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Memória Roda Viva

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MV Bill

25/4/2005

Entre outros assuntos, o rapper, conhecido pelo clipe "Soldado do morro", fala da função social que o movimento hip hop - cultura de rua que mistura rap, grafite e break - adquiriu no Brasil

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Paulo Markun: Boa noite! Ele fez uma declaração de guerra pela paz. Nascido e criado numa favela do Rio de Janeiro, onde continua vivendo, fez da música sua arma de luta contra a violência, seu protesto contra a exclusão social e a situação absurda vivida hoje na periferia das grandes cidades. O Roda Viva desta noite entra no mundo de MV Bill, o mais famoso rapper carioca, que colocou em CDs, em documentário e agora em livro uma realidade brasileira que ele vem denunciando e que quer que o Brasil conheça melhor.

[Comentarista]: “Minha condição é sinistra, não posso ficar de rolé, não posso dar bobeira na pista...”. Ele traz o som da favela de hoje, nada a ver com o samba-enredo que o pai cantava na favela de ontem. Mistura de batida eletrônica, atabaques e vocais, seu rap nasce nos becos e vielas da favela de tijolo, concreto e esquadrias de alumínio onde bandidos e meninos, trabalhadores, desempregados e polícia convivem e buscam sobreviver na realidade violenta da periferia brasileira. As iniciais MV são de "mensageiro da verdade" e ele pretende ser a voz dos que não têm voz nem identidade. Mas até seu nome é um pseudônimo: Alex Pereira Barbosa mantém oculto seu verdadeiro nome. No início dos anos 1990, ele se encantou com o hip hop, o movimento de cultura de rua que nasceu nos EUA e conquistou o Brasil misturando rap, grafite e o break numa onda de protesto e crítica social. Em pouco tempo, o rap tornou-se o segmento musical que mais cresce no mundo e nesse campo o Brasil ficou com o segundo lugar. MV Bill gravou seu primeiro CD em 1998 e no ano seguinte provocou polêmica ao exibir a arma que portava debaixo da camisa no palco do Free Jazz Festival. Ele explicou que a arma de brinquedo simbolizava a luta pela paz e pelo desarmamento que defende publicamente, ao lado da preservação dos telefones públicos. “Soldado do morro”, nome de música e de um clipe, virou um manifesto contra a cultura da violência na periferia das grandes cidades. O clipe rendeu-lhe uma acusação formal de apologia ao crime. Foi no convívio direto com o crime e o tráfico de drogas que MV Bill encontrou a matéria-prima do protesto que vem fazendo. Ele vive até hoje na Cidade de Deus, favela da zona oeste do Rio de Janeiro onde nasceu há 30 anos. O bairro ganhou as telas do mundo com o filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund [Cidade de Deus (2002)], que o rapper critica por apresentar uma visão parcial da favela. MV Bill também se aventurou no campo do audiovisual. Percorrendo favelas e bairros pobres do país inteiro para filmar os "falcões", garotos entre 12 e 18 anos, armados até de fuzil, que trabalham para os traficantes vigiando as favelas e alertando sobre a chegada de rivais ou da polícia. O trabalho, feito em conjunto com seu empresário, Celso Athayde, virou um documentário hoje vetado pelos próprios autores. A dupla se associou ao antropólogo Luiz Eduardo Soares, estudioso e especialista em políticas de segurança pública, para escrever Cabeça de porco [resultado de 15 anos de pesquisa sobre as principais favelas do Rio de Janeiro, procura mostrar de forma realista a violência instalada no Brasil]. Eles dizem que a intenção do livro não é denunciar, mas apontar saídas, que é importante revelar com todos os detalhes mais vívidos a realidade em que crianças e jovens vivem hoje no mundo do crime. No dicionário, cabeça-de-porco é cortiço, mas na gíria das favelas cariocas significa situação confusa, beco sem saída. A situação criada pela violência na periferia das cidades brasileiras. É o rap de MV Bill.

Paulo Markun: Para entrevistar MV Bill, nós convidamos: Maria Rita Kehl, psicanalista; Renato Lombardi, comentarista do Jornal da Cultura; Fernanda Mena, repórter de cotidiano do jornal Folha de S. Paulo; Jorge Antônio Barros, editor-assistente da editoria Rio do jornal O Globo; Pedro Alexandre Sanches, escritor, repórter e crítico de música da revista Carta Capital e Cunha Jr., jornalista e apresentador do programa Metrópolis, da TV Cultura. Nós também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando com seu humor os principais momentos da entrevista de hoje. Boa noite, MV Bill.

MV Bill: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar falando um pouco de como era a sua vida antes de você virar um sujeito famoso, de adotar esse nome, de entrar no mundo do rap. Enfim, de se transformar num artista.

MV Bill: Bom, como a maioria dos jovens tem a mesma característica que a minha – nascidos em comunidades, pobre e preto – eu segui o padrão, que é um estilo meio que moldado, meio que predestinado para as pessoas como eu. Estudei pouco, tive que começar a trabalhar cedo também.

Paulo Markun: Você estudou até que ano?

MV Bill: No início estudei até a 5ª série, depois estudei um pouco mais e consegui terminar o 1º grau. E eu era vítima da invisibilidade.

Paulo Markun: E começou a trabalhar com que idade?

MV Bill: Comecei com 12.

Paulo Markun: Fazendo o quê?

MV Bill: Eu era marreco, carregava compra de madame. Antes disso, eu tomava conta de carro, depois entrei como marreco, depois entregava jornal na porta das madames, depois trabalhei em banca de jornal também e fui seguindo a vida.

Paulo Markun: E isso vivendo na... Você nasceu na Cidade de Deus?

MV Bill: Nascido e criado.

Paulo Markun: E passou esse tempo todo lá?

MV Bill: [acena que sim com a cabeça] Hoje eu tenho dupla residência. Moro na Cidade de Deus e moro em outra comunidade chamada Pedra do Sapo, que fica no conjunto de favelas do Complexo do Alemão.

Paulo Markun: Onde mora o Celso Athayde [produtor, co-autor do livro e documentário Falcão: meninos do tráfico]?

MV Bill: Não. Ele mora em Madureira. A gente tem a Cufa, Central Única das Favelas, que é onde a gente desenvolve trabalhos sociais em algumas comunidades e, como a gente está implantando um trabalho lá também, criando uma base lá... A gente está iniciando com a inclusão digital. Depois vamos sair em busca de novos parceiros para poder ampliar os trabalhos e esse é um trabalho que eu gostaria de coordenar de perto. Então, para ficar melhor o trânsito, eu estou morando lá também.

Renato Lombardi: Bill, "MV Bill" é mensageiro da verdade Bill, é isso? Então, queria que você dissesse a verdade aqui pra gente, pra começar assim. Você que nasceu na Cidade de Deus, viveu na Cidade de Deus, vive lá na favela, conhece a história. Quero que você conte aqui pra todos nós como é essa ligação traficante-morador, traficante-garoto x traficante que manda? Porque eu estava lendo no teu livro e você diz que o grande traficante não mora na favela, mora num outro lugar. Como é essa ligação desde criança, quando as crianças são recrutadas pelo traficante? Elas viram olheiro, viram entregador, depois acabam virando o próprio traficante. Como é essa história? Como é viver, conviver com a violência, o tráfico e a droga dentro da favela?

MV Bill: A gente enxerga de uma outra forma. Porque, até quando a gente ouve os comentários de pessoas... O homem do asfalto fala assim: "Ah, o poder paralelo". Para aquelas pessoas que estão dentro da comunidade, o poder paralelo é a própria polícia, é o poder que eles não ajudaram a constituir. E aqueles que são chamados de traficantes e moram dentro das comunidades, aqueles ali foram criados junto com outras pessoas que não são bandidas, estudam na mesma escola, jogam futebol juntos no final de semana. Então, há uma certa dificuldade de ver aquelas pessoas como algozes, porque elas fazem parte do dia-a-dia. Em muitos casos, o título de traficante parece não se aplicar àquelas pessoas, porque existe um convívio com elas. Na realidade, muita gente acha que o livro trata somente do tráfico de drogas ou do crime. Mas muitos assuntos importantes da vida estão cobertos apenas pelo manto do crime. E as pessoas que nascem nesse lugar... [porque] uma das coisas que me motivou a sair em busca dessa pesquisa e em busca dessas respostas é que, nesses lugares, as pessoas parece que já nascem marginais, já nascem num ambiente marginalizado que não dá para elas a oportunidade de serem outras coisas. Dentro das comunidades o que tem... Às vezes falam assim "o espelho do cara que tá na comunidade é quem tá mais perto". Só que quem está mais perto não é só o bandido. Tem o bêbado, tem o desempregado, tem a empregada doméstica, tem o assalariado. As comunidades acabam sendo as proprietárias das profissões mais humildes. E dentro desse leque de opções aparece o tráfico de drogas, que não aparece somente para dar mais dinheiro, dá também a esse jovem a tão sonhada auto-estima. Além de dar o mesmo dinheiro ou um pouco mais, traz auto-estima e tira ele da invisibilidade.

Renato Lombardi: Mas dá essa auto-estima? Você, trabalhando para o traficante, tem o poder? Se você andar com uma arma, andar com uma mulher bonita do teu lado, faz você ser o dono do pedaço? Isso acontece?

MV Bill: A televisão mostra isso todo dia. Mostra que as pessoas têm que ter coisas boas, têm que ter coisas bonitas. E o grande problema é que todas as pessoas querem a mesma coisa, só que apenas uma parte tem direito. Então, por mais que o jovem saiba... Pelo que eu vi e pelo que eu senti, por mais que o jovem saiba que aquilo ali faz com que ele tenha uma vida curta, que ele pague com a própria vida, ele ainda assim prefere viver pouco como um rei do que viver muito como um ninguém. Então, o crime acaba tirando ele da invisibilidade, sim, invisibilidade essa que é imposta pela sociedade e faz com que aquele jovem ali seja tratado como um lixo. Quando ele é preso ou vai pra Febem [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, atual Fundação Casa (Centro Educativo de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente). Mudou de nome pela lei Lei 12.469, que também alterou o nome do Conselho Estadual do Bem-Estar do Menor para Conselho Estadual de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente em abril de 2008], acho que é uma confirmação de que ele é visto como um lixo social. Porque a Febem não recupera ninguém e só profissionaliza para o crime. Quando o devolve para rua, joga [mais tarde] para o presídio. E essa é a vida. Muita gente diz que no Brasil não existe prisão perpétua, mas eu pude perceber que tem. Quando você tem um jovem ou mesmo um adulto que já foi preso, ele vira ex-presidiário e aquilo ali o impede de fazer várias outras coisas. Ele não consegue se ressocializar. O jovem que é preso por um policial corrupto dentro de uma comunidade, mesmo que ele não tenha passagem, quando o policial o encontra na rua vai tratá-lo como bandido, vai exigir que ele mostre o produto do roubo. Esse é o tipo de tratamento. Então, muitas das vezes, para sair da invisibilidade, para ele ser enxergado, infelizmente, às vezes, ele precisa pegar na arma.

Paulo Markun: Mas não é o correto.

Jorge Antônio Barros: Para ele ser enxergado de uma outra forma, né?

MV Bill: Quando a gente faz trabalho, a gente não tenta direcionar, dizer “ó, você vai ser isso aqui”. Até porque não tem como todos os moleques serem jogador de futebol, nem todos têm talento pra desenvolver um dom artístico. A gente pega as informações culturais, musicais e outras que a gente tem e passa para as pessoas. Com aquela quantidade de informações, ela é livre pra fazer o que quiser. A gente torce muito pra que ela use para o bem, mas ela é livre para fazer o que ela quiser. Agora, quando a gente nega essa chance... Quando a gente dá uma chance, a gente passa a ter uma chance também para trazer as pessoas para o lado do bem. Mas, quando a gente nega essa chance, acho que a gente assassina esse jovem e automaticamente está consentindo para o assassinato das futuras vítimas.

Jorge Antônio Barros: Só para concluir essa parte, uma pesquisa no Rio mostra que um em cada quatro adolescentes entra para o tráfico nas favelas. Como você conseguiu escapar desse destino trágico?

Cunha Jr: Era esta a minha pergunta, se você foi assediado pelo tráfico quando tinha essa idade, 12 anos, por exemplo.

MV Bill: A sedução é constante. Quando você vê comentários na televisão, programas de televisão, assim, as coisas boas que a televisão mostra, o mundo, você sabe o que existe fora da comunidade. Então, o assédio é muito grande para quem nasce dentro daquele local. Eu tive a oportunidade de conhecer o hip hop que me tirou da invisibilidade. Só que eu não prego o hip hop como única salvação. Acho que ele é um dos caminhos que pode levar a essa salvação, mas eu acho que não é o único. Foi o que me salvou, mas muitas pessoas não tiveram a oportunidade de conhecer o hip hop.

Maria Rita Kehl: Você, o [Mano] Brown [rapper brasileiro, vocalista do grupo Racionais MC's, formado na capital paulista em 1988], aqui em São Paulo, e o [Celso] Athayde contam histórias muito parecidas, de terem saído da invisibilidade e também de um destino que talvez pudesse ser trágico, como disse o Cunha, pelo hip hop. Só que nem todo mundo tem o mesmo talento. Ao mesmo tempo, eu acho que o hip hop – se eu estiver errada, você me corrige– também tira da invisibilidade meninos que não têm que ser necessariamente artistas de hip hop. Suas músicas falam da existência desses meninos todos, dessas meninas que ficariam invisíveis, se tornam visíveis na sua música. Eu tenho a impressão [de] que vocês oferecem um pouco o hip hop como uma saída para mudar de destino. Você diz que não é a única saída, mas é uma saída. Como é possível, para quem não é artista, não tem talento, aderindo ao hip hop, mudar esse destino? Como você acha que o jovem que gosta do rap faz esse caminho? 

MV Bill: A maioria dos caras que são MCs, que são vocalistas de bandas de rap, que têm grupos ou que têm discos, a maioria deles conseguiu sair da invisibilidade por causa da música. E passaram a ser outro tipo de ser humano através do hip hop. E a gente tenta dividir isso com outras pessoas, mas não necessariamente todas elas vão ser do rap também. Agora, existem vários outros caminhos que podem ser tomados. O rap não só traz a questão à tona, mas traz também a discussão. Acho que, através da discussão, [é possível] fazer uma mobilização. Então acho que existem várias coisas a ser feitas dentro das comunidades para tirar esses jovens da marginalidade. Mais do que isso, fazer com que eles nem precisem entrar para depois tirar. Muitas pessoas acham que a questão da comunidade tem que ser combatida com mais violência. Eu – pelo que eu vi, pelo que eu entendo, pelo que eu vivo até hoje nas comunidades– acho que as questões não serão resolvidas com uma polícia mais aparelhada. Não é ter mais armas, não é com mais arrogância da sociedade. Acho que é mais trabalho, mais mobilização. Desarmar. É dar arma de fogo, mas desarmar o espírito também. Tentar entender um pouco também a vida desses jovens.

Pedro Alexandre Sanches: Bill, você usou muito essa linguagem na sua música: a violência, as armas... De algum jeito, você também fazia parte desse universo todo [de] que você está falando. Não tem que partir de você também essa coisa de pacificar? Eu quero perguntar assim: por que você optou por usar esse discurso de maneira tão contundente e foi muito criticado por isso também?

MV Bill: Porque o meu protesto foi feito na minha linguagem. Não usei a linguagem do asfalto, não usei a linguagem acadêmica para [me] manifestar. Muitas das vezes acho que eu fui mal interpretado pela minha origem, pela minha cor. Eu já vi outros escritores fazendo livros sobre a mesma questão, mas fazendo literatura. E se é a gente que faz vira uma outra coisa, tem muito disso também. Mas eu sempre busquei a minha realidade, sempre busquei a minha verdade. O hip hop, além de ter me dado voz, de ter me trazido à visibilidade, ele me deu a oportunidade de falar, de botar a minha comunidade no mapa. Depois eu percebi que a gente estava ajudando a botar outras também no mapa. É isso que eu conquistei dentro do rap e procurei seguir essa linha. É muito bom poder fazer a música, a parte musical e tentar levar junto a parte social. É que eu tento fazer.

Cunha Jr: Mas dessa forma você não compra briga com traficantes? Fazendo esse trabalho social você não estaria, digamos assim, "roubando" garotos que poderiam estar agindo para o tráfico? Levando esses meninos para um outro lado? Segundo a pesquisa que nós recebemos aqui, você teria até sido julgado por traficantes em 1999 por suas declarações para a imprensa a respeito disso. Não sei se corresponde à verdade ou não.

Jorge Antônio Barros: Eu complemento a pergunta do Cunha para dizer o seguinte: como você consegue sobreviver morando dentro da favela com esse discurso, que muitas vezes é contra o traficante e contra a polícia? Você fica meio entre a cruz e a espada, não?

MV Bill: Ameaça eu desconheço. E o meu discurso nunca foi "antitraficante". O meu discurso não é contra o traficante. Eu não tenho o discurso: "tem que matar os traficantes!". Não é isso, até porque não é essa a realidade, não é isso o que eu penso. E, por outro lado, é uma via de mão dupla, só que vai muito mais do que vem. Então, às vezes eu tenho até a sensação de fracasso, sentimento de derrota, porque, por mais que eu consiga ajudar um jovem...

Paulo Markun: Bill, eu não entendi que via de mão-dupla é essa. Não compreendi.

MV Bill: Tudo bem. Tipo assim, por mais que a gente faça os nossos trabalhos sociais e a gente consiga recuperar algum jovem, por mais que eu veja algum jovem conseguindo se redimir do crime, tem mais de 50 querendo entrar, porque o que ele está vendo ali é a única oportunidade da sua vida. Em outros casos, mesmo aqueles que se redimiram do crime, a gente tem dificuldade de ajudar. Porque, quando a gente faz esses trabalhos nas comunidades, a gente fala todas essas coisas e a gente acaba fazendo renascer ou nascer a esperança dentro deles. E, mesmo aquele que se redimiu do crime, jovem ou adulto, quando chega até mim, a gente ainda, assim, se sente impedido de dar essa ajuda. Porque, veja bem, eu já sou um cara que já sou considerado marginal, já sou um cara considerado suspeito por natureza, por excelência. Quando tem moleque desses que já têm passagem, boto para trabalhar dentro de uma base nossa, para, sabe, fazer um curso qualquer. Aí vai a polícia lá, pega ele lá dentro e no dia seguinte vem: "A Cufa virou esconderijo de bandido, está abrigando bandido". E é muito fácil isso virar matéria. É muito fácil isso virar matéria de colunista e de socialite vir falar "eu sabia que isso não era flor que se cheire".

Renato Lombardi: Eu soube que vocês estavam fazendo um levantamento na favela, você e o Athayde, e foram presos e tiveram que pagar, subornar os policiais. Eles exigiram dinheiro de vocês. É verdade isso?

[...]: Em Goiânia, não foi?

MV Bill: Tá no livro isso.

Renato Lombardi: Eu queria que você contasse isso. Nem todo mundo tem acesso ao livro.

MV Bill: [inquieto] Eu não vou contar a ocasião em que isso aconteceu.

Renato Lombardi: Vocês precisaram pagar para os policiais para poder ser liberados, você e o Athayde?

MV Bill: Sim.

Renato Lombardi: E por quê? Eles colocaram droga no bolso de vocês?

MV Bill: Sim.

Renato Lombardi: Quando você fala assim, eu percebo que você tem muito cuidado para falar do traficante. Você não diz, assim, "o traficante", direto. Você diz: "o chamado traficante". Houve aqui em São Paulo, recentemente, em 2003, morreu o [rapper] Sabotage [foi baleado em São Paulo, no dia 24 de janeiro de 2003. Vivia na favela Canão, em São Paulo e compunha desde a adolescência. Ficou conhecido em 2001 com o o álbum Rap é compromisso. Também participou da trilha e atuou no filme O invasor]. Você conheceu, né? O rapaz foi morto por um traficante. Era uma dívida antiga e depois ele acabou sendo morto em 2003, dois meses antes de ir para o Fórum Mundial. Você teme que, se você falar um pouco mais do que está aqui nesse livro... Você teme [uma] ameaça do traficante? Você acha que isso pode virar uma bandeira contra o tráfico no morro no Rio de Janeiro?

MV Bill: Acho que não, cara. O meu trabalho nunca foi esse. Tipo assim, o meu entendimento é um pouco diferente do seu, porque eu moro dentro da comunidade e...

Renato Lombardi: Eu estou perguntando isso para você. Eu não entendo assim. Eu estou dizendo o seguinte: você escreveu um livro junto com uma pessoa que é muito teórica, que é o Luiz Eduardo Soares, e com outra pessoa que entende tanto quanto você. E está tudo isto no seu livro: vocês foram presos, botaram droga, vocês foram pagar e tem uma série de outras coisas. E se você... Esse movimento de dizer "não, não tô atacando traficante"... Não é isso... Mas, no fundo, no fundo, nós estamos aqui discutindo uma coisa muito séria, que envolve esse país todo, que é o traficante. Ele adota, entre aspas, a garotada, como você não foi adotado, porque você seguiu outro caminho. Então, é isso que eu queria perguntar para você, exatamente isso. Você teme isso, virar uma bandeira contra o tráfico?

MV Bill: Não.

Renato Lombardi: Não teme?

MV Bill: Não temo.

Pedro Alexandre Sanches: Você gostaria de ser essa bandeira contra o tráfico?

MV Bill: Não. Porque eu vou estar sendo contra as pessoas que são iguais a mim. Hoje, se você for às comunidades dos casos [de] que eu trato nesse livro, 95% dessas pessoas são pretas. Isso mostra o retrato da desigualdade racial no Brasil, que muitos insistem em dizer que é uma desigualdade social, tentando achar uma forma [para] o problema ficar menos grave, dizendo que é social. Na realidade, eles se tornaram os jovens que mais sofrem e mais reproduzem a violência. Então, assim, acho que ser contra o traficante, isso a sociedade do sempre foi, a polícia sempre foi. Mata um e tem mais três pra entrar no lugar. Eu só queria trazer para a gente ver, através desse livro, novas alternativas.

Pedro Alexandre Sanches: A sociedade é mais contra o traficante da favela.

MV Bill: Podem continuar fazendo isso, continuar matando, só que não está sendo eficaz, porque o ciclo continua. Os nossos filhos e os nosso semelhantes continuam fadados a entrar por esse mesmo caminho. O que eu prego para as pessoas é que todos merecem chances. Cada um faz o que quiser com essas chances, cada um faz o que quiser com essa oportunidade. Só não acho justo ninguém ter oportunidade antes mesmo de entrar no crime.

Paulo Markun: Bill, nós vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva que, esta noite, entrevista o rapper MV Bill e que tem na platéia Pedro Lacraia, produtor; Charline, rapper do grupo de mulheres Minas na Rima; Mário Sérgio Villas Boas, terapeuta e ativista social, e W.O., vocalista do grupo Comunidade Carcerária. Vamos ver agora um trecho da apresentação do Bill no Free Jazz Festival.

[VT música "Soldado do morro"]: “Minha condição é sinistra, não posso dar rolé. Não posso ficar de bobeira na pista. Na vida que eu levo eu não posso brincar. Eu carrego uma nove e uma HK. Pra minha segurança e tranqüilidade do morro. Se pá, se pam, eu sou mais um soldado morto. Vinte e quatro horas de tensão, ligado na polícia, bolado com os alemão [rivais de outras facções]. Disposição cem por cento até o osso, tem mais um pente lotado no meu bolso. Qualquer roupa agora eu posso comprar, tem um monte de cachorra querendo me dar. De olho grande no dinheiro, esquecem do perigo, a moda por aqui é ser mulher de bandido”

Paulo Markun: Bill, eu gostaria de começar com a pergunta de um telespectador. Aivelton Eudócio de Melo Filho, de Recife, PE, pergunta: "Gostaria de saber como se pode falar da paz, justiça e amor e exibir nos clipes armas e expressão de revolta no rosto?"

MV Bill: Acho que a revolta no rosto é uma característica do rap brasileiro. Até por conta do assunto, também, pelas coisas que a gente está falando. Exige uma certa seriedade e a expressão feia é por conta da gente mesmo [sorri], da nossa natureza.

Paulo Markun: A pergunta do telespectador é se dá pra falar de paz...

MV Bill: E a questão das armas eu acho que a forma que a gente encontra de falar... Nesse caso aqui, do Free Jazz, eu vou comentar: na realidade, a gente queria fazer um protesto pelo desarmamento, porque naquele momento estava se falando muito, principalmente no Rio de Janeiro, de desarmamento e de paz. E as pessoas que moram dentro das favelas nunca eram consultadas. Somente outras pessoas, que possivelmente podiam ser seqüestradas, é que davam sua opinião. Então, naquele momento ali, eu não estava representando eu, o Bill, ou o hip hop, mas era uma demonstração de que a favela também é a favor da paz, embora não seja consultada várias vezes.

Fernanda Mena: Bill, o rap nacional tem essa característica de forte denúncia da miséria, da violência e do crime, coisa que você utiliza muito bem. Agora você quis ir além e foi fazer um documentário, que é o Falcão, e um livro. O rap não foi suficiente para você falar com quem você queria? Você teve que ir além? Por que você avançou na questão musical e foi procurar imagem e literatura?

MV Bill: Eu achava que o rap já era o suficiente para poder trazer a questão à tona. Isso ele conseguiu fazer. Agora, eu senti uma vontade muito grande de fazer algo mais que isso, de não ser enquadrado no crime de omissão, de tentar fazer e dar o máximo, mesmo sem dinheiro, sem recursos. Eu e o Celso saímos numa busca maluca de tentar pesquisar a vida desses jovens. Parte dessa pesquisa foi o clipe "Soldado do morro", que ainda assim a gente achou que era pouco. A gente achava que essas pessoas deveriam falar, que elas precisam mostrar suas vozes e saímos em busca das respostas das perguntas que nos incomodavam. Saímos em pesquisa pelo Brasil inteiro. O que tem no livro não é o resultado dessa pesquisa, mas sim alguns contos, contos pessoais e alguns perigos que a gente encontrava pelo caminho até chegar aos nossos entrevistados. Hoje, eu percebo que o rap, aliado à literatura – a gente é marinheiro de primeira viagem, nosso trabalho é mais na prática, com a mão na massa – pode trazer resultados mais rápidos e positivos.

Fernanda Mena: Você queria falar para outras pessoas, que não são o público do rap? Você achava que essa denúncia que você faz do tráfico e da violência dentro das comunidades e de como isso atinge a juventude... você estava falando, talvez, para pessoas que já soubessem disso tão bem quanto você. A intenção era essa? Era falar para outro público?

MV Bill: Quando eu expandi o discurso, realmente, eu percebi uma mudança. Além da discussão, houve também mobilização. E, dentro desse trabalho de pesquisa, eu descobri que a pobreza, para ser resolvida, precisa do auxílio da riqueza também, então, isso de ampliar o discurso e fazer com que as pessoas discutam e reflitam sobre o Brasil... Aliás, nessa pesquisa toda, desde quando eu comecei a fazer rap, sempre tive a impressão de que existe mais de um Brasil. E talvez o livro e toda essa discussão possibilitem que um Brasil seja apresentado ao outro. Às vezes, parece que as pessoas vivem em mundos bem distantes.

Pedro Alexandre Sanches: O que você sente de ver seu nome assinando em um livro? O livro é um objeto um pouco vetado para os caras que vêm da favela, né? E é uma novidade no Brasil que caras como você estão conseguindo se expressar. Como foi para você isso?

MV Bill: Para mim, está sendo um grande desafio porque, já disse, eu não sou escritor. Pelo menos as minhas partes, eu escrevi como eu faço as minhas músicas mesmo, o rap. Ver que está sendo discutido, mesmo entre os que discordam da minha posição e da minha opinião, eu acho muito bom, porque "os pretos" estão começando a ter voz no Brasil. Acho que a gente não pode ficar só na música. Já passou o tempo de bater tambor. Foi legal isso, mas a gente tem que invadir a literatura, invadir o jornalismo, invadir todas as áreas que derem espaço. Eu acho que a gente tem que aparecer mais e botar a cara mesmo. Fico feliz por esse lado, por esse resultado.

Maria Rita Kehl: Eu queria fazer uma pergunta sobre a coisa de "parou o tempo de bater tambor". Você tem toda a razão. As pessoas que estão preocupadas, achando que vocês fazerem cara de bravo seria incitação à violência... Como se não vissem televisão, sessão da tarde, que o dia inteiro é tiro para tudo quanto é lado. Vocês têm uma posição, pelo que eu entendo, que não é de incitação da violência, é de mostrar que vocês estão bravos com a situação, ou seja, quem mora na Cidade de Deus, no Complexo do Alemão etc., está bravo com a violência. Eu queria que você explicasse um pouco o que é isso em que o rap insiste muito, que é, ao invés de levantar a auto-estima levando uma arma, matando gente, comprando tênis, é levantar a auto-estima pelo que vocês chamam de atitude. Queria que você falasse um pouco da atitude no rap. O que é isso?

MV Bill: Atitude que eu vejo dentro do rap é a atitude de buscar, de não ficar preso ao conformismo, de não ficar preso num círculo vicioso que nos deixa fadados a ter a ascensão somente pelo futebol. Não é nem pelo esporte, é pelo futebol. Não é pela música, é pelo funk do Rio de Janeiro e pelo rap em outras capitais ou o samba no máximo. Ou pelo tráfico de drogas. A gente começa a buscar alternativas. Acho que atitude é isso.

Maria Rita Kehl: Enfrenta o racismo? Você acha que a atitude enfrenta o preconceito racial, por exemplo?

MV Bill: Acho que começa nisso, porque quando a gente fala da questão racial no Brasil, as pessoas... parece que têm medo de discutir sobre racismo. Parece que nego tem medo de, em um país como o nosso, que os pretos possam ter mais, não só liberdade, mas respeito, poder. Acho que é isso que nos falta: poder de decidir algumas coisas e poder de ter as coisas também.

Renato Lombardi: Bill, fala um pouquinho da pesquisa que vocês fizeram em várias favelas desse país. Num trecho aqui do livro, de um traficante, diz: "De que adianta ganhar muito e morrer rápido? Vou perder a liberdade, ficar lá dentro sem ninguém visitar, sem ver ninguém. De que adianta estar hoje com dinheiro pra caramba no 3" - que é Bangu 3, presídio do Rio de Janeiro [penitenciária Serrano Neves, conhecida como Bangu 3. Considerado o maior presídio de segurança máxima da América Latina, com capacidade para 900 presos. Abriga os principais traficantes do Rio de Janeiro]. Tem gente com dinheiro “pra caramba”. De que adianta? Bangu 1, dinheiro “pra caramba”. E aí? Cadê o dinheiro? Vai todo para o advogado, contas pra pagar". Esse é um trecho de uma pessoa que vocês ouviram. E tem outro trecho, que fala do outro lado, que é o lado oposto, como dizia o bandido da década de 1960 do Rio de Janeiro: “polícia é polícia, bandido é bandido”. Diz aqui: "E os policiais? Olha, eu vejo, aqui, eu sou bandido, mas se você for avaliar o polícia, você vai ter mais inquérito que qualquer marginal, porque cada mês ele mata um. Todo dia ele rouba um. O salário de um policial não dá pra ele ter um Honda. Vai no posto, dá uma olhada para ver quanto Honda está parado. " Conta um pouco essa pesquisa, essa andança. As pessoas foram francas? Elas abriram o coração para você pra contar esse tipo de história aqui?

MV Bill: Olha, antes de a gente...

Renato Lombardi: Com coragem?

MV Bill: Antes de a gente conversar com as pessoas, a gente explicava qual era o tipo de pesquisa que a gente estava fazendo. Em vários momentos, eu senti que a pesquisa não foi bem compreendida pela pessoa e aí a gente procurava não fazer. Na maioria dos pesquisados existe uma raiva, um ódio muito grande da polícia. Até um questionamento, assim, por exemplo, se um policial que vai preso comprovadamente como policial corrupto é um policial bandido. Se ele prende o filho de algum de vocês aqui, por exemplo, ele é comprovadamente preso pela polícia, pela Justiça, como bandido e pega o filho de um de vocês aqui: seu filho foi preso por um bandido ou por um policial? E outra coisa que me chamou a atenção, em casos que envolvem conflitos de população, de comunidade e polícia, os dois ficam com medo um do outro. Tanto a população esconde o rosto quando não quer falar... e o policial, mesmo sendo investigado, também esconde o rosto. Então, uma coisa que eu vejo é que, quando esse policial é preso... E as outras pessoas que foram presas por ele? O que faz? Solta? Eu acho que, no mínimo, deveriam rever os processos dessas pessoas. Então, existe um ódio, uma relação muito ruim. E muitas das atrocidades cometidas pelos policiais dentro das comunidades são reflexo das exigências da sociedade. Eu sei que existe o policial honesto, eu sei que não dá pra generalizar. Mas, à medida que o policial honesto não consegue sobressair num grupo de policiais corruptos, ele passa a fazer parte do bolo também. E, tipo, não dá pra se orgulhar... Eu acho que a polícia não pode se orgulhar de estar expulsando mil policiais, dois mil policiais por ano. Isso não é uma coisa boa. E quando eu vejo também fila de inscrição para prova da polícia, o jovem também na fila da polícia, o cara vai falar "pô, você está fazendo a inscrição por quê?" Nunca ninguém fala "eu estou entrando porque eu quero ajudar a transformar a sociedade numa coisa mais justa, quero uma cidade mais bem cuidada, dar segurança pras pessoas". Você vê o cara falar assim: "Eu quero entrar pra ter uma estabilidade financeira, quero ganhar um pouco mais, porque aqui eu vou ser mais..." Sabe? Então, existe essa vontade de defender a pessoa que mora na comunidade. O que eu vejo é que o papel da polícia é manter o morro no morro. Manter a violência "guetificada". Só que a violência explodiu e hoje está em todo lugar.

Renato Lombardi: Não tem ninguém que elogiou a polícia nessa pesquisa que vocês fizeram? Alguém que falou "olha, fui bem tratado, não fui extorquido, não fui preso, eu confio no policial"? Teve alguém que falou isso?

MV Bill: Teve. Como teve gente também que elogiou muito o tráfico de drogas. Aí não é o resultado da pesquisa. Isso são algumas histórias que a gente escolheu para colocar aí.

Paulo Markun: Dessas histórias, te confesso que a que mais me impressionou... A gente, que é jornalista, acha que conhece as coisas mesmo que não viva, porque a profissão da gente é andar por aí... principalmente se a gente anda, como eu andava, no tempo da reportagem de rua. A história que mais me impressionou é a história da merla em Brasília [droga derivada da cocaína. Composta de folhas da coca misturadas com diversos produtos químicos, como ácido sulfúrico, querosene e cal virgem, entre outros. É ingerida pura ou misturada num cigarro normal ou num cigarro de maconha], dessa droga que é pouco conhecida da classe média, principalmente. E você faz uma descrição, você e o Celso Athayde, uma descrição assustadora de como essa droga dominou uma comunidade e as pessoas entregam a alma, para usar uma expressão simples, em troca da droga. E eu tenho a impressão [de] que isso impressionou até você, que está acostumado com a história. O que leva as pessoas a essa loucura?

MV Bill: O que leva, eu, sinceramente não sei. Mas a merla...

Paulo Markun: Primeiro, o que é a merla?

MV Bill: Eu também não sei explicar.

Renato Lombardi: Começou em Minas, né? A merla começou em Minas, não é isso, Bill?

MV Bill: Eu não sei explicar direito o que é a merla, mas só sei que ela leva soda cáustica, solução de bateria. Eu acho que é derivado de cocaína. Não sei explicar muito bem o que é, mas os efeitos dela são devastadores. Não só no caso da merla, mas de uma forma geral, o que eu pude perceber é que o mesmo produto, a droga, independente[mente] de qual seja, que faz a tragédia para algumas famílias, acaba sendo a salvação de outras, porque ele é renda, é o lucro. É como eu estava dizendo: para muitas pessoas, o tráfico de drogas acaba sendo a melhor opção que eles encontram no meio de poucas possibilidades ou possibilidades que eles acham que não são boas. É muito fácil chegar dentro da comunidade e falar: "Você tem que ser lixeiro, você tem que ser gari, varrer a rua". Mas o cara quer ser igual ao playboy da televisão, quer ser igual ao que aparece em outros lugares, que ele sabe que tem no asfalto. Independente[mente] da merla, o que eu pude perceber é isso, é esta dupla função da droga: função de destruir uma família e de sustentar outra.

Jorge Antônio Barros: Aproveitando esse gancho, eu acho que o livro Cabeça de porco revela o MV Bill repórter. Você e o Athayde tiveram um senso de observação, detalhando os personagens, contando coisas que a gente já não lê muitas vezes no jornal, em algumas reportagens. Depois de fazer essa pesquisa ouvindo as pessoas, vendo o drama e a tragédia em cada uma dessas favelas – parece que foi em nove capitais, não é isso–?

MV Bill: Não. Foram mais.

Jorge Antônio Barros: Mais capitais. Quantas capitais vocês percorreram?

MV Bill: Acho que foram 25 ou 24.

Jorge Antônio Barros: O tráfico é do mesmo tipo em todas [as cidades]?

MV Bill: Todas elas. Cada uma ao seu jeito. Muda alguma coisa aqui, outra ali. Mas todas elas têm.

Jorge Antônio Barros: Bom, depois dessa pesquisa, você tem uma posição sobre a droga ilícita no Brasil? Você é a favor ou contra a legalização? É aquela pergunta clássica que a gente não pode deixar de fazer.

MV Bill: Eu não sou favorável à legalização de nenhuma droga. Até porque outras drogas que são liberadas, no caso o álcool e o cigarro... que até a proibição para menores de idade não [se] consegue controlar. E, outra coisa, acho que se for pra liberar... Por exemplo, as pessoas pedem muito a descriminalização da maconha. Acho que isso vai ser bom para quem não mora na comunidade, para quem não mora na favela. Vão poder ir à barraca do “Seu Manoel” na padaria e comprar lá. Quem vai ganhar é a Souza Cruz [Uma das maiores produtora de cigarros do Brasil. Importadora da British American Tobacco. Foi fundada por Albino Sousa Cruz em abril de 1903 no Rio de Janeiro] com impostos. Eu sou a favor sim da liberação e da descriminalização se pegassem todo o dinheiro das drogas que vão ser liberadas e revertessem para todas as pessoas que perderam famílias traficando, que morreram perdendo filho guerreando para vender esse tipo de droga. Assim eu seria. Mas, como não vai ser dessa forma, eu sou radicalmente contra. Acho que tem outras coisas mais importantes para serem legalizadas, como educação e saúde. São coisas básicas e as pessoas já nascem sem esse direito.

Renato Lombardi: Você chegou a ser assediado, algum dia, por um traficante pra dizer "olha, vem cá, vai ganhar tanto"?

MV Bill: Eu já respondi. Já fui.

Renato Lombardi: Você já foi assediado. Você usou drogas?

MV Bill: Não assediado dessa forma, aí, de você chega aqui e pá... Dessa forma não. Mas a vida, o nascimento nesse tipo de lugar é um assédio constante.

Renato Lombardi: Você já experimentou...Você já conseguiu experimentar alguma droga? Já usou alguma coisa.

MV Bill: Você já usou alguma coisa?

Renato Lombardi: Nunca usei.

MV Bill: Ah.

Cunha Jr.: Posso fazer uma pergunta a respeito do recorte de hip hop? Vamos entrar nessa seara. Vamos falar sobre o hip hop em si como um movimento no Brasil. Queria perguntar para você, até para explicar, porque tem gente que ainda não conhece exatamente o que é o hip hop como movimento, com seus elementos, como a música e o rap como ação social. Você acha que o hip hop hoje tem muito mais sentido em países pobres como o Brasil do que no país originário dele, que é os Estados Unidos, onde virou uma grande indústria de milionários e aqui conseguiu ter outro papel? Você acha que ele está sendo mais eficaz hoje em países pobres como o Brasil?

MV Bill: Muito boa sua pergunta. Eu estava vendo no início da matéria, falando até que o hip hop nasceu nos EUA. Na realidade, ele foi descoberto por um DJ jamaicano. [Ele] descobriu nos cantos falados das tribos africanas, semelhança com um tipo de reggae feito na Jamaica, levou isso para os EUA e lá eles batizaram como hip hop. [Puseram] muito dinheiro e tal, mas conseguiram fazer o rap se popularizar. Eu estive em alguns países de primeiro mundo, estive na Inglaterra, na Dinamarca, em Barcelona e percebi que o hip hop lá não tem tanto essa função, como tem em países de Terceiro Mundo, países emergentes. Na África do Sul é uma outra função, no Brasil [também]. A gente fez no ano passado um evento chamado "Hip hop latino-americano" em que a gente juntou grupos de Cuba, México, Argentina e Brasil. E a gente pode perceber que vários pensamentos eram muito parecidos e todos eles foram proporcionados pelo hip hop. Então, tem essa função, sim: países onde a injustiça social, o desnível social é maior, eu acho que o hip hop tem uma atuação mais contundente.

Cunha Jr.: E ele já tem uma identidade nacional? Me lembro das vezes em que eu entrevistei você a respeito dos discos. Você buscava uma identidade para o hip hop brasileiro. Você disse que viajava para França, que o hip hop da França tinha uma cara de francês, no México tinha cara de mexicano, mas, aqui, as coisas ainda não tinham conseguido chegar nessa identificação. Hoje já existe um hip hop brasileiro?

MV Bill: Pô, naquela época estava bem distante. Hoje eu acho que ainda não está no ponto ideal, mas acho que já está no caminho.

Paulo Markun: E tem diferença entre rap carioca e paulista? É que nem futebol, será? Tem rivalidades? [sorri]

MV Bill: Tirando o sotaque acho que não tem nada, não, muito pelo contrário: o hip hop foi o que acabou unindo [e] rompeu a barreira da rixa que existe mais no futebol. Até dentro do Rio de Janeiro mesmo, a gente tem trabalhos que são dominados por facções diferentes e a gente não fica preso a esse tipo de guerra, porque é uma guerra que não é nossa. A gente tem trabalho dentro da Cidade de Deus [dominada pelo Comando Vermelho], por exemplo, tem trabalho dentro de Acari [favela da Zona Norte do Rio Janeiro, dominada pelo Terceiro Comando. É a junção do Conjunto Amarelinho, construído no final dos anos 1950 na beira da Avenida Brasil, e mais três localidades: Parque Proletário Acari, Coroado e Vila Esperança], tem trabalho no Jacaré [favela da Zona Norte do Rio de Janeiro dominada pela facção criminosa denominada Amigos dos amigos, ADA. Foi batizada de Jacarezinho, a versão diminutiva do nome do rio que nasce no maciço da Tijuca e atravessa os bairros do Jacaré, Méier, Engenho Novo e Triagem. Nos anos 1940, o rio Jacaré foi aterrado e canalizado para a construção da avenida Brasil]. Hoje, a gente tem outros estados que estão coligados com a gente. Tem o pessoal lá de Cuiabá, tem o pessoal do Ceará. Todo mundo ligado através do hip hop.

Paulo Markun: Ok. Nós vamos fazer um rápido intervalo agora, Bill, e nós voltamos daqui a pouco com o Roda Viva que, esta noite, é acompanhado em nossa platéia por Ana Paula Drummond, coordenadora de comunicação do instituto Sou da Paz; Mafuane Odara, representando as juventudes negras de São Paulo; Clayton Patrício Chavez, vocalista do grupo Rebento MC, e Júnior, vocalista do grupo Vigilantes MCs. O Roda Viva desta noite estará disponível amanhã para venda no site Cultura Marcas ou televendas.

[intervalo]

[Cenas do clipe "Soldado do morro", MV Bill]: Bem, foi exatamente aqui, nesse local, onde surgiram as primeiras denúncias de que crianças vivem em condições subumanas. E é difícil de acreditar que existam no país do carnaval e do futebol verdadeiros campos de concentração infantil, onde crianças matam e morrem ao desenvolver seu trabalho para os traficantes. As denúncias afirmam, ainda, que os verdadeiros culpados estão escondidos em barracos dentro da comunidade. Mas, segundo alguns moradores, os verdadeiros culpados estão fora das comunidades. O fato é que não sabemos quem são os verdadeiros culpados. Você! Você sabe? Aqui é Alex Pereira Barbosa, direto de um campo de concentração qualquer para o Jornal do Rap.

Paulo Markun: Bill, aproveitando o gancho desse trecho, aí, do seu clipe, eu faço a pergunta de Everton Nascimento, professor de inglês e português de Guaianazes, no extremo leste de São Paulo. Ele pergunta o seguinte: "Quais as implicações decorrentes da entrada do rap na grande mídia, no mainstream  brasileiro? Isso abre espaço para o surgimento da versão nacional do Eminem [rapper americano bastante conhecido, líder do grupo D12. Já ganhou vários prêmios Grammy Award e MTV, no Europe Music Awards realizado em Roma. Dentre suas músicas mais conhecidas estão "Just don't give a fuck", "The real slim shady" e "Lose yourself"]? E Raul Barbieri, de Campo Bom, RS, pergunta: "O que você acha dos rappers que aparecem na televisão?"

MV Bill: Eu, particularmente, não tenho problema em participar de alguns programas de televisão. Não dá pra ir a todos, em qualquer um. Em alguns, [até] dá pra fazer. Existe também um mito de que o rap não vai à TV, não é isso. Tem muitos grupos que recusam convite que, na realidade, nunca foi feito. Tem alguns grupos que não vão por opção e tem alguns grupos que não vão porque não têm o que dizer. Eu faço parte da ala falante do rap. Gosto de discutir o assunto e ir a alguns programas que trazem o assunto à tona. Agora, acho que dá pra você participar de algumas paradas, de alguns programas sem denegrir sua imagem, sem precisar se corromper, sem precisar se livrar de alguns pensamentos. E qual era a outra pergunta?

Paulo Markun: Era se vai aparecer algum Eminem.

MV Bill: Acho que existe uma briga constante, insistente, da mídia, de empresários, donos de gravadoras, donos de rádios, em trazer um Eminem brasileiro. Para quem não sabe, o Eminem é um rapper branco, norte-americano, que conseguiu desbancar todos os outros e ganhou muito dinheiro com isso. No Brasil, como as pessoas têm o histórico de tentar embranquecer tudo que vem dos pretos, com o rap não poderia ser diferente. Mas existe uma resistência muito grande. Tem aqueles que vão se corromper mesmo, que vão falar "vamos para o lado do dinheiro mesmo, vamos para onde estão os ricos". Mas tem aqueles que vão ser a resistência e vão continuar com o mesmo discurso, por mais que cresça o trabalho, por mais que consigam alcançar outras pessoas, vão continuar com o pé no chão e sabendo onde é sua raiz. Esse processo de “embranquecimento” pelo qual o funk passou durante um tempo, o samba precisou passar e estão tentando fazer com o hip hop, é uma coisa que já era esperada por conta dos assuntos que a gente aborda nas letras. Por conta da origem das pessoas, por conta do mal-estar que causa um negão falando um monte de coisa que nego não quer ouvir, metendo o dedo na ferida. Em muita gente... a gente mete o dedo na ferida e aponta soluções. Mas no caso que a gente está discutindo aqui, por mais que eu tenha ido visitar de perto, por mais que eu tenha ido ver, eu não tenho a solução.

Paulo Markun: Você não tem a solução, mas, se o noticiário que eu li na pesquisa não está errado, você participa da organização de um partido político? Um partido político pressupõe chegar ao poder. Chegar ao poder pressupõe dar solução para as coisas. É isso mesmo? É um partido político só de negros?

MV Bill: A gente tem essa idéia já há muito tempo. Essa idéia surgiu em 1999. Lógico que vários outros pretos já tiveram essa idéia, mas a gente esbarrou em vários obstáculos.

Paulo Markun: Vocês pegaram 50 mil assinaturas?

MV Bill: É, mas acho que, nesse sentido, acho que é o triplo disso, ter uma quantia em dinheiro grande. Você tem uma dificuldade grande que a gente não tinha como arcar por falta de recursos. A gente criou a Cufa, que é a Central Única das Favelas, que é uma ONG [organização não-governamental], e com ela a gente teve condições de dar continuidade ao sonho de fazer algumas coisas e trazer modificações. Mas o ideal é que tivesse um partido político. Muita gente acha um absurdo um partido político só de preto, mas nós somos mais da metade da população. Um partido político não representa nada.

Paulo Markun: Eu só pergunto pelo seguinte: qualquer partido político, do PT [Partido dos Trabalhadores] ao PFL [Partido da Frente Liberal], do PT ao PC do B [Partido Comunista do Brasil], quer chegar ao poder. Chegar ao poder significa governar o país inteiro. Você imagina que o seu partido faria isso, não governando para os negros, mas pra toda a comunidade?

MV Bill: Claro. Tá certo.

Paulo Markun: E o que ele faria de diferente de um partido de brancos?

MV Bill: Ah, não sei, cara! Não sei. São umas idéias meio malucas que eu fico pensando. [Risos] Eu sou maluco. Eu acho que precisa ter um partido de pretos, só que eu não sou parlamentar, não entendo tanto de política assim, de política partidária, conheço um pouco de política social. É uma necessidade que eu achei que tivesse. Na época, eu via poucos parlamentares pretos, os pretos não votam no próprio preto, poucos pretos são eleitos. Achava que precisava.

[...]: Você pensa em se candidatar a longo prazo?

MV Bill: Não, não. Nunca pensei nisso, não.

[...]: Qual é a sua opinião sobre o caso Grafite [em abril de 2008, o jogador Leandro Desábato, de uma equipe da primeira divisão do futebol argentino, ofendeu com palavras de cunho racista o atacante Grafite do São Paulo, em partida pela Taça Libertadores da América. Por isso, recebeu voz de prisão dentro do gramado do estádio Cícero Pompeu de Toledo (Morumbi)]? Já que estamos falando de política...

MV Bill: Acho que esse caso isolado acaba demonstrando que, por mais que tenham educação, as pessoas têm um sentimento guardado. E num momento de explosão, elas acabam pondo pra fora o que sentem de verdade. Eu acho que o que o argentino falou, na realidade, não é um sentimento só dele, é um sentimento de uma porrada de gente, só que só ele teve coragem de dizer. Acaba demonstrando isso de outra forma, mas é um sentimento que é compartilhado por várias pessoas. No livro, mesmo, a gente mostra que tem vários Grafites, aí, espalhados pelo Brasil inteiro, muitos deles com arma na mão. Muitos deles são discriminados diariamente. Nesse livro a gente fala e vê também que existe uma dose muito grande de racismo dentro de tudo isso. A questão social é muito forte também.

Renato Lombardi: Esse tipo de discriminação, você superou depois que você se tornou famoso?

MV Bill: Sim.

Renato Lombardi: As portas se abriram para você completamente?

MV Bill: Depois que eu me tornei visível, o hip hop me ajudou a superar tudo isso. Hoje eu sou outra pessoa. Mas eu confesso que são traumas que, se eu não tivesse o hip hop ou um outro tipo de recuperação, talvez isso teria me causado danos sérios e eu seria um ser humano totalmente diferente do que eu sou hoje. Hoje, talvez não tivesse nem chegado à idade que eu cheguei.

Renato Lombardi: Além da sua conduta, as pessoas te tratam de maneira diferente também? Porque eu estava vendo o Grafite dizendo o seguinte: "Toda semana param, inclusive policiais negros." Param, porque ele está num carro melhor. E aí, depois revistam, fazem uma geral e depois mandam embora quando sabem quem ele é. Isso acontece com você ainda ou hoje você se tornou uma pessoa de conhecimento nacional e não existe mais isso com você, no Rio de Janeiro?

MV Bill: Para algumas pessoas, depois que ganham dinheiro... Os pretos ou os pobres que ganham dinheiro passam a ser pessoas incolores. Então, se for uma pessoa conhecida, ela não tem cor: é uma pessoa famosa. Mas, ainda assim, incomoda um negão dirigindo o carro, se for um carro bom. A gente é parado diariamente. Isso, infelizmente, se tornou uma constante e a gente já [se] acostumou, já se tornou bacharel, pós-graduado em levar dura da polícia. O problema não está em ser parado pela polícia. O problema é a certeza [da polícia] de que está parando um bandido. É aí que [se] torna a dura mais violenta, mais hostil.

Paulo Markun: Há 30 anos, eu fiz uma matéria que não foi publicada no Brasil, porque na época tinha ditadura no Brasil e não se publicavam as coisas. Hoje em dia, tem gente que acha que continua havendo censura e é bom a gente sempre lembrar que não está havendo e é bom que não exista mais. Mas há 30 anos eu fiz uma matéria acompanhando os policiais da Rota numa batida à noite. Depois daquele caso do Rota 66 [livro do jornalista Caco Barcellos, Rota 66: a história da polícia que mata, que reuniu uma equipe num trabalho de jornalismo investigativo: a compilação de milhares de casos em que inocentes – em sua maioria negros e mulatos – foram mortos pela polícia, além de entrevistas e observações feitas em necrotérios, matérias policiais do Notícias Populares. Barcellos descobriu que as mais variadas farsas encobrem assassinatos motivados por meras desconfianças: armas que disparam sozinhas, bandidos que resistem à prisão, fugas de suspeitos], em que menores brancos foram mortos numa zona aqui da cidade, aí [o caso a que Markun se refere teve grande repercussão na mídia e envolveu o então namorado da atriz Iara Jamra e outros três amigos, que foram mortos de modo considerado brutal pela Rota na noite de 23 abril de 1975. Foi a primeira vez em que as vítimas pertenciam à "minoria rica do país". A viatura usada pelos responsáveis pelo ato era a de número 66; sua reconstituição abre o livro e sua história lhe serve como fio condutor, uma vez que se contrapõe aos milhares de mortes anônimas], a sociedade, a classe média se espantou. E os policiais da Rota, naquela época, dividiam o mundo em feios e bonitos. Feios eram os pardos, os pobres e os pretos. E bonitos era quem tinha pinta de classe média ou de trabalhador ou... Como se todo trabalhador fosse branco. Pois bem, 30 anos depois, a vida continua igual, nada mudou nisso.

[MV Bill concorda com a cabeça]

Paulo Markun: Você acha que algum dia isso vai mudar?

MV Bill: Pô, eu gostaria muito, cara. Mas infelizmente quando eu vejo que existem pessoas que ainda insistem em serem arrogantes, em ignorar a vida das pessoas, em subestimar o que pode acontecer, eu fico cada vez mais descrente. Por outro lado, quando eu vejo também, que existem pessoas que estão a fim de modificar, não só pura e simplesmente pelo medo, mas pela humanização, de saber que todas as pessoas são seres humanos e todos eles merecem ser tratados iguais. Quando eu vejo isso, eu acabo sendo tomado pelo sentimento de que pode mudar alguma coisa. Às vezes, eu me deparo com situações que parece que vai ser muito difícil acabar com aquilo tudo. Ao mesmo tempo parecia que seria muito fácil se houvesse uma mobilização. Em vários momentos eu me sinto descrente, mas ainda assim eu continuo lutando. Tenho a consciência de que eu vou envelhecer e vou morrer sem ver essas mudanças. Se elas vão ser pra mim, pra minha geração [duvido]... Mas acho que a gente pode fazer alguma coisa pelas gerações futuras.

Maria Rita Kehl: Bill, mas você não acha que o próprio hip hop traz, por exemplo, o Brown acha bobagem que “mauricinhos” [gíria para a classe média] ficam ouvindo hip hop e achando que são entendidos dos assuntos da favela. Mas você não acha que é superimportante, que tem um monte de “mauricinho”, “playboy” que gosta mesmo do hip hop, que entende o que vocês estão falando, que se identifica, é contra o racismo por causa do hip hop? Você não acha que vocês ganham um pouco, uma parte, pelo menos, das consciências [daqueles] que vocês chamam de mauricinhos? O hip hop não vai além do público negro também?

MV Bill: Eu acho que já respondi essa pergunta, até. Quando eu falo que a pobreza para ser resolvida precisa da riqueza. Acho, que quando tem identificação, não tem como impedir que o cara compre o CD, que o cara vá até o show. Mas o que me incomoda dentro dessa parte é a apropriação de cultura. Os caras não quererem somente para curtir, mas quererem ser donos do que a gente carregou nas costas. Tem muita gente que já levou tiro por causa de hip hop, já apanhou da polícia, já perdeu família, foi expulso de casa pela mulher, tudo porque acredita nisso. Então eu não acho justo, depois que começa a se popularizar, virem os caras que sempre foram classe média, que sempre meteram o pau, sempre acharam uma coisa ruim, uma coisa negativa, se apropriar dessa cultura e tentar transformar numa outra coisa. Isso eu acho ruim. Mas como ouvinte, não.

[...]: Você vê isso acontecendo no Brasil?

MV Bill: Já tentaram. Tentam constantemente. Mas existe uma resistência no rap, existe uma resistência no hip hop, que não é só minha, mas no Brasil inteiro, de deixar as coisas ainda na nossa mão... de deixar na nossa mão e continuar sendo a nossa raiz. O rap, hoje, eu acho que poderia dizer que – isso, sempre, na minha opinião – é o canal de comunicação entre as comunidades. E, mais que isso, é o canal de comunicação entre o morro e o asfalto.  Sabe, é como se fosse a trilha sonora do gueto. É o informativo das comunidades.

Maria Rita Kehl: E a relação do hip hop com o funk? São muito diferentes, mas são irmãos, não é, de origem?

MV Bill: A maioria dos grupos de São Paulo, eu não sei como enxerga o funk do Rio. Nem sei como os grupos de lá também se comportam diante do funk. Mas eu tenho uma relação muito próxima, porque a Cidade de Deus é o lugar do Brasil onde tem o maior número de grupos de funk do Brasil. Acho que tem 80 grupos só dentro da Cidade de Deus. Então, minha relação com eles é muito próxima. Muitos deles eu conheço mesmo antes de serem artistas de funk. Faço muitos shows em baile funk também no Rio de Janeiro, então...

Maria Rita Kehl: Eles ouvem você também?

MV Bill: Ouvem. Você poder fazer com que o funkeiro não ouça só funk, mas ouça o rap também, pra mim já foi bacana. Eu não quero que ele largue o que ele gosta, mas que ouça outras coisas também.

Pedro Alexandre Sanches: Eles estão falando coisas politicamente importantes também, só que de outra forma, que não é a mesma do hip hop. Mas tem um discurso formado ali, você não acha? De feminismo, com as meninas ali e assim por diante.

Jorge Antônio Barros: Mais ou menos, né? Eu discordo disso. Mas, Bill, eu queria saber o seguinte. Desculpe te cortar, Pedro. De modo geral, o que aparece para gente é que o funk tem uma certa preferência pelo bandido que cuida do tráfico no morro, que ele prefere mais o funk do que o rap. É a primeira pergunta. E a segunda: como você vê esse movimento, que está aumentando agora – pelo menos, aparece mais nos jornais –,[de] jovens de classe média indo para favela, atraídas pelo funk, e se aproximando dos bandidos?

MV Bill: Qual era a sua? [Pergunta para Pedro]

Pedro Alexandre Sanches: É se o funk também não tem um papel político importante no universo da favela.

MV Bill: Lembrei. Olha, tem muita gente que acha que o funk é uma música sem qualidade. Tem algumas coisas legais também. Tem músicas que são boas, como o hip hop também. Tem muita música também que não é boa. E qualquer outro tipo de música tem o bom e tem o ruim. Agora, o caso é que as músicas que são mais conscientes, no caso do funk, têm menos espaço do que as músicas que são eróticas ou que falam de outras coisas. E a sua o que é? [Pergunta para Jorge Antônio Barros]

Jorge Antônio Barros: Eu perguntei se você acha que os traficantes, de modo geral, preferem mais o funk ao rap e como se explicaria, na tua visão, esse movimento de jovens de classe média indo às favelas atrás do funk e se associando, se ligando aos traficantes.

MV Bill: Olha, em outros estados que eu fui, a trilha sonora não era o funk. Porque, em muitos lugares, o funk nem chegou fora do Rio de Janeiro. E, no caso do Rio, não sei se há essa preferência entre o funk e o rap por conta dos bandidos. Mas o que eu posso dizer que o funk é muito mais divulgado do que o hip hop no Rio, não tem nem comparação. O funk, por exemplo, tem dois, três ou quatro programas de rádio. Acho que tem uma rádio inteira só de funk. Antes tinha um programa de rap na rádio do governo do estado. A gente perdeu nosso programa, que era o único programa que a gente tinha que só tocava rap nacional. E a gente se comunicava direto.

Paulo Markun: Perdeu por quê?

MV Bill: Trocou a direção da rádio e falaram que a nossa linguagem estava fora do que a rádio queria imprimir.

Jorge Antônio Barros: Só pra concluir essa história da jovem de classe média. Queria saber tua visão disso.

MV Bill: Olha, cara, eu acho que elas não são atraídas pelo funk. Acho que o funk é parte da história. Mas existe outro fator [a] que a imprensa deu pouco destaque, mas que em várias matérias isso saiu. No livro, a gente trata disso também, dessa atração. Mas, em muitas matérias, mesmo sem destaque, no depoimento das jovens, das meninas que subiram o morro, elas falavam uma coisa bem interessante: que dentro da favela ela foi bem mais tratada do que dentro da própria casa, do que na própria família. Então, muitas delas saíam, iam para o morro, não em busca somente do funk, das drogas, mas também em busca de afeto. E, assim, dentro das comunidades tem ainda um pouco da senzala, da subserviência, de chegar uma pessoa branca e nego ver que é [pessoa] de classe média, que é rico, e tratar bem, jogar o tapete vermelho no chão e acabar botando na mesa o que você tem de melhor. Existe isso e eles gostam disso.

Paulo Markun: Como você vê o caso do Tim Lopes? O que você acha? Você acha que ele agiu certo, que estava fazendo o serviço dele e pisou na bola, enfim?

MV Bill: Olha, eu não vou julgá-lo, porque eu não sou juiz. Mas eu tive oportunidade de conhecê-lo. Até, na época [em] que a gente estava começando a pensar em criar o partido, ele participou das reuniões. Mas, assim, eu acho que o trabalho dele era importante, mas eu não sei. Não posso julgar se ele estava certo ou errado naquele caso. Mas acho que o trabalho dele era importante, ele era gente boa, conheci, tinha um grande pensamento, era um grande homem.

Renato Lombardi: E o filme Cidade de Deus, retrata mesmo o que é a favela Cidade de Deus?

MV Bill: Quanto ao filme Cidade de Deus, eu fiz algumas críticas, mas não críticas à fotografia nem à direção, porque eu não sou crítico de cinema. As minhas críticas eram em relação à parte social do filme. Porque eu vi muitas pessoas elogiando o filme – de forma rasgada até–  e outras pessoas comparando o filme com a realidade, já que o filme é uma ficção. Só que é uma ficção que tem no seu nome uma favela que existe. Então, como morador daquela comunidade, eu até relutei em falar, em dar minha opinião, porque tinham pessoas da produção que eram conhecidos meus. Eu estava na esperança [de] que eles se pronunciassem e falassem alguma coisa a respeito. Quando eu fui chamado de "mensageiro da omissão" dentro da minha comunidade, porque eu não queria falar, então, eu tive que expor a minha voz.

Pedro Alexandre Sanches: Te chamaram disso lá dentro da Cidade de Deus?

MV Bill: Dentro da comunidade. Porque o filme acabou fazendo com que muita gente perdesse o emprego, várias outras deixando de conseguir emprego, simplesmente porque moram na Cidade de Deus. Jovens perderam namoradas e a ação da polícia ficou mais violenta, ficou mais legitimada através do filme. Mesmo com a ausência da parte política do filme, acabou tendo uma mobilização dentro da comunidade. Ongs que já tinha lá dentro, outras Ongs que chegaram de fora começaram a atuar mais com a tentativa de tentar levantar a auto-estima daquela comunidade e daquelas pessoas. Com a presença ou com a ausência, acabou sendo positivo pela mobilização. E minha crítica ao filme se limitou a isso.

Renato Lombardi: O que está no filme não é a realidade do dia-a-dia da Cidade de Deus?      

MV Bill: Não...

Jorge Antônio Barros [interrompendo]: Você acha que o filme teve também esse problema de apropriação...

MV Bill: ...Até porque o filme é vivido na década de 1960, 1970. Hoje é outra realidade.

Jorge Antônio Barros: Você acha que o filme faz esse mesmo processo de apropriação daquela realidade? Como você relatou em outros modos de divulgação e cultura?

MV Bill: Eu não sei se isso, mas ele me incentivou a criar um curso de audiovisual dentro das comunidades para o jovem aprender a mexer na câmera. Eu peguei parte do dinheiro de shows e compramos equipamentos, duas câmeras PD-150, ilha de edição... Como eu não entendo de cinema, como não sei nada, só achei que deveria ter uma coisa dessa, nós buscamos parceiros. O Cacá Diegues [grande cineasta brasileiro, foi um dos fundadores do movimento Cinema Novo no Brasil. Dirigiu Xica da Silva (1976), Bye, bye, Brasil (1979), Quilombo (1984) e outros] foi lá pra dar aula, o Caetano Veloso [cantor e compositor brasileiro. Junto com Gilberto Gil, iniciou o movimento musical chamado de Tropicalismo]. Outras pessoas legais da área cinematográfica foram lá ensinar para os jovens. Um dos meus videoclipes, o "Trecho da madruga", foi o último, foi dirigido por esses jovens e ficou muito maneiro ver os jovens da comunidade, que são muito parecidos comigo, me dirigindo, como a Kátia Lund ou Breno Silveira [já me dirigiram]. Acho que é o momento de desenvolver um outro olhar, o olhar de dentro pra dentro. Chega de ser rato de laboratório.

Paulo Markun: Bill, nós vamos fazer um intervalo, mas eu queria perguntar um negócio para você antes, que é o seguinte: você tem um documentário que, digamos, está vetado por vocês mesmo. Por você e pelo Celso, não é isso? Teve aquela confusão da exibição na TV Globo etc. Você já declarou numa entrevista que estaria disposto a exibir isso na televisão. Você continua disposto a exibir?

MV Bill: Dá tempo de explicar ainda? Então, deixa eu explicar o que é na realidade. Isso é parte da nossa pesquisa. Parte da nossa pesquisa foi filmada, parte dela foi gravada apenas com áudio, parte dela foi só escrita e uma parte foi só com fotografias. Então, o início da nossa pesquisa, a gente começou com o [clipe] "Soldado do morro" e a gente estava cometendo um equívoco, porque a gente descobriu também que cada coisa tem que ter seu momento. Eu não vejo contradição nisso. Pelo contrário, acho que eu não me prendi a nenhum tipo de vaidade e descobri que aquele não era o momento certo para dar continuidade à nossa pesquisa. Acho que o livro Cabeça de porco está no momento certo, até porque aquilo não está nem editado ainda. A gente não tem a menor idéia de como a gente vai editar, de que forma a gente vai exibir. Saiu na revista isso, que a gente não sabe se vai passar em cinema, na televisão. A gente não tem a menor idéia do que vai fazer com isso ainda, nem que hora vai editar, porque não é a nossa prioridade. A gente tem uma série de outras coisas para fazer. Agora, uma coisa é certa, depois de editado, acho que é um material que precisa ser visto, precisa ser discutido. Só para dar um toque, é uma série de entrevistas com 16 jovens, todos eles mortos num espaço de dois anos e meio. Todos morreram. Um documentário que a gente tinha a intenção de falar sobre a vida e acabou se tornando sobre a morte. Então, é uma coisa que a gente não sabe de que forma a gente vai concluir e de que forma a gente vai passar. Mas assim, tudo tem seu momento certo. Pode ser amanhã como pode ser daqui a quatro, cinco anos.

Paulo Markun: Só queria que você deixasse registrado que, desde já, fica o convite aqui da TV Cultura pra você exibir aqui, que é uma TV pública, que tem como compromisso fazer esse tipo de coisa e não ganhar dinheiro com isso.

MV Bill: Obrigado, obrigado.

Paulo Markun: A gente volta já, mas também registra a presença na platéia de Lígia Reichemberg, jornalista; Conceição Paganelli, da Associação das Mães dos Adolescentes da Febem do Estado de SP, e Moisés de Freitas, do Instituto Brasileiro da Diversidade.

[intervalo]

[VT: Clipe da música "Traficando informação"]: Traficando informação, diariamente convivendo com esta situação. Traficando informação, diariamente convivendo com esta situação. Eu não quero ver minha coroa cheia de preocupação com medo que eu seja preso confundido com ladrão. O sistema de racismo é muito eficaz, para eles um preto a menos é melhor que um preto a mais. CDD [Cidade de Deus], Zona Oeste, Jacarepaguá, aqui o gatilho fala mais alto, pá-pá-pá. Os heróis da playboyzada vivem na televisão. Os heróis da molecada, aqui estão de fuzil na mão. Cocaína, maconha, revólver, cachaça. A última opção está na birosca, é liberada, quase de graça, é álcool e mata. Me lembro agora, de um cara perdido no mundo da garrafa, chegava bêbado em casa, querendo quebrar tudo, porque bebeu a cachaça, a garrafa e também seu futuro. Bebe pra vacilar, por isso que eu te digo, seu otário, se não sabe beber, bebe mijo. MV Bill, mensageiro da verdade. MV Bill, falando pela comunidade. Se tiver coragem, vem aqui pra ver, a sociedade dando as costas para a CDD...

Paulo Markun: Bill, eu nunca escrevi um rap na minha vida evidentemente, mas já escrevi alguns livros. Uma coisa que eu aprendi importante é que a gente tem que divulgar o livro, porque vender livro no Brasil é duro "pra chuchu" e todo espaço que a gente tem de divulgação é importante. Por isso eu acho que o Roda Viva abre sempre espaço para as pessoas que estão publicando livros importantes como é o caso do seu. E nesse seu livro – eu já vou fazer a propaganda explícita – tem um trecho extremamente, realmente de reportagem, que é quando o Celso Athayde conta o momento em que você foi buscar o seu primeiro CD sem saber que estava buscando [mostra o livro]. Ele deu uma dura em você, ainda, no final, mandou você examinar as caixas e então você encontra. Eu queria que você relatasse com as tuas palavras o que você sentiu naquele momento e o que aconteceu, porque as pessoas têm interesse de comprar o seu livro e de ouvir essa e outras histórias.

MV Bill: Eu não consigo descrever em palavras o que eu senti naquele momento. Eu vinha em são Paulo buscar os CDs que a gente distribuía...

Paulo Markun: Você trabalhava na gravadora dele?

MV Bill: É, que é a Zâmbia, aqui de São Paulo, e a gente tem uma filial no Rio. E quando eu abri a caixa de CD e vi que era o meu próprio disco, a sensação que eu tive foi uma sensação de existência, de ter entrado na estatística, num outro tipo de estatística. Não na estatística dos miseráveis, dos que não têm oportunidade, dos excluídos. Me senti incluído em alguma coisa, me senti importante, mesmo que fosse uma ilusão, que hoje eu vejo que não era. Hoje eu vejo que aquele momento foi importante para se desdobrar em outros, até chegar a um livro, coisa que eu nunca imaginei na minha vida. Aquela sensação foi muito boa, parece que eu passei a ser um ser humano a partir daquilo ali. Eu sei que não era, mas eu me senti dessa forma. Foi muito bacana.

Maria Rita Kehl: Bill, eu queria te perguntar sobre a televisão. Na música, por exemplo que tem no Traficando informação, você fala do menino que queria jogar bola e depois começou a acreditar nas coisas que ele via na televisão e entrou para o tráfico. E, apesar de a televisão trazer muita informação – nós estamos aqui, numa emissora de TV–, em geral, pelo menos a publicidade, nas televisões comerciais, apresenta sempre um retrato de outra visibilidade, o que você está dizendo, que é o da classe média. Você só vai se você tiver tal roupa, tal carro etc. Você acha que a televisão, como ela é hoje no Brasil, ela tem responsabilidade pelo clima de violência social que a gente vive?

MV Bill: Não sozinha. Acho que ela também contribui bastante para isso, à medida que ostenta esse tipo de coisa, mostra os atores "playboys", todo mundo mostrando alguma coisa boa, carro bom. É isso que a gente quer ter. Não adianta depois ficar pregando migalha pras comunidades. Todo mundo quer ter isso, todo mundo quer ter o que é bom. Aí é que tá o problema, [é] que todo mundo quer ter a mesma coisa. Mas acho que a televisão, por imprimir isso, acaba contribuindo.

Maria Rita Kehl: Mas uma coisa é ter o que é bom, outra coisa é achar que você só tem valor se você tiver aquele tênis no pé, se você estiver dirigindo aquele carro. Se é bom pra ter, tudo bem que tenha, mas [o problema] é as pessoas acharem que, se elas não têm aquilo, elas não valem nada.

MV Bill: É isso que a propaganda passa. Passou um comercial de uma marca de camisa... Isso acho que era no final da década de 1980. E dizia assim: se você não tem você não é ninguém. E aquilo mexe um pouco com a gente e acho que acaba contribuindo também. Mas acho que, de forma geral, o Brasil  é muito desigual. Você vê o quadro que a gente tem: poucas pessoas com muito e muitas pessoas com absolutamente nada. Acho que isso contribui bastante. E em lugares em que se planta descaso, desigualdade, ignorância, arrogância, não tem como depois ir lá e colher amor.

Fernanda Mena: Bill, voltando um pouco à questão do tráfico. O debate sobre o tráfico de drogas no Brasil é sempre muito centrado nesses jovens dos quais você fala, que são meninos de comunidades que acabam se envolvendo e aparecem nas fotos, nas reportagens escondendo o rosto com um fuzil na mão. Ao mesmo tempo, eu já li depoimentos seus dizendo que na favela não tem fábrica de fuzil nem plantação de coca. Quando que você acha que... Por que você acha que o debate sobre o tráfico de drogas não é ampliado, é sempre centrado nesses meninos e não na estrutura que alimenta o tráfico?

MV Bill: Eu resumo isso numa única palavra: hi-po-cri-sia. Achar que traficante tá dentro da comunidade... Só que as armas não nascem dentro da favela. Se você pegar uma bala de fuzil e plantar, não vai nascer uma árvore de armas. Os fuzis que tem nas favelas, as armas e tal são de fabricação alemã, russa, [vêm] de Israel. Precisa no mínimo falar inglês e a maioria desses caras da comunidade não sabe nem falar português direito. Se tivesse outra coisa que eles pudessem vender ali, eles iam vender outra coisa.

Fernanda Mena: Agora, por que você acha que não existe um interesse em ampliar o debate para além desses meninos que são a linha de frente do tráfico de drogas?

MV Bill: Primeiro, eu acho que deve ter muita gente grande que ganha dinheiro com isso. E, segundo, porque eu acho que deve ser divertido, deve ser interessante matar preto, ver enterro dos outros, botar na estatística "morreram mais não sei quantas pessoas dentro das comunidades". Deve ser divertido, porque eu não vejo resultado positivo nisso. Acho que o Brasil perde, de uma forma geral, as comunidades, a sociedade, todo mundo perde com essas mortes, com essas pessoas morrendo, com essas pessoas fadadas à morte. Por mais que não estejam mortos fisicamente, na matéria, mas já estão caminhando pra morte. Tipo assim, tem as mulheres que estão hoje vivendo no tráfico ou no crime, tem os jovens que já estão dentro da Febem e tem os presos que já estão na cadeia. A gente não vê um trabalho de verdade de reabilitação do preso. Por quê? Porque o preso não vota. Se o preso votasse, a partir de amanhã você iria ver vários políticos em todas as cadeias do Brasil fazendo melhoria, ajudando a família, revendo processo. Como o preso não vota, ele é lixo. E esses jovens que estão nas comunidades hoje, com as armas na mão, e os jovens que estão dentro da Febem são os lixos futuros. Só que muitos deles não conseguem ser lixo, porque eles morrem! E o preso que saiu da cadeia tem a prisão perpétua nas costas, porque ele é ex-presidiário. Então, assim, se tivesse dentro da legislação, mudasse, se o preso passasse a votar... Acho que poderia ter, sabe, conexão com grandes empresas. Não é conexão a palavra, mas... É parceria do governo federal, municipal, seja lá o que for, com empresas que pegam o preso, assim, que saiu da cadeia e aprendeu uma profissão lá dentro, que saiu legal, que queira mudar de vida, já sai empregado dentro de uma empresa... Porque ele não consegue arrumar trabalho de redução de pena, trabalha três, reduz por um dia, aprendeu uma profissão. Acho que é prisão-modelo, fazenda, não sei como é que [se] fala quando o preso vai trabalhando e vai aprendendo uma profissão.

Renato Lombardi: É o regime semi-aberto que tem. Tem aberto e tem semi-aberto. Você trabalha três dias e abate a pena. Isso está na lei de execuções penais.

MV Bill: Acho que, se tivessem expandido esse tipo de medida, acho que muita coisa ia ser modificada. Muitas histórias teriam final mais diferente.

Renato Lombardi: O que você tá falando é verdade, realmente. O presidiário aqui desse país ele tá completamente excluído. Ele é excluído.

MV Bill: Só isso não é verdade.

Renato Lombardi: Não, não. Tudo que você falou é verdade, tudo que está no livro é verdade. O que eu tô perguntando pra você são coisas que o telespectador quer saber, por muitas vezes eu posso ter sido antipático pra você, mas não eu não sou antipático.

MV Bill: Fica à vontade, fica à vontade.

Renato Lombardi: Eu acho que o livro é fundamental, esse livro é muito bom pra alertar as pessoas e tem umas coisas no livro aqui que contam exatamente... Tem a história de um garoto aqui, que conta que ele foi criado... o pai foi morto, a mãe morreu, ele foi criado pela avó até virar dono de uma boca de venda de drogas e depois se envolveu com o crime. Esse tipo de depoimento aqui, se for analisado por autoridades... O teu livro, se ele for lido por alguém que tenha interesse... Dá pra fazer muita coisa com isso aqui [põe a mão sobre o livro]. Agora, do contrário, vai ficar exatamente nisso que a gente está discutindo. Então, vocês pretendem levar o conteúdo disso daqui pra autoridades ou vai morrer nessas quase 300 páginas?

MV Bill: Eu acho que ele não morre no livro. Por mais que tenha outros trabalhos, não morre. Eu acho que isso aí... Muito pelo contrário, ele nasce aí. Porque antes disso aí, nada era discutido. Aliás, pra mim ele começou a nascer através do Rap. Quando eu conheci o Rap, comecei a falar de várias coisas que eu via, vários pensamentos, em cima da música. Eu acho que o livro é o nascimento da discussão. Meu trabalho não é pra levar pra autoridade, até porque se um policial pegar um moleque desse daí vai gritar: "olha aqui, prendi o moleque que tava no livro do Bill, que o Bill mostrou!" como se o problema tivesse resolvido. O problema não está nessa pessoa e nem tá nesse local, mas o problema tá na forma que a gente pensa o país. Na forma hipócrita e demagoga que a gente conduz o país. A partir do momento que se divide as coisas do país, do Brasil, a gente começa a transformar a sociedade numa coisa mais igualitária. Caso contrário, vai ter muito derramamento de sangue, vai matar, vai continuar prendendo, só que assim não se resolve.

Paulo Markun: Mas, Bill, não tem diagnóstico demais e solução de menos no livro? Teu livro é feito – para pessoas que não conhecem– por três partes que se entreligam: os seus textos, os textos do Celso Athayde e os textos do Luiz Eduardo Soares, que já esteve aqui no Roda Viva duas vezes e é uma figura que é conhecida do nosso público, aqui, do programa muito mais do que você. Então, tem as idéias dele e as opiniões. Então, a impressão que eu tive é que tem uma fotografia da realidade muito apurada. Essas histórias de várias cidades brasileiras. A história de uma mãe, por exemplo, que vai tentar tirar o filho e é bem recebida pelos chamados traficantes, porque eles respeitam as mães, pelo menos é o que está no livro. Mas o cara diz "olha, peraí, mas ele tá aqui porque quer". Agora, no que toca à solução do problema, a sensação que eu tenho é que ficou faltando. Não sei se é porque não tem solução – torço pra que não seja isso– ou se porque vocês quiseram apostar mais no diagnóstico do que no remédio.

MV Bill: A solução eu não tenho. Acho que ninguém tem individualmente. Acho que o livro tem outra função, de trazer a discussão, de mostrar de uma outra forma. Eu acho que a partir dele, a partir de tudo isso junto, se vai buscar uma solução. Se eu tivesse condição de modificar um monte de coisa, eu faria, mas eu não tenho. E nem sei se as minhas modificações seriam as corretas. Nem sei se eu tenho razão e certeza de alguma coisa. Então, acho que tem que ter mais discussões, acho que as comunidades precisam participar dessa discussões e partir pra solução. Mas a solução, eu, sozinho, não tenho. Acho que nem o Lula, que é presidente da República [eleito em 2002 pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Foi reeleito em 2006 e seu mandato vai até 2010], tem a solução pra isso. Não é nenhum secretário de segurança de nenhum estado, nem um jornalista policial. Acho que são todas as pessoas, toda a sociedade organizada, mais as comunidades e os excluídos que têm que pensar. Acho que tem que ter sentimento de humanismo pra tentar resolver a questão.

Cunha Jr.: Dentro desse humanismo aí... Tem partes que são muito fortes aqui no livro. Como você, na hora de captar, lidou com isso? Você descreve um garoto de 15 anos que se viu obrigado – não vou falar porque tá no livro– a esquartejar um outro garoto de dez anos, já morto por um traficante, e que depois ainda falou pra você, no final, "se eu tivesse uma família pra conversar eu não estaria nessa vida, não. Desculpa, eu não queria chorar. Não filma eu chorando, não". Parece paradoxal, o mesmo menino que esquartejou é o mesmo menino que chora e diz que, se tivesse uma família, não estaria ali. Você acha que a solução também está por aí? Se tivesse uma boa base familiar ou educação, enfim...

MV Bill: Eu já vi casos também [em] que, mesmo o jovem com tudo isso, com uma boa base, também se desviou por outros motivos. Mas acho que isso é o princípio de tudo, tá na família, ser acolhido num bom lar, com educação, com direito à escola, sem precisar estudar preocupado com o tempo, com o dinheiro, com a comida que tem que por em casa. Acho que seria fundamental, mas acho que não livraria ainda assim do desencaminhamento.

Paulo Markun: Bill, nosso programa tá acabando e eu queria fazer uma última pergunta e ainda informar que as perguntas que não foram feitas serão encaminhadas para que ele possa responder. Minha pergunta é a seguinte: a impressão que eu tive de você é que você é um cara que tem pavio curto, você se controla, mas volta-e-meia o pavio acende.

MV Bill: Depende.

[Risos]

Paulo Markun: O que te tira do sério, o que é que te irrita?

MV Bill: É a hipocrisia.

Paulo Markun: Queria agradecer à sua entrevista, aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. E até semana que vem, com mais um Roda Viva.

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