insurgência após a eleição do presidente Jean Bertrand Aristide em 2001. A revolta terminou com a queda de Aristide em 2004 e uma crise institucional.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Ministro, o investimento que o Brasil tem feito, inclusive com essa missão na ONU, tem sido [em grande parte] para tentar obter a cadeira de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. O senhor sabe que nós temos uma divergência antiga em relação a esse assunto, mas o fato é que se passaram muitos anos e não há, a meu ver, nenhuma perspectiva de que o Conselho de Segurança vá ser reformado. Há duas semanas, a secretária de Estado [estadunidense] Condoleezza Rice, falando a um grupo de jornalistas, entre os quais eu estava, disse que não vê essa perspectiva. Disse que não é por causa dos Estados Unidos, [mas] porque os acordos regionais não são feitos: a China não quer que o Japão entre, Argentina e México não querem que o Brasil entre, a Itália não quer que a Alemanha entre. Tirou o corpo fora, mas disse que, do ponto de vista dela, não há essa perspectiva. Tem valido a pena todo esse investimento? O senhor acha que ainda há alguma possibilidade, num futuro remoto, de a gente ver esse conselho reformado e o Brasil ser um membro permanente?
Celso Amorim: Eu acho muito interessante vocês citarem seletivamente a Condoleezza Rice também, porque ela também disse que o Brasil era uma potência de capacidade regional e global... Enfim, eu prefiro ficar com os autores nacionais, de qualquer maneira, com todo respeito e amizade que eu tenho pela secretária de Estado norte-americana. Mas, se você permitir, o Haiti é tão importante... Os jornalistas que estão aqui deveriam visitar o Haiti, porque, talvez, uma das coisas mais concretas...
Carlos Eduardo Lins da Silva: Eu já visitei o Haiti.
[vários falam]: Eu também [risos]
Celso Amorim: Uma das coisas mais concretas e emocionantes que eu fiz foi entrar em Cité Soleil [favela de Porto Príncipe, capital do Haiti, um dos locais mais violentos do país na época do envio da missão de estabilização da ONU, quando o caos havia se instalado, logo após a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide; mais tarde, a situação tranqüilizou-se], um lugar onde não se podia entrar e, mesmo no início, quando se entrava, era só com Urutu [tanque de guerra de fabricação brasileira]. Eu fui lá, inclusive, com a caminha mulher; andamos dentro de Cité Soleil. Bem, mas voltando: o Brasil não entrou no Haiti por causa do Conselho de Segurança. O Brasil entrou no Haiti porque interessa ao Brasil ajudar um Estado com o qual nós temos muitas afinidades culturais, étnicas. Foi o primeiro Estado a abolir a escravidão nas Américas [em 1801, quando os escravos tomaram o poder no país, até então colônia francesa, e proclamaram a sua autonomia] e [era] um Estado que estava correndo o risco de virar um narco-estado [isto é, um país no qual o narcotráfico tem forte ascendência sobre o governo]. Então, nós agimos dentro do mandato das Nações Unidas. Estamos contribuindo para o desenvolvimento do Haiti. Pela primeira vez, estamos tendo uma missão no Haiti que não se preocupa só com o aspecto da segurança - só saber se vai só ter boat people [imigrantes fugidos da convulsão política ou da situação social muito difícil, que chegam em barcos improvisados na costa de países vizinhos] ou se não vai ter boat people -, mas com, verdadeiramente, o desenvolvimento do Haiti. E isso é algo em que o Brasil está tendo uma influência, creio eu, positiva, reconhecida pelo próprio [presidente haitiano René] Préval, eleito pela maioria da população de uma maneira, para os padrões haitianos, muito, até, tranqüila. Então, eu diria que essa é a minha avaliação do Haiti. Sobre o Conselho de Segurança, talvez eu precise de outra pergunta para responder.
Carmem Amorim: Eu tenho uma pergunta.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Mas o telespectador tem uma pergunta; você já tem a outra pergunta aí.
Carmem Amorim: É a pergunta que o telespectador Guilherme Pereira tem sobre essa a questão do Conselho de Segurança da ONU e do Haiti. Então, ele pergunta o seguinte: “O Brasil pode entrar no Conselho de Segurança da ONU como permanente? É certamente importante que o Brasil faça boas apresentações militares. Hoje, temos o exemplo do Haiti. É suficiente? O que falta fazermos?”
Celso Amorim: Olha... Bom, sobre o Haiti, eu já falei; então, eu vou só me referir à questão do Conselho de Segurança. Esse é um processo lento e complicado. Veja bem, a ONU só foi criada da maneira que foi criada e a Carta [da ONU, documento que define os fundamentos da organização] foi feita porque houve uma guerra mundial [a segunda]. Ninguém está querendo que isso ocorra. Então, um processo de reforma que mexa, digamos, nos pontos mais sensíveis, como é, sobretudo, a composição do Conselho de Segurança, não vai ser uma coisa simples. Ninguém acha que pode ser uma coisa simples. E pode tomar tempo. Agora, eu estou convencido que esse processo tem avançado. Como ele vai concluir exatamente, qual será a formulação exata, eu não sei. O que eu sei é que o mundo hoje - não sou eu que digo isso, é o ministro das Relações Exteriores e o primeiro-ministro da Inglaterra, é o presidente da França -, há uma clara percepção de que não é possível manter a estrutura de segurança do mundo dependente apenas dos cinco membros permanentes. Isso é claro. Agora, como vai ser exatamente, vamos continuar discutindo; mas que vai ocorrer, vai. A postura que o Brasil e outros países como a Índia e o Japão assumiram vai contribuir para um Conselho de Segurança mais democrático. E isso é que é fundamental.
Lourival Sant’Anna: Agora, isso tem um custo, não é, ministro? Um custo político. Melindra os vizinhos - México e Argentina – e [tem] um custo econômico...
Celso Amorim: [interrompendo] Depende da maneira como for...
Lourival Sant’Anna: ...O Haiti é só o começo, né? Seremos muito demandados economicamente, com benefícios.
Celso Amorim: Veja bem, isso não é verdade. O Brasil não... a China raramente participa de uma missão de paz. O Brasil participou da missão no Haiti porque achou importante, como tinha participado da missão de paz em Angola [o Brasil participou de várias missões da ONU em Angola entre 1989 e 2003], no governo anterior, porque achou importante..
Lourival Sant’Anna: [falando junto com Celso Amorim] Mas a China [inaudível], originalmente...
Celso Amorim: ...e contribuiu para paz em Angola - aliás, [isso] deve ser dito – no governo anterior, e contribuiu para a paz no Haiti. Isso é bom para nós. São países com os quais nós nos relacionamos, onde pode haver investimento. No caso de Angola, é indiscutível isso: um país que cresce hoje 20% ao ano praticamente, movido pelo petróleo, em grande parte. Enfim, esse custo é mínimo e você participar das decisões importantes no mundo tem um custo, a meu ver, muito menor do que não participar. [Ao] não participar, você se torna puramente objeto da história, os outros decidem por você. Participar tem custo menor, tudo tem custo na vida. Sem custo não se faz nada.
Cláudio Camargo: Como o Brasil vai reagir se o próximo presidente a ser eleito no Paraguai decidir renegociar o tratado sobre a usina de Itaipu? [foi eleito Fernando Lugo, cujo principal mote da campanha eleitoral era a renegociação do tratado]
Celso Amorim: Bem, para renegociar Itaipu, o Brasil também tem que concordar. A posição que nós temos sempre defendido é que pacta sunt servanda: os tratados têm que ser respeitados. O que eu acho que o governo do presidente Lula tem feito e foi feito pouco no passado é um esforço de encontrar compensações adequadas para o Paraguai. Por exemplo, o Paraguai tem... Digamos, metade da energia elétrica provém de recursos paraguaios exclusivamente e o Paraguai não usa, a eletricidade de Assunção [capital do Paraguai] é falha. Nós estamos, agora, buscando construir uma linha de transmissão melhor, reforçada, para Assunção. Por que não interessar indústrias a investir, desde que haja estabilidade política? Por isso é muito importante que haja estabilidade política - e jurídica também. Por que não pensar em indústrias que sejam de uso intensivo de energia? É a melhor maneira de ajudar o desenvolvimento do Paraguai. Como nós temos procurado com obras de integração física, também, fazer com que isso ocorra. Aos poucos, está ocorrendo; eu sinto que o nível... Queixas sempre existirão. O Brasil é muito grande, o Brasil tem empresas que investem nos outros países, mais do que vice-versa. Então, esse tipo de queixa sempre haverá. Agora, nós temos que agir com o máximo de espírito de solidariedade para contribuir para que as queixas [se] minimizem, para que elas tenham menos [inaudível].
Demétrio Magnoli: Ministro, eu queria voltar à ONU, porque esse ano marca os sessemta anos da Declaração Universal dos direitos humanos - 1948, na ONU - e a ONU, durante o ano todo, fará celebrações a essa data. Na nossa Constituição, no quarto artigo da nossa Constituição, está escrito que [lendo] a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelos seguintes princípios. E o segundo princípio: prevalência dos direitos humanos. Esse é um item da Constituição brasileira do qual eu me orgulho muito - eu fiz parte da geração que lutou contra a ditadura militar [1964-1985] e a ditadura brasileira costumava dizer que um país não deve falar sobre os problemas de direitos humanos dos outros, em nome da soberania nacional. Mas, há sessenta anos, a ONU disse que os países devem falar sobre direitos humanos, apesar da soberania nacional, e que isso não infringe a soberania nacional. Infelizmente, na minha opinião, a política externa brasileira, nos últimos anos, faz vistas grossas para as violações de direitos humanos dos mais diversos países. Elogia violadores...
Celso Amorim: Eu prometi que eu daria resposta curta se a pergunta for curta.
Demétrio Magnoli: ...como no caso da China. Faz vistas grossas a violações. A minha pergunta é a seguinte: o secretário do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, escreveu, no seu livro, que a política internacional de proteção dos direitos humanos é uma ação tática das grandes potências em defesa dos seus próprios interesses estratégicos. Eu quero saber se é por isso que a política externa brasileira não tem ligado para esse tema.
Celso Amorim: Eu não tenho o contexto em que essa afirmação foi feita. Não estou discutindo, não vou duvidar da sua palavra. Mas eu não concordo com essa afirmação tomada isoladamente. Eu não sei como é o contexto em que ela está colocada, mas não concordo. E digo mais: da mesma maneira que você se orgulha de fazer parte de uma geração que lutou pelos direitos humanos no Brasil, eu também, no meu modo, modestamente, tentei lutar. Fui presidente da Embrafilme [empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes de cinema criada em 1969 e extinta em 1990; Amorim foi seu presidente de 1979 a 1982], defendi a liberdade de expressão, perdi o meu cargo por causa de um filme que tratava de tortura durante o período militar [Pra frente Brasil, de Roberto Farias]. De modo que, modestamente, também acho que contribuí para isso. Mas me orgulho, também, de que o Brasil tenha contribuído muito para que, agora, o Conselho de Direitos Humanos tenha sido criado [a criação foi aprovada pela ONU em março de 2006] e no Conselho de Direitos Humanos haja algo que não havia, que é uma revisão universal dos direitos humanos. Porque, até há pouco tempo, os direitos humanos eram vistos de maneira muito seletiva - falava-se de um país e não se falava de outro -, e escolhidos, naturalmente, por aqueles países que teriam maior influência no processo. Agora, todos os países - aliás, o Brasil vai ser um dos primeiros a submeter, a preparar um relatório para isso... E, aí, você vai falar do Brasil, vai falar da China, vai falar do Zimbábue, vai falar dos Estados Unidos, de todos.
Demétrio Magnoli: Até de Cuba.
Celso Amorim: De todos.
Marcelo Cavallari: Mas o Brasil foi tímido na questão de protestar contra o governo do Sudão no caso de Darfur. [o Brasil tem evitado a condenação ao governo sudanês; em dezembro de 2006, absteve-se em uma votação na Assembléia Geral da ONU para pedir ao governo do Sudão que investigasse e punisse envolvidos dentro do governo pelos massacres em Darfur; a resolução foi rejeitada; na ocasião, o Brasil apoiou um texto alternativo que pedia que o problema fosse deixado para ser resolvido pelos africanos e não apontava qualquer culpa do governo sudanês]
Celso Amorim: Não creio. Olha, eu não concordo com vocês. Eu respeito as opiniões divergentes, mas eu não concordo. O Brasil está interessado em melhorar a situação dos direitos humanos efetivamente, ao contrário de muitos outros países que tiveram práticas coloniais e que têm o problema da chamada má consciência e que têm que se redimir dessa má consciência. O Brasil quer melhorar efetivamente a situação de direitos humanos tal como é praticada lá. E nós achamos que, sem a participação da União Africana, você pode fazer a condenação que fizer a um país, que isso não vai valer, não vai melhorar a situação.
Demétrio Magnoli: Não se deve condenar, então?
Celso Amorim: Não, não é isso. Nós devemos tentar agir de maneira a melhorar efetivamente...
Demétrio Magnoli: Mas sem condenar?
Celso Amorim: Não é sem condenar. Há situações extremas. Há situações extremas. Agora, são países pobres, fracos. Nós não concordamos, absolutamente, com a política que foi feita, de maneira seletiva, apoiando certas etnias contra outras, de maneira nenhuma. Achamos que a maneira de resolver isso envolvia uma participação maior da União Africana. Então a nossa atitude, do ponto de vista prático, foi ajudar a contribuir, criar um clima que permitisse essa participação, que é o que pode resolver.
Maria Lúcia Pádua Lima: Ministro, eu gostaria de mudar um pouco aquele assunto e falar um pouco do comércio internacional.
Celso Amorim: Comércio também é direitos humanos.
Maria Lúcia Pádua Lima: Eu tenho certeza disso. E é desenvolvimento e é progresso, em vários sentidos.
Celso Amorim: Quando os países ricos subsidiam a sua produção agrícola, eles estão afetando os direitos humanos nos países pobres. Isso é o que muitas vezes não se percebe.
Maria Lúcia Pádua Lima: Exatamente.
Celso Amorim: As pessoas se fixam apenas num aspecto. Não é exclusivo.
Maria Lúcia Pádua Lima: Por isso que eu gostaria de começar, pedir que o senhor nos desse - e desse aos nossos telespectadores - uma posição da rodada de Doha. Nós sabemos que a rodada, ela prossegue, os trabalhos prosseguem e há muita, digamos, inquietação em função das eleições [presidenciais] dos Estados Unidos, em função das dificuldades para a conclusão dessa rodada. Eu faço parte daqueles que acreditam que essa rodada será concluída com sucesso. Nesse ponto de vista que o senhor está colocando, do desenvolvimento, como foi pensada?
Carlos Eduardo Lins da Silva: Aliás, ministro, no dia 22 de janeiro, o senhor disse que, até a Páscoa, os acordos básicos - o senhor esperava - que, até a Páscoa, os acordos básicos estariam concluídos e que a crise americana [referência à crise maciça de inadimplência de investidores em hipotecas de alto risco nos Estados Unidos, que vem provocando fortes oscilações nas bolsas ao redor do mundo] ajudaria a apressar.
Maria Lúcia Pádua Lima: Pois é...
Carlos Eduardo Lins da Silva: A crise americana piorou, a Páscoa foi ontem e a gente ainda não chegou. O senhor tem alguma...
Celso Amorim: Eu não tinha calculado bem quando é que caía a Páscoa este ano. [risos] Foi muito rápida. O carnaval foi rápido e a Páscoa também foi rápida... Olha, a gente pode errar nas previsões. Agora, eu continuo, digamos, na mesma convicção de que... Eu usei até uma expressão assim: no ano passado, nós tínhamos uma “janela de oportunidade”; agora, nós temos a “janela de necessidade”. Eu acho que a não-conclusão da rodada de Doha vai agravar, e muito, digamos, o reflexo dessa crise bancária ou crise financeira na economia real. Não é que Doha vá resolver todos os problemas, mas, certamente, vai encaminhar positivamente. E a eliminação do subsídio da exportação e a redução substancial dos subsídios internos é algo muito positivo para todos, inclusive para que os países passem a gastar dinheiro nas coisas em que eles deveriam estar gastando: programas sociais, programas até de ciência e tecnologia, para sua própria agricultura. Falando dos ricos - para não falar dos pobres... E, evidentemente, vai permitir que países na África, na América do Sul, na Ásia, possam fazer valer as suas vantagens comparativas e ter mais recursos para os seus programas de desenvolvimento.
Maria Lúcia Pádua Lima: Ministro, o senhor continua otimista, então, com a rodada, mesmo que ela vá ser longa?
Celso Amorim: Eu também não quero ser ingênuo, isso não é uma coisa que vai cair do céu. É como eu disse: sorte dá muito trabalho. Nós vamos continuar trabalhando para que isso ocorra. Eu acredito que isso é possível e continuo sendo confiante. Agora, certeza eu não tenho.
Cláudio Camargo: Ministro, não contribui para isso o fato de...
Celso Amorim: Se eu tivesse certeza não estava aqui.
Cláudio Camargo: ...os países emergentes estarem divididos em relação à questão de concessões no setor industrial que a União Européia e os Estados Unidos estão querendo arrancar desses países? Por exemplo, México, Chile, Equador, Tailândia, estão de um lado e o Brasil, África do Sul e Índia de outro.
Celso Amorim: Sempre há divisão. Veja, mais uma vez, o que aconteceu de extraordinário nessa rodada, a meu ver? Foi a criação do G-20 [grupo de países em desenvolvimento formado em 2003 para defender seus interesses na rodada de Doha, da OMC, principalmente em assuntos agrícolas; é liderado por Brasil, China, África do Sul e Índia]. O G-20 mudou a dinâmica das negociações da OMC. Eu digo isso porque eu fui ministro antes, eu assinei o acordo de Marrakesh [que criou a OMC, em 1994]. Então, eu não estou fazendo uma comparação minha com o ministro anterior. E fui negociador, fui embaixador em Genebra duas vezes [entre 1991 e 1993 e entre 1999 e 2001, junto a vários organismos internacionais]. Então, eu sei. O que acontecia antes de Genebra é o seguinte: os Estados Unidos e a União Européia chegavam a um acordo; chamavam, às vezes, Canadá e Japão; e você ia lá só para botar uns acentos circunflexos, uma vírgula e coisa e tal, Índia, Brasil etc. Hoje, o G-20 está no centro da negociação. Quando, digamos - seja a representante comercial americana, seja o comissário europeu - dizem que o Brasil e a Índia têm a chave, é claro que ninguém é bobo de acreditar que isso é um elogio. Claro que eles dizem isso para obter mais concessões, como você diz. Mas o simples fato de nos colocarem no centro das negociações é um fato totalmente novo. É um fato totalmente novo. E esse foi um dos ganhos mais extraordinários que houve no processo dessa rodada. Isso não teria ocorrido se não tivesse havido essa aliança com Índia, com China, com África do Sul, com México e com o Chile também, que também fazem parte do G-20. Eles divergem na parte industrial porque eles fizeram aberturas muito maiores - 90% do comércio do México é com os Estados Unidos, com tarifa zero. Então, é uma situação totalmente diferente. O do Chile não é 90%, mas tem uma situação semelhante.
Lourival Sant’Anna: E a área de livre comércio?
Celso Amorim: Nós conseguimos formar uma frente unida em agricultura. E eu te digo francamente - eu não sei quando vai terminar com certeza; espero que seja agora - mas o pior resultado que haja hoje será muito melhor do que melhor resultado que poderia ter havido em Cancún [onde houve a reunião ministerial da OMC em 2003], há quatro anos atrás. E o Brasil participou disso.
Lourival Sant’Anna: E nas Américas? A Área de Livre Comércio [a Alca] pode voltar à agenda depois da eleição americana?
Celso Amorim: Essa está entre colchetes, por enquanto. [no jargão diplomático, trechos entre colchetes possuem redação provisória esperando por um acordo]
Lourival Sant’Anna: É? Vai ser bilateral, então? [referência ao temor de várias pessoas de que os EUA reajam à suspensão das negociações da Alca com um conjunto de acordos bilaterais com os países das Américas, possivelmente isolando o Brasil]
Cláudio Camargo: Quando o senhor assumiu, em 2003, se falava que a Alca estava na agenda do dia. [Que,] se não fôssemos para a Alca, iríamos negociar com os pingüins [isto é, só sobraria a Antártida para o Brasil negociar] e tal. Hoje, ela está fora do...
Celso Amorim: Hoje, eu vejo economistas... Eu não estou dizendo que eles tenham mudado de opinião, mas eu vejo economistas norte-americanos virem ao Brasil, importantes economistas, e dizerem que uma das razões - certamente não é a única -, mas uma das razões pelas quais o Brasil está menos suscetível às crises é porque o nosso comércio se diversificou. Se nós tivéssemos feito a Alca, não só o comércio teria se concentrado mais - em relação ao mercado norte-americano, sobretudo -, mas, também, nós estaríamos muito mais vulneráveis do ponto de vista de balanço de pagamentos. Até porque... Eu não vou negar que, digamos, essa coisa do livre comércio possa trazer vantagens para certos setores, eu sei que trazem. A gente está procurando compensar os setores como o têxtil, por exemplo. Mas o fato é que, no curto e médio prazos – nós vivemos no curto e médio prazos - o que acontece é que esses acordos tendem a fazer aumentar os deficits comerciais. Você pode pegar os exemplos históricos: quase todos foram nesse sentido.
Demétrio Magnoli: Ou seja, a Alca estaria errada de qualquer forma. É isso que o senhor está dizendo? [É] a primeira vez que eu ouço o senhor dizer isso.
Celso Amorim: Bom, se eles tivessem concordado com as nossas condições... Os outros países que fizeram, fizeram nas condições que foram impostas. Se eles tivessem...
Demétrio Magnoli: O senhor está dizendo que uma área de livre comércio nas Américas provocaria a concentração do intercâmbio...
Celso Amorim: No curto [prazo]...
Demétrio Magnoli: ...e, portanto, estaria errada de qualquer forma...
Celso Amorim: Eu não disse isso, não...
Demétrio Magnoli: ...Só estou querendo ver qual é a sua posição.
Celso Amorim: Não foi isso, não. Eu estou dizendo que os economistas, inclusive norte-americanos, olhando para o Brasil, apontam o fato de que nós termos um comércio mais diversificado nos protege das crises mundiais.
Eliane Cantanhêde: E ele tem não tem mais interesse, acho que é essa a...
Carlos Eduardo Lins da Silva: Nós vamos mais para um intervalo, ministro, e voltamos já com a entrevista, que é acompanhada na platéia, hoje, também por Elen França, estudante de Jornalismo da Universidade São Judas; Márcio Puliesi, advogado; Fábio Ricardo Sobral dos Santos, jornalista; Adriano Duarte dos Santos; estudante; Marcela Crenit, estudante de Relações Internacionais da Faap; e Igor Vilenshofer, estudande de Relações Internacionais da Faap. Acompanhe de segunda a sábado, às dez da noite, o Jornal da Cultura, sempre além da notícia. Até já.
[intervalo]
Carlos Eduardo Lins da Silva: Você acompanha, no Roda Viva desta noite, a entrevista com o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim. Ministro, uma das críticas que se fizeram à sua gestão, por enquanto, principalmente no começo, era de que o Brasil tinha ficado muito “fominha” na tentativa de obter cargos internacionais. O Brasil tentou a Secretaria Geral da OMC contra um uruguaio, depois tentou o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] e não conseguiu nenhum dos dois. E, agora, nós estamos aí com a questão da Corte Internacional de Justiça, em que o Brasil tem, aparentemente, dois candidatos para a vaga de juiz e um colombiano também é candidato: [temos] o jurista Antônio Augusto Cançado Trindade e a ministra [do Supremo Tribunal Federal,] Ellen Grace. Qual é a posição que o Brasil vai tomar? Vai apoiar os dois, vai apoiar só um? Como é que vai ser?
Celso Amorim: Olha, o candidato é escolhido... Isso faz parte do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, que é, praticamente, um anexo da Carta da ONU. Um candidato de cada país é escolhido pelo grupo nacional na Corte. No caso do grupo nacional dos países que participam da Corte Permanente de Arbitragem, são os membros da Corte Permanente de Arbitragem. Eles incluem alguns juristas famosos - eu não vou citar um, porque eu posso esquecer de algum outro, inclusive, um antecessor meu. E esse grupo escolheu o professor Cançado Trindade. Se o grupo mudar de idéia... O grupo é que tem que mudar de idéia, isso não é uma decisão do governo.
Carlos Eduardo Lins da Silva: O Brasil vai trabalhar como?
Celso Amorim: Dois candidatos, realmente, ter dois candidatos...
Carlos Eduardo Lins da Silva: É “fominha” demais?
Celso Amorim: Aí não é questão de ser “fominha”; aí é certeza de derrota. Mas como será resolvida essa questão, eu não sei, porque isso depende do grupo nacional. Agora, o Brasil não foi “fominha” com relação à OMC, me desculpe. No caso da OMC, especialmente, o nosso objetivo principal era - claro que, se ganhássemos, era melhor - mas era um pouco uma anti-candidatura, também. Nós queríamos mostrar muitas falhas da OMC, inclusive falhas no processo de negociação. E eu acho que nós conseguimos mostrar isso.
Carmem Amorim: Ministro, os telespectadores estão preocupados. Eu recebi, aqui, vários e-mails e perguntas e selecionei a do Marcos Araújo, de Salvador, da Bahia. Ele diz o seguinte: "É evidente o número elevado de brasileiros que são barrados nos países da União Européia. Como o senhor vê este fato e qual medida podemos esperar do governo brasileiro?"
Celso Amorim: Esse é um problema complexo. Eu não vou poder dizer que esse problema vai se resolver com facilidade. A questão da imigração é uma obsessão hoje em dia na Europa. Se é certo ou errado, não me compete julgar. Eu acho que de, qualquer maneira, é uma demonstração de intolerância que não corresponde à demonstração de tolerância e de acolhimento que o Brasil deu no passado a muitos desses países. Então, nós temos sempre tentado resolver essas questões. Agora, nós não podemos negar o direito soberano dos Estados de aceitarem ou de não aceitarem imigrantes. O que nós podemos, sim, exigir é um atendimento condigno. Uma pessoa não pode ficar três dias sem poder tomar banho ou ser colocado num determinado vôo porque é mais barato, porque as autoridades de imigração não querem pagar a passagem de volta. Isso, sim. Isso, eu acho que temos que tratar e tratar seriamente. Agora, se nós vamos conseguir... Eu acho o seguinte: a melhor resposta para isso tudo é a economia brasileira crescer. A melhor contribuição que a União Européia pode dar para acabar - acabar não, mas para diminuir a imigração - é eliminar os subsídios e facilitar o acesso do nosso produto ao mercado.
Lourival Sant’Anna: O turismo é uma receita importante, pode ajudar a economia brasileira a crescer. Não é um pouco um tiro no pé, uma reação meio de fígado, assim, esse negócio da reciprocidade? A Espanha tem um problema real de imigração.
Celso Amorim: Vocês estão sempre pontos a defender os interesses dos outros países.
Lourival Sant’Anna: Nós somos advogados do diabo, nós temos que perguntar.
Celso Amorim: A minha missão é defender todos os brasileiros. A primeira coisa, para mim, é a dignidade dos brasileiros. Falou-se aqui de direitos humanos. A primeira função minha é proteger os direitos humanos dos brasileiros. Não é a única, mas é a principal. Então, depois, eu penso nos...
[vários falam ao mesmo tempo]
Marcelo Cavallari: O Brasil não era, até muito pouco tempo, um país de emigrantes. A diplomacia brasileira está preparada para lidar com isso? Há críticas muito freqüentes, nos consulados, de que o Brasil trata mal os brasileiros no exterior.
Celso Amorim: Qualquer repartição pública sempre enfrenta essa dificuldade. É óbvio, porque nunca [se] satisfaz plenamente as demandas das pessoas; isso, infelizmente, é verdade. Agora, nós temos procurado melhorar muito. Muitas repartições consulares foram fechadas no passado. Nós estamos reabrindo algumas e abrindo muitas novas, abrindo em lugares que, talvez, muitos nem tenham ouvido falar, [...] são importantes, do ponto de vista... Certos lugares nos Estados Unidos... acabamos de abrir - essa, certamente vocês ouviram falar: [um consulado] em Atlanta, mas estamos procurando abrir em Hartford, porque é um lugar onde tem muita concentração de brasileiros; talvez em Newark. Agora, você me pergunta: estamos preparados do ponto de vista financeiro? Não, não estamos. Nisso aí, você me ajuda muito chamando a atenção para esse problema. Agora, só para não pensar que o problema é só financeiro - desculpe -, há um problema cultural, também, e nós... Mas mudou muito, mudou de maneira muito acelerada e eu acho que veio mudando ao longo dos anos. Não vou dizer que tenha ocorrido só no governo Lula; já começou em governos anteriores em que, digamos, essa maneira de tratar os brasileiros no exterior [foi vista] não como problema, mas como algo que tenha que ajudar... Vamos fazer algo interessante: a primeira conferência dos brasileiros da diáspora. Vai ser agora em abril ou maio, no Rio de Janeiro [ocorreu em 17 e 18 de julho de 2008]. Isso é algo inédito que nós vamos fazer para ouvir os problemas. Pela primeira vez os brasileiros, os dentistas que estão em Portugal, vão falar com os brasileiros que estão no Paraguai, vão falar com os dekasseguis [brasileiros que foram trabalhar no Japão] que estão no Japão. Essa é uma iniciativa do Ministério das Relações Exteriores. Agora, evidentemente, dar um bom entendimento exige mudanças culturais que estão ocorrendo. Que levam tempo, mas estão ocorrendo. Mas exige, também, recursos.
Demétrio Magnoli: Ministro, o senhor falou em direitos humanos. Nós estamos vivendo a transição de governo, hoje em Cuba [referência à transição entre o governo de Fidel Castro, chefe de governo cubano desde 1959, e de seu irmão, Raúl Castro, entre 2006 e 2008], e o seu colega, ministro Jobim, da Defesa, disse, hoje, o seguinte: [lendo] "Há muita tranqüilidade em relação à transição em Cuba”, vírgula, “desde que ela seja gerenciada pelo povo cubano, que é muito orgulhoso". O Brasil tem defendido o fim do bloqueio americano a Cuba, coisa que eu acho muito correto o Brasil defender. Não seria o caso de dizer que, já que o povo cubano é muito orgulhoso ele tem o direito de exercer aqueles direitos reconhecidos pela Carta de [19]48 da ONU, a Declaração Universal [dos Direitos do Homem] ou, à época...
Celso Amorim: [falando junto com Demétrio Magnoli] Olha, eu tenho uma notícia positiva...
Demétrio Magnoli: ...ou o Brasil nunca vai fazer isso?
Celso Amorim: Você não deixa eu falar, Demétrio.
Demétrio Magnoli: Eu deixo; por favor...!
Celso Amorim: Eu tenho uma notícia positiva para você, se é que você já não leu. Provavelmente você já leu, você acompanha a temática. Cuba assinou a Convenção de Direitos Civis e Políticos e assinou também a de Direitos Econômicos e Sociais, recentemente...
Demétrio Magnoli: Não seria o caso de pedir pra ela soltar os prisioneiros políticos?
Celso Amorim: Veja bem: as coisas ocorrem... Cada um influi da maneira que acha melhor. Eu acho que tem pessoas que acham que é muito bom fazer um belo discurso, ficar absolutamente bem com o mundo e, depois, muitas vezes, têm que voltar atrás.
Demétrio Magnoli: Porque aqui não discute...
Celso Amorim: Não, não, não, nessa crise mesmo, agora, do Tibete, se você olhar em volta - eu não quero mencionar ninguém -, você vai ver personalidades internacionais que disseram uma coisa e depois voltaram atrás porque viram que não tem como levar aquilo adiante. Então, nós queremos melhorar efetivamente a vida das pessoas. Eu acho que a evolução em Cuba... minha confiança é de que se passará de maneira positiva. Temos que fazer com que ela ocorra de maneira não-traumática. A nossa opinião sobre direitos humanos, nós transmitimos da maneira que achamos que devemos transmitir, no momento adequado, da maneira adequada... [algumas palavras faladas junto com Demétrio Magnoli]
Eliane Cantanhêde: Ministro, no caso de Cuba o ministro Jobim também me disse que o Fidel não ouve e que o Raúl [Castro, irmão de Fidel Castro e seu sucessor] ouve muito. E que, nesse momento em que o Brasil tem uma aproximação forte com os Estados Unidos, apesar desse anti-americanismo sempre ali, que fica latente...
Celso Amorim: Eu não tenho nada de anti-americanismo.
Eliane Cantanhêde: Vocês sempre negam...
Celso Amorim: [falando junto com Eliane Cantanhêde] Não nego, não. Você vê alguma coisa minha de anti-americano?
Eliane Cantanhêde: ...mas a gente vê, numa declaração, num momento... Mas, enfim: mas tem uma aproximação, os principais... [Celso Amorim continua falando; Eliane pára e ri]
Celso Amorim: Disseram até que eu tive excessos de sorrisos com a Condoleezza Rice!
Maria Lúcia Pádua Lima: Ah...!
Eliane Cantanhêde: Mas, enfim: os principais personagens do governo americano têm vindo sucessivamente ao Brasil e o Brasil também tem ligações muito fortes com Cuba, inclusive o atual governo. Qual é o papel que o Brasil pode ter nessa transição em Cuba?
Celso Amorim: Olha, eu acho que o papel que o Brasil pode ter na evolução - prefiro a palavra “evolução” a “transição” -, na evolução cubana é, digamos, você ajudar tendências, a meu ver, progressistas, no sentido de... porque em alguns aspectos...
Eliane Cantanhêde: Tendências internas?
[no diálogo a seguir entre Celso Amorim e Demétrio Magnoli, as falas de ambos estão quase todas sobrepostas]
Celso Amorim: Tendências internas no sentido, por exemplo, de maior participação de empresas e de expansão de economia de mercado...
Demétrio Magnoli: Mas soltar as pessoas, também? Ou não?
Celso Amorim: Olha, você sempre faz umas perguntas... Você quer o quê? Você quer uma manchete para o jornal do dia seguinte?
Demétrio Magnoli: Não, não, eu quero só saber se o Brasil vai ser coerente com a Constituição, ministro.
Celso Amorim: Quando você for ministro das Relações Exteriores, você exercerá...
Demétrio Magnoli: Não, ministro, a questão é a seguinte: eu quero saber se nós vamos cumprir a Constituição...
Celso Amorim: Nós cumprimos a Constituição...
Demétrio Magnoli: ...ou se nós vamos fingir que vamos cumprir.
Celso Amorim: A diplomacia...
Demétrio Magnoli: Porque existe um compromisso, um compromisso constitucional...
Celso Amorim: Mas você não me deixa, também...!
Carlos Eduardo Lins de Barros: Demétrio...
Demétrio Magnoli: É um compromisso constitucional.
Celso Amorim: Cumpro a Constituição, cumpro absolutamente!
Demétrio Magnoli: É um compromisso constitucional.
Celso Amorim: Não aceito essa crítica.
Demétrio Magnoli: Eu acho que isso aqui é uma democracia, eu sou um cidadão...
Celso Amorim: Não aceito essa crítica.
Demétrio Magnoli: ...quero saber por que a Constituição não é cumprida.
Celso Amorim: A diplomacia é uma arte! A diplomacia é uma técnica! Não é procurar um holofote e ou um alto-falante e sair falando!
Demétrio Magnoli: Não, mas não é isso o que eu peço. Eu quero saber se há, pelo menos, a [...] de uma posição.
Celso Amorim: Então, nós queremos, sim, os direitos humanos em Cuba, como queremos nos Estados Unidos, como queremos direitos humanos na China, como queremos direitos humanos no Brasil! Agora, a maneira de chegarmos lá, a minha não é igual a sua.
Eliane Cantanhêde: Então, ministro, então, continuando: como o senhor estava me respondendo, eu gostaria de saber se é possível o Brasil servir de intermediário, por exemplo, numa eventual negociação de Havana [capital de Cuba] com Washington.
Celso Amorim: Eu acho que não há necessidade de intermediar. A contribuição que o Brasil pode dar - eu vou repetir o que já disse - é apoiar tendências positivas. Eu sinto - não sei o que o ministro Jobim ouviu exatamente, como é que ele ouviu - mas eu sinto um maior pragmatismo, eu sinto que há, digamos, uma concepção mais pluralista que vai se formando em Cuba. Nós concordamos com essa visão e o que nós pudermos fazer - de maneira discreta, não de alto-falante, não de buscar holofotes, porque achamos que ela é a mais eficaz -, nós vamos fazer.
Eliane Cantanhêde: E junto aos Estados Unidos? Porque, se os Estados Unidos quiserem aniquilar o processo...
Carmem Amorim: Ministro, vários telespectadores já mandando mensagens querendo saber sobre a independência do Kosovo: qual a relação do Brasil em relação à independência do Kosovo? E Mário Augusto Jacob, do Rio de Janeiro, pergunta: “Como o senhor analisa a questão da declaração da independência do Kosovo?” [ex-província da Sérvia, independente em fevereiro de 2008]
Celso Amorim: Olha, é uma questão... Não é uma questão simples, porque... Há dois aspectos que têm que ser considerados. A última resolução das Nações Unidas a respeito da situação do Kosovo defendia a integridade territorial do que veio a ser a Sérvia – que, na verdade, era a Iugoslávia da época, ainda. Então, isso foi desrespeitado, com essa declaração bilateral. Então, é algo que está ocorrendo sem a participação das Nações Unidas, ignorando, aliás, uma resolução das Nações Unidas. E nós não achamos isso um bom precedente. Por outro lado, você olha nas ruas vê que, evidentemente, a grande maioria do povo do Kosovo queria efetivamente [a independência]. Mas você tem que balancear essas questões. Porque, se nós formos procurar... Se cada etnia, ou cada cultura, ou cada língua, ou cada dialeto, for procurar criar um Estado-nação próprio, isso é receita para a anarquia nas relações internacionais. Então, como é que você equilibra a necessidade de uma maior democracia nas relações internacionais com o respeito à integridade territorial dos Estados? É um desafio grande. O caso do Kosovo é um caso complexo. O Brasil não reconheceu a independência do Kosovo porque achou que, digamos, a Carta... [corrigindo-se] a Carta, não - bom, por decorrência, a Carta, mas uma decisão do Conselho de Segurança não foi totalmente respeitada.
Cláudio Camargo: Ministro, o senhor prevê mais dificuldades para o Brasil caso, nas eleições americanas, ganhe o candidato democrata, seja ele o [Barack] Obama ou [a Hillary Clinton]...
Celso Amorim: O Brasil não intervém nas questões internas dos outros países.
Cláudio Camargo: Tradicionalmente, os democratas têm uma posição mais protecionista...
Celso Amorim: Olha, eu, sinceramente, não me preocupo muito com isso, não, para falar a verdade. Não me preocupo muito. A minha preocupação com relação à rodada [de Doha], já que a Maria Lúcia falou disso, é mais uma questão de tempo. Qualquer que seja a nova administração, vai ter um aprendizado, vai-se querer rever certas coisas e isso demora, isso toma tempo. A rodada Uruguai [rodada de negociações de livre comércio na OMC anterior à rodada de Doha e que durou de 1986 a 1994], que eu mencionei a vocês - eu assinei a rodada Uruguai -, nem sei se isso é grande mérito hoje em dia, mas, enfim, eu assinei a rodada Uruguai... acho que, no conjunto, é... porque o Brasil não poderia ter ficado de fora. Ela foi negociada numa administração [George] Bush [presidente dos EUA de 1989 a 1993] e assinada numa administração [Bill] Clinton [presidente dos EUA de 1993 a 2001]. Eu não vou fazer previsões sobre o que vai acontecer nos Estados Unidos. Mas esta não é uma preocupação central. A minha preocupação em relação às eleições tem mais a ver com o tempo. Eu me preocupo que ela [a rodada de Doha], não sendo assinada agora... Quem quer que ganhe as eleições, seja um republicano, seja um democrata, vai levar um certo tempo para que esse aprendizado filtre para uma nova administração.
Maria Lúcia Pádua Lima: Ministro, eu gostaria só de perguntar ao senhor se podemos sair dessa entrevista, que o senhor está concedendo de uma maneira assim tão efusiva...
Celso Amorim: Meu jeito de ser.
Maria Lúcia Pádua Lima: ...concluindo que o Itamaraty continua a ser discreto, eficaz, principalmente muito pragmático e conduzindo políticas de Estado e não exatamente de governo. Ou não é exatamente isso? Se mantém essa tradição?
Celso Amorim: Bem, o governo é eleito pelo povo. Eu procuro distinguir uma coisa, Maria Lúcia: há princípios básicos que são sempre os mesmos; são os mesmos que estão na Constituição. Você pode interpretar se eles estão sendo bem ou mal executados, é um direito que você tem.
Demétrio Magnoli: Nesse caso.
Celso Amorim: Eu sei, mas, enfim, eu não estou voltando a essa discussão. Mas, obviamente, são princípios básicos. Eu não vou dizer que o governo Fernando Henrique [Cardoso, de 1995 a 2002] ou outro que eu participei - com Itamar Franco [presidente de 1992 a 1994] -, não seguiram os princípios. Claro que seguiram. Agora, o governo foi eleito. O governo foi eleito para conduzir uma política. Uma política externa. E a política externa reflete o sentimento do povo. Eu acho que algumas coisas que ocorreram, como o G-20, a busca de novas alianças com países desenvolvimento - que não tem nada de ideológico, é a coisa mais pragmática que existe...
Maria Lúcia Pádua Lima: Pois é...
Celso Amorim: Pois é. Isso, sim, é o que nós estamos fazendo, estamos procurando.
Maria Lúcia Pádua Lima: Pragmático...
Celso Amorim: Agora, isso reflete também uma nova percepção do mundo. Uma nova percepção do mundo que reflete, também, a percepção que o povo brasileiro tem de si próprio e o respeito que o povo brasileiro tem em relação a si mesmo. É isso que nós procuramos, também, levar para fora. E eu vejo, com o povo brasileiro, com quem eu tenho, talvez, menos contato do que gostaria, que isso é apreciado, isso é visto e é percebido.
Cláudio Camargo: Então, é uma questão de ênfase na relação política do governo anterior? Não há mudança de política de Estado, é uma questão de ênfase...?
Celso Amorim: A questão de ênfase... Eu não vou fazer citação de filósofos clássicos, mas todo mundo sabe que a quantidade altera a qualidade. Mas, se você coloca uma ênfase... Veja bem, um dia cheguei para o presidente Lula e perguntei: “presidente” - no começo do governo - “a nossa prioridade, a sua, minha, naturalmente, é o Mercosul, não é?” Ele disse assim: “Claro. Mas, olha, essa não é a realidade da Esplanada [dos Ministérios]. Você tem dez pessoas trabalhando em Mercosul e oitenta pessoas trabalhando em Alca.” Então, onde estão as prioridades? Onde elas estão? Então, é isso: nós redefinimos, adequamos prioridades, inclusive ao discurso, muitas vezes. Em outros casos, o discurso também foi diferente, não há a menor dúvida.
Demétrio Magnoli: Ministro, se a prioridade é o Mercosul não seria o caso do Brasil ter uma participação mais ativa na negociação ou uma participação efetiva na negociação da questão das [indústrias] papeleiras entre Argentina e Uruguai? Porque a situação é quase surreal. Há um conflito entre esses dois países sobre a questão da papeleiras, há uma tensão que tem sido grave para esses dois países, não vamos minimizar a tensão das papeleiras. E há um mediador, que é o rei da Espanha [Juan Carlos de Bourbon]. Não seria o caso do Mercosul resolver internamente e do Brasil, como o maior membro...
Celso Amorim: Mas isso não se faz pela imposição, Demétrio.
Demétrio Magnoli: Não, não é pela imposição! É pelo diálogo, claro.
Celso Amorim: O Brasil se ofereceu, se colocou à disposição. Os países, ou um dos países, resolveram tomar outro caminho. Nós não podemos impor. Não podemos impor.
Demétrio Magnoli: Mas nós podemos discutir a questão no Mercosul.
Celso Amorim: Nós respeitamos as posições dos países. Agora, é claro que em cada momento em que se apresenta a oportunidade em que nós podemos influir para que essa coisa possa ser resolvida de maneira positiva, nós fazemos. Agora, volto a te dizer: diplomacia age também com discrição. Se eu puser no jornal cada passo que a gente dá, é a garantia de que não vai dar certo.
Demétrio Magnoli: Ah, então o Brasil está participando da questão?
Celso Amorim: Não; nesse caso... ah, enfim...! Ele se ofereceu e, a cada momento, conversa. Quando é necessário.
Marcelo Cavallari: Não é um sinal de certa fraqueza do Mercosul não ser suficiente para resolver esse tipo de questão? Para a qual, afinal, é [para] o que ele deveria servir.
Celso Amorim: Olha... não podemos resolver todos os problemas. Através da integração nós acreditamos que esses problemas vão ser diminuídos com o tempo. Não resolvemos todos. Mas teria sido muito pior sem o Mercosul, certamente, como muitas outras questões teriam sido piores sem o Mercosul. Agora, ter a expectativa de que o Mercosul, ou mesmo a integração da América do Sul, vai miraculosamente resolver todos os problemas da América do Sul, nós não somos ingênuos para isso.
Marcelo Cavallari: Mas o Mercosul não deveria ser o foro privilegiado e não o rei da Espanha?
Celso Amorim: É... Eu acho que o Mercosul, sim, poderia... Os países do Mercosul podem ajudar, na medida em que haja uma disposição de resolver. Dessa forma.
Eliane Cantanhêde: Ministro, eu tenho uma curiosidade. A gente falou pouquinho dos Estados Unidos, mesmo tendo uma crise daquele tamanho, financeira, e mesmo tendo eleições lá. Uma pergunta, assim, bem básica: Por que o senhor, nesse processo de renovação de quadros do Itamaraty, escolheu um embaixador júnior [Antônio de Aguiar Patriota], um embaixador que nunca... [interrompendo-se; colocando os dedos na testa] Não franze a testa! Eu... deixa eu completar a pergunta: [risos] Um embaixador que nunca tinha ocupado nenhum um outro cargo como embaixador em Washington?
Celso Amorim: Você acha que a missão em Genebra [junto à OMC] é importante?
Eliane Cantanhêde: Acho.
Celso Amorim: Foi o meu primeiro posto, eu nunca tinha servido em outro posto.
Eliane Cantanhêde: Mas embaixada em Washington...!
Celso Amorim: Isso é preconceito. Eu me espanto que as pessoas tenham esse preconceito contra a idade.
Eliane Cantanhêde: Não é idade! Não é idade...!
Celso Amorim: Inacreditavelmente, no Itamaraty uma pessoa de 51 anos é considerada jovem. Porque houve um envelhecimento do Itamaraty. Eu digo, às vezes, ao meu secretário no Itamaraty...
Carlos Eduardo Lins da Silva: Por que "inacreditavelmente"? [risos]
Celso Amorim: ...que os únicos velhos somos nós. Não pode ser assim, nós temos que renovar! Eu quero que sejam os jovens, eu quero que sejam as mulheres, eu quero que sejam os negros, dentro do respeito aos princípios da carreira. O embaixador Patriota é uma das pessoas mais brilhantes que eu conheço, tem as melhores relações com todos os intelectuais, com empresários e com políticos, como raras vezes [se] tem. Não quero fazer comparação com outros, mas, além de ser tão bom quanto outros...
Eliane Cantanhêde: Além de ser brilhante, não tem que ter experiência num cargo como esse?
Celso Amorim: Olha, às vezes a experiência muito distorcida atrapalha.
Eliane Cantanhêde: Mas às vezes é essencial, não é?
Celso Amorim: Eu acho que o embaixador Patriota está se saindo maravilhosamente bem, como a embaixadora Maria Luiza Viotti, que é embaixadora na ONU, está saindo extremamente bem. Eu acho que é preciso renovar! O Brasil é um país de jovens. O Brasil não será bem representado se todas as pessoas que representam o Itamaraty tiverem da minha idade para cima! Não tem cabimento, isso.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Ministro, eu tenho, aqui, uma última pergunta: o senhor vai ter uns 45 segundos pra responder, mas eu protesto, em nome dos cinqüentões, o senhor achar que 51 anos é velho. [risos] 51 anos é uma criança!
Celso Amorim: Não, ela é que está achando! [apontando para Eliane Cantanhêde]
Eliane Cantanhêde: [exaltada] Eu não acho! Eu não falei idade, eu falei experiência!
Carlos Eduardo Lins da Silva: O senhor foi presidente da Embrafilme...
Celso Amorim: Com 36 anos.
Carlos Eduardo Lins da Silva: ...e eu acho que o senhor se orgulha disso, eu tenho a impressão.
Celso Amorim: Me orgulho!
Carlos Eduardo Lins da Silva: O Brasil não poderia fazer algo a mais para voltar a exportar mais cinema e mais produtos culturais? Com a riqueza que nós temos, aqui, de produção cultural, o Ministério não poderia fazer algo a mais para o que Brasil voltasse a exportar, como exportou no passado, telenovelas, música e cinema?
Celso Amorim: Essa resposta em 45 segundos é muito difícil. Eu gostaria muito de fazer mais, o Itamaraty está procurando se aparelhar mais para isso. Agora, obviamente, no passado, não existia Ministério da Cultura, não havia outros meios de apoio à produção audiovisual no Brasil. No caso das televisões, muitas delas, muitas televisões são privadas. Mas eu acabei de conversar, aqui, com uma das diretoras da TV Cultura para sugerir que programas da TV Cultura possam ser levados, por exemplo, ao Timor Leste [país do Sudeste da Ásia que tem o português como uma das duas línguas oficiais, ao lado do tétum; ficou independente formalmente em 2002, após destrutivo conflito com a Indonésia, e está sendo assessorado na sua reconstrução e formação de profissionais por contingentes financiados pela ONU, incluindo muitos brasileiros], onde a língua portuguesa está ameaçada de desaparecer [está sendo substituída naturalmente pelo tétum]. Então, aí, é uma contribuição que nós podemos fazer, uma parceria entre o Itamaraty e a TV Cultura.
Carlos Eduardo Lins da Silva: Muito bem, vamos fazer, então, ministro.
Celso Amorim: Vamos lá!
Carlos Eduardo Lins da Silva: O Roda Viva está chegando ao seu final. Nós queremos agradecer a presença dos entrevistadores, da platéia e, principalmente, a sua participação, telespectador. As perguntas que foram enviadas e não foram feitas ao ministro serão enviadas a ele e, se ele quiser e puder responder, serão respondidas depois, por meio de correio eletrônico. O Roda Viva estará de volta na próxima segunda feira às dez e quarenta e até lá! Uma boa semana!