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Memória Roda Viva

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José Padilha

8/10/2007

As repercussões do filme Tropa de elite entre os policiais militares e cidadãos comuns, as críticas diametralmente opostas surgidas na mídia, são temas discutidos por seu diretor, nesta entrevista

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Programa ao vivo

Paulo Markun: O Brasil acaba de registrar o primeiro caso de um filme nacional que é pirateado antes de entrar em cartaz. Não se sabe quantas cópias ilegais foram feitas – chegou a se falar em mais de um milhão – mas foram tantas e se espalharam de tal forma que o filme virou sucesso de mercado entre os camelôs a ponto de ter sua estréia antecipada para este final de semana. Que fenômeno de pirataria é esse, qual o impacto e significado do filme é o que vamos ver hoje no Roda Viva. E o nosso convidado, já foi dito aí pelo Raul no Jornal da Cultura, é o cineasta José Padilha, diretor de Tropa de elite, longa-metragem que trata a violência urbana a partir da ótica do policial. O filme já custou críticas e acusações a José Padilha e realimentou a polêmica sobre as formas de combate à violência e à criminalidade.

[intervalo]

Paulo Markun: Nosso convidado de hoje no Roda Viva, José Padilha, o cineasta, diz que o objetivo do filme Tropa de elite foi gerar debate. Bom, se foi, o filme já se pagou. O debate, a polêmica e as acusações não têm faltado ao longa‑metragem especialmente em relação à forma como ele mostra o combate à criminalidade.

[Comentarista]: Tropa de elite é ambientado no Rio de Janeiro em 1997, quando o Papa João Paulo II esteve na cidade. O Bope, Batalhão de Operações Policiais Especiais, grupo de elite da PM carioca, foi convocado para fazer uma operação no morro do Turano, na Zona Norte do rio e garantir a segurança do Papa, que dormiu uma noite na comunidade. O capitão Nascimento, vivido no filme pelo ator Wagner Moura, é contrário à operação, mas é obrigado a cumprir a ordem. Ele é um oficial estressado, vive a experiência de ser pai pela primeira vez, quer deixar o batalhão e, para isso, precisa achar um substituto. Violento e incorruptível, o capitão Nascimento leva a sua missão adiante em meio a uma sucessão de cenas de violência com tiroteios, mortes, torturas, corrupção policial, tudo isso misturado a interesses políticos. Ingredientes básicos da guerra diária entre policiais e criminosos. O filme é uma ficção, mas parece real. Tropa de elite é baseado no livro Elite da tropa, de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel, que escreveram sobre o cotidiano violento dos policiais militares do Rio de Janeiro. O confronto entre polícia e bandido em Tropa de elite criou reações diversas. Policiais do Bope que se dizem retratados de forma equivocada pediram na Justiça a proibição do filme. O pedido foi negado. Críticos que também não gostaram acusaram Tropa de elite de tratar do tema de forma hollywoodiana e de ser fascista. Mas o filme também recebeu elogios de pessoas que apóiam a violência do capitão Nascimento, que enxergam nele uma espécie de herói e de pessoas que também responsabilizam usuários de droga pela criminalidade, uma vez que são eles que financiam o tráfico. Tropa de elite é o segundo longa‑metragem de José Padilha. Carioca, 40 anos de idade, formado em administração de empresas e que começou no cinema como produtor e documentarista. Sua primeira produção foi Os carvoeiros, documentário de 1999 sobre a vida dos trabalhadores de carvão vegetal. Em 2002 ganhou projeção com o seu primeiro longa, Ônibus 174, sobre o seqüestro de um ônibus no Rio de Janeiro em 2000. Drama que foi acompanhado, ao vivo, pela TV por todo o país. José Padilha ressurge agora com um dos mais caros filmes já produzidos no Brasil e o maior fenômeno de pirataria do cinema nacional. Perdedor da indicação brasileira ao Oscar 2008, Tropa de elite ganhou o mercado informal depois que uma cópia vazou da empresa que estava legendando o filme em inglês. A publicidade que as cópias ilegais renderam até custou a acusação de que a pirataria foi jogada de marketing. A proliferação dos DVDs piratas levou a produção a antecipar a estréia do filme para cinco de outubro, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi a melhor abertura de filme nacional em 2007 na média de espectadores por sala. No total, 180 mil pessoas assistiram ao filme no seu primeiro fim de semana.

Paulo Markun: Para entrevistar o cineasta José Padilha, nós convidamos: Gabriel Priolli, coordenador do grupo de eventos e publicações da TV Cultura; Luiz Zanin Oricchio, crítico de cinema do jornal O Estado de S. Paulo; Ancelmo Góis, colunista do jornal O Globo e da TVE do Rio de Janeiro; o tenente coronel Antônio Carlos Carballo Blanco, assessor do comandante da Polícia Militar no Rio de Janeiro; Leon Cakoff, crítico de cinema e diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; Luiz Eduardo Soares, professor de antropologia e ciências políticas da Escola Superior de Propaganda e Marketing e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ex‑secretário nacional de Segurança Pública e atualmente secretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. Boa noite.

José Padilha: Boa noite, é um prazer estar aqui.

Paulo Markun: Eu queria... Confesso que fiquei... É difícil a questão de fazer a primeira pergunta deste programa em razão do impacto do filme que eu assisti agora à tarde. E depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que talvez tenha ali aquele paradoxo que foi usado numa propaganda de biscoito que dizia que “vende mais porque é mais fresquinho ou é mais fresquinho porque vende mais”. Eu digo esse paradoxo em relação ao personagem do filme, que é incorruptível porque é violento ou é violento porque é incorruptível. Eu não sei se esse paradoxo se resolve no filme.

José Padilha: Olha, vou tentar ver se eu te dou a minha perspectiva do que você está falando. As pessoas, numa sociedade, não fazem escolhas no vazio. Elas escolhem dentro das regras que lhes estão dadas, não é? Os dois filmes que eu fiz sobre violência urbana são sobre isso, a gente pode conversar depois por quê. Então, vou dar um exemplo. Se você é um policial no Rio de Janeiro hoje, você é mal remunerado, você vai ganhar, não sei, mil reais por mês. Você é mal treinado. Você não tem equipamento adequado. Já tinha mostrado isso no Ônibus 174. Isso é o que a sociedade dá para você. O que a sociedade pede para você é que você enfrente marginais armados que não têm nenhum respeito à sua vida. Você vai correr risco na sua folga, muitos policiais são mortos na folga, quando eles são capturados por bandidos. Ou seja, o que a gente dá para a polícia é incompatível com o que a gente pede da polícia. Tem uma assimetria entre o que a sociedade dá e o que a sociedade pede para o policial. O policial faz as suas escolhas, no seu dia‑a‑dia, partindo dessa premissa. É assim que ele vive. Nós temos 38 mil policiais no Rio de Janeiro fazendo escolhas dentro desse contexto. Eu acho que esse contexto coloca o policial - eu descobri isso numa pesquisa que eu fiz com vários policiais - dá ao policial três escolhas. Está dito isso ou enunciado no filme. Ou ele se corrompe, porque ele vai calcular: “Olha, o meu risco é muito grande. O meu retorno é muito pequeno. É melhor eu entrar num acordo com as pessoas que estão aqui.” Ou ele se corrompe. Ou ele se omite. Não é? Porque se ele não se omitir, a terceira escolha dele é ir para a guerra. Que guerra é essa? São duas guerras possíveis. Uma é a guerra intracorpos, é uma guerra interna ao batalhão, a gente mostra no filme, no qual o policial honesto, muitas vezes, está num batalhão corrompido. Você imagina um policial honesto naquele batalhão no Rio de Janeiro agora onde foram presos 47 policiais em envolvimento com o tráfico. Como é que o cara faz? Ele vai lutar contra 47 policiais? Ele tem uma guerra interna no batalhão. Ou então ele entra numa guerra contra o tráfico e aí é uma guerra mesmo. Ele é um policial honesto, ele está fazendo uma operação numa favela, com traficantes armados, o traficante sabe que não vai ter acordo com ele e vai atirar nele. Então, a gente chegou numa posição em que as escolhas dos policiais, infelizmente, são essas. No filme essas escolhas não se resolvem, porque elas não se resolvem na realidade. Elas só se resolvem se a gente mudar as regras do jogo.

Paulo Markun: Mas o filme também não exibe os conflitos que essas escolhas apresentam. Quer dizer, o drama interno dos personagens - aí eu vou entrar num campo que não é a minha praia, que é crítica de cinema, não tenho nenhuma ambição nessa área, nem competência. Não há um drama. Quer dizer, apresenta‑se a versão do personagem a partir da primeira pessoa tal como se fosse o seguinte: Ok. O caminho é ser incorruptível e violento. Não importa se a gente é violento desde que seja incorruptível. É nesse sentido que eu considero que o filme coloca uma questão complexa e, ao mesmo tempo, na minha visão, talvez isso é que explique tanto sucesso.

José Padilha: Qual é a premissa dramática do filme? Ela é enunciada com muita clareza no filme em palavras e em imagens. Nós temos um personagem, vou falar de um dos personagens do filme, o capitão Nascimento, que é um policial que investiu dez anos da sua vida na ideologia de que você controla a violência pela violência. Ele é um policial da tropa de elite. Como a gente apresenta esse policial? Ele está com síndrome de pânico, ele está descobrindo que o investimento dele não se sustenta numa sociedade minimamente civilizada. Ele não consegue nem mesmo ter uma família. Essa é a premissa dramática desse policial. Tudo no qual ele apostou cai por terra quando nasce o filho dele. Ele constata o seguinte: “Olha, eu apostei que a violência resolve o problema da violência, mas essa aposta é uma aposta furada porque eu não consigo nem ter a minha mulher e o meu filho”. Então, a premissa dramática do filme é exatamente o contrário dessa visão que você teve. A idéia é: não é sustentável na sociedade civilizada a idéia de que você resolve a violência pela violência. Ele passa o filme inteiro com síndrome de pânico, indo ao psiquiatra, tentando sair do Bope. Existe um outro personagem que complementa o personagem do Nascimento que é o personagem do André Matias interpretado pelo Ramiro, o Nascimento é interpretado pelo Wagner Moura. O que é o personagem do André Ramiro? O personagem do André Ramiro é um policial que tenta conciliar grupos sociais que são incompatíveis. Então,  enquanto ele é policial convencional, ele tenta estudar na faculdade. Ele bate de frente com o problema. A visão que os universitários, em geral, têm da polícia é extremamente negativa. E a visão que os policiais têm dos universitários também é negativa. Ele tenta ficar nesse meio e ele não consegue. Depois, ele vai para o Bope, batalhão de operações especiais e aí, a incompatibilidade entre o Bope e os universitários é maior ainda. Porque o Bope abomina, por motivos seus, os usuários de drogas. Dá para entender por quê. O policial sobe a favela, toma tiro, ele imagina: “Pô, aquele cara que teve tudo na vida, tudo o mais está consumindo droga recreativa e eu estou tomando tiro aqui.” O drama desse personagem, André Mathias, constitui uma metáfora do que a gente tenta fazer na nossa sociedade. A gente tenta, com as regras do jogo que eu conversei no começo, compatibilizar no mesmo universo grupos sociais incompatíveis. E a gente sabe qual é o resultado disso. A gente está vendo esse resultado há dez anos. Morrem mil, mil e duzentas pessoas por ano, por exemplo, são mortas por policiais, algumas com claros sinais de execução. Tem entre onze e vinte, dependendo, assassinatos no Rio de Janeiro por ano. A gente sabe que o resultado desse processo é ruim. O personagem do André Mathias afirma esse fato de uma maneira dramática. O Nascimento quer sair dessa realidade e ele precisa fazer o seu substituto. E o substituto dele vira o André Matias. Estou contando o filme aqui, mas muita gente já viu.

Gabriel Priolli: Deixa eu te perguntar o seguinte. Eu sinto que o problema, o centro da polêmica em torno do filme está na figura do capitão Nascimento mais do que qualquer outra coisa. Eu tenho a impressão de que o filme aborda todas as contradições que estão envolvidas na questão da violência no Rio. É indiscutível que você levanta vários aspectos, quer dizer, o pano de fundo, tudo o que envolve o problema está lá colocado. No entanto, tem a figura central, magnética do capitão Nascimento numa magnífica interpretação do Wagner Moura, conduzindo a narrativa e conduzindo o olhar do espectador o tempo inteiro. Eu não sei se, como você diz, fica tão claro assim de que as contradições, os conflitos do capitão Nascimento derivam de uma rejeição dele àquela ideologia que ele abraçou por dez anos. Me parece que ele é uma pessoa conflituada por conta da sua situação pessoal, porque vai ter um filho, porque está cansado daquilo. Mas não parece claro no filme que ele rejeita aquela ideologia.

José Padilha: Tem razão.

Gabriel Priolli: E como não fica isso claro, e é um filme de ação, é um filme que, pela própria estrutura dramática conduz o espectador com ele, leva muita gente a identificar‑se com o capitão. O meu temor está colocado exatamente nisso – tem até um comentário depois, um texto que o Luiz Eduardo escreveu, na verdade enfatizando a idéia de que quem estaria sendo envolvido pelo filme seria aquele 1/3 da população brasileira que defende soluções de violência para o problema da criminalidade. Eu lhe pergunto: seria só esse terço ou se o contágio não seria maior? E se você concorda com essa idéia de que o problema está no capitão Nascimento e na forma como você tratou o capitão Nascimento?

José Padilha: São diferentes questões aí, todas elas interessantes e complexas. Primeiro lugar, o capitão Nascimento, você tem razão, o conflito dele é psicológico, ele não consegue falar sobre o seu conflito. Ele não consegue ver o conflito dele.

Gabriel Priolli: Exatamente.

José Padilha: O que não quer dizer que o espectador não consiga ver. O personagem não consegue ver. Ele é um personagem que está circunscrito à realidade do jogo que ele joga e não consegue avaliar as regras do jogo por si só. Esse é o drama, e é por isso que a gente optou, porque foi isso que eu vi nos policiais com quem eu conversei. Por isso que a gente optou, por exemplo, o Nascimento não sentar em frente à psicanalista e dizer explicitamente: “Olha, eu tô com um problema. Eu investi nisso.” A gente não tornou isso implícito. O filme tem um grande roteirista que trabalhou com a gente, o Bráulio Mantovani, tem uma estrutura dramática que não é simples, é complexa, tem uma série de metáforas e assuntos que a gente aborda nessa estrutura, porém ele tem uma coisa, e você falou, e é muito verdadeira; isso talvez seja o cerne desse debate. Normalmente, vou fazer uma digressão aqui. Era comum na filosofia, você imaginar a idéia de que a emoção e a razão são opostas. Então, por exemplo, o Kant pensava a razão como uma faculdade. Para você pensar bem, você não pode se emocionar. Se você se emocionar a sua emoção contamina o seu pensamento. Tem que existir um espaço vazio para a razão atuar. Isso existe no cinema. A idéia é comum e as pessoas identificam os filmes feitos para pensar com filmes que têm ritmos lentos, que dão espaços para o espectador raciocinar. Essa idéia mudou em filosofia com - a gente pode falar – [Friedrich] Nietzsche, [Baruch] Spinoza. E não só mudou em filosofia como mudou em neurologia. Hoje em dia se sabe, por exemplo, estudando cientistas que tiveram traumas nas regiões emotivas do cérebro, mas não afetaram as regiões racionais, esses cientistas não conseguem produzir trabalhos relevantes. Então a gente já sabe que a razão, a emoção tem um peso importante e ela não é inimiga da razão. No cinema diversos filmes - e esse não é o meu, no Ônibus 174 eu já fiz isso - têm feito estruturas dramáticas complexas para o espectador pensar e tem comprimido essas estruturas no tempo de montagem e tem deixado nessas estruturas elementos de som que levam o espectador a se emocionar com o filme e não deixam o espectador pensar durante o filme. O espectador tem aquela experiência e vai pensar depois. A gente pode questionar se essa maneira de fazer filmes funciona ou não. Mas eu te digo uma coisa: Cidade de Deus gerou um número enorme de teses universitárias e debates universitários e é um filme feito assim. Ônibus 174 também, eu sei. Tropa de elite, eu já recebi quatro ou cinco pedidos de tese antes do filme ser lançado. O cara tinha um DVD pirata e ligava para o escritório: “Posso fazer uma tese sobre o seu filme?” Então, eu acho que essa forma de apresentar o cinema, sem dar tempo para o espectador pensar, priorizando a experiência daquela estrutura dramática, esperando que o espectador pense depois não é comum no meu filme, não fui eu que inventei isso, mas está acontecendo e ela sim gera polêmica. Eu acho que o seu diagnóstico é correto, gerou no Cidade de Deus - eu estava conversando com o Bráulio - uma polêmica muito semelhante. Na época do Cidade de Deus, Bráulio me mostrou as matérias, era um filme de darwinismo social. O Zé Pequeno, que era o personagem principal do filme, embora não fosse o narrador, e o personagem principal do meu filme não é o capitão Nascimento, é o André Mathias. Embora não fosse o narrador, foi criticado por virar o modelo para as crianças. Todo mundo falava “Zé Pequeno”! “Meu nome agora é Dadinho”. “Meu nome agora é Zé Pequeno” - não vou falar o palavrão aqui. Foi uma crítica semelhante. Com o tempo, as pessoas param de reagir ao filme de uma maneira extremamente emotiva e dizendo: “Ah, esse filme é de direita, esse filme é de esquerda”. E começam a pensar e o debate acontece. Acho que vai acontecer o bom debate nesse filme também.

Ancelmo Góis: Mas, Padilha, você não tem nenhuma dúvida de que esse capitão Nascimento é "mau que nem pica‑pau", quer dizer, ele passe o filme inteiro...

José Padilha: Nenhuma dúvida.

Ancelmo Góis: ...matando e torturando as pessoas e a reação, pelo menos a reação que se vê por aí é uma reação de júbilo. Uma maneira de você tentar... Boa parte das pessoas adoram ver o capitão Nascimento torturando pessoas. Mas aí você também tem colocado umas questões que eu acho muito interessantes, que é o seguinte. Você acha um erro primário confundir as suas idéias, as idéias do Padilha com as idéias do capitão Nascimento. Tudo bem. Mas aí eu queria, ainda puxando por esse lado, porque me pareceu aí que você, de alguma maneira, não é que absolveu, é que "passou um pouquinho a mão" no Nascimento para o meu gosto. Eu queria lhe fazer uma pergunta concreta.  Se você for convocado para um júri popular e aparecer na sua frente o capitão Nascimento e contar aquilo que ele contou no filme, você daria a pena máxima para ele? Uns trinta anos de cana?

José Padilha: Com certeza. Não tem a menor... eu não titubearia nisso. O capitão Nascimento não tortura em segundo plano, no cantinho da tela, ele tortura em close, na frente da tela. Ele executa uma pessoa, bota na conta do Papa e manda executar. O capitão Nascimento pega um cabo de vassoura e ameaça empalar um jovem. O capitão Nascimento é explicitamente mau. Mas vamos voltar à sua fala. Eu fui ao cinema ver o filme e não vi isso, não vi isso na platéia de cinema. O que aconteceu? Atirou‑se muito rapidamente na platéia. Houve uma exibição, uma exibição de pré‑estréia no Odeon. Foi a única exibição de cinema que aconteceu. Tinham várias pessoas da equipe do filme que interpretaram policiais do Bope e essas pessoas tinham um código durante as filmagens que gritavam “caveira” [alusão ao símbolo do Bope] quando a cena era boa. Essas pessoas se manifestaram gritando “caveira, caveira”, aplaudindo as suas interpretações. Isso foi rapidamente interpretado, primeiro como uma reação da platéia como um todo. Platéia não é igual, não é uma massa homogênea que age sempre da mesma forma. Segundo, foi dito: “Ah, era uma reação de júbilo com a tortura!” Eu não vi isso no cinema. E vários atores e pessoas que foram ao filme me ligaram e falaram: “Não está acontecendo nada disso no cinema”.

Luiz Eduardo Soares: Padilha, me permita o seguinte, participar desse tribunal, esse tribunal popular [risos]. Eu, se fosse convocado, Anselmo, e falo como autor do livro que dialogou com o filme, eu diria o seguinte. Antes de dar os 30 anos - porque claro, eu dou os 30 anos - eu quero julgar a instituição e quero julgar a política pública que enseja essa possibilidade e gostaria de julgar com a população o padrão institucional que socializa essas pessoas que têm origem pobre, que chegam muito jovens e que dão o melhor de si achando que se convertem em heróis, porque aprendem isso naquele processo. Porque aquele processo de formação que nós vimos no filme, que nós escrevemos no livro é real. É um ritual de passagem no qual há carificações, violências muito profundas a tal ponto que a pessoa de fato se converte nessa seita. Há um processo de conversão da identidade. E ele aprende, cantando aquelas músicas e usando a violência, a serem - como eles próprios dizem, nós não estamos exagerando - a serem cães de guerra, máquinas de matar.

José Padilha: Eles cantam isso. Cantam para quem quiser ouvir: "Homem de preto qual é a sua missão..."

Luiz Eduardo Soares: Uma longa pena a um capitão, que expressa esse tipo de política, sofrendo, se triturando, se angustiando, se arrebentando, como eu acho que o filme mostra extraordinariamente bem. Mas eu acho que o que está em tela de juízo, sobretudo, é a possibilidade que o capitão Nascimento exista e se reproduza porque essa é uma realidade permanente.

José Padilha: Então, mas o filme mostra isso com a reprodução do capitão Nascimento na última cena do filme. Você pode olhar para o filme, desculpa, você pode olhar para o filme e focar só sobre o capitão Nascimento, você pode fazer isso. E você pode se perguntar se alguém deve condenar ou não condenar o capitão Nascimento como os americanos se perguntam se deve se condenar ou não o Jack Bauer [personagem principal da série norte-americana de televisão chamada 24 Horas, que enfrenta as ameaças aos Estados Unidos e defende seu governo. O personagem é foco de polêmica porque recorre à tortura para obter informações dos antagonistas em alguns episódios].

Ancelmo Góis: É verdade.

José Padilha: Você pode olhar para o filme de uma outra maneira. Você pode se perguntar assim: que estrutura é essa? Que processo é esse que produz, não só produz o capitão Nascimento, como faz que uma cidade como o Rio de Janeiro precise de um batalhão como o Bope. O Bope foi concebido para ser um batalhão - eu conversei com a pessoa que fez o Bope, o coronel Amêndola, na época era o Nucoi [Núcleo de Controle de Infrações] - um batalhão para resgatar pessoas seqüestradas, resolver um problema numa cadeia e tudo o mais. Mas o Bope é um batalhão que treina guerrilha urbana. O treinamento essencial do Bope é de guerrilha urbana. O Bope é um batalhão que invade favelas, mata os traficantes que lá estão armados, faz práticas - eu tenho relatos de pessoas - de tortura, executa etc.e tal. Se existe o Bope, a gente já tem um problema. Não é só o Nascimento não.

Paulo Markun: Vamos fazer um rápido intervalo, José Padilha, e nós voltamos num instante com o Roda Viva que hoje tem na platéia Júlio Wainer, conselheiro da Academia Internacional de Cinema, Ruy Prado de Mendonça Filho, estudante, e Beto Sporchens, cineasta.

[intervalo]

[VT de um trecho do filme Tropa de elite]: Narração do personagem capitão Nascimento: “A minha cidade tem mais de 700 favelas, quase todas dominadas por traficantes armados até os dentes. É só nego de AR-15, Uzi, H&K e por aí vai. No resto do mundo esse tipo de armamento é usado na guerra, aqui são as armas do crime. Um tiro de 762 atravessa um carro como se fosse papel. E é burrice pensar que numa cidade assim os policiais vão subir favela só pra fazer valer a lei. Policial tem família, amigo. Policial também tem medo de morrer”.

Paulo Markun: Bem. Padilha, nós temos aqui algumas perguntas de telespectadores que assistiram ao filme na sexta‑feira, 5 de outubro, aqui em São Paulo, e na saída foram ouvidos pela reportagem da Cultura, vamos ver.

[VT de Raoni Macedo Bories, estudante]: Eu gostaria de saber quanto à locação do filme se houve negociação da equipe com o tráfico? Como é que foi isso?

[no mesmo VT, pergunta de Cassia Aresta, artista plástica]: Como é que você filmou? Como é que o povo participou disso? O que é que o povo esperava quando participou do filme, passar como recado para a gente que não vive lá naquele pedaço?

[pergunta de Amon Guimarães Borges, estudante]: Em algum momento você sentiu pressionado pelos policiais que talvez não tenham gostado da maneira que você os representou no filme?

José Padilha: Vamos lá, são três perguntas diferentes. Eu vou falar primeiro da participação do povo nas filmagens. A gente filmou em locações que tinham traficantes, locações que tinham milícia, e a gente filmou no morro onde o Bope tem - o Tavares Bastos - o Bope tem... E nessas locações tem o batalhão, não tem tráfico. Nessas locações sempre ficavam em volta da equipe de filmagem as pessoas que lá estavam, os moradores da favela e tudo o mais. A participação foi muito parecida porque quando eu estava em morro que tinha traficante, os traficantes vinham me dizer: “Olha, quando bota o cara no microondas para queimar não é bem assim. Eu já fiz isso antes e tudo mais e tal.” Quando eu filmei no morro do Bope foi muito interessante a participação também, porque eu imaginei assim. Eu ia filmar uma cena de tortura, uma moça sendo torturada no saco. Eu falei: “Bom, os policiais do Bope vão descer para ver a filmagem e vão parar a filmagem, não vou conseguir completar a filmagem, né?” E dito e feito. Eu estou lá filmando, veio o primeiro assistente de direção, o Rafa Salgado, para dizer: “Oh, tem dois policiais do Bope que querem falar com você, e você tem que falar com eles.” Aí eu saí do set de filmagem, falei: “Pois não.” Aí o primeiro policial falou: “Oh, seu Padilha, o senhor me desculpe, mas está errado. Tem que botar um saquinho embaixo de cada joelho para não deixar a marca e a mão...” O cara me ensinava, os dois policiais do Bope que foram ver a filmagem me ensinaram como filmar a tortura. Isso foi muito impressionante para mim. Isso me deu uma convicção de que o que eu estava mostrando acontece na vida real. Eu acho que as pessoas que acompanharam as filmagens na locação ajudaram a gente nesse sentido. Sempre alguém dizia: “Olha, não é assim, é assado”. E como a gente estava filmando muito improvisado, os atores não tinham texto, a gente podia mudar e adaptar as coisas na hora. Com relação à negociação para filmar em favela no Rio de Janeiro, a gente procurou filmar em favelas que já tinham filmado antes. A gente filmou quase que a maior parte das cenas de favela no Morro do Chapéu Mangueira, que é o morro onde foi filmado Cidade de Deus e Cidade dos homens. São filmagens que envolveram muitas armas, a gente imaginou que assim era mais seguro. A gente foi e falou com a associação de moradores, não fez negócio com traficante. E deu errado. Uma equipe de filmagem foi seqüestrada por traficantes armados. Quatro pessoas dentro de uma van roubaram as armas cenográficas e aquela locação caiu. Mas a gente sabe, eu tenho certeza que todo o dinheiro que a gente dá para a associação de moradores, tenho certeza que uma parcela o traficante vai lá e cobra, porque o traficante no morro é dono do morro. O cara é dono da NET, o cara manda no morro; o cara é uma força armada que controla aquilo, né? Mesma coisa em morro de milícia. Um filme em morro de milícia sem fazer um acordo com a associação de moradores, a milícia, eu tenho certeza, vai lá e cobra o seu pedágio. Quer dizer, as favelas no Rio de Janeiro estão tomadas por organizações não governamentais que as controlam. Se você vai usar elas como locação, de um jeito ou de outro, os caras vão ter que deixar você filmar.

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: Queria aproveitar e fazer uma abordagem aqui a respeito do filme.  Eu, sem dúvida, acredito que o grande dilema hoje é a sociedade brasileira decidir entre o projeto de civilização ou continuar nessa barbárie, concordo plenamente em relação a isso. E eu acredito também que o drama do capitão Nascimento retratado no filme é o mesmo drama da sociedade, a mesma sociedade que aplaude o capitão Nascimento. E eu digo isso porque percebo um clima generalizado de insegurança institucional na sociedade. Esse é o processo que vem de longa data. Nós sabemos, infelizmente, que diversas estruturas do poder público estão corrompidas ou praticam a lógica da corrupção. Nós sabemos que existem institutos jurídicos que aprofundam a desigualdade social do país, como a prisão especial, o foro privilegiado, o inquérito policial. Nós sabemos que a polícia não recebe os investimentos porque não é tratada como uma política de Estado, né? Esse sentimento de medo, de desconfiança, de descrença nas instituições, eu acho que é algo que tem muito a ver com esse dilema do capitão Nascimento e também tem a ver com a reação do público em relação ao próprio filme. De uma parte, nós temos parcela significativa da nossa elite, que vê o policial como sendo um indivíduo que tem o ethos ocupacional de limpar a escória humana da sociedade, é um verdadeiro gari social. Do outro lado você tem a população menos abastada, que é como se fosse uma reedição do mito sebastianista que aguarda o salvador para, justamente, ocupar esse espaço que não é devidamente ocupado pelas instituições públicas. Na sua avaliação, essa reação do público na verdade revela que o medo venceu a esperança?

José Padilha: Olha só. Quando eu fiz um filme, meu primeiro filme sobre violência urbana, Ônibus 174, eu estava olhando o material de arquivo lá no Cedoc [Centro de Documentação]...

Paulo Markun: Da TV Globo, né?

José Padilha: É. Tinha uma imagem aérea, uma câmera de helicóptero, era uma câmera da TV Globo. O ônibus estava parado, tinha uma multidão em volta do ônibus, o Sandro desceu do ônibus, Sandro Nascimento - não é à toa que eu dei o mesmo nome para os dois personagens. O Sandro desceu do ônibus e houve um tiroteio. Na minha cabeça multidões correm para longe de tiroteios. Não é o que se verificou. A multidão correu para cima do ônibus para linchar o Sandro. Depois, pressionados - eu imagino - por aquela vontade do povo de linchar o Sandro, os policiais o asfixiaram dentro do camburão, foram absolvidos porque também é índice, por júri popular, que também é índice desse sentimento. Agora, me espanta muito a gente ficar surpreso com esse sentimento. Olha, no Brasil existem pessoas que acreditam que a violência se resolve pela violência ou no Rio de Janeiro. Mas é natural que aconteça isso, porque o Rio de Janeiro é uma cidade em que as pessoas estão sitiadas, é um tiroteio atrás do outro. As pessoas são dominadas por grupos armados. Tem casos tipo Candelária [referência à chacina que ocorreu no dia 23 de julho de 1993, em que oito adolescentes, moradores de rua, foram assassinados por policiais militares, enquanto dormiam sob uma marquise em frente à igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro], ou João Hélio [referência ao crime bárbaro ocorrido em fevereiro de 2007, na periferia do Rio de Janeiro, em que o garoto de apenas seis anos de idade, preso ao cinto de segurança, foi arrastado até a morte por bandidos que roubaram o carro onde ele estava com sua família], que são de extrema barbárie cometida por criminosos. Então, existe esse sentimento na população. Isso foi medido com o Ônibus 174, e existe uma parcela da população, não é toda, que reage à idéia de que a violência se resolve pela violência, com boa vontade. É a parcela que elege o Sivuca [referência ao deputado José Guilherme Godinho, o Sivuca, um dos maiores colecionadores de argumentos pró pena de morte no país]. Eu acho que existe, por uma certa parte da inteligência, um horror a constatar esse fato. É mais fácil atribuir esse fato ao capitão Nascimento do que atribuir esse fato à sociedade brasileira. Mas ele é um fato da sociedade brasileira. É que nem se você colocasse um termômetro, o termômetro marcasse 40 graus e você quebrasse o termômetro. Não é a culpa do termômetro que você está com 40 graus. E eu acho que isso é um fato, é um fato horrível. Se por alguma razão especial do capitão Nascimento, o capitão Nascimento serviu para revelar para a gente esse estado de coisas, então ele está fazendo um bem para a gente, porque a gente está podendo olhar para isso.

Luiz Zanin Oricchio: Esse eu acho que é um ponto interessante para discutir, né? Porque justamente é claro que toda a obra acaba saindo um pouco fora do controle, saindo um pouco fora da prancheta em que você havia pensado. Mas é lógico que todo criador também tem alguns efeitos que ele deseja produzir quando faz um filme, escreve um livro, pinta um quadro, uma coisa qualquer, né?

José Padilha: É isso aí.

Luiz Zanin Oricchio: Eu queria te perguntar se esse efeito, pelo menos uma parcela do público, o efeito catártico, reivindicação de vingança e tudo o mais, era um dos efeitos que você tinha em mente ou se isso foi uma surpresa para você também? E nesse ponto eu me permito colocar uma pequena discordância dessa tese sua dos filmes que não dão espaço para pensar. Porque eu acho que justamente seria um efeito interessante de uma obra de arte, um filme qualquer, exatamente, colocar uma dúvida nas pessoas que já têm esse sentimento preparado. Quer dizer, causar um tipo assim de desequilíbrio desse tipo de certeza, propiciar um tipo de reflexão. Gostaria que você comentasse.

José Padilha: Então, na verdade, o filme dá um espaço para a pessoa pensar depois que o filme está projetado. O sujeito que sai do cinema não está impedido de pensar, por mim ou por ninguém.

Luiz Zanin Oricchio: Claro. Mas durante o filme é uma montanha‑russa.

José Padilha: Exatamente. O cara viu aquelas imagens e vai digerir aquilo em casa. O Ônibus 174 já foi assim e foi, algumas vezes, criticado por ter sido feito assim. Aconteceu, não é a primeira vez na história do cinema, que acontecem reações a um filme que não são boas, que medem na população uma reação que a gente não gosta. Um exemplo clássico disso é o Taxi driver [filme de 1976, dirigido por Scorsese], tem a famosa história do [Martin] Scorsese [(1942-), cineasta norte-americano] indo no cinema botando a mão na cabeça. As pessoas gostaram daquela limpeza que o Robert De Niro [ator norte-americano] fez no final do Taxi driver. Evidentemente, o Scorsese não estava querendo defender aquela limpeza nem o [Francis Ford] Coppola [cineasta norte-americano] estava querendo defender o napalm [líquido altamente inflamável utilizado como armamento militar pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã, que quando misturado à gasolina se transforma num gel pegajoso e incendiário] como foi escrito no jornal outro dia aí. E, evidentemente, eu não acho -  basta olhar as minhas outras obras - que a violência seja a solução da violência. Fiz um filme que critica violentamente a instituição policial e resolvi contar a história pela ótica do policial. Na minha cabeça, a tortura é uma barbárie. Ela prescinde de crítica. Eu mostro a tortura em primeiro plano, eu não preciso dizer que isso é ruim. A tortura é naturalmente ruim. Não é? Se uma parcela, eu repito que eu acho que a gente está atirando muito rápido na platéia. Eu olhei, eu fui ver o filme, muitas pessoas viram o filme e eu não vi essa reação homogênea em toda a platéia. Então...

Luiz Zanin Oricchio: Numa parcela.

José Padilha: Numa parcela da platéia. Essa parcela existe. Se não existisse no Brasil, seria extraordinário. Seria de espantar se não existisse. Mas o meu objetivo, com o filme, era gerar um debate acerca da organização policial. Por que esse debate? Existe uma tese de que a violência urbana decorre diretamente da miséria. A miséria explica a violência urbana num país que tem desigualdade social como o Brasil, só poderia existir violência urbana. Essa tese é reconhecidamente falsa. A gente sabe que existem países com índice de miséria maior do que o índice de miséria encontrado no Brasil e, no entanto, não tem tanta violência. Então existe algum processo na sociedade brasileira que converte miséria em violência. Na verdade, eu suspeito que existam mais de um processo. Um desses processos eu falei sobre ele no Ônibus 174. A forma pela qual a gente tratou aquele menino de rua, ex-menino de rua, o Sandro, jogando ele em pocilgas como o Padre Severino [Instituto Padre Severino, instituição pública de reclusão para menores infratores, localizado na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro] onde ele apanha, convivendo com policiais que mataram seus amigos na Candelária, altamente violentos, colocando ele em prisões superlotadas, que nada mais é do que a tortura perpetrada pelo Estado. O Estado brasileiro é um Estado que tortura. Nós sabemos, há muitos e muitos anos, mais de dez anos, que as cadeias estão superlotadas, que tem 40 pessoas numa cadeia onde cabem cinco pessoas. E nós mantemos esse estado de coisas ad aeternum. Então, o Estado brasileiro tortura sim. Mostrei como se forma, e acho que esse processo, a maneira pela qual o Estado lida com o pequeno delinqüente cria pessoas violentas. Converte miséria em violência. Mas eu acho que isso não é tudo. Acho que existe uma outra grande máquina convertendo a miséria em violência e a meu ver essa máquina é a polícia. E eu fiz esse filme para discutir isso. Tentei fazer do ponto de vista do policial assim como fiz o Ônibus 174 do ponto de vista do Sandro, porque é o ponto de vista contra-intuitivo. É justamente o ponto de vista que incomoda o espectador. Incomoda alguém olhar um seqüestrador torturando as pessoas por horas e horas e cortar para o passado desse menino e você começar a ver de onde veio aquela violência. Quando eu lancei o Ônibus 174, eu fui acusado de radical de esquerda porque eu construí esse ponto de vista.

Leon Cakoff: Muito bem. Em torno de todo esse debate tem uma coisa muito positiva no filme que me incitou, me despertou uma coisa que está faltando discutir nesse país, que é a descriminalização da droga. Acho que essa é a mensagem mais positiva que o filme tem. Ao mesmo tempo que mostra toda a violência, tudo o que é obrigado a se fazer, que a sociedade é obrigada a fazer, a suportar, a tolerar, a estimular até, para combater o tráfico, e a disseminação da droga em todas as escalas da sociedade, o seu filme, indiretamente, é a favor da descriminalização da droga. É o que eu vejo. Eu acho que essa é a mensagem mais positiva que eu vejo no seu filme. Agora eu me pergunto, eu lhe pergunto também: por que é que o Quentin Tarantino [ator, diretor e roteirista norte-americano] pode se dar ao luxo de fazer um filme de ação, videogame, e é considerado um gênio e você é tachado de fascista por tentar fazer a mesma coisa? [risos]

José Padilha: Eu vou te contar duas histórias que ilustram esse caso. Eu não sei por que, eu tenho uma tese, mas eu vou lhe dizer. Eu estava na coletiva de imprensa e sentei numa mesa com cinco jornalistas, eles estavam... aí o primeiro jornalista me fez a pergunta padrão: “As pessoas se identificam com o capitão Nascimento. O capitão Nascimento é um cara que investe na violência para controlar a violência. Logo, o seu filme é um filme fascista, não é?” Aí eu disse para o primeiro jornalista: “Não, porque o capitão Nascimento é um cara que está em crise o tempo inteiro. Ele está constatando psicologicamente que essa é uma aposta errada, ele não consegue nem ter a sua família. Ele perde a sua família no final do filme, que era o que ele mais queria.” Aí o cara: “Não, mas você filmou com uma câmera muito rápida, e essa câmera muito rápida ela não deixa o espectador pensar, e isso é uma coisa fascista.” Eu falei: “Não, mas espera aí. O Traffic [filme de 2000, dirigido por Steven Soderbergh] também é filmado com uma câmera rápida e o Traffic não é fascista.” Aí o outro jornalista falou assim: “É, mas você colocou o rock and roll na subida do Bope, músicas que não deixam, o som é muito bom e isso é uma coisa fascista.” Eu falei: “Mas, cara, eu botei a música que os caras do Bope escutam quando eles sobem as operações porque faz parte daquela lavagem cerebral que o cara tem que ter para entrar naquilo.” Aí o outro: “Não, mas no seu plano final, aquele plano que você faz que é um close do cara atirando no Baiano, contra-luz, é um plano claramente fascista. Está atirando no público.” Eu falei: “Mas cara, é um plano para dizer para o público: olha, acorda! Isso vai se repetir.” “É, mas aquela música do Rappa [banda brasileira conhecida por suas letras de forte crítica social], no final, aquela música não deixa o espectador pensar quando acaba o filme. É uma música fascista.” Eu falei: “Não, mas o Rappa é lado A, lado B, uma música contra a violência policial.” “É, mas é rock and roll.” Quando o cara falou isso, eu concluí que eu estava liquidado.

Leon Cakoff: Eu tive um sonho com o seu filme, sabia?

José Padilha: Eu concluí que aquilo ali era uma patrulha ideológica. Depois o Cacá Diegues [cineasta brasileiro] conectou a gente, falou: “Não, Padilha, cuidado, não deixa isso. Responde à altura, porque isso é um absurdo.” Isso de fato é uma patrulha ideológica. Quando as pessoas colocam óculos vermelhos, elas vêem tudo vermelho. Se colocar óculos azul, vê tudo azul, e o que eu constatei ali foi isso. Subseqüentemente um jornalista português - foi muito interessante, foi o último jornalista a me entrevistar na coletiva – chegou para mim e falou: “Senhor Padilha, o senhor poderia me explicar uma coisa que eu não estou a entender. [Padilha imita o sotaque de um português] O senhor faz um filme que mostra a tortura policial, mostra a corrupção, mostra a violência, e os gajos estão a discutir se o filme é reacionário. Como é que o senhor pode me explicar?” Não sei explicar isso. Eu sei o seguinte: aconteceu a mesma coisa com Cidade de Deus, e acho que você pegou num ponto [olha para Cakoff]. E você também. [aponta para Priolli] Os dois filmes filmam... têm um ritmo rápido, têm um pace [passo, ritmo] rápido. São filmados de maneira que o espectador embarca na viagem e vai com o filme, e a crítica brasileira não está acostumada com isso. A verdade é essa. Quais são os filmes brasileiros que fazem isso? Você conta no dedo. Quando o filme cai aqui tem uma parcela da crítica que não consegue lidar com isso.

Luiz Zanin Oricchio: Mas você está falando de um jeito que parece que a condenação da crítica ao seu filme foi unânime e não é verdade. Não é verdade. Ao contrário, a cotação do filme é excelente. [vários falam ao mesmo tempo]

José Padilha: Eu não estou falando isso. É uma parcela da crítica...

Ancelmo Góis: Você está falando dos jornalistas, parece até que [...] o capitão Nascimento era um do cinco jornalistas, e não é verdade.

José Padilha: Eu estou contando o que aconteceu comigo.

Ancelmo Góis: Esse é um debate que a sociedade inteira está participando, e você tem sido chamado para isso e conversado sobre isso. E tem um espaço enorme para você dizer exatamente isso. “Olha, calma. Não quis dizer isso.”

José Padilha: Mas é muito louco, né? O cara concluiu no final do debate - não, ele ainda continuou: “rock n'roll é fascista”.  Eu falei: “rock n’roll não é fascista”. “Mas a frase no pôster...”

Ancelmo Góis: Mas maluco tem em todo o lugar.

José Padilha: Eu sei, mas eram cinco malucos juntos numa mesa só.

[?]: Padilha, deixa eu te perguntar um negócio...

Leon Cakoff: Desculpa. Com a popularização desses conceitos, dessas acusações de fascista, o sonho que eu tive, foi na verdade um pesadelo, era alguém me perguntando, um personagem do seu filme, do morro, me perguntando o que era fascismo.

José Padilha: O fascismo é um movimento partidário, não é isso? [risos].

Leon Cakoff: Não, não precisa me explicar.

José Padilha: Não, mas, acho que tem que dizer, né? Teve um texto no Estado [de S. Paulo] muito bom dizendo isso, definindo o que é fascismo.

Luiz Zanin Oricchio: Será que foi o meu? [risos]

José Padilha: O seu também. Foi um texto definindo fascismo e dizendo que fascismo não se aplica em nada a esse assunto.

Luiz Zanin Oricchio: Eu, por acaso, estava lendo um artigo do escritor italiano já morto, Leonardo [Sciascia (1921-1989)], e ele falava do fascismo com conhecimento de causa que os italianos têm da matéria.

José Padilha: É isso aí.

Luiz Zanin Oricchio: Ele dizia o seguinte: que uma das características do fascismo que ele temia muito, mesmo na Itália do pós‑guerra, pós-Mussolini [Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883-1945), ditador fascista, foi primeiro-ministro da Itália de 1922 a 1943], era um sentimento de mobilização permanente para a guerra. Você coloca essas alternativas aqui que tem o policial e ,uma delas: ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra.  É como se o filme assumisse esse ponto de vista de que o Rio de Janeiro é uma cidade em guerra e que o campo dessa batalha a ser travada é a favela. Isso não é uma assertiva, uma premissa perigosa? [vários falam ao mesmo tempo]

José Padilha: Isso não é do filme, é da realidade. O Rio de Janeiro é uma cidade em guerra.

Luiz Zanin Oricchio: Mas aí é que está o ponto. Se é uma cidade em guerra...

José Padilha: Isso é um fato.

Luiz Zanin Oricchio: ... justifica‑se, por exemplo, que se suspendam garantias constitucionais.

Ancelmo Góis: Calma! Calma! Calma!

Luiz Zanin Oricchio: Não, exatamente, eu estou levando essa premissa, essa premissa é um absurdo. É o perigo de você considerar que existe uma guerra. Nós usamos guerra metaforicamente, formalmente o Brasil não vive uma guerra civil. Você vive um problema sério de segurança pública, mas não uma guerra.

José Padilha: Luiz, por coincidência, eu estou fazendo um documentário, até mandei imagens para cá sobre a antropologia da guerra. Eu entrevistei nos últimos dois anos, nos Estados Unidos, os dez maiores antropólogos da guerra. A palavra guerra, em antropologia, não tem uma definição precisa. Você está assumindo aí, em relação à  palavra guerra, uma definição que é quando um Estado está contra outro. Os antropólogos não assumem isso. Fala‑se de guerra internas a tribos. Então, eu primeiro tenho um cuidado com relação à definição da palavra guerra. Mas se você quiser, a gente pode esquecer a palavra e dizer assim: no Rio de Janeiro, os números da violência urbana são compatíveis com números de guerra. Isso justifica tudo? Não. Não justifica nada. O filme jamais diz, a palavra justificativa não está no filme.

Paulo Markun: É que nem o exército, não justifica, mas explica.

José Padilha: É exatamente. Isso explica porque existem pessoas com o ponto de vista do capitão Nascimento que acham que estão corretas.

Gabriel Priolli: Mas ao narrar, desculpe, na perspectiva do capitão Nascimento, você acha que os elementos - eu disse antes - todos os elementos que envolvem o problema da violência, do tráfico, está tudo colocado lá, tudo. Agora, eles estão equilibrados? Por exemplo, uma coisa muito significativa é que você tem uma ONG trabalhando lá, você tem os universitários, o povo todo com a consciência social, fazendo manifestação e tudo o mais. No entanto, o único que percebe que a criança não enxerga e que precisa de um óculos é exatamente o policial do Bope. Quer dizer, um trabalho de uma ONG lá em meses não percebe isso. Aliás, muito simbólico o fato de ser exatamente os óculos, né? Alguém que precisava da visão.

José Padilha: Isso aconteceu de um policial de verdade, saiu de uma história com o policial que me contou.

Gabriel Priolli: É possível que sim. Agora, na forma como o filme é construído, os policiais do Bope se ressaltam no contexto. Eles se diferenciam dos traficantes, se diferenciam dos demais policiais apresentados como corruptos, né? 

Paulo Markun: E do povo em geral.

Gabriel Priolli: E do povo em geral. E assumem, de certa forma, dentro do seu discurso, que também passa a ser o discurso do filme, que é o discurso que nos é dado ver, uma aura de um certo heroísmo dentro da coisa toda, apesar da barbárie toda em que estão colocados.

José Padilha: Eu não concordo. Eu discordo radicalmente disso. Na minha concepção de herói isso não se aplica. Por exemplo, o Bráulio estava me falando isso hoje, a gente estava conversando sobre isso. Tem uma hora em que o Nascimento, no enterro, quando o Neto está sendo enterrado, ele fala assim: “Eu percebi,” - o Neto e o Mathias eram amigos de infância – “Eu percebi que eu podia usar isso.” O Nascimento é um manipulador.

Gabriel Priolli: Sem dúvida.

José Padilha: E não tem a menor dúvida disso, está no texto. Está dito. Eu tenho dificuldade em acompanhar essa interpretação.

Luiz Eduardo Soares: Padilha, eu faço uma leitura bem diferente, seria o seguinte. Esse é o discurso caveira, a ideologia caveira, é essa enunciada pelo personagem narrador, o capitão Nascimento. Que é fechadinho, um discurso fechado, redondo, auto‑suficiente, autoritário, que tudo explica porque parte justamente dessas regras do jogo das quais você falava. Ele supõe que não haja alternativas: ou guerra, ou corrupção ou omissão. Na verdade há mil alternativas, se ele tivesse perspectiva histórica um pouquinho mais distanciada e reflexiva. Ele entenderia que, por exemplo, isso só é possível porque existe a criminalização das drogas. Bastaria alterar essa regra do jogo que não faria mais sentido aquele tipo de confronto. Se a polícia fosse diferente, se a nossa sociedade... São tantos os elementos... mas enfim. Do ponto de vista dele, imerso nesse universo, só há essas três opções, e ele faz esse discurso fechado, autoritário. Por outro lado, você já trouxe isso, ele é vazado pela angústia mais dilacerante. Ele vive esse pânico permanente. Ele respira e aquela interpretação extraordinária do Wagner Moura enfatiza isso. Ele respira, ele palpita com essa hesitação permanente. A caveira dele não é aquela caveira hamletiana porque ele não verbaliza e reflete explicitamente...

José Padilha: Porque ele não vê isso.

Luiz Eduardo Soares: ... mas ele traz essa caveira re-simbolizada de outra maneira, porque ele é a hesitação em pessoa. Ele vai e não vai, no discurso negando isso, mas nos gestos, na linguagem corporal, na performance, enfatizando. E a sua câmera, e o enquadramento e a velocidade, e a composição e a edição reforçam essa angústia todo o tempo. Sublinho esse elemento.

José Padilha: É um filme angustiado, filmado para ser assim.

Luiz Eduardo Soares: Para ser assim. Esse desequilíbrio interno, essa dissintonia, essa tensão permanente, acho que desconstrói de uma maneira muito mais profunda o discurso caveira, a ideologia caveira, do que uma verbalização superficial. Talvez por isso, Padilha – para concluir - talvez por isso, as pessoas vejam várias vezes o filme. Uma coisa curiosa, já no [cópia] pirata as pessoas viam várias vezes. “Você já não viu o filme? Vi, mas vou ver de novo.” Gente que vê muitas vezes, como se houvesse uma combinação entre júbilo e perturbação por outro. O júbilo, o encantamento pelo que o filme é de volúpia, de realização, até dessa perspectiva de fascínio na direção da violência. Por outro lado - isso para esses 30% que se identificam. Por outro lado, alguma coisa está fora do lugar, e as pessoas começam a perceber que há alguma coisa fora do lugar e elas não sabem o que é. É uma sensação de incômodo e elas buscam ver de novo para processar, elaborar, simbolizar isso e buscar essa ordem que elas não encontram.

José Padilha: A identificação com a violência não é uma propriedade desse filme. É uma propriedade de vários filmes. Você tem isso nos filmes de gângster. Quem não gosta do Michael Corleone [personagem do livro O poderoso chefão - e da série de 3 filmes, dirigidos por Francis Ford Copolla, de mesmo nome - que imigrou da Itália com a família para os EUA, e se tornou neste país um grande líder da máfia]. Todo mundo gosta do Michael Corleone, o cara é um gângster, mata as pessoas e as pessoas adoram, torcem pelo Michael Corleone. Taxi driver, eu já falei, e por aí vai. Tem vários filmes assim: Os bons companheiros, torcem pelo Robert De Niro, torcem pelo Joe Pesci [ator norte-americano] e tudo mais. As pessoas se identificam com a violência porque a violência é o potencial de cada um. A violência não é uma coisa... A gente não vive num mundo de pessoas pacíficas que não têm dentro delas o impulso da violência. Todas as pessoas têm dentro de si o impulso da violência, isso é um fato da psicologia, não dá para negar isso. A violência é uma reação de estresse, quando a pessoa se sente ameaçada; o organismo dela prepara fisiologicamente para uma de duas coisas: ou ela foge ou ela agride. Isso é um fato da biologia animal, e não dá para a gente mentir. Na verdade, a violência só não campeia num número muito pequeno de civilizações que existiram ao longo da história que conseguiram regras que não deixam a violência dominar as relações sociais.

Paulo Markun: Que supostamente são mais avançadas que as outras.

José Padilha: São mais avançadas e melhores.

Paulo Markun: Porque se for melhor, então é melhor a gente voltar para trás.

José Padilha: Muito melhor. Então, o que a gente está dizendo, que no Rio de Janeiro as regras não são essas, nós não temos regras de jogo que controlam a violência. E a gente vê isso todo dia. A gente estava falando da descriminalização das drogas. Parece óbvio que as drogas devem ser descriminalizadas. Até porque, no Brasil, primeiro eu não sei, de um ponto de vista pessoal, por que é que pode beber e não pode fumar maconha, eu não entendo muito bem a diferença entre os dois males que essas drogas fazem. Até tendo a achar que o álcool faz mais mal do que a maconha. Isso é uma coisa que eu não sei. Mas é uma regra do jogo. A segunda coisa é: quase não é crime usar drogas. O máximo que o cara pode fazer com alguém que seja um usuário recreativo de drogas é levar ele para o juiz para ser admoestado. Por outro lado, vender drogas é um crime altamente punido, e os usuários, então recreativos necessariamente, estão comprando as suas drogas de traficantes altamente armados. De novo, isso é uma parte da regra do jogo. É dado. O usuário não tem alternativa. Ou ele não usa ou ele compra droga de um cara altamente armado no morro.

Leon Cakoff: Não tem mais droga inocente.

José Padilha: Poderia ser, não é assim porque a gente não quer que seja. Então, ou ele compra droga no morro, e se ele comprar a droga no morro, ele vai comprar de um cara altamente armado que tiraniza uma população. Eu acho... dois atores me ligaram hoje para me falar uma coisa que também é interessante nesse troço que eu chamo de patrulha ideológica. Teve um monte de gente que é usuário recreativo de droga que se incomodou.

Ancelmo Góis: O que é usuário recreativo?

José Padilha: O cara que não é viciado, que não é obrigado quimicamente a... 

Leon Cakoff: Acha que não é viciado.

José Padilha: Que não é obrigado quimicamente a consumir droga. Se cortar a droga dele, não se consegue medir no cérebro dele efeitos que o levam a se deprimir etc, etc. É o usuário que tem uma escolha, não é isso? Incomodou, eu percebi. O Bráulio Mantovani recebeu um e‑mail com uma suástica, [escrito] Patrulha de Defesa à Droga. É muito louco isso. Aí o Bráulio caiu na besteira de responder ao cara. E aí foi uma loucura, né? Eu acho que toda obra de arte simplifica a realidade. Você estava falando do equilíbrio do filme, não é isso?

Gabriel Priolli: Isso.

José Padilha: Toda a obra de arte simplifica a realidade. A lógica interna de uma obra de arte ou de um filme não é uma lógica da pesquisa científica. É a lógica da dramaturgia. 

[?]: Sem dúvida. Brilhante no caso.

José Padilha: Então, a gente tem que entender isso. Buscar num filme uma explicação para a realidade é melhor você comprar... é melhor ler o livro da Alba Zaluar  [antropóloga carioca, com atuação na área de antropologia urbana e antropologia da violência] sobre o Cidade de Deus do que ver o filme, se você quiser entender a Cidade de Deus. Porque aquilo é uma etnografia com uma pesquisa científica.

Luiz Zanin Oricchio: Mas quando entra no audiovisual, toda essa questão se amplifica.

José Padilha: Então, e nisso é que está o valor.

Luiz Zanin Oricchio: Houve uma polêmica quando o livro foi lançado. Houve uma polêmica e tal, não sei o quê, mas nem de perto semelhante à que está havendo agora com o seu filme.

José Padilha: Esse é o valor do cinema, a gente tem que dizer.

Luiz Zanin Oricchio: É o valor do cinema e também o perigo do cinema, né? Porque é uma bomba de...

José Padilha: Eu acho o seguinte, é de novo quebrar o termômetro porque você está com febre. O filme não constituiu pessoas que acham que a violência se resolve com a violência. O filme não criou essas pessoas, as pessoas estão aí.

Luiz Zanin Oricchio: De acordo.

José Padilha: Se o filme mostrou para a gente que essas pessoas estão aí, o filme está fazendo um bem porque a gente está discutindo essas pessoas e não estaria se não houvesse o filme.

Luiz Zanin Oricchio: Nesse ponto é verdade, tem muita gente saindo da toca ao discutir esse filme, saindo do armário.

Paulo Markun: Bem, nós vamos para mais um rápido intervalo, voltamos em seguida com o Roda Viva que é acompanhado na platéia por Henrique Valente, e Mariana Baraúna de Mendonça, que são estudantes de cinema da FAAP, e também por Renan Vieira Andrade, aluno do curso de artes visuais da faculdade Belas Artes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva entrevistando o cineasta José Padilha, diretor do filme Tropa de elite. Padilha, a respeito da pirataria sobre o seu filme, o cineasta Paulo Morelli tem uma pergunta, vamos ver.

[VT de Paulo Morelli]: Padilha, em primeiro lugar, boa sorte aí no lançamento do seu filme. E eu estou aqui na quinta‑feira, vocês já estão na segunda, portanto, eu não vi o seu filme, porque eu fiz questão de não ver a cópia pirata e também não sei como foi a bilheteria do primeiro fim de semana. Então, eu lhe pergunto: você acha que o fato do seu filme ter sido pirateado ajudou ou atrapalhou no lançamento do filme?

José Padilha: Não sei. A resposta verdadeira eu não sei. A única maneira para a gente saber isso seria lançar o filme duas vezes, no universo onde houve pirataria e onde não houve. Como a gente não consegue fazer isso, a gente nunca vai saber. Mas eu digo o seguinte: a pirataria é muito ruim, pirataria é muito ruim. Eu escutei, no campo da cultura, muita gente boa defendendo a idéia de que: “Não, a pirataria tem o lado bom porque divulga o conteúdo das obras culturais a um preço barato e tem, então, o efeito de espalhar a cultura”. Mas só que a um custo muito alto, porque a pirataria envolve sonegação fiscal, a pirataria envolve trabalho informal, porque os trabalhadores que estão vendendo os DVDs piratas não têm seus direitos trabalhistas reconhecidos; a pirataria envolve corrupção policial, porque você vê o policial ali do lado do camelô não fazendo nada, de graça não é. Então, a que custo você quer espalhar o conteúdo cultural? Eu tendo a imaginar que a pirataria, a principal cultura que a pirataria espalha é essa, da sonegação fiscal, do desrespeito aos direitos trabalhistas e por aí vai. Então, eu não gostei da pirataria. Mas, por outro lado, a pirataria, não dá para negar, popularizou o filme. Os vendedores, os camelôs, descobriram uma maneira de vender o filme. Isso para mim foi muito angustiante porque eu fiquei lutando contra os camelôs. Eu ia lá no delegado, o delegado fazia operação, ele me avisava, apreendia não sei quantos DVDs e não sei o que lá. E os camelôs geniais começaram a vender o filme assim: “Compra agora que a polícia vai proibir.” E aí o filme começou a vender que nem água. Foi o grande... Eu acho que a genialidade do marketing dos camelôs explica grande parte do sucesso do filme na sua versão pirata. Uma outra coisa que eu vejo, que eu acho que explica o sucesso da versão pirata é a raiva que a população tem da polícia. Mais de uma vez eu já medi isso. Eu vou conversar com o cara: “Por que você comprou o filme?” “Ah, comprei porque esculacha a polícia. A polícia está sempre me esculachando, esse filme esculacha a polícia, é bom ver.”

Gabriel Priolli: Você acha também que é por isso que o filme é um fenômeno? Porque ele é muito mais do que um sucesso, ele é um fenômeno indiscutível. Quer dizer, apesar de tanta gente que já viu, está funcionando no cinema, provavelmente vai bater todos os recordes de bilheteria. Indiscutivelmente é um fenômeno popular, popular. Começou com a...

Ancelmo Góis: [interrompe Priolli] Popular. Se deixasse com a produtora, lançasse e não tivesse pirata, certamente, a produtora até por inércia e pela cultura que tem acumulada de filmes nacionais, ia começar lançando o filme nos cinemas mais de zona sul. E a pirataria, realmente, permitiu que o povão assistisse ao seu filme.

José Padilha: Ela precipitou um processo que a gente não conseguiu controlar, que aconteceu independente...

Ancelmo Góis: O boca-a-boca no cinema... podia até chegar ao povão, mas dessa vez chegou...

José Padilha: Eu vi umas coisas muito impressionantes. Eu vi a pirataria do cinema, que é o seguinte. O sujeito botava uma televisão - em Niterói tinha isso - uma televisão, 20 cadeiras ou 10 cadeiras e vendia a dois reais o ingresso, as pessoas sentavam e o cara passava o filme. É o cinema pirata, o cinema inteiro pirata. Eu não sei explicar por que isso aconteceu, eu acho que ninguém sabe até agora. É porque o personagem do Nascimento é um personagem ambíguo que as pessoas vêem mais de uma vez. É porque as pessoas se identificam com a idéia de que tem que fazer violência e querem ver violência. É porque esculacha a polícia. É porque mostra uma certa hipocrisia de uma parcela da classe média com relação ao problema das drogas.

Ancelmo Góis: É porque o filme é bom também.

José Padilha: É porque está bem filmado?

Luiz Zanin Oricchio: E até que ponto a presença do Wagner Moura, que é um ator em evidência e estava no fim da novela ou...

José Padilha: Então, esse é um outro fenômeno. Não só um ator em evidência, é um grande ator.

Luiz Zanin Oricchio: Exato.

José Padilha: O Cidade de Deus tem um fenômeno... Eu costumo dizer assim – e isso tem a ver com patrulha ideológica - tem alguns filmes que viram produto cultural. Você faz o filme, o sujeito pega o filme e vê aquele filme, é um produto da sua cultura, ele guarda na prateleira e vai ver de novo. De vez em quando, por algum motivo que ninguém sabe, alguns filmes modificam a cultura. Se você definir cultura como um conjunto de hábitos e comportamentos de uma população, alguns filmes são vistos e os comportamentos são absorvidos pela população. O que mostra a força do cinema como a gente estava conversando aqui. O Cidade de Deus fez isso. O Zé Pequeno virou um exemplo. E fez isso porque o Zé Pequeno foi interpretado de uma maneira extraordinária! O ator tem um peso muito grande nessa história. A interpretação do Wagner Moura, o carisma que o Wagner Moura tem como o capitão Nascimento tem muito a ver com a identificação do capitão Nascimento. Eu tenho certeza que se fosse um ator que não interpretasse aquele capitão do jeito que o Wagner interpretou, o resultado era outro. E nisso você tem razão. Jean Renoir [escritor, ator e cineasta francês] dizia o seguinte: “cinema não tem autor”. Não tem autor no mesmo sentido que o livro tem autor, no mesmo sentido que um quadro tem autor. E eu concordo com isso. O cinema é um esforço coletivo, que envolve uma série de pessoas que têm um input criativo naquilo, sim, e o ator tem. Nenhum diretor controla o que o ator vai fazer exatamente como deve. É mentira dizer que o diretor controla o ator. Não controla.

Leon Cakoff: Essa história de pirataria, Padilha, voltando à questão da pirataria. Eu acho que o seu filme provoca uma outra coisa muito interessante para a gente analisar na sociedade brasileira. Falamos da descriminalização da droga. Tem a questão da disseminação do crime, né? Porque acho que é um ato de crime consumir um produto pirata. E isso está se tornando até uma questão de orgulho nacional. “Eu vi uma cópia pirata do teu filme.” É um escândalo.

José Padilha: Tem duas coisas que acontece. Tem muita gente... Ontem teve uma matéria num canal de televisão de um cara saindo do cinema, e o repórter perguntou para ele, eu fiquei até emocionando. “Você veio no cinema por quê?” “Eu vim dar uma força pro Padilha, eu gostei do filme dele e está todo mundo pirateando e tal.” Eu recebi um e‑mail no meu escritório, eu te contei isso, do Rio Grande do Sul, dizendo assim: “Padilha, vi o seu filme na cópia pirata e gostei muito. Quero pagar. Mande‑me os dados da sua conta bancária.”

Gabriel Priolli: Exatamente. Por que você não abre essa conta bancária para ser ressarcido? Certamente muita gente vai fazer isso.

José Padilha: Assim é muito melhor porque assim o cinema vai começar a dar dinheiro para o produtor, aí vai direto, sem passar pelo distribuidor, para a minha conta bancária.

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: Queria fazer uma pergunta provocativa. Se você hoje fosse presidente da República...

José Padilha: Deus me livre.

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: ... você investiria politicamente, considerando o quadro, o cenário de guerra que você mesmo retratou, você investiria na extinção das tropas de elite das polícias?

José Padilha: Olha, eu investiria na substituição das polícias. Eu pesquisei o suficiente da polícia e outras pessoas pesquisaram muito mais do que eu, como Jacqueline Muniz [socióloga e especialista em segurança pública], você conhece. Eu acho que a polícia, como ela existe hoje, é inviável. Eu acho que ela tem que ser refeita. Claro que não dá para “tira a polícia e bota outra no lugar.” Eu acho que, gradativamente, essa corporação que tem o nome de Polícia Militar do Rio de Janeiro deve ser desmontada e outra corporação montada no seu lugar. Eu acho isso. Eu acho que a polícia tem uma estrutura militarizada que vem da história da polícia, vem da ditadura, que não é moderna o suficiente para resolver os problemas com que ela lida. E eu sim consideraria seriamente... O problema é o seguinte. A tropa de elite, como ela é mostrada no meu filme, que se passa em 97, não é a tropa de elite que existe hoje. E quando você me pergunta se eu acho que deveria ser destruída a tropa de elite, eu me pergunto se ela já não foi. Porque hoje em dia, no Bope, por exemplo, o Bope tem cerca de quatrocentos e poucos policiais, não tem tropa de elite no mundo com quatrocentos, nem a Swat [unidade da polícia norte-americana, especializada, presente nos departamentos policiais das grandes cidades, treinada para executar operações de alto risco]. A Swat de Los Angeles tem sessenta e poucos policiais. Los Angeles não consegue ter uma tropa de elite com mais de sessenta e poucos e o Rio de Janeiro consegue com 400? Tem uma coisa errada aí. Não é mais uma tropa de elite. No fundo é isso. Não é mais uma tropa de elite. E os métodos dessa tropa de elite não são justificáveis. Se você olha para o curso de operações especiais do Bope que está muito bem retratado no filme dito por pessoas que fizeram esse curso, é um certo processo, o capitão Nascimento fala isso: “O Bope parece uma seita. E assim mesmo que a gente tem que ser.” E por que é assim mesmo a que gente tem ser? Porque o cara tem que sofrer uma lavagem cerebral para fazer o que ele faz na favela. Não tem jeito! O capitão Nascimento passou por aquele curso. Ele é um policial que sofreu aquelas influências. Tem gente que morre no curso do Bope. Você sabe disso. Morre de abuso físico. Teve um cara outro dia, um soldado que morreu de frio porque o cara fez ele ficar dentro da água congelada e o cara morreu! A gente quer ter uma tropa assim? Eu não quero.

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: E por que você acredita que a opção matar é melhor do que a opção prender? O que se passa na cabeça de um policial que decide optar pela morte, pelo extermínio, em vez de levá‑lo à prisão? Será que não existe uma descrença, uma desconfiança nas instituições do nosso Brasil? Será que as pessoas não se sentem reféns de não ter a quem se socorrer?

José Padilha: Todo mundo que conhece a polícia no Rio de Janeiro sabe que a regra da polícia é o seguinte: se o sujeito está portando uma arma, pode atirar nele. Todo mundo sabe disso, isso é fato consumado. O sujeito, o policial diz assim: “Eu fiz a minha ocorrência bem, se para cada morto eu tiver uma arma”. Não interessa se a arma está no coldre, se o cara está com a arma de costas para você. Se está com a arma, bum!, morreu. É assim que é. É assim que é e os policiais dizem isso abertamente no Bope e na polícia convencional. A questão é: por que a vida passou a ter um valor muito pequeno tanto para os policiais do Bope quanto para os seus oponentes, que são os traficantes, não é? Por que é que a vida, por que as pessoas...

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: O cidadão comum, numa discussão de trânsito, você vê o cidadão fazendo uso de arma de fogo matando o outro cidadão.

José Padilha: Por que as pessoas optaram por uma opção letal com uma velocidade enorme. A gente sabe algumas coisas a esse respeito. A gente sabe, já de pesquisas, que a violência, esse tipo de violência se inicia em áreas que têm tráfico. Morre muito mais gente assassinada sumariamente nas áreas em que o tráfico é forte. E morrem menos pessoas em áreas onde o tráfico é fraco. Então a violência está associada, em pesquisas científicas, com o tráfico. Isso é um dos motivos pelo qual eu, no balanço do meu filme, coloquei sim uma ênfase numa certa hipocrisia das pessoas que consomem droga e financiam o tráfico. Elas não sabem esses números. Elas não lêem as pesquisas de violência. Elas não sabem que a população que convive com o tráfico está submetida a índices de violência muito altos. Elas precisam saber disso. Não necessariamente para dizer: “Olha, você é o culpado disso.” Porque o filme não diz. Mas vamos debater a questão subjacente a isso: por que a droga é criminalizada, qual o custo da criminalização da droga para a nossa sociedade? É um custo muito alto. Não é só os mortos não, são os mortos, depois é o custo da saúde pública. O Rio de Janeiro hoje é um centro de operação de guerra. Se o cara toma um tiro com bala de alto calibre, o melhor lugar para o cara estar é no Rio de Janeiro, os médicos estão super bem treinados para o que fazer com um tiro de 762.

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: Sobretudo os médicos da polícia.

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo, lembrando que a entrevista de hoje é acompanhada em nossa platéia por Marcelo Moretti, advogado, Samanta Cainelli Prado, aluna do curso de artes visuais da faculdade de Belas Artes e Pedro Pracker, jornalista.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos com volta para o último bloco do Roda Viva com José Padilha, cineasta, diretor do filme Tropa de elite. Padilha, o coronel Hermes Bittencourt Cruz, presidente da Associação dos Oficiais da Reserva da Polícia Militar de São Paulo, aborda uma questão sobre o comportamento dos policiais. Vamos acompanhar.

[VT coronel Hermes Bitencourt Cruz]: Gostaria de saber a sua opinião sobre o meu ponto de vista de que o filme é altamente positivo para as mudanças comportamentais dos policiais, pois assistindo‑o, eles verão que não vale à pena um comportamento do qual eles se utilizaram, e o risco pessoal e à sua família não vale à pena.

José Padilha: Olha, eu acho que se o filme motivar os policiais que têm comportamentos fora da norma, ou por corrupção ou por violência, a não fazerem isso, ficaria muito feliz.  Eu acho que existem policiais assim. Eu tenho a reação dos policiais porque muitos policiais ligam para o Pimentel, que é um dos roteiristas do filme, pelo rádio, o Pimentel abre o rádio, os policiais falam: “É isso mesmo, alguém tinha que fazer esse filme para mostrar qual é a nossa situação.” Agora tem também reações ao contrário. Tem 20 policiais que entraram na Justiça para tirar o filme do ar, porque o filme mostra práticas que eles acham que não acontecem na unidade deles, no Bope.

Luiz Eduardo Soares: Eu vou contar aqui para o pessoal. Tem um oficial da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que é uma pessoa muito séria, muito respeitada e respeitável que está propondo, pela internet, a constituição de uma espécie de um tribunal, que ele considera muito democrático, para julgar filme e livro, que funcionaria assim. Seriam cerca de 20 pessoas - professores, psiquiatras, psicólogos e todos os coronéis que comandaram o Bope - que fariam a sabatina com você, comigo, com o André Batista e Rodrigo Pimentel que são os co‑autores do livro e, dependendo do resultado, eles avaliariam, votariam - e ele insiste democraticamente, sublinhe‑se o advérbio, democraticamente - e nós, então, retiraríamos filme e livro de circulação se esse grupo considerasse que, de fato, são dois produtos nocivos à juventude etc. Isso está circulando...

Leon Cakoff: Um grupo decide fazer censura assim?

Luiz Eduardo Soares: Essa concepção de censura, entre aspas, democrática, é tão assustadora e tão extraordinária...

Leon Cakoff: Censura não é nunca democrática.

Luiz Eduardo Soares: Pois é, então, entre aspas, essa aberração de uma votação, um pequeno comitê para julgar e censurar uma obra literária ou cinematográfica é alguma coisa tão extraordinária que acho que nos diz um pouco sobre a cultura corporativa, que não está expressa, infelizmente, pelo que pensa o Coronel Carballo ou o que pensa o comandante Ubiratan que é uma figura extraordinária, comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Infelizmente não é essa a herança da cultura militar.

José Padilha: Eu gostaria que houvesse esse tribunal porque eu faria um documentário que seria fantástico sobre esse tribunal. Se eu puder filmar, eu aceito.

Paulo Markun: Mas é muito provável que se houvesse democraticamente um plebiscito sobre a pena de morte, a pena de morte seria instituída no Brasil. Não é verdade?

Luiz Eduardo Soares: Pois é. [vários falam ao mesmo tempo] Essa idéia de democrático é aberrante, não é?

Paulo Markun: Democraticamente, às vezes, não é o que a gente quer.

Luiz Eduardo Soares: Democrático aqui eu estou usando entre aspas, Markun, porque é a aberração da democracia, é a transgressão dos seus princípios.

José Padilha: A melhor maneira de olhar isso... a democracia não é infalível. O Hitler foi eleito. Não é isso? O que eu acho que é importante na democracia é que a sociedade seja aberta e que existam instrumentos de liberdade de expressão que as pessoas possam falar, de imprensa livre. Também que exista voto, evidentemente. E é muito perigoso realmente quando existe qualquer processo, seja ele por uma votação da maioria, que impeça alguém de exprimir idéias num filme ou num livro. É preocupante e isso, sim, é fascista.

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: Padilha, eu queria explorar um pouquinho a sua visão de cineasta. Em que medida, na sua avaliação, os veículos de comunicação social ajudam a reproduzir essa carga de estigma e estereótipo da sociedade, digamos assim, do asfalto em relação à favela? Porque o policial também recebe essa carga. E como ele está nesse ambiente da favela, ele se sente hostilizado porque os veículos, na minha avaliação, de certa forma, ajudam a reproduzir, no imaginário coletivo, que favela é um local perigoso, é um local hostil. O que é que você acha?

José Padilha: O [Winston] Churchill [famoso estadista britânico, foi o primeiro ministro de seu país de 1940 a 1945] falava a seguinte frase: “Não existe opinião pública, só existe opinião publicada”. É um pouco isso que você está...

Ancelmo Góis: Isso era do tempo que só tinha papel. [Risos]. Eu só queria falar um negócio... [vários falam ao mesmo tempo]

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: O que você acha? Eu queria ouvir a opinião dele.

José Padilha: Eu acho o seguinte. Os jornais não fabricaram em todos os seus formatos a tragédia na qual a nossa polícia vive. Os 40 policiais foram presos pela própria polícia por envolvimento com o tráfico, estavam envolvidos com o tráfico. A notícia saiu e ela é: os policiais que mataram, assassinaram crianças na Candelária, chacinaram crianças na Candelária. Eu não acho que a situação do policial militar seja uma construção da imprensa. Eu acho que a situação do policial militar é constituída pela sua corporação. Pela maneira pela qual a sua corporação é gerida e pela qual essa corporação lida com seus membros.

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: Eu estou falando da favela em si. A imagem que os veículos de comunicação passam da favela, o local onde estão homiziados [foragidos], traficantes perigosos com armas de guerra, essa relação midiática que faz com que o policial se sinta hostilizado naquele ambiente.

José Padilha: Olha, a favela...

Tenente coronel Antonio Carlos C. Blanco: Como compatibilizar?

José Padilha: Eu não acho que a mídia faz a gente achar que a favela é um lugar onde tem traficantes armados não. Eu acho que a favela tem traficantes armados. É a minha experiência. Eu fui a várias favelas filmar e tinha uma série de traficantes armados.  Eu tendo a achar que essa situação de violência no Rio de Janeiro independe da mídia. Se você parar de dar notícia sobre ela, ela vai continuar acontecendo. A mídia tem uma influência nela, óbvio. A mídia influencia muita coisa, mas ela não constitui essa situação, tanto na favela quanto fora da favela.

Paulo Markun: Última pergunta, e nós vamos fazer uma única, eu vou fazer uma única pergunta de um telespectador. Tivemos muitas, e elas serão encaminhadas a você, como é de praxe aqui no Roda Viva. É do Ubirajara Sexto, da cidade de Salto, no interior de São Paulo, que pergunta o seguinte: O Tropa de elite terá uma continuação?

José Padilha: Não sei. No cinema, não.

Paulo Markun: Você acha que faz sentido ter na televisão? Porque eu me lembro, é uma das coisas que me incomodou no filme,  e eu acho que é uma sensação apenas - você é mais novo do que eu, certamente não acompanhou - mas havia um seriado de televisão muito assistido no Brasil e chamava‑se Combate.

José Padilha: Nunca vi.

Paulo Markun: Nunca viu. Era uma história dos soldados americanos que combatiam os nazistas. E os soldados americanos eram sempre os heróis e os nazistas eram sempre os bandidos. Em algum sentido me deu a sensação de que esse filme Tropa de elite tinha uma cara de seriado de televisão. Talvez não tão maniqueísta quanto combate, mas, certamente, com os ingredientes de uma série. Você não acha que há um risco de transformar isso numa série, banalizar esse tema?

José Padilha: Tem uma frase no filme, quando o traficante Baiano mata um policial e descobre que ele é do Bope. O Nascimento em off  fala assim:

Paulo Markun: Traficante não é burro.

José Padilha: “O traficante pode ser maluco, mas não pode ser burro. Ele sabia que matando um policial nosso, ele estava morto. Porque ele também não deixa barato”. O que é que essa frase está dizendo explicitamente? Que a ética de matar pessoas que têm esse policial violento, o traficante tem igual, nem um nem outro deixa barato. Nesse sentido, no meu filme, nem a polícia é herói nem o bandido é herói. Os dois são agentes de um mesmo drama que se repete no cotidiano do Rio de Janeiro que banaliza a violência. Eu não vi a série Combate...

Ancelmo Góis: Não é só no Rio de Janeiro, né?

José Padilha: No Brasil inteiro. É que o filme se passa em uma das grandes cidades brasileiras e também no interior de uma mesma maneira. Eu fui filmar um filme na Amazônia e quase que eu fico lá.

Gabriel Priolli: Ou no entorno de Brasília, como a gente viu aqui.

José Padilha: Existem diferentes autores de televisão, existem diferentes maneiras de se fazer minisséries, teve o Cidade de Deus, depois teve o Cidade dos homens. Eu não sei dizer, eu vou pensar sobre isso, está muito em cima. O meu sócio e eu, a gente quer ver o que vai acontecer com o filme, para onde vai esse debate para depois com calma decidir o que fazer. As televisões querem fazer.

Paulo Markun: Certamente. Padilha, muito obrigado pela sua entrevista. Boa sorte com o filme! Aliás você nem precisa de sorte mais a essa altura do campeonato. Para quem não assistiu Tropa de elite nas melhores telas do país.

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