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Memória Roda Viva

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Lester Salamon

3/3/2003

O diretor do Centro de Estudos sobre a Sociedade Civil na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, esclarece questões referentes às parcerias de organizações do terceiro setor com o Estado e com empresas privadas

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[Programa gravado não permitindo a participação dos telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. Responsabilidade social, trabalho voluntário, filantropia, solidariedade, ajuda. Não há bem-estar social possível sem que a própria sociedade arregace as mangas e trabalhe em busca desse bem-estar. A desigualdade provocada pelo mercado e a ação social insuficiente dos governos tem levado um número cada vez maior de pessoas e empresas a trabalhar em favor da coletividade e do bem comum. Esse é o trabalho do terceiro setor, tema do Roda Viva desta noite. Para isso, [o programa] traz um convidado especial: Lester Salamon, diretor do Centro de Estudos sobre a Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. O professor Salamon coordena um estudo internacional sobre o terceiro setor, também chamado de setor sem fins lucrativos. É um estudo sobre a atuação das também chamadas organizações não governamentais, que são entidades, associações, cooperativas, fundações privadas, movimentos sociais organizados, muitos deles incorporando o trabalho voluntário, e todos buscando soluções para problemas coletivos, problemas da sociedade, do meio ambiente e da economia, ou seja, buscando resolver problemas que o Estado já não consegue mais solucionar sozinho. Para entrevistar Lester Salamon e discutir economia social nós convidamos: Sérgio Amoroso, presidente do grupo Orsa e instituidor da Fundação Orsa; Gilberto Nascimento, colunista do Jornal Diário de São Paulo; Claudio Abramo, secretário-geral da organização não governamental Transparência Brasil; Rebecca Raposo, diretora-executiva do Grupo Gife – Grupo Instituições, Fundações e Empresas; Francisco Ornellas, coordenador do curso intensivo de jornalismo aplicado do jornal O Estado de S. Paulo; Ricardo Voltolini, consultor de terceiro setor do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, o Senac; Daniel Bramati, editor adjunto de cotidiano do jornal Folha de S. Paulo.

Paulo Markun: Boa noite, professor.

Lester Salamon: Boa noite.

Paulo Markun: Aqui no Brasil quando a gente fala em organização não governamental, tenho a impressão que, para muita gente, a imagem que vem à cabeça, é a imagem, por exemplo, do Greenpeace, aqueles ativistas montados num poderoso barco inflável, que lutam para preservar a vida das baleias, atacam petroleiros etc e tal. O senhor fez um estudo que estabelece quatro características para que uma entidade, uma instituição seja classificada como do terceiro setor: ela tem que ser organizada; tem que ser privada, ou seja, localizada fora do aparato do governo, não distribuir lucros e ser auto governada de alguma maneira e, finalmente, tem ainda a quinta, ter algum grau de participação voluntária, mesmo que apenas no conselho diretor. Eu queria começar pelo princípio, porque apesar dessas definições existe uma porção de coisas, de instituições e de organizações que parecem terceiro setor, quer dizer: parecem nem ser governo nem ser mercado, na verdade são uma coisa difícil de compreender, e eu cito apenas um exemplo que o brasileiro conhece muito bem, existem várias organizações religiosas no Brasil cujo objetivo central é ganhar dinheiro.

Lester Salamon: A pergunta é fundamental para definir as organizações: é o fato de não distribuírem os lucros para os donos das organizações. Se houver organizações que parecem não ter fins lucrativos, mas distribuem o dinheiro para os donos, não as consideramos legitimamente organizações sem fins lucrativos. Muitos países criaram leis, cláusulas reguladoras que tentam diferenciar aquelas que realmente atendem a propósitos públicos daquelas que não atendem. É um problema grave nesse campo e, nos países mencionados, há mecanismos reguladores que foram criados para evitar abusos. Mas nesse campo, como em muitos outros, é importante não permitir que os poucos casos de abusos ofusquem nossa visão da realidade muito mais ampla. Isso vale para o setor privado, governamental e também para o terceiro setor. Eu acredito que a grande maioria das organizações são de fato instituições sem fins lucrativos, que atendem ao propósito público, e devemos nos concentrar nelas o máximo possível.

Paulo Markun: Um outro tema que o senhor aborda freqüentemente é o fato de que, no seu ponto de vista, não há uma oposição sistemática e radical entre a ação governamental e a ação no terceiro setor, tanto assim que praticamente um terço dos recursos que nos Estados Unidos são geridos e são utilizados pelo terceiro setor vêm efetivamente da ação governamental. Não é também o caso do Brasil, onde essa participação dos recursos governamentais no terceiro setor é muito menor. O senhor pensa realmente que é possível haver uma conjugação de esforços sem arestas entre esses dois setores?

Lester Salamon: Com certeza. Há um grande histórico de cooperações entre instituições do terceiro setor e o governo. Isso é mais freqüente na Europa Ocidental, onde foi formada uma forte parceria entre organizações do terceiro setor e o governo. Basicamente, os governos têm pontos fortes e pontos fracos. São bons em gerar receita e aprovar leis, mas não se mostraram tão eficazes em prestar serviços, em especial serviços humanos, serviços que atendem as pessoas. Para isso, é preciso um outro tipo de instituição, em escala menor, humana, que preste assistência de uma forma mais respeitosa. O que descobrimos em nosso país, e os europeus ocidentais descobriram nos países deles, é que essa é uma boa combinação: usar os recursos do Estado, mas não necessariamente a burocracia do Estado para prestar serviços de saúde, de assistência social, e auxílio às vítimas da aids. Muita gente fica surpresa, mas organizações americanas sem fins lucrativos recebem três vezes mais receita do governo do que de todas as fontes de filantropia privada. Isso inclui indivíduos, fundações e corporações. O governo é um grande arrecadador de fundos para nossas organizações sem fins lucrativos.

Francisco Ornellas: Professor, o senhor limita as restrições às organizações não governamentais a não obtenção de lucro, a não divisão de lucros entre seus proprietários, entre seus instituidores, mas o senhor não vincula, não limita a obtenção de rendimentos políticos e até políticos partidários da ação de ONG [Organização não Governamental]. As ONGs não deveriam ser também organizações apartidárias e apolíticas?

Lester Salamon: Países diferentes têm abordagens diferentes quanto a isso. No nosso país, EUA, e em países do Reino Unido, sistemas legais ingleses tendem a proibir ação política no sentido de uma atividade dirigida à campanha. Nos países continentais isso não ocorre. Na Suécia, por exemplo, ou em qualquer um dos países nórdicos, essas organizações estão ativamente envolvidas em movimentos sociais e políticos. Partidos verdes e trabalhistas estão muito enraizados no terceiro setor. Mesmo nos Estados Unidos, onde atividades diretas de campanha são proibidas, essas organizações têm um importante papel de defesa. Elas levam questões ao conhecimento das autoridades governamentais, mobilizam pessoas para dar atenção a problemas que estão sendo negligenciados. Essa é uma parte muito importante do papel que essas organizações desempenham na sociedade. Elas são uma espécie de rede de segurança social. Quando problemas são ignorados, elas existem para chamar a atenção para eles, para fazer com que políticos e cidadãos tenham ciência dos problemas negligenciados, elas dão voz ao cidadão, de uma forma que os indivíduos por si só, têm muita dificuldade em fazer, elas mantêm o sistema democrático vivo e vibrante, quase da mesma forma que a imprensa o faz, mas elas fornecem o veículo para organizar pessoas em torno das questões. Assim, há uma grande diferença entre política, no sentido de concorrer a um cargo público, e a de defesa de questões de interesse público. O papel de defesa dessas organizações é protegido em muitos lugares e é uma parte importante de sua responsabilidade.

Gilberto Nascimento: Eu acho que o papel das ONGs e de terceiro setor talvez seja o de identificar problemas, fazer diagnósticos da situação, e cobrar também providências do governo. Mas eu queria saber a posição do senhor a respeito de uma crítica que se faz muito às ONGs e ao terceiro setor que é o fato de ela assumir funções, ou papel que caberia ao governo, se o fortalecimento das ONGs, a proliferação desses projetos, não pode de uma certa maneira fazer com que o governo deixe de cumprir a sua função em variadas áreas. Qual a posição do senhor sobre essa questão?

Lester Salamon: Minha opinião é que as ONGs, as organizações sem fins lucrativos, não são substitutas para o governo. Este é um dos grandes erros na análise do terceiro setor. É o tratamento ideológico dessas organizações que costuma apresentá-las como uma alternativa ao Estado. E, como eu disse na resposta ao Paulo, os dados não apóiam isso. Ao contrário, essas organizações cresceram mais nas áreas em que há parceria com o governo. Temos que, de certa forma, dissecar o papel do governo. O governo tem várias funções: eleva impostos, gera renda, fornece serviços. Há modos de conter o envolvimento do Estado na geração de receita, e na identificação de direitos, direito à saúde, direito à aposentadoria, sem que o Estado necessariamente, tenha de prestar os serviços, é isso que está acontecendo no mundo todo. Estamos dividindo o papel do Estado em dois e estamos mantendo o Estado concentrado em identificar direitos, e em gerar receita, e entregamos o trabalho de prestar serviços a uma série de instituições mais bem equipadas para isso. Assim eu concordo plenamente que não devemos ver o terceiro setor como um substituto, como uma alternativa ao Estado. O Estado deve continuar envolvido. E uma das características mais marcantes do terceiro setor nesta região, neste país em especial, é o fato de que este país não enveredou por esse caminho. O Estado não está apenas gerando receita, está também prestando os serviços. Isso necessitará uma mudança de pensamento, uma mudança de conceitos para que uma coisa não tenha de excluir a outra, mas que possam ser parceiros em potencial no serviço público.

Sérgio Amoroso: Dentro dessa questão do papel das ONGs, as Nações Unidas no que se refere ao meio ambiente, a erradicação da pobreza, através da Eco 92 e agora do Rio+10 em Johannesburgo, fizeram umas indicações sobre tratados, como resolver, como se juntar para enfrentar problemas. O senhor acredita que o terceiro setor e a sociedade civil possam ter influência ímpar nesse processo para convencer governos que ainda estão relutando em se associar a esse movimento?

Lester Salamon: Não sei se podem ter uma influência ímpar, mas podem desempenhar um papel muito significativo. Temos visto, no período desde a Conferência do Rio, que foi um evento muito importante em toda a evolução das relações internacionais, a emergência de uma terceira força no mundo. Não apenas os governos, não apenas as organizações internacionais, não apenas as corporações multinacionais, mas uma força representada por ONGs transnacionais. Organizações sem fins lucrativos, que fazem ligações além das fronteiras nacionais para determinados assuntos. E o meio ambiente é uma das áreas nas quais as ligações são mais fortes, um produto da Conferência do Rio, em 1992. Mas também aconteceu em outros campos, no campo dos direitos humanos, no combate à corrupção, a transparência internacional está representada aqui hoje, e em vários outros campos. E há coisas muito interessantes acontecendo. Por exemplo, é muito mais difícil para uma empresa esconder dos clientes, no próprio país, o que faz em outros países. Se uma empresa fizer algo, de algum modo inadequado, o cliente no país de origem vai saber. Isso induz as empresas a encararem com mais cuidado suas responsabilidades sociais e a investirem nisso para manter a reputação. Isso também vale para os governos. Os defensores dos direitos humanos em determinado país podem levar as violações de direitos humanos à atenção dos colegas em outros países através dessas redes, pressionar esse país e, por meio de organizações internacionais, conseguir mudanças nas políticas do próprio país. E esse é um instrumento muito poderoso no cenário internacional. Não é mais poderoso que o governo, não é mais poderoso que corporações multinacionais, mas é muito importante e, na minha opinião, uma força histórica e internacional muito positiva.

Rebecca Raposo: Professor Lester, eu queria mudar um pouquinho e ir para a pesquisa que o senhor coordenou, a pesquisa comparada entre os 22 países. A pesquisa já data os resultados dela de 1999, e a base de dados no caso do capítulo brasileiro era de 1995. Depois da sua visita aqui nesse período, e já tendo estado no Brasil anteriormente; como senhor vê a posição no terceiro setor brasileiro hoje de uma maneira crítica, inclusive comparando com os países latinos nossos vizinhos, que também fizeram parte dessa pesquisa, como o senhor vê isso hoje?

Lester Salamon: Antes de mais nada, devo dizer que a mudança no Brasil, ao longo do tempo, tem sido notável na minha opinião. Ainda não temos dados para o período mais recente, queremos muito atualizar nossos dados. Temos uma estratégia para fazer isso, e iniciamos um contato com o IBGE, sua agência de estatísticas, esperando encorajá-los a adotar um novo manual que criamos, em cooperação com a ONU [Organização das Nações Unidas], para fazer com que agências nacionais de estatísticas coletem esses dados regularmente. É uma grande prioridade para nós. Mas, mesmo sem esses dados, vejo as mudanças que ocorreram neste país. Há uma aceitação muito maior do conceito de terceiro setor. Quando começamos o trabalho nesse país o conceito não era aceito. Havia ONGs, universidades, hospitais... Mas a idéia de que eram o âmago de um setor comum era contestada dentro do setor e fora dele. Houve uma mudança de mentalidade no país. Houve também avanços significativos no aspecto legal. A lei aprovada aqui em 1999, na minha opinião, é um avanço positivo. Não encerra o que deve ser feito, mas é um avanço. Houve a emergência de uma capacidade de treinamento muito significativa neste país para organizações do terceiro setor. Se acompanharem a lógica do que tenho dito, essas organizações são prestadores muito importantes dos serviços humanos dos quais a sociedade precisa. Por isso é importante que sejam eficazes, não basta ter boas intenções, devem ser eficazes no que fazem. Isso requer treinamento, assim como no setor privado ou no setor público, por isso o terceiro setor deve ser profissionalizado. E há bons sinais nesse país de que isso está ocorrendo. E acho que há avanços interessantes nas parcerias. Sua organização, Gife, é um bom exemplo disso. Quando estive pela última vez aqui, o Gife acabara de ser criado, havia dúvidas se sobreviveria, e estamos aqui, seis ou sete anos depois, o Gife ainda existe e parece estar prosperando. É um exemplo de parceria entre o terceiro setor e o setor privado. A formação da Comunidade Solidária é uma evidência de parceria com setor público. São sinais muito positivos. Não significa que estejamos seguros. Ainda há muito trabalho a fazer, mas estou muito animado e noto a energia dos jovens, nesse setor, o que é outro sinal muito positivo para o Brasil.

Claudio Abramo: A minha pergunta tem a ver com a preocupação da minha organização que é a transparência, eficiência ,essas coisas. As ONGs não são Estado, também não são setor privado, e tanto o Estado como setor privado são usualmente sujeitos a critérios, a condições de transparências a que as ONGs não são. Isso claramente provoca certos problemas porque, não apenas de natureza financeira, negócios escusos feitos por ONGs, isso acontece, mas também existe um problema de justificativa mesmo social para a existência de determinadas organizações. É bastante notório que esse é um território de difícil abordagem, como lidar com a transparência nas ONGs, e eu pergunto se o senhor tem preocupações nessa direção de entender, de mapear as condições de transparências nas ONGs e como o senhor vê a evolução nesse território?

Lester Salamon: Há uma preocupação muito significativa e há várias formas de lidar com isso. A questão é saber quem deve fiscalizar essas organizações. Como deve ser feito? Há várias formas a se considerar. No nosso país a principal linha de proteção deve ser o conselho diretor da organização. Nossas leis imputam aos diretores a responsabilidade pela operação da organização. Se houver problemas, o conselho é responsável. Se os diretores forem negligentes nos deveres, podem ser processados, e os processos são encaminhados pelos procuradores-gerais nos diferentes estados. Assim, nós temos leis no nosso sistema que visam proteger o público contra atos fraudulentos cometidos por organizações sem fins lucrativos. O que deve ser feito é encontrar um equilíbrio entre responsabilidade privada e responsabilidade pública. Se o Estado for muito rigoroso ao impor responsabilidades, o perigo é o setor perder a autonomia e a independência. Se o Estado for muito brando, há perigos do outro lado. E o que os países têm feito é estabelecer um número mínimo de requisitos de transparência na lei. Nos Estados Unidos, exige-se que cada organização sem fins lucrativos envie um formulário equivalente a um imposto de renda anualmente à Receita Federal. Esses formulários são abertos ao público. Há uma organização que pega esses formulários coloca-os na forma eletrônica e os disponibiliza na internet. É possível achar na internet a declaração de renda de qualquer organização sem fins lucrativos, que quiser. Ela registra as finanças, registra o salário dos cinco principais executivos na organização... E essa é uma tentativa para garantir um grau de transparência nessas organizações. Além disso, vários países criaram códigos de ética para as organizações que estipulam determinados requisitos de transparência. Eles são em grande número, mas há um movimento em todo o mundo para criar formas de proteção, no fim das contas, o sucesso dessas organizações depende da confiança do público. Se não houver confiança, ninguém contribuirá voluntariamente, não dedicará tempo. Essas organizações devem investir muito para ganhar a confiança do público. Elas precisam criar os próprios procedimentos, fornecer informações suficientes para preservar a confiança do público. Assim o problema existe e muitas coisas foram feitas para lidar com ele.

Ricardo Voltolini: O senhor esteve aqui há seis anos, e, agora, nessa sua mais recente visita, o senhor deve ter observado as organizações aqui no Brasil. Em 1996, o senhor escreveu um artigo, um artigo bastante famoso aqui no Brasil, em que propunha que as organizações de terceiro setor enfrentariam ao longo dos próximos dez, quinze anos, quatro grandes desafios, eu queria que o senhor tentasse dizer para a gente, o que o senhor observou em termo de evolução nas organizações brasileiras em relação a dois desafios: o da eficácia e da sustentabilidade [refere-se à sobrevivência dos humanos e do planeta, o que, após séculos de devastação do meio ambiente, exige o planejamento e execução de ações locais, nacionais e globais para exploração e uso dos recursos socioambientais].

Lester Salamon: De certa forma, já falei sobre isso antes, é uma questão de melhorar a operação das organizações. Os quatro desafios para aqueles que não tiveram a felicidade de ler o artigo são: legitimidade, eficácia, sustentabilidade e parceria. Fiz um discurso recente em Campos do Jordão, há pouco tempo, que versava sobre justiça e finalidade social. Mas quanto à questão da eficácia, é preciso reconhecer que essas organizações requerem mais do que boas intenções, elas precisam operar de modo eficaz. Isso foi reconhecido no mundo todo. De certo modo, se pensarmos na situação do treinamento de organizações sem fins lucrativos hoje, é muito semelhante à situação da administração empresarial cinqüenta ou sessenta anos atrás. Pessoas chegavam a cargos de liderança em grandes corporações fazendo carreira em engenharia. Elas passavam a gerenciar organizações muito complexas e simplesmente não estavam preparadas para as exigências financeiras e de administração daquele tipo de função. A partir dessa constatação surgiu o curso de pós-graduação em administração de empresas MBA [sigla em inglês para master in business administration], mestre em administração de negócios [curso destinado à formação de executivos, nas diversas áreas da administração como marketing, finanças, RH, contabilidade e outras]. É um curso relativamente novo. Hoje temos uma situação semelhante no setor sem fins lucrativos. As pessoas chegam a essas funções por serem assistentes sociais, educadores, médicos ou advogados... Elas criam organizações, elas crescem, mas de repente, estão gerenciando organizações muito complexas, com múltiplos depositários e múltiplas fontes de renda. A administração financeira passa a ser importante, e eles não são treinados para isso. Além disso, é preciso um treinamento gerencial específico, especialmente voltado para organizações sem fins lucrativos. Na última década, nos EUA, temos criado uma série de programas de treinamento. Sinto que o Brasil não está muito atrás. Através do trabalho da Fundação Kellog , muitas técnicas criadas no nosso país, em outros países foram trazidas para o Brasil. E, além do treinamento nas universidades, há outros institutos, o Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial] é um dos que foram criados e estabeleceram relações de cooperação conosco; o Senac fornece ao terceiro setor um bom treinamento em planejamento estratégico, marketing etc. Acho que estamos avançando... Vocês estão avançando no Brasil ao longo desse caminho. Sustentabilidade é mais difícil. Sinto que ainda há uma crise significativa no terceiro setor no que se refere à sustentabilidade. Nos EUA passamos por uma revolução no financiamento de organizações do terceiro setor. Uma revolução tecnológica. A tecnologia para financiar essas organizações mudou muito nos últimos 15 anos. Os fundos do setor privado, os de origem filantrópica, os de origem comercial e os vindos do governo... Em todas as áreas houve grandes mudanças. O governo deixou de fornecer subsídios ao produtor para fornecer subsídios ao consumidor. As organizações precisaram aprender a trabalhar de uma forma diferente em relação ao setor público. Além disso, o mundo beneficente passou por uma revolução significativa, temos fundos de doação orientados, temos empresas privadas envolvidas na criação de fundos filantrópicos, há técnicas muito sofisticadas para arrecadarem fundos. E houve uma transformação em relação às rendas comerciais. Empresas sem fins lucrativos criam diversos empreendimentos. Em Nova Iorque o Museu Metropolitano de Arte [The Metropolitan Museum of Art, também conhecido como Met é um dos museus mais importantes do mundo] e o [Museu] Guggenheim [mantido pela Fundação Solomon R. Guggenheim] têm grandes operações de marketing. De fato, o Guggenheim opera no exterior. Temos a primeira grife de museu internacional sem fins lucrativos. Eles vendem reproduções de obras de arte de uma forma muito sofisticada. E há outras formas de parceria e de marketing filantrópico. O resto do mundo sofre uma transformação na arrecadação de fundos muito significativa, parte dela é evidente no Brasil. Minha preocupação é que as agências brasileiras não se dediquem para isso com toda atenção que deveriam ter.

Paulo Markun: Professor Salamon, nós vamos fazer um rápido intervalo, e o Roda Viva volta daqui a instantes, até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com Roda Viva essa noite, entrevistando Lester Salamon, diretor do Centro de Estudos sobre a Sociedade Civil da Universidade John Hopkins nos Estados Unidos, ele é um estudioso do terceiro setor, essa área onde atuam empresas e grupos que desenvolvem trabalhos comunitários ligados à promoção social, enfim, é uma definição mais complicada do que essa que eu estou dando, é justamente, este, uns dos temas do programa. Como o programa está sendo gravado, não permite a participação dos telespectadores. Professor Lester, tem uma peculiaridade dos países subdesenvolvidos que, na minha ignorância, parece complicar a ação do terceiro setor, que é a seguinte, como se usa numa expressão popular: o cobertor é curto, ou seja, os recursos do governo são insuficientes para se universalizar uma série de serviços, de garantias de direitos, que nos países desenvolvidos estão universalizados. Então, se existe um determinado segmento da sociedade, organizado para lutar pelos seus interesses, esse segmento pode conquistar mais espaço no orçamento escasso do governo. Eu cito um exemplo, claro, de uma organização do terceiro setor que não tem essa característica, que é o Movimento Sem-Terra, cuja pressão fez com que conseguisse um avanço significativo por parte da ação na reforma agrária. A decisão final é a decisão do governo, é ele quem diz: “Ok, vamos dar dinheiro aos sem-terra, e não vamos dar dinheiro para construção de casas populares, ou para conserto das rodovias”. Na medida em que esse avanço do terceiro setor se estabelece e que entram aí recursos e organizações que não tem essa base no governo, não se corre o risco de se multiplicarem algumas injustiças, em que certos segmentos, que uma determinada grande empresa, por exemplo, ache valioso beneficiar, sejam melhor atendidos do que outros segmentos que as empresas não olham? E pior do que isso, nessa seleção por parte do mercado, que cria suas organizações, não tem um viés de dizer: “Ok, vamos fazer uma grande exposição de arte com pintor mundialmente famoso, através, da nossa fundação ,que é uma fundação sem fins lucrativos porque isso dá muito mais retorno institucional do que efetivamente trabalhar, por exemplo, na questão da reforma agrária”?

Lester Salamon: Ao contrário, acho que terceiro setor é a melhor esperança que temos de buscar a justiça. Sem o terceiro setor, o Movimento Sem-Terra não existiria. Haveria indivíduos tentando conseguir terras por conta própria. E isso seria facilmente detido. A única esperança de levar esse tipo de injustiça ao conhecimento do governo é encorajar a criação dessas organizações. Sem dúvida, nem todas serão igualmente eficazes e fortes, mas é somente dando às pessoas a chance de se organizarem, de se reunirem para expressarem suas preocupações que haverá mudanças nas políticas do governo. Sem esse setor, outras fontes de poder irão prevalecer, e essas outras fontes de poder costumam ser financeiras. Esse é o único vínculo, através do qual o poder do povo pode ser organizado e pode ser levado ao cenário político. Eu as vejo como uma parte fundamental da produção de justiça em um país. Manter esse canal aberto é uma das melhores proteções que temos para a promoção da justiça social.

Daniel Bramatti: Professor, uns dos braços do terceiro setor, é o setor filantrópico. No Brasil, a gente ouve muito a idéia de que os ricos são menos solidários do que os pobres. O senhor, na sua pesquisa, é possível ter uma percepção da diferença da cultura da filantropia nos países ricos e nos países pobres?

Lester Salamon: A cultura da filantropia é uma cultura apreendida. Há muitas tradições que têm uma cultura de filantropia e o Brasil, em sua história, tem muitos exemplos de que há uma rica cultura de filantropia, que remonta às suas tradições religiosas, mas essa cultura não foi reforçada com a intensidade que deveria ter sido na história do país. O que é animador em termos do que acontece com o terceiro setor, com o trabalho da Gife e de outras organizações é o grande esforço para lembrar às pessoas das traduções da filantropia existentes nessa cultura. Essas tradições devem ser encaradas de um modo amplo, não apenas de um modo paternalista. Uma das características da filantropia, nessa região, é ter uma qualidade muito paternalista. O surgimento de organizações não governamentais mais novas criou uma filosofia diferente sobre a natureza da filantropia: uma filosofia que enfatiza a capacitação e não apenas a doação de recursos dos que têm para os que não têm. Vimos esse indício muito forte no Brasil, o sentimento da mutualidade e interdependência. É um produto da globalização que afeta as corporações, é a constatação de que as corporações precisam de uma boa reputação para atuarem, e,elas não podem conseguir isso sem o envolvimento na comunidade, de forma que, realmente, produzam mudanças. Há um novo estilo de filantropia que está surgindo e é muito animador. Ainda há uma grande distância a percorrer, mas vi sinais claros no Brasil de um novo estilo de engajamento filantrópico por parte dos ricos.

Gilberto Nascimento: O senhor já falou um pouquinho sobre a situação das ONGs aqui no Brasil, mas eu vejo uma diferença muito grande entre as fundações, as ONGs americanas, por exemplo, que têm super estruturas, são super profissionais, estão instaladas em prédios luxuosíssimos com muitos funcionários e tudo mais. Aqui, nós estamos caminhando, já existem várias organizações grandes, super bem estruturadas, muitos bons profissionais, mas a maioria, principalmente pela dificuldade de obtenção de recursos, até a dificuldade de formação e capacitação; trabalha numa situação muito amadora, muito aquém das necessidades. Eu queria saber qual a avaliação do senhor desse estágio que se encontram essas organizações aqui e na América Latina de maneira geral. Uma outra coisa que me chama muito... É curioso, fala-se muito, também, que as ONGs, que o terceiro setor pode contribuir muito até para a geração de empregos, e isso é real? Isso é possível? É um novo mercado de trabalho? Já existem pessoas formadas e preparadas para trabalhar nessa área, ou seja, na comunicação, no direito e também na área social? Efetivamente, que contribuição o terceiro setor pode dar, inclusive para emprego, para a geração de emprego?

Lester Salamon: Em relação à primeira pergunta, é verdade que nos EUA, muitas organizações sem fins lucrativos são muito sofisticadas. Mas é perigoso generalizar isso. Também temos organizações muito pequenas, muito novas que estão lutando para sobreviver, e acho que dois terços das nossas organizações foram criadas nos últimos vinte anos. Há um surgimento constante de organizações e formação de novas organizações. Nós achamos que muitas das organizações ainda precisam desesperadamente desse tipo de treinamento. Imagina que a distância seja menor que imaginamos. Tendo dito isso, acho que de 10 a 15% das organizações brasileiras realmente passaram por treinamento efetivo, começaram a passar por treinamentos efetivos e há um enorme número de organizações realizando um trabalho muito bom, que irão se beneficiar com um melhor treinamento. Portanto, há um trabalho muito significativo à frente, e encorajo não apenas o setor privado, mas também o setor público a dar sua contribuição. Deve haver um grande investimento no treinamento de organizações sem fins lucrativos em especial à medida que assume novos papéis sociais. Em relação aos empregos, esse setor é um grande empregador. Não apenas no trabalho voluntário, mas também no trabalho remunerado. Já realizamos trabalhos em 35 países. Descobrimos que a força de trabalho do setor é maior que a de grandes indústrias. É maior que a da indústria têxtil, maior que a da indústria alimentícia, maior que a da indústria de serviços, que a de transportes e comunicações. Essas organizações são grandes empregadoras. Além disso, descobrimos que este é um setor muito dinâmico, em parte, porque faz parte do setor de serviços. E sabemos que, em economias de todo o mundo, o setor de serviços está crescendo. Mas, mesmo dentro do setor de serviços, essas organizações têm contribuído muito para o crescimento econômico. Fizemos um trabalho em nosso próprio país, em nosso estado e descobrimos que um quarto dos empregos criados nos últimos dez anos no estado de Maryland, onde moro, foram do setor sem fins lucrativos. E essas organizações representam cerca de 8% dos empregos no início. Na cidade onde moro, quase a totalidade dos empregos criados estavam no setor sem fins lucrativos. Isso inclui hospitais, educação, cultura. São criadores de empregos muito importantes. Além disso, é preciso perceber que mesmo o trabalho voluntário pode contribuir com habilidades que as pessoas podem levar para a força de trabalho. Essa é uma das grandes motivações dos voluntários. Isso lhes confere habilidades que podem usar em trabalhos produtivos e remunerados. É um dos motivos pelos quais as corporações no nosso país têm apoiado programas de voluntários. Isso dá aos jovens executivos a chance de exercitar a responsabilidade gerencial como membros de conselhos. Tanto em termos de empregar pessoas, como em termos de fornecer habilidades, essas organizações são contribuintes econômicos importantes.

Rebecca Raposo: Professor, eu gostaria de retomar o ponto da sustentabilidade, mas não do ponto de vista financeiro, trabalhando a sustentabilidade como um conceito mais amplo, a sustentabilidade do setor como um todo a sustentabilidade da legitimidade também. Eu imagino que isso não seja possível fazer sem a interlocução com o primeiro e o segundo setores por que o terceiro setor não pode existir isoladamente, imagino eu. Como o senhor pode imaginar um modelo de sustentabilidade, não existe uma receita de bolo, mas que possibilidade o senhor vê no modelo de sustentabilidade para o setor no Brasil, considerando que ele precisa se relacionar com primeiro e com segundo setores que também têm problemas de transparências como o Cláudio levantou, então, nem sempre servem também de modelo para esse setor que está aprendendo. Como é que essa interlocução pode ajudar no caminho da construção de um modelo de sustentabilidade, e que possibilidades o senhor vê para esse modelo no caso brasileiro, especificamente?

Lester Salamon: Você tem razão, sustentabilidade não é apenas uma questão financeira. É importante a sustentabilidade em recursos humanos e em recursos financeiros, mas também é importante gerar uma base de compreensão na população. E, como eu disse antes, confiança é fundamental para essas organizações. É preciso haver um sentimento de confiança de compreensão por parte do público. Dessa forma, a legitimidade torna-se parte da sustentabilidade. E a legitimidade em si tem muitas dimensões. Em primeiro lugar, há simplesmente a informação e o conhecimento básico. Esse setor tem sido o continente oculto no cenário das nossas sociedades. Sabemos que está lá, mas não temos dados sobre ele, não temos informações sobre ele, ele não é estudado em universidades, não há disciplinas acadêmicas voltadas a ele... E, até pouco tempo, a imprensa o ignorou. Fico feliz ao ver o interesse que a imprensa brasileira dedica a esse setor. Assim é uma presença invisível. E, quando as coisas são invisíveis, quando não estão presentes, não têm destaque. E quando não têm destaque, as pessoas assumem que são insignificantes, que são ilegítimas. Esse é um dos motivos pelos quais fizemos a pesquisa. Queremos demonstrar que é uma presença muito significante. Uma forma simples de expressar a contribuição, é em termos econômicos. Assim, geramos dados sobre quantas pessoas estão empregadas no setor, qual a sua contribuição para o PNB [Produto Nacional Bruto]. E descobrimos que, mesmo nesses termos, que é uma pequena forma de medir a contribuição, que é uma enorme instituição, uma enorme presença em sociedade do mundo todo. Identificamos quarenta milhões de empregados em organizações sem fins lucrativos dos quais 23 milhões são remunerados. Como já citei antes, isso torna o setor um empregador maior do que grandes indústrias, que serviços públicos, indústria alimentícia, têxtil, transportes... São indústrias enormes e, ainda assim, as organizações sem fins lucrativos empregam mais gente que qualquer uma dessas indústrias. Isso ajuda a construir a legitimidade do setor, demonstrando que tem um importante papel social.

Francisco Ornellas: Professor, gostaria de trilhar um caminho agora, no rumo da responsabilidade social das empresas, das empresas mercantilistas e sair um pouco das ONGs como instituições da sociedade. O senhor fala nos seus estudos, nos seus trabalhos, seguidas vezes, na responsabilidade social da empresa. A responsabilidade é um conceito passível de ser metodizado, passível de ser codificado, como a ética. Mas a responsabilidade social de uma empresa não depende da cultura e da consciência social desta empresa, e de nada adiantará o compromisso de responsabilidade se não houver uma consciência social, dou um exemplo, eu conduzo já há mais de dez anos uma das mais antigas empresas de comunicação deste país, uma empresa que tem 127 anos de existência, um programa de treinamento de jornalistas, programa gratuito, mantido pela empresa junto com parceiros. Há alguns anos, houve um debate para se situar esse programa dentro da empresa, e uma questão que se levantou dentro da empresa foi a seguinte: nós estamos treinando novos jornalistas, para nós ou para a concorrência? E a empresa consciente da sua responsabilidade social decidiu que está treinando profissionais, se eles ficarem conosco ou com a concorrência, dependerá da competência da empresa em reter os melhores profissionais. Isto é uma consciência social que conduz a metodologia e a conceituação da responsabilidade social, mas a responsabilidade social, ela não tende a se transformar numa arma institucional de marketing, se não houver a consciência social?

Lester Salamon: Essa é uma expressão complicada: responsabilidade social. Acho que o âmago da questão, o centro do problema é a existência de interdependência no mundo. E a responsabilidade social cresce com a crescente interdependência entre empresas e instituições sociais. Vivemos em um mundo no qual as empresas acham cada vez mais difícil perseguir os próprios objetivos sem parceiros, sem procurar outros agentes sociais, sem se engajarem na sociedade da qual fazem parte. E sua empresa treina jornalistas porque há uma necessidade de jornalistas e, sem um fluxo constante de jornalistas qualificados, ela não pode realizar o trabalho. Da mesma forma, outras empresas descobrem que precisam de outros tipos de qualidades na sociedade, sem isso elas não podem atuar. Essa constatação de interdependência é a fonte da responsabilidade social. Não sei se usaria esse termo no mundo ideal, porque parece implicar que a empresa não tira proveito disso. E eu acho que o verdadeiro sucesso da responsabilidade social é a compreensão não apenas do que a empresa dá, mas também do que ela legitimamente recebe. E qualquer uma das parcerias que emerge deve começar não com a pergunta: "o que ganho com isso?", mas "o que o meu parceiro ganha com isso?". E, cada vez mais, as empresas estão percebendo que elas têm papéis muito importantes na melhora de suas reputações, na capacidade de manter os clientes, a capacidade de manter os próprios funcionários gerada pelo envolvimento com ações sociais, atividades sociais.

Ricardo Voltolini: Professor é inegável hoje no Brasil, o interesse dos jovens por atuar no terceiro setor. É fato concreto. Há dez anos, um estudante de administração típico, o sonho profissional dele era pertencer ao quadro de profissionais de uma grande empresa multinacional. E hoje em cada grupo de dez, três ou quatro se interessam por atividades do terceiro setor, que é visto como um campo onde você pode trabalhar, e trabalhar em organizações que dão significado para sua vida, que tornam a sua vida mais interessante, mais agradável. E então a gente observa outros movimentos, as universidades não estão preparando devidamente esses profissionais. Me parece que para atuar numa organização de terceiro setor, é preciso de um conjunto de competências bastante diferentes das competências que se exige numa empresa multinacional. Qual o papel da universidade nesse processo? O que é que ela tem que ensinar?

Lester Salamon: Antes de mais nada, tem toda razão ao dizer que os jovens estão se voltando para essas organizações. E essas organizações reúnem duas idéias muito fortes: a primeira é a idéia da iniciativa individual, a idéia de que as pessoas têm capacidade de tomar a iniciativa para melhorar suas vidas, e a segunda: é a idéia da solidariedade, a idéia de que as pessoas não existem para si mesmas, há uma motivação além da própria existência. As duas idéias são unidas, e cria-se um conjunto singular de instituições que permitem a expressão de iniciativas pessoais com uma motivação especial, contribuir para a sociedade. É uma idéia muito convincente. E os dois impulsos estão presentes em nossa vida. Cada vez mais exigimos a iniciativa, a capacidade de tomar a iniciativa. Queremos ir ao banco e pegar o dinheiro rapidamente, e para isso usamos o caixa eletrônico, não queremos ficar na fila. Por outro lado, estamos buscando uma motivação. As universidades têm sido lentas para se ajustarem a essa realidade. A estrutura das disciplinas nas universidades têm sido um obstáculo. Trabalhamos nisso há 15 anos nos Estados Unidos, e tem havido progressos, mas os cursos nas universidades têm resistido muito a mudanças, e as pessoas demoram muito para abandonar velhos conceitos e antigas bibliografias e adotar um novo paradigma que reconheça esse campo. Nenhuma das disciplinas realmente reconhece o terceiro setor. O curso de economia enfoca as corporações, o curso de ciências políticas enfoca o Estado, sociologia enfoca a família, e o terceiro setor é um órfão no mundo universitário. Mas isso está mudando lentamente. Não está mudando suficientemente. A maior parte dos programas de treinamento do terceiro setor ocorre em locais estranhos dentro das universidades. Eles surgem como parte dos currículos de política, ou ligados ao currículo de um curso de administração. Mas se vamos ter disciplinas organizadas em torno do terceiro setor, é a questão fundamental. Como em outras coisas, é o mercado que desperta o interesse dos estudantes, que estimula a ação. No Brasil há várias universidades que tiveram avanços significativos ao incorporar o terceiro setor aos programas de treinamento. Tanto em programas de graduação, como em outros programas. A Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e várias outras universidades que conheci no país já estabeleceram os programas ou estão prestes a estabelecer os programas. É um passo, mas há vários outros passos. Outra iniciativa interessante com a qual me envolvi foi a criação de uma sociedade de pesquisas chamada Sociedade Internacional para Pesquisas do Terceiro Setor. É um grupo de pessoas, profissionalmente envolvidas em pesquisas no terceiro setor, e há uma unidade no Brasil e um grupo de colegas envolvidos em pesquisas. Está no início, mas longe de terminar.

Sérgio Amoroso: Falando um pouco em desorganização e miséria, distribuição, a gente poderia falar um pouco das corporações, e as corporações têm procurado um modelo de gestão que possa motivar seus colaboradores. Nas suas pesquisas, o senhor tem encontrado tendências para que essas corporações sejam motivadas a trabalhar fortemente no terceiro setor, para que elas possam ao mesmo tempo, com esse trabalho, manter uma forte motivação com seus colaboradores e, além dessa questão, o senhor entende que essa tendência, se ela é real, ela pode impactar em países mais pobres, uma vez que essas corporações, as vinte maiores, por exemplo, são maiores que mais de cinqüenta países ao redor do mundo? O senhor acha que, com essa tendência, nós poderíamos ter uma distribuição adequada, ter algo nessa direção o senhor tem pesquisado essa tendência?

Lester Salamon: Acho que sua questão toca em uma das interdependências muito importantes entre o mundo das corporações e o mundo do terceiro setor. As corporações cada vez mais, como você sabe, confiam em funcionários, que não usam a força nos trabalhos. Estamos entrando, como sem dúvida sabe, e já estamos na era da informação, na qual o poder do pensamento é a ferramenta mais importante que um funcionário pode levar ao trabalho. Há um funcionário diferente. Esse funcionário busca cada vez mais motivação no trabalho e na vida. E, se houver um conflito entre a vida no trabalho e a vida que lhe dá motivação, ele não será um funcionário satisfeito. Ele irá procurar empresas nas quais as duas coisas estejam alinhadas. Essa é uma parte muito importante no desenvolvimento da responsabilidade social corporativa. É um dos motivos pelos quais as corporações passaram a ver na responsabilidade social uma boa prática comercial. Não apenas porque ajudam a sociedade, mas porque ajudam os próprios negócios. Elas retêm os funcionários e os clientes. E o interessante uma das coisas que observei, é que as técnicas de administração no mundo corporativo, no mundo sem fins lucrativos, começaram a se fundir. Em nosso treinamento, temos dois ou três princípios para treinamento para o terceiro setor, um deles eu citei antes. O treinamento deve levar as pessoas, além das boas intenções, não bastam boas intenções isso significa incorporar técnicas clássicas de administração comercial, nas operações sem fins lucrativos. Mas o segundo princípio é: mais do que administração comercial, a idéia é que a área comercial, historicamente teve o luxo de ter um propósito muito claro, um objetivo muito claro. Era o lucro, que era muito fácil definir o que era preciso para se obter o lucro. O terceiro setor não está nessa posição. O propósito é sua missão, e é um conceito muito diferente, que motiva a administração e a estrutura de organizações de terceiro setor. É preciso pensar em qual é a missão da organização. E a missão vai além de ter um balanço positivo. Mas o interessante é o quanto o conceito de missão, que vem do setor sem fins lucrativos se infundiu na administração de corporações comerciais porque a busca do lucro passou a ser vista como insuficiente para atrair funcionários, para atrair clientes... Assim começou-se a falar de qualidade, como sendo o objetivo da corporação, não apenas o lucro, mas qualidade. E definir o produto de uma forma que tenha algum significado. Assim, as empresas acham interessante associarem-se a organizações sem fins lucrativos que possam dar significado a seus objetivos. Assim encontramos, por exemplo, esse fenômeno de marketing filantrópico no qual a empresa dedica uma porcentagem dos recursos, a uma organização sem fins lucrativos como forma de ligar a empresa e seus lucros ao propósito que a organização do terceiro setor persegue. De modo muito interessante o setor sem fins lucrativos tira algo do setor corporativo, mas o setor corporativo tira algo do setor sem fins lucrativos. E envolvendo tudo isso há essa realidade de interdependência, e as necessidades dos dois setores. O terceiro setor precisa do setor corporativo para lhe dar legitimidade, para lhe dar apoio. E o setor corporativo busca no terceiro setor o significado e o atrativo especial que é traduzido pelo envolvimento nesse tipo de atividade social, isso permite à empresa atrair funcionários e mantê-los, e também ajuda a atrair clientes.

Paulo Markun: Professor, vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Vamos retornar ao Roda Viva desta noite, com Lester Salamon, diretor do Centro de Estudos sobre a Sociedade Civil da Universidade John Hopkins dos Estados Unidos. Ele estuda o terceiro setor e como o programa está sendo gravado, ele não permite a participação dos telespectadores. Professor, o senhor apresentou um cenário bastante positivo no terceiro setor e, me deu a impressão de que não existe um grande problema, então a pergunta é simples; qual é o grande problema do terceiro setor se é que existe um. Como por exemplo existe no caso dos governos dos nossos países aqui da América Latina, o grande problema da dívida que o país tem, o grande problema é o subdesenvolvimento. No terceiro setor há um grande drama?

Lester Salamon: Há muitos grandes dramas no terceiro setor. Quando descrevo um progresso é em comparação com o que eu via há muitos anos atrás. E houve progressos. Mas em cada um dos desafios que tento identificar há questões inacabadas significantes. Acho que o conceito de terceiro setor ainda não é bem compreendido no Brasil. Ainda há batalhas ideológicas quanto a isso. Muitas delas ouvi nos últimos três ou quatro dias aqui. Há resistências em se aceitar a existência do setor. Problemas na montagem da infra-estrutura para o setor. Esse é um dos negócios importantes inacabados no Brasil. No setor corporativo há um grande número de organizações que representam todas as áreas empresariais e a comunidade empresarial como um todo. Isso ainda não existe no terceiro setor. Temos algumas delas, o Gife é um exemplo, mas para que o setor se torne legítimo, ele precisa ter porta-vozes que possam falar com o Estado, com a comunidade empresarial e com a população como um todo, tornando o setor compreensível. Essa é uma enorme falha que ainda existe. Assim ainda temos um grande problema, que é a legitimidade do setor. A sustentabilidade do qual falamos antes, o esclarecimento público, o apoio financeiro, tudo isso é um enorme problema no Brasil. Muitas organizações lutam, sentem-se frustradas com a incapacidade de achar fontes locais de apoio. Foram apoiadas por muitos anos por fontes estrangeiras, por fundações e órgãos de auxílio internacional. Essas fontes estão secando, a nossa própria comunidade de fundações sofreu um processo de enxugamento por causa da queda do mercado de ações. Há uma grande crise, em termos de apoio para essas organizações. Elas provaram que podem realizar muitas coisas, mas seu futuro está ameaçado. É o momento para a sociedade brasileira se apresentar, para o governo se apresentar e demonstrar o apoio de que essas organizações precisam.

[...]: Como é que o senhor vê essa busca das ONGs por um poder, até por um poder político global?

Lester Salamon: É um sinal positivo muito importante. É uma nova força no cenário internacional, vai ajudar a trazer a voz da comunidade das ONGs e das pessoas que elas representam para o palco internacional. O mundo nunca esteve tão pequeno e mais coisas estão interconectadas internacionalmente. Assim como as corporações conseguiram se conectar internacionalmente, os governos conseguiram se conectar internacionalmente, o setor dos cidadãos deve fazer o mesmo, o setor da sociedade civil. Esse é um avanço muito positivo, o fato de as organizações ficarem mais próximas. Minha esperança é que com o tempo, encontramos formas nas quais os três setores possam se reunir e trabalhar juntos nesses problemas globais. Essa é a minha idéia geral de como vamos resolver grandes programas sociais e econômicos no futuro. Não será apenas o Estado, não será apenas o mercado e não será apenas o terceiro setor. Será uma combinação dos três.

Gilberto Nascimento: Como o senhor acabou de colocar, já existe, aqui no Brasil, grandes empresas que criaram suas fundações e instituições e que discutem os problemas sérios no Brasil, como a educação, por exemplo. Além do Gife, nós temos o Instituto Ethos de responsabilidade social que reúne, hoje, as maiores empresas no Brasil, quase todas as grandes corporações estão filiadas ao instituto Ethos, e lá se discute essa questão da responsabilidade social, e um problema que se coloca é referente a empresas que hoje estão desenvolvendo trabalhos sérios, apoiando projetos sérios, mas que no seu dia-a-dia... eu sei que o senhor já falou, mas eu queria que o senhor falasse um pouquinho mais sobre isso. O caso, por exemplo, de uma grande construtora que apóia projetos sociais, super importantes, mas de repente está ou esteve envolvida em fraudes, concorrência pública, licitações e denúncias desse tipo, ou o caso por exemplo, de uma grande empresa que posso até citar que produz cigarros, por exemplo, e também desenvolve trabalhos e projetos sociais, como é que é esse tipo de problema, por exemplo nos EUA, como se resolve isso ou como se resolveu isso? Na medida que você exerce o discurso da responsabilidade social e exerce uma conduta diferente disso, automaticamente já é uma obrigação de se discutir essa questão ou dar uma resposta para a sociedade. Eu já vi o problema colocado, mas não vi a resposta ainda.

Lester Salamon: Essa é uma questão muito importante e quanto mais o terceiro setor se envolver com o setor empresarial, mais isso será questionado. Há duas formas, no mínimo, para se lidar com isso. Em primeiro lugar, a organização sem fins lucrativos, a organização da sociedade civil precisa ter regras próprias para o modo como ela se envolve com as empresas. Precisa ter cuidado para não endossar produtos que não sejam bons produtos no segmento. Houve vários exemplos disso nos Estados Unidos, nos quais uma importante organização sem fins lucrativos permitiu que o seu nome fosse usado relacionado a um produto, e o produto não tinha a qualidade sugerida pelo endosso. Isso acabou gerando grandes escândalos...

[...]: Qual o produto?

Lester Salamon: Foi um produto médico e envolveu a Associação Médica Americana [AMA], não me lembro o nome do produto, mas envolveu a AMA, uma grande associação médica e os principais líderes da organização tiveram que pedir demissão por causa do problema. Existe a questão do produto que se endossa e o uso potencial desse tipo de marketing filantrópico, de uma parceria, como uma espécie de fachada para acobertar outras coisas que a empresa faz que não são tão boas. E as organizações, na primeira linha de defesa, devem ser muito cuidadosas e devem deixar muito claro às empresas que só permitem que seus nomes sejam usados sob determinadas condições, e essas condições devem ir além das especificações limitadas da parceria e abordar práticas comerciais mais amplas. Assim, não se pode fazer parceria com uma organização e permitir que seu nome seja usado e descobrir que a organização tem práticas trabalhistas que são inadequadas, que usa a mão-de-obra infantil, que polui o ambiente... Estes devem ser os requisitos. Essa é uma linha de defesa. A outra linha de defesa é sua profissão: é a imprensa. Esses relacionamentos devem ser tratados como tópicos legítimos para atenção da imprensa. Precisam ser abertos à investigação, precisam ser transparentes. A imprensa é um regulador tão importante nesses relacionamentos como nos relacionamentos entre corporações e o setor público ou qualquer outro relacionamento desse tipo. Eles devem ser abertos à investigação. Se não for esse o caso, acho que são legitimamente suspeitos. Concordo plenamente com você. Esta é uma área de grande potencial, mas também de grande perigo. E, no fim das contas, a única coisa que o terceiro setor tem é a reputação. E, se comprometer à reputação, também estará comprometido seu maior bem. Por isso, precisa entrar nesses relacionamentos com muito cuidado. Nos Estados Unidos criamos códigos de conduta em relação ao marketing filantrópico, por exemplo, quais são os critérios a serem observados quando uma organização sem fins lucrativos entra em um relacionamento de marketing filantrópico? Isso está sendo aperfeiçoado, porque muitos desses relacionamentos são novos, mas acho que é absolutamente importante.

Rebecca Raposo: Dando ainda continuidade ao tópico que o Gilberto levantou, e outros já levantaram também, eu acho que isso é muito importante no caso brasileiro, porque nós estamos num momento de muita mobilização das corporações em torno dessas causas. Essa interdependência que o senhor mencionou é muito interessante e certamente ela é necessária e pode ser muito rica, para a sociedade como um todo, mas ela de fato traz alguns riscos importantes. Um deles se refere ao já mencionado, também pelo senhor no início do programa, de um marco regulatório favorável para o desenvolvimento do setor. Que riscos o senhor vê, e que recomendação que o senhor faria, por exemplo, para um governante que precisa reconhecer a sociedade civil, entender o terceiro setor e batalhar por incentivos fiscais com um setor que é muito confuso na sua interdependência? Como é que o governo vai reconhecer a legitimidade da concessão de incentivos fiscais para fins públicos? E como é que vai ser para fins privados, como é que o governante pode reconhecer isso?

Lester Salamon: Acho que o governo, em primeiro lugar, ele precisa entender o valor desses relacionamentos e abordá-los com a ciência daquilo que o público está obtendo dos relacionamentos. E espero que façam a avaliação deles, o difícil cálculo de lucros e prejuízos, ganhos, benefícios e perdas. Esses relacionamentos, no fim das contas, precisam dar algo de valor ao público. Isso é a base para se dar incentivos fiscais, outros incentivos e vantagens fiscais ao terceiro setor. Se os relacionamentos não gerarem benefícios públicos, me parece que serão tratados apropriadamente de outra forma. Pode não ficar muito claro, diante disso, quais são os benefícios ao público. Esse é o principal teste. Não sei se apenas o setor público precisa ser um regulador disso. A primeira linha de defesa deve ser as organizações sem fins lucrativos. É preciso haver regras criadas dentro do setor que especifiquem quais devem ser os ganhos para o público, para justificar privilégios fiscais especiais para esses relacionamentos. E as organizações como o Gife ou o Ethos, que promovem esse tipo de relacionamento, podem facilmente criar, se ainda não o fizeram, códigos de ética muito específicos. O que se espera do relacionamento em si? Quais os benefícios públicos que serão gerados? Vale a pena ceder o bom nome da organização sem fins lucrativos para esse propósito? Além disso, quais são as expectativas quanto ao comportamento da empresa de modo geral? Não apenas em relação aos pontos específicos desse relacionamento, mas em relação às políticas de emprego, políticas de meio ambiente, políticas sociais... São questões legítimas que organizações sem fins lucrativos, que entram em uma parceria com uma corporação, devem fazer, devem ter o direito de fazer. Assim, espero que sejam criados, como foram no nosso país, (EUA), códigos de ética para esses relacionamentos, que deixem bem claro o que é razoável se esperar.

Claudio Abramo: O que acabou de se discutir aqui, eu pergunto ao senhor o seguinte: o senhor vê algum problema ético no relacionamento que se estabelece entre uma ONG de uma empresa privada, no qual a empresa privada ganha o direito de usar a marca da ONG, o selo, uma menção qualquer contra o pagamento de uma mensalidade à ONG. Eu digo isso, porque a minha organização é sistematicamente sujeita à oferta dessa natureza, nós nos recusamos, nós achamos isso bastante antiético, porque nós achamos que a motivação mercadológica não é uma motivação que se coadune com a nossa finalidade. O motivo pelo qual uma empresa procura uma ONG para isso, é motivo comercial, então é típico, apenas como observação, que sempre que isso acontece, nós dizemos: olha, você pode usar isso no seu material institucional, você pode dizer que nos apóia, se quiser, mas não pode usar no seu material comercial. E ninguém quer, só querem no seu material comercial, só querem fazer a relação entre a organização e os seus produtos. Nós, pessoalmente, eu pessoalmente, acho que isso é impossível, é uma relação que estabelece um problema ético muito sério, e nós não fazemos. Eu pergunto se o senhor acha que existe problema ético, aí?

Lester Salamon: Pode haver um problema ético. Mas há formas de se proteger de um problema ético. Falamos de algumas delas. Temos muitos exemplos nos Estados Unidos desses tipos de parcerias. Cada vez mais, há essa tendência no relacionamento entre o setor empresarial e o setor sem fins lucrativos. As parcerias estão se tornando mais fortes, mais estreitas, mais abrangentes. As organizações sem fins lucrativos e as corporações formam conexões mais amplas e essas conexões têm nas raízes, como já citei antes, interdependência. E esperar que a empresa entre nelas com motivos puramente altruístas é querer demais. Não há problema em fazer com que esses relacionamentos gerem benefícios mútuos, benefícios para a empresa e para o terceiro setor. O problema ético surge se a empresa usar a relação com a organização sem fins lucrativos para encobrir outras coisas que faz e que a organização sem fins lucrativos não apóia. Esse é, para mim, um problema ético. Ou se o estabelecimento do relacionamento prejudicar um dos objetivos da organização sem fins lucrativos. Vou lhe dar um exemplo. Há exemplos no nosso país, (EUA) de universidades formando relacionamentos com empresas farmacêuticas. A empresa financia as pesquisas na universidade e, em troca, fica com os direitos sobre as descobertas obtidas nas pesquisas que financia. Para mim, isso é antiético porque um dos princípios básicos da universidade é o acesso livre ao conhecimento. E, se o conhecimento não é livre, a missão da universidade está comprometida. Mas não me incomodaria se a empresa farmacêutica financiasse minha universidade e pedisse autorização para divulgar que ela apóia pesquisas em grandes universidades. O que seria antiético para mim, é querer controlar os resultados da pesquisa. Há um ganho que a empresa poderia ter, mas não cria, na minha opinião, um problema ético.

Claudio Abramo: Ainda neste particular, a pesquisa acadêmica nos EUA é muito financiada pelo setor privado, seja direta ou indiretamente, via esse processo. Essa relação entre a pesquisa acadêmica nos EUA especificamente, e o financiamento privado contra o controle do que é, enfim, descoberto e desenvolvido assim, nos Estados Unidos, há décadas, quer dizer, essa situação existe nos Estados Unidos, não é nova. Lá, a pesquisa é feita assim. Boa parte vem dos setores, então, esse problema ético existe e sempre existiu, está lá, está presente, não há novidade.

Lester Salamon: A novidade é a exigência de ter a prioridade dos resultados da pesquisa. Possuir, para poder patentear os resultados da pesquisa. Historicamente as pesquisas que o governo fazia em universidades não podiam ser patenteadas de forma alguma. Nos últimos dez ou quinze anos isso se tornou possível. Os problemas éticos surgem quando o acordo de parceria com a corporação compromete a missão básica da organização sem fins lucrativos. Assim, se uma organização sem fins lucrativos que defende o aborto, forma uma aliança com uma empresa que se opõe a isso, e deixa de fazer disso parte de sua missão, isso é antiético. Mas, se a empresa se beneficia comercialmente de sua ligação com o terceiro setor, para mim isso não cria um problema ético.

Francisco Ornellas: A impressão que me fica ao longo deste nosso debate, e até esclarecedor, é que eu, enfim, descobri o paraíso. No início desse bloco, respondendo uma indagação do Paulo Markun que lhe perguntou sobre os problemas do terceiro setor, o senhor elencou uma série de problemas criados por instituições externas, dentro do terceiro setor, nenhum dos problemas relacionados pelo senhor foi gerado pelo terceiro setor. Em seguida, numa questão do Gilberto Nascimento, o senhor se referiu à uma ação de uma empresa médica farmacêutica americana que usava sua atividade social como uma folha de figo, remete à figura de Adão e Eva, é impossível de ser evitada. O terceiro setor é o paraíso? Não há pecado nele? [riso]

Lester Salamon: Não, é muito difícil pecar por si só. Há cumplicidade nessas relações. Com certeza o terceiro setor tem fraquezas. Eu usei uma metáfora em uma discussão anterior, no Brasil, falando do vento. O terceiro setor no Brasil me lembra muito o vento. O vento é potencialmente uma força muito destrutiva. Sopra de um lado a outro sem muita direção. Também é uma força potencialmente construtiva. A questão é a forma como é captado, canalizado. E, na minha perspectiva, o terceiro setor no Brasil não está canalizando totalmente a energia que ele representa, em propósitos totalmente construtivos. Há grandes tensões no setor, há grandes rivalidades no setor, há uma certa duplicação, há uma certa intolerância que não considero produtiva e é prejudicial. Há um sentimento de antagonismo entre esse setor e os outros setores. Todos os problemas surgem da história deste setor e precisam ser resolvidos, se o setor quiser trabalhar da forma que espero.

Francisco Ornellas: Pecado não há?

Lester Salamon: Não sei bem. Não sei exatamente o que quer dizer com pecado. Certamente há um desempenho fraco, há uma preocupação com as próprias atividades e, sim, provavelmente, há corrupção no setor da mesma forma que em outros.

Ricardo Voltolini: Professor, nós falamos, aqui, muito sobre financiamento de empresas privadas, mas a sua pesquisa, a pesquisa painel comparativo com 22 países, mostra que o financiamento de empresas não é o principal financiamento das atividades do terceiro setor. Ao contrário do que muita gente imagina, a sua pesquisa mostra um dado interessante: nos países em que o terceiro setor é mais forte há mais financiamento dos governos nessa atividade. Nós estamos aí na iminência de uma mudança de governo, eu queria que o senhor dissesse como é que idealmente o governo tem que se relacionar com a organização de terceiro setor? Gostaria de saber sua opinião, se o senhor é ou não favorável a incentivos fiscais, que é uma decisão que, evidentemente, tem que mudar a lei para isso, e precisa de governo, para investimento feito por empresas privadas e por indivíduos em atividade privada.

Lester Salamon: Há várias coisas que eu diria, se falasse com o presidente. Em primeiro lugar, eu mudaria as leis para melhorar os benefícios fiscais para contribuições a essas organizações. Também acho legítimo que o governo exija resultado dessas organizações e transparência para ter certeza de que os recursos sejam usados de forma eficaz. Mas, além disso, pediria ao novo presidente que adotasse uma visão diferente do Estado. Não apenas do terceiro setor, mas do Estado. Qual é a natureza do Estado? No contexto brasileiro o Estado ainda é imaginado como se estivéssemos no antigo modelo industrial. Ele é estruturado verticalmente para produzir todos os bens públicos que quer apoiar. Isso torna a burocracia estatal muito grande. O que acontece no resto do mundo é uma mudança no modelo. Estamos usando o modelo das empresas de telecomunicações modernas ou das corporações de produção modernas. Elas não são mais integradas verticalmente. Elas terceirizam funções, constroem redes, vão a outros continentes para executar diferentes funções. Esse exemplo de como operar uma organização moderna ainda não chegou ao Estado, no Brasil. Isso precisa mudar. E, quando mudar, o governo começará a ver o terceiro setor como um parceiro em potencial, mas uma entidade na qual poderá confiar para executar essas outras funções. Começará a usar contratos em vez de apenas burocratas do governo, trabalhará com concessões, com garantias de empréstimos, terá programas autorizados. Em outras palavras, alcançará a sociedade em geral e fortalecerá, e fará essas outras instituições utilizarem suas capacidades, sempre com boas formas de controle, para assegurar que os propósitos públicos sejam alcançados. Mas acho que é preciso haver uma reforma fundamental de todo o caráter do Estado como um primeiro passo para se chegar a ter o terceiro setor como parceiro.

Paulo Markun: Professor Lester, nosso tempo terminou, mas eu queria fazer uma última pergunta bastante sintética. O terceiro setor é, cada dia mais, uma coisa importante, complexa, inserida nos mais diversos segmentos e, a cada dia mais sofisticada. A impressão que tenho é que o trabalho voluntário, aquele que a pessoa fazia, pura e simplesmente nas suas horas de folga, e que de alguma forma achava que estava contribuindo com a sociedade, não é mais o caminho para o desenvolvimento dessas atividades do terceiro setor. Mas a pergunta que eu queria fazer é: o senhor faz algum tipo de trabalho voluntário?

Lester Salamon: Com certeza. Participo de vários conselhos, trabalho para uma organização em minha própria comunidade que tenta criar um conjunto de recursos para lidar com problemas econômicos e sociais, para melhorar a educação... Claro que é difícil encontrar tempo para esse trabalho, mas acho que é importante. Se eu puder acrescentar mais uma coisa, não acho que haja um conflito entre o crescimento e a sofisticação desse setor e o uso de voluntários. Ao contrário. Todos os dados que temos indicam que os voluntários são realmente úteis nessas organizações, é preciso haver uma estrutura. Eles precisam ser recrutados, precisam ter trabalhos que tenham significado, e isso exige uma certa capacidade organizacional. Assim o crescimento do setor e o crescimento dos voluntários seguem lado a lado

Paulo Markun: Professor Lester, muito obrigado pela sua entrevista. Muito obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Nós voltaremos na próxima segunda-feira com mais um Roda Viva, aliás, uma produção de uma TV que é, exatamente, do terceiro setor, já que a Fundação Padre Anchieta é uma fundação que tem todas as características desse tipo de setor, não é mercado, não é govern
o. Uma boa noite até segunda que vem.

 

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