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Memória Roda Viva

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John Neschling (Claudia)

22/7/2002

Entre outras coisas, o maestro, e diretor artístico da Osesp desde 1997, conta como tirou a orquestra da crise e a elevou à categoria de uma das melhores do Brasil, com repertórios variados e reconhecimento internacional

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Programa ao vivo

Paulo Markun: Boa noite. Bom maestro, bons músicos, apoio público, verbas, boa administração, uma receita aparentemente simples, quase óbvia, para se ter uma boa orquestra. Mas no Brasil quase sempre faltaram verbas, interesse, seriedade, embora não tenham faltado bons músicos e bons maestros. No entanto, nos últimos cinco anos, aqui em São Paulo, uma experiência com base no talento, no esforço e na boa administração, deu ao Brasil uma orquestra sem precedentes e que hoje pode tocar onde quiser, porque tem público e reconhecimento. Estamos falando da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e do seu regente titular o maestro John Neschling, convidado desta noite do Roda Viva. Ele rege no próximo sábado o concerto de encerramento do Festival de Inverno de Campos de Jordão.

[Comentarista Valéria Grillo]: A música erudita está na vida de John Neschling desde criança. Influenciado pela tradição musical da família, estudou piano e depois viajou à Áustria para um curso de regência em Viena. Ganhou vários concursos para regente na Europa e foi diretor de orquestras na Suíça, em Portugal, no Rio de Janeiro e em São Paulo. À frente da Sinfônica paulista há cinco anos, John Neschling é o responsável pela nova fase da orquestra, mais profissional, mais atuante. “Eu tenho a impressão que nunca vamos chegar ao ponto ideal, mas eu acho que a orquestra deu um passo gigantesco” [fala de John Neschling no VT]. A ressurreição da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo [Osesp] contou também com um elemento importante. A orquestra ganhou casa própria, a estação Júlio Prestes, a Sorocabana, um marco na memória urbana da cidade, foi transformada em centro cultural, com um sofisticado auditório para 1.600 pessoas. A Sala São Paulo, sede da Osesp foi uma das exigências feitas por Neschling, ao assumir o cargo de diretor artístico em 97. “Uma orquestra precisa de uma sala para ensaiar, para criar o seu som, para se desenvolver como um conjunto sinfônico, para se ouvir, para se gostar. É como você dar uma casa nova para uma pessoa, ou um hospital novo para um cirurgião, ou um estádio novo para um time de futebol” [fala de John Neschling no VT]. Neschling reestruturou a orquestra, fez audições para reavaliar os integrantes, abriu concursos internacionais e aumentou o salário dos músicos. John Neschling é o terceiro maestro a dirigir a Sinfônica de São Paulo, o primeiro foi Souza Lima, o criador. A orquestra foi criada por lei em 1953, mas funcionou só por seis meses. A verba foi cortada, os músicos foram para casa e não voltaram mais por 20 anos. Eleazar de Carvalho foi o segundo diretor. Assumiu em 73 e fez a primeira grande reestruturação da Sinfônica. Foram 10 anos de bom prestígio e boa atuação. Mas a crise econômica da década de 80 deu outro golpe. Os salários encolheram, a orquestra chegou a ficar sem lugar para ensaios e até sem dinheiro para comprar partituras; histórias de humilhações e desprezos que marcaram a música sinfônica em São Paulo. O novo som que há três anos vem da Sala São Paulo e que já dá projeção internacional à orquestra, ajuda também a firmar na cidade a noção do que é ser músico, do esforço que isso precisa, a noção de que esse trabalho tem importância, tem valor e é muito difícil de fazer.

Paulo Markun: Para entrevistar o maestro John Neschling, nós convidamos o Arthur Nestrovski, articulista do jornal Folha de S. Paulo; Luiz Paulo Horta, crítico de música do jornal O Globo; Tom Zé, cantor, compositor e pensador; Eduardo Camenietzki, compositor, arranjador e regente; Dante Pignatari, músico e produtor da rádio Cultura, e João Marcos Coelho, crítico de música e colaborador do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Bravo. Boa noite, maestro.

John Neschling: Boa noite.

Paulo Markun: Verificando aí a pesquisa que a TV Cultura sempre proporciona às pessoas que participam do programa, a gente vê em relação ao senhor duas claras vertentes. De um lado, um enorme reconhecimento pelo trabalho, pela competência e tal. Por outro lado, uma vertente polêmica, em várias circunstâncias, tanto em ocasiões de briga com as administrações dos lugares onde o senhor trabalhou, pela defesa dos interesses e outras [circunstâncias] de simplesmente falar o que pensa mesmo. São duas faces da mesma moeda, uma coisa não funciona sem a outra, e se o senhor não fosse essa pessoa firme e decidida, não tinha chegado aonde chegou?

John Neschling: Eu acho que a gente vai se desenvolvendo com a vida, a gente vai entendendo o que a gente quer, a gente vai desenvolvendo os princípios dos quais não quer abrir mão, acredita no caminho que a gente tem, acredita no trabalho que quer fazer e acaba por estabelecer critérios dos quais não quer arredar o pé. Então eu acho que é natural. Já no último Roda Viva [de que eu participei], eu disse uma vez que se eu sou polêmico, eu estou em boa companhia, porque os grandes polêmicos sempre foram aqueles que pensaram mais, aqueles que conseguiram ir mais longe também. Não são dois lados da mesma moeda, é a mesma moeda. O trabalho que eu exijo de mim eu exijo dos outros. Portanto eu acho que o fato de ser polêmico não é necessariamente uma desvantagem, o fato de dizer o que se acha também não é necessariamente uma atitude polêmica e nem uma atitude agressiva, mas uma característica de uma pessoa que sabe o que quer e tem uma linha na vida, sabe aonde quer chegar. Eu, desde o início, soube onde eu quis chegar com a Osesp. Evidentemente, nem sempre na minha vida, eu tinha essa experiência e essa possibilidade, então eu tive outras experiências que todos os meus colegas aqui conhecem, que talvez, não foram tão bem sucedidas, mas talvez por culpa minha mesmo, por falta de experiência na altura, falta de idade, de... Eu acho que quando eu cheguei na Osesp, a constelação era extremamente favorável, eu tive uma ajuda extraordinária do governo. Um governo que, pela primeira vez na história do Brasil, teve vontade política para fazer uma orquestra sinfônica dessa natureza e de construir uma sala de concertos, um sonho que o Brasil alimentava há muitos anos, desde sempre, porque nós tínhamos algumas salas líricas no Rio de Janeiro, em São Paulo, mas uma verdadeira sala sinfônica não existia no Brasil e não existe no Brasil além da [Sala São Paulo]... Eu diria que quase não existe na América Latina, conheço pouquíssimas casas sinfônicas, não é? 

Paulo Markun: O senhor estava se referindo ao governo, o senhor estava falando do governador Mário Covas.

John Neschling: Do governador Mário Covas e do secretário Marcos Mendonça. 

Paulo Markun: E o governador Alckmin continua prestigiando? 

John Neschling: O governador Alckmin, até este momento, está prestigiando, acredito que ele vai continuar prestigiando. E eu acho que é preciso ter confiança no governador Alckmin, porque ele até agora tem continuado a nos dar, em um momento difícil como é esse aqui desse ano. Esse ano é um ano complicado, é um ano de eleições, é um ano de crise econômica internacional. E, até este momento, o governador Alckmin tem nos dado todo apoio, tanto logístico como político, eu tenho certeza que ele vai continuar nos prestigiando no futuro. 

Arthur Nestrovski: Várias perguntas diferentes, mas começando por essa. Eu acho que é consenso hoje no meio musical, que o cenário musical no Brasil era um antes e é outro depois da Osesp, não só pela excelência musical da orquestra, mas pelo que ela significa como projeto. Quer dizer, a Sala São Paulo, a orquestra, os três coros. Agora, o projeto da escola de música, tem um centro de documentação musical, minha pergunta é: você falou antes, que você sabe aonde quer chegar, você já chegou? O que é que falta para a Osesp, tanto do ponto de vista administrativo, quanto musical?

John Neschling: Olha, você me perguntar se eu já cheguei, eu... Quando nós começamos, há cinco anos atrás, o meu primeiro sonho era ter uma sala, o primeiro sonho, porque eu achava que uma orquestra sem sala não podia existir. Como todas as grandes orquestras têm grandes salas, foi uma das condições sine qua non que eu coloquei para que a Osesp existisse. Do momento, no dia que nós inauguramos a sala, que foi no dia 9 de julho de 99, depois dessa inauguração grande com público, nós fizemos uma festa interna da orquestra. E a orquestra estava exultante evidentemente, porque era o primeiro concerto na sala, eu virei para a orquestra e disse: “olha, o meu sonho aqui não parou, eu consegui fazer essa, quer dizer, eu consegui, nós conseguimos criar essa sala, mas o meu próximo sonho já começou a partir de hoje”, que era o de fazer uma turnê internacional, ou de conseguir fazer turnês internacionais, não no sentido de que o governo brasileiro pague para as orquestras irem para fora, tocar na embaixada para um bando de brasileiros, mas a gente tocar realmente em grandes temporadas internacionais, sermos chamados e respeitados internacionalmente, e isso não se poderia fazer sem discos. A consciência disso eu tinha, então no dia 9 de julho de 1999, eu disse para a orquestra: “o meu sonho começa agora, meu segundo sonho. Eu hei de levar essa orquestra para tocar nos Estados Unidos e na Europa, baseada em uma série de discos que vamos gravar, para grandes companhias internacionais”. Isto está acontecendo exatamente neste ano, nós estamos a dois meses do embarque para os Estados Unidos, vamos fazer 20 concertos nos Estados Unidos, convidados pelas grandes turnês americanas, de costa a costa, de Los Angeles até Miami, e temos o primeiro disco lançado há dois meses atrás – [Mozart] Camargo Guarnieri [(1907-1993,) músico, maestro e compositor brasileiro, com rica obra, influenciada pelo nacionalismo do amigo Mário de Andrade, em diferentes formas: suítes, concertos, canções, óperas e operetas, passando pelo madrigal, cantata e missa. Fundou a Academia Brasileira de Música e a Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo, que dirigiu]. Lançaremos o segundo agora em setembro, que é o [Antônio] Francisco Braga [(1868-1945) compositor, regente e professor, autor de grande quantidade de hinos patrióticos, dos quais o mais popular é o Hino à Bandeira], já temos quatro ou cinco gravados, vamos gravar mais 20, temos um contrato de 24 discos na verdade, gravamos cinco, vamos gravar mais 19. 

[?]: Maestro.

John Neschling: Então, eu só quero dizer que, se você me pergunta se nós chegamos lá? Não. No momento em que eu comecei, que eu tenho agora a viagem marcada e os discos, eu tenho outro sonho. O meu sonho agora é transformar essa orquestra em uma organização social, ou seja, em uma empresa que funcione dinamicamente, de uma forma mais liberta das amarras do Estado, o que não quer dizer - eu tenho que deixar bem claro - que o Estado pode se furtar da sua responsabilidade. Porque eu repito, em momentos de crise como é este ano, por exemplo, nós não conseguimos um tostão da iniciativa privada; quem nos manteve esse ano foi o estado de São Paulo, foi o governador Alckmin, foi o Marcos Mendonça, nós fomos mantidos... 

Paulo Markun: Não houve uma venda das assinaturas de 50%? 

John Neschling: Não evidentemente, mas as assinaturas, elas acabam... 

Paulo Markun: É irrelevante?

John Neschling: Dentro do contexto geral é irrelevante. Primeiro porque a orquestra é altamente subvencionada, no sentido de que os ingressos custam de cinco a trinta reais. Você imagina que isso é um preço ridículo, você paga na verdade 15 vezes menos aqui em São Paulo para ouvir o Kurt Mazur [um dos grandes maestros internacionais] do que ouvir o Kurt Mazur no maior... onde ele é chefe. Nós estamos, na verdade, oferecendo essa linguagem e esses concertos a uma camada enorme; damos oportunidade a que essa camada enorme da população possa assistir. Trouxemos 180 mil pessoas na Sala São Paulo, no ano passado, o que são dois Morumbi cheios, dentro da Sala São Paulo; fora as 18 mil crianças que vão este ano à Sala São Paulo, para ouvir os concertos infantis, os concertos educacionais; fora o público que nos ouve, por disco, por televisão, por rádio etc. Então a gente atinge um público enorme. 

João Marcos Coelho: Maestro, eu queria só tocar nesse problema da organização social, é uma tecla que o senhor bate desde 98, não é? 

Arthur Nestrovski: Exatamente. 

João Marcos Coelho: Como o governo tem maioria na Assembléia [Legislativa], eu não entendo qual é a dificuldade política de se aprovar essa organização social. É claro que agora em um ano [eleitoral], na campanha eleitoral vai ser complicado. 

Arthur Nestrovski: A OS [Organização Social da Cultura] já foi aprovada na Assembléia. 

João Marcos Coelho: Ah, já foi? 

Arthur Nestrovski: A forma administrativa OS já foi aprovada na Assembléia, mas é que para você transformar essa... Primeiro a OS é uma organização, é uma forma de [administração], não é... A OS não é a administração é uma fórmula de administração. Então, diversas instituições... 

Paulo Markun: Não vale só para orquestra.

Arthur Nestrovski: Não vale só para orquestra, vale para pinacoteca, vale para hospitais, vale para uma série de coisas. Na verdade a primeira instituição cultural que vai ser a OS em São Paulo, é a orquestra. Mas significa o quê? Que diversas instituições se habilitam para serem reconhecidas como a OS, uma espécie de empresa sem fins lucrativos, de utilidade pública. 

Paulo Markun: E isso já está em processo?

Arthur Nestrovski: E essa empresa depois recebe, faz um contrato de gestão com o Estado, o Estado recebe um número xis de concertos por ano, paga para a orquestra poder fazer esses concertos. E evidentemente essa OS fica aberta para receber com muito mais facilidade, com muito menos entraves burocráticos, o aporte da sociedade privada e da sociedade civil, que é uma coisa que vai acontecer nos próximos 10, 15 anos. Ninguém ache que de repente o nosso rico brasileiro vai virar mecenas de um ano para outro, quando ele não foi há 500 anos. 

João Marcos Coelho: Eu queria colocar uma outra questão administrativa que o Arthur perguntou se o senhor considera que chegou ao ponto ideal com a orquestra. Do ponto de vista administrativo não parece que está acontecendo, porque... 

John Neschling: Por quê?

João Marcos Coelho: Porque os músicos ainda não têm direitos trabalhistas, os contratos são precários, são contratos de três meses, seis meses... 

John Neschling: Não, não. O nosso não. Um ano.

João Marcos Coelho: Ou de um ano, 12 meses, mas sem décimo terceiro [salário] enfim, sem os direitos trabalhistas normais. E é natural que quem tem um emprego queira ter os direitos trabalhistas. 

John Neschling: Marcos, nós fizemos, nos últimos cinco anos, aquilo que era possível para que essa orquestra sobrevivesse e acontecesse.

João Marcos Coelho: E deixa eu fazer um parêntese, eu acho absolutamente formidável e fantástico, sobrenatural o trabalho que você fez. 

John Neschling: Eu não estou aqui...

João Marcos Coelho: A gente não está discutindo isso. 

John Neschling: Mas eu também não vim aqui para colher elogios, não é essa a minha intenção.

João Marcos Coelho: Nós estamos discutindo essa hipótese de... 

John Neschling: Nós estamos discutindo isso e é importante que se discuta isso. Eu só quero dizer que no início era muito importante fazer essa orquestra. Essa orquestra estava, quando eu vim para São Paulo, há cinco anos atrás, não tinha telefone, não tinha linha telefônica, não tinha fax, não tinha computador, a gente vivia em uma sala emprestada no Memorial da América Latina. A gente pedia telefone de favor do Memorial, não podia telefonar para ninguém, não tinha acústica, não podia ensaiar, tinha que pedir, ensaiava no restaurante. De uma forma ou de outra, em cinco anos nós saímos de uma situação precaríssima e decrépita, eu diria, decadente, em que os músicos não eram dignificados, a dignidade não existia, em que os músicos não tinham tempo para estudar, ganhavam pouquíssimo, tocavam em três, quatro lugares. Isso ainda existe, em tantas outras orquestras brasileiras, infelizmente, porque eu imaginei que a Osesp se transformaria mais rapidamente em um parâmetro, o que parece que ainda não aconteceu, vai levar mais tempo do que eu imaginava que fosse acontecer. Nesses cinco anos, nós transformamos esse grupo de pessoas, algumas muito capacitadas, outras menos capacitadas, alguns mais talentosos, outros menos talentosos, alguns mais idealistas, outros menos idealistas. Nós transformamos um grupo de pessoas, em uma orquestra, hoje em dia, reconhecida internacionalmente, que toca mais de 100 concertos por ano, que toca para mais de cinco mil assinantes por ano.

João Marcos Coelho: Não, isso tudo eu sei, eu queria ouvir o seu empenho... 

John Neschling: [interrompe João Marcos Coelho, elevando o tom de voz] Isso tudo foi feito da forma que nós conseguimos fazê-lo. Se nós esperássemos, naquele momento, resolver todos os problemas um por um, a gente estaria agora ainda, sem telefone e sem fax, entendeu? O que eu acho é que a gente não pode continuar ad aeternum em uma situação precária, sobretudo o que não pode continuar precário é a relação trabalho, músico, a relação trabalhista com os músicos.

João Marcos Coelho: É isso que eu queria ouvir. 

John Neschling: Eu estou inteiramente de acordo com você. A OS é uma saída para regularizar a relação trabalhista dos músicos. Isso vai acontecer se Deus quiser ainda este ano, é do interesse do governo, é do interesse da orquestra, é do interesse do governador, não há ninguém contra a OS. É que para você fazer uma OS, você precisa enfrentar uma série de entraves burocráticos, por mais que você ache que a coisa vai rápido, tem que se criar uma associação, essa associação tem que se habilitar, depois tem que ser escolhidos pelo Estado, tem que se fazer um contrato de gestão, tem que se decidir as formas de poder, isso é uma coisa muito complicada. As coisas mais complicadas são quando se discute o poder, dentro de uma associação como essa, porque de repente, a Osesp virou a cereja do bolo, todo mundo quer mandar na Osesp, não é verdade? Então a gente tem que ter cuidado, fazer isso passo a passo, lentamente, trazer as pessoas competentes. Eu comecei a Osesp com três pessoas e hoje nós somos mais de 300 pessoas trabalhando, a Osesp dá emprego direto, 12 meses por ano, a mais de 300 pessoas.

Eduardo Camenietzki: Fora os indiretos. Mas você não acha que a OS, isso é que me preocupa, porque todos nós, acho que no Brasil, temos um carinho enorme, ganhamos um carinho, porque você conquistou com a Osesp esse carinho de todas as pessoas que amam a música. É um orgulho, todos temos. Agora, inclusive, que vão começar as excursões, nós estamos aí então, torcendo pelo "penta" musical, que nós podemos fazer a partir daí. A minha pergunta é: você está confiante de que uma OS pode ser a solução para realmente. 

João Marcos Coelho: Não, para polemizar esse... [falas sobrepostas]

Eduardo Camenietzki: A esperança mostra... 

John Neschling: Eu não tenho esperança nenhuma em nada. Na verdade, eu não tenho muita confiança nos governos, não! Porque na verdade, a OS pode ser destruída da mesma forma que qualquer instituição no Brasil pode ser destruída. A OS não vai dar garantia nenhuma; ela só vai nos dar mais liberdade burocrática, uma forma de administrar menos ligada aos entraves; mas evidentemente, ela vai permitir à orquestra o aporte dessas verbas. Mas não quer dizer que as verbas venham em primeiro lugar, e que o governo não se furte de suas responsabilidades.

João Marcos Coelho: Bom, é o caso da ópera O ouro do Reno [ópera de Richard Wagner (1813-1883), compositor, maestro, intelectual, ativista político e representante do neo-romantismo alemão, autor também de Tristão e Isolda, entre outras óperas famosas e de estilo bem peculiar] , que você teve de cancelar agora, não é isso? 

John Neschling: Quer dizer, eu cancelei a ópera O ouro do Reno porque o Estado nunca me deu, o Estado nunca havia me dado... Você vê, o Estado nunca me deu a certeza de que iria patrocinar... O Estado me disse: “Vamos fazer ópera O ouro do Reno, sim, mas esse é um projeto que tem que ser feito com a iniciativa privada”. Eu não consegui esse ano um tostão para O ouro do Reno. A vergonha mais absoluta é que nenhum dos empresários brasileiros, sobretudo as grandes empresas alemãs, que ganham fortunas no Brasil, e eu posso citar todas elas, as que eu fui procurar, uma a uma...

Paulo Markun: Que dizer, já houve um trabalho de captação? 

John Neschling: Mas você não pode imaginar! O trabalho foi até o último momento, eu não queria abrir mão do Ouro do Reno e do O anel do Nibelungo [ também de Richard Wagner, baseada em tradições germânicas pagãs e cristãs, juntando lendas das duas com a inclusão de elementos mitológicos de outras culturas], em quatro anos, que seria uma empresa heróica. É como se o Brasil nunca tivesse visto [o filme norte-americano antológico] O vento levou. Aqui no Brasil nunca se fez o Anel inteiro, nunca! A última vez que se fez O ouro do Reno no Brasil foi em 1913, há 90 anos atrás. Quer dizer, quem tocou e quem ouviu não está mais aqui para contar a história. Se na primeira audição do Ouro do Reno, na história moderna do Brasil, e as outras óperas, quer dizer, As Valquírias, Siegfried e o Crepúsculo dos Deuses [todas óperas de Wagner], mais ainda! Nunca se levou isso a sério dessa forma. Portanto para nós seria uma obrigação cultural. E é uma obrigação cultural que as empresas alemãs, que trazem para cá a Filarmônica de Berlim e investem uma fortuna - 300 mil dólares por concerto, para a Filarmônica de Berlim - e esse dinheiro vai direto para Berlim, não fica nem aqui. Porque é a Lei Rouanet que paga isso, para você vê a perversidade dessa lei, não é verdade? Você com a Lei Rouanet, você põe 300 mil dólares na Orquestra de Berlim, paga diretamente em Berlim, eles vêm para cá, fazem um concerto e vão embora. Essas mesmas empresas alemãs, que fazem isso, às vezes em concertos fechados, para o aniversário dos seus diretores...

João Marcos Coelho: Qual seria uma lei de incentivos adequada? 

John Neschling: Deixa só eu terminar. Essa mesma lei não dá um tostão para que uma empresa brasileira, quer dizer, uma orquestra brasileira em São Paulo, a preços popularíssimos, ofereça esse Anel do Nibelungo à grande população brasileira, com um regente brasileiro e com 14 internacionais, da maior qualidade, com gravação ao vivo etc, etc. Nem um tostão, nem um tostão. No entanto, o Credicard dá 4 milhões de reais...

João Marcos Coelho: Com desconto de 100% no imposto de renda. 

John Neschling: ...eu vi hoje no jornal, 4 milhões de reais, para... não sei se é Sandy e Júnior [dupla de irmãos cantores de música romântica de forte apelo popular] uma coisa assim, Sandy e Júnior, se não me engano, para fazer o primeiro disco em em inglês, 4 milhões de reais!

Eduardo Camenietzki: A empresa privada no Brasil só entra depois que o Estado já fez a coisa dar certo.. 

John Neschling: Isso também é a Lei Rouanet, isso que é importante... [falas sobrepostas]

Eduardo Camenietzki: O Estado garantiu tudo, aí a empresa privada aparece, lógico aparece para ver o que vai dar... 

John Neschling: O Estado não tem uma política cultural, então o Estado não tem uma idéia do que quer, então ele simplesmente cria uma forma da empresa privada aplicar em si própria, por exemplo, como é o caso dos grandes bancos das grandes instituições que fazem as suas próprias fundações, e que aplicam dinheiro em suas próprias fundações, no seu próprio capital. Eu digo isso porque é assim a Fundação Roberto Marinho, essa é a Fundação Banco do Brasil, essa é a Fundação Banco Itaú, essa é a Fundação Moreira Salles, essa é a Fundação Alfa, do Banco Alfa. Todos esses bancos aplicam em si próprios: pagam os seus ascensoristas, compram a sua coleção de quadros, com a Lei Rouanet, com o dinheiro do que paga o seu imposto de renda. E uma orquestra como a Orquestra Sinfônica de São Paulo não recebe, não recebe! 

João Marcos Coelho: E as outras orquestras pelo país afora também.

John Neschling: Nem se fala. 

João Marcos Coelho: Exatamente, imaginem as outras.

Dante Pignatari: Eu queria saber, ainda dentro dessa parte administrativa, o projeto da Osesp, além da parte musical, que eu acho que realmente é um consenso entre todos nós, conseguiu uma determinada excelência, um nível de excelência na parte administrativa também, com uma editora, com um Centro de Documentação Musical. A equipe da Osesp tem formação em administração de bens culturais públicos, estudaram na Europa, tem estágios em orquestras norte-americanas. Eu gostaria de saber se existe, por parte da Osesp, por exemplo, a disposição de compartilhar de alguma maneira esse know how, com, por exemplo, outras orquestras que pretendessem se aproximar desse nível de excelência, já? 

John Neschling: Dante, eu acho o seguinte. Na verdade, a gente tem sido encarado como uma espécie de "Ministério da Música," aqui em São Paulo, sabe, e no Brasil. Eu não quero... digo essas coisas sem querer agora soar falsamente modesto ou vaidoso demais. Mas nós somos a instituição que vai desde a edição até a gravação; a gente edita a música, a gente toca a música, a gente grava a música, não é verdade? Nós fazemos um curso de aperfeiçoamento para professores do ensino médio, que agora está formando a primeira trupe de professores - no dia 17 de agosto, vai ter a grande festa dos primeiros professores do ensino médio - que nós fizemos um curso continuado de um ano, para que eles possam levar esses ensinamentos para as escolas. Nós levamos 18 mil crianças.. Na verdade as pessoas esperam de nós que nós sejamos uma espécie de arautos das soluções musicais no Brasil, a gente não pode... Evidentemente...

Dante Pignatari: É porque deu certo, não é? Até o... 

Luiz Paulo Horta: Posso pedir mais uma coisa para esse "Ministério da Música"?

John Neschling: Deixa eu terminar de responder. 

Dante Pignatari: Porque é bom.

John Neschling: Evidentemente, que nós temos todo o interesse de ajudar quem quer que seja. Em primeiro lugar, nós ajudamos porque tem gente da Orquestra de Curitiba que veio para cá para trabalhar conosco, para participar; tem gente da Orquestra de Brasília que veio para cá. Nós temos ajudado e temos oferecido esse trabalho para quem quiser, não é verdade? Mas também tem muita gente que não vem porque acha que não é tão boa assim a Osesp. A gente enfrenta muita desconfiança ainda do meio musical brasileiro. Evidentemente quando você se coloca parâmetros de qualidade muito altos, você exclui as pessoas que não fazem parte desses parâmetros, e acaba afastando uma série de músicos, uma série de administradores, porque não fazem parte, não chegam aos parâmetros que você deseja. Essas pessoas, evidentemente, “caem de pau” constantemente, não só em parâmetros musicais, mas humanos também, porque fazer parte de uma fábrica de música como nós somos, é preciso uma disciplina enorme. Nós somos uma fábrica de cultura, nós damos trabalho... 

Luiz Paulo Horta: Você falou em parâmetros humanos. Há uns anos atrás, eu estive em São Paulo, entrevistando o maestro Eleazar de Carvalho, que estava fazendo 70 anos, aí eu perguntei a ele: “maestro, como é a relação do maestro com a orquestra”? Aí ele me disse: “Meu filho, é o seguinte: a orquestra é o cavalo e o maestro é o cavaleiro. A gente se segura em cima, mas de vez em quando o cavalo dá um salto e a gente vai no chão.” É claro que isso era uma descrição muito no estilo único e inimitável do maestro Eleazar de Carvalho. Como é que o senhor vê esta questão da relação do maestro com a orquestra? 

Paulo Markun: São quantos cavalos? Quantos músicos têm? [risos] 

John Neschling: Nós temos, hoje em dia, 300 pessoas entre coro e orquestra etc. A relação... Eu tenho que falar da minha relação, porque cada orquestra tem uma relação maestro-músicos. A minha relação é uma relação muita sui generis, porque eu praticamente refiz essa orquestra. Então eu peguei essa orquestra do zero, mandei os músicos que tocavam na velha orquestra para casa, durante seis meses, ele estudaram durante seis meses, chamei esses músicos de volta, fiz exames de reavaliação, tripliquei o salário, em suma, fizemos aqui um trabalho enorme. Então a minha relação com esses músicos é quase uma relação de criador-criatura. Quer dizer, eu tenho uma relação de pai com essa orquestra, que nenhum outro regente terá com a Osesp, porque pobre daquele que chegar depois de mim, porque ele vai ter uma relação normal com essa orquestra. Eu tenho uma relação sui generis e anormal, é minha família essa orquestra; eu amo cada um dos músicos dessa orquestra como se eles fossem meus filhos, ou meus irmãos, ou meus tios, ou meus sobrinhos. Eu tenho uma relação muito pessoal com essa orquestra, uma relação de autoridade que também é muito especial, porque eles aceitam a minha autoridade, porque eu sou o pai. E eu sinto isso quando eu chego depois de uma viagem de longa duração, como foi agora, que eu volto para a orquestra, e que há uma espécie de retomada com o papai, entendeu!

Paulo Markun: Como é que o senhor classifica a demissão de seis músicos nessa relação pai e filho? 

John Neschling: A demissão de seis músicos são, são... Não é nessa relação de pai-filho, não se pode...

Luiz Paulo Horta: Então você teve que dar uns cascudos, foi isso? 

John Neschling: Não, não, não. Essa pergunta é boa, porque você não pode colocar dessa forma, não é nessa relação pai -filho, porque eu não demiti meus filhos, entendeu? Eu demiti sete pessoas que colocaram em risco a sobrevivência de um projeto, e esse projeto não pode morrer de forma alguma. Então eu coloquei essas pessoas para fora, eu e a administração, e a administração artística, não foi uma coisa pessoal, não foi uma decisão de momento, foi uma coisa pensada, longa, e esses sete músicos que foram demitidos, foram demitidos, porque estavam colocando em risco a sobrevivência do maior projeto musical que esse país já viu.

João Marcos Coelho: Alguns deles de alta qualidade, não se discute; eles estão na Europa, Estados Unidos. 

John Neschling: Mas eu nunca discuti a qualidade musical dessas pessoas, nunca discuti, não é? Agora também, depois dizerem que a orquestra sofreu, que a orquestra caiu, não é verdade. A orquestra está tocando melhor do que nunca, está em um parâmetro de qualidade mais alto do que nunca, hoje em dia...

Paulo Markun: Mas foi o princípio da autoridade que o senhor acha que estava ameaçado? 

John Neschling: Não, era o princípio de disciplina interna da orquestra. O que acontece aqui no Brasil.... Nunca, não há uma cultura de orquestra sinfônica, não houve uma orquestra sinfônica como a Osesp nunca no Brasil. Então, os músicos até agora não sabiam o que era uma [orquestra]. Como é que vocês se comportam dentro de uma orquestra sinfônica? São coisas novas, a orquestra tem que passar por esses processos de aprendizado. Aqueles que não queriam passar por esse processo de aprendizado e que iam lá para criar confusão, que evidentemente estavam lá numa tentativa de sublevação, esses tiveram que ser afastados. Mas isso faz parte do processo de crescimento da orquestra. A orquestra cresceu, sofreu enormemente com isso, eu sofri, os músicos sofreram. Notou-se, em seguida a esse episódio, um momento de grande sofrimento na orquestra, de grande amadurecimento; as pessoas tiveram que repensar a sua posição, os músicos deixaram de ser funcionários públicos, porque a grande parte dos músicos no Brasil eram sempre funcionários públicos. Chegavam atrasados, tocavam mal, não havia nenhuma conseqüência. Eu sempre digo que na medicina, se um cirurgião vai operar e erra na operação, o paciente morre. Na música o sujeito erra, não acontece nada, ele pode rir e não acontece. Só que na orquestra, agora passa acontecer, nas grandes orquestras que são aquelas que se auto-mantém na sua qualidade, os próprios músicos tomam conta da sua qualidade; eles ouvem o músico do lado, eles não deixam que o músico do lado erre, eles reclamam do seu colega etc e tal. Então, na verdade, essa orquestra teve de crescer nesse sentido. Os músicos tiveram que reavaliar a sua própria posição dentro da orquestra: como é que eu sou, qual é o parâmetro de qualidade que eu tenho que alcançar, como é que eu tenho que chegar preparado aos ensaios, como é que eu posso sentar? É muito difícil um músico sentar, durante muitos anos, na oitava estante de uma orquestra, ou na sétima estante de uma orquestra, e continuar tendo o mesmo drive [impulso] que ele tinha no início da carreira, não é verdade? Não digo nem aqueles que querem ser solistas, mesmos os músicos de orquestra, convencidamente músicos de orquestra, é complicado você sentar quarenta anos em uma quarta estante, entendeu? Então você tem que aprender o que é isso, ver como é bonito, como é bom, como é interessante tocar em grupo. Não é à toa que as sociedades anglo-saxônicas têm orquestras mais bem estruturadas do que as latinas, porque ali você tem uma visão muito mais protestante de tocar em conjunto, da haus musik [termo alemão para concertos caseiros], os latinos são muito mais individualistas.

Tom Zé: Disciplina também, da postura. 

John Neschling: Disciplina, disciplina de grupo, não é verdade? É uma coisa que é muito complicada. Mesmo no futebol você vê isso. Os times anglo-saxões são muito mais disciplinados em grupo, mas têm menos esse brilho individual.

Tom Zé: Menos talento. 

John Neschling: Menos talento do que os times latinos têm.

Paulo Markun: Maestro, um vou pedir licença para o senhor, para fazer um rápido intervalo, e a gente volta já, já. 

John Neschling: Com muito prazer, Paulo.

[intervalo] 

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o maestro John Neschling. Maestro, a pergunta é do Norberto de Almeida, ex-músico da orquestra, segundo ele, “graças a Deus”. Pergunta o seguinte: “Por que é que o senhor vem contratando a sua esposa como primeira flautista, ignorando a opinião dos outros músicos de madeiras [instrumentos como flautas, oboés, fagotes, etc], que não aprovam o desempenho dela como musicista?” E há outras perguntas que ele faz...

John Neschling: Essa pergunta é tão estúpida, que eu nem vou responder. Em primeiro lugar, porque a minha mulher não é contratada como primeira flautista, ela tem um lugar ali como... Primeiro que ela é uma grande primeira flautista e que não precisa na verdade da Osesp, a Osesp precisa dela, muito mais do que ela precisa da Osesp. É uma grande primeira [flautista]. Em segundo lugar, que é absolutamente mentira que os seus colegas não achem que ela seja... Ela toca inclusive no Quinteto de Sopros da orquestra a convite dos colegas dela. E em terceiro lugar, que ela não é música efetiva da orquestra e trabalha na orquestra, como tantos outros músicos que são convidados, porque a orquestra não tem até agora contratados todos os seus postos. Nós temos, por exemplo, dois primeiros violoncelos convidados, temos um primeiro fagote, o Alexandre Silvério, que não é ainda músico efetivo da orquestra, e assim por diante. Diversos músicos que estão tocando... os spallas [primeiro violino de uma orquestra] diversos primeiros concertos, que nunca houve... Isso tudo é bobagem, é estupidez, tem uns imbecis aí que andam falando essas coisas. Mas essa pergunta não vale nem a pena fazer. Portanto eu só queria voltar a falar uma coisa... 

Luiz Paulo Horta: Eu queria voltar àquele tema da questão da relação do maestro com a orquestra, que é um tema tão fascinante que inclusive rendeu alguns grandes filmes, [Federico] Fellini [um dos mais importantes cineastas italianos] fez um, [Stanley] Weiser [cineasta norte-americano] fez outro... E recentemente saiu no Brasil o livro daquele crítico [inglês] Norman Lebrecht, chamado O mito do maestro, que é uma série de histórias um pouco assustadoras...

John Neschling: Escabrosas. 

Luiz Paulo Horta: ...sobre a personalidade do maestro. O que eu perguntaria é o seguinte: se essa necessária autoridade que o maestro exerce sobre a orquestra pode criar a tentação da megalomania dessa personalidade modern life-sized? [life-sized: trabalho de arte ou modelo que tem o mesmo tamanho de pessoa ou da coisa que ele representa]

John Neschling: Pode, evidentemente que pode. Isso vai depender de todo mundo, quer dizer, depende também... você pega um treinador de futebol, ele também pode ter, de repente, a megalomania de se achar um deus, não é verdade? Eu acho que isso pode acontecer em qualquer lugar em que você tem em sua mão uma situação em que o sujeito manda na administração de uma grande empresa, diretor de uma equipe, ele pode ter sonhos megalômanos. Eu acho que, a medida em que você sabe o que quer, artisticamente, culturalmente, que tem uma visão clara de onde quer chegar, você vai atuar de uma forma autoritária, ou com autoridade, para chegar naquele ponto e não porque você quer, narcisicamente, simplesmente ser autoritário ou mandar. Eu acho que precisa de uma certa experiência de vida, maturidade, para chegar em um ponto em que você lidera 100 pessoas, 80 músicos, que têm que começar a tocar juntos, uma peça em que todos têm que tocar uma parte, cada um toca uma parte diferente, cada um acha que sabe o que está fazendo, quer dizer, é muito difícil. O [Herbert von] Karajan [(1908-1989), maestro austríaco conhecido mundialmente] dizia que ele dividia a orquestra em quatro partes. Uma parte da orquestra o adorava e não interessava o que ele fizesse, ele sempre seria adorado por essa parte da orquestra, por mais que ele fizesse porcaria. Mas a segunda parte da orquestra o detestava, e por mais que ele fosse um grande regente, fizesse o melhor do mundo, essa segunda parte o odiaria e sem razão. Duas partes da orquestra, metade da orquestra não estava dando a mínima para ele, entendeu? Tocava porque estava ali tocando e porque era paga para tocar. É para essas metades que ele regia, dizia ele, os outros ele ignorava, os que o amavam ou odiavam, ele sabia que estavam lá, estavam ali as suas posições. Então, na verdade, o que eu faço ali dentro, eu trabalho para aqueles que estão ali sentados, que aquilo ali é sua profissão, é o dia-a-dia, com dignidade. Eu procuro dar a essas pessoas a dignidade, para que elas possam chegar lá todo dia, com o seu material, em uma sala bem limpa, com o material direito, com instrumentos de qualidade, que tenham tempo de ir para casa estudar, que tenham um público que os aplauda, que gravem discos, que ganhem dignamente dentro das possibilidades do país em que vivem e pronto. Essa é uma profissão como qualquer outra, é um hospital, eu sou o diretor do hospital, eu tenho 80 médicos que trabalham para mim, eu procuro dar a eles uma sala de operação bem equipada, limpeza. Em suma, não há nenhuma magia nesse negócio, evidentemente que eu lido com uma coisa abstrata, que é a música, que é a arte, então... 

Luiz Paulo Horta: Então, eu só gostaria, para completar o que o senhor falou, o Leonard Bernstein [compositor e maestro norte-americano] iria reger a Filarmônica de Viena, e perguntaram aos músicos o que é que eles iriam fazer com o Bernstein, aí os músicos disseram: “Nós vamos tocar a pastoral, ele, eu não sei o que ele vai fazer!” [risos]

John Neschling: É isso mesmo, tem maestro assim, isso é uma maldade com Bernstein, porque eles adoravam o Bernstein. Conta-se essa história de outros maestros, mas do Bernstein não. Mas é verdade, eles tocam. O maestro é o único que não toca, não é verdade? É o único que está ali fazendo gestos. O grande trabalho do maestro não é justamente fazer gestos, mas é que através dos seus gestos, ele consiga imprimir personalidade a uma orquestra, um som, uma sonoridade. 

João Marcos Coelho: Só nos ensaios.

John Neschling: Nos ensaios e, no caso de um maestro administrador como eu, também administrar, programar, chamar as pessoas, trabalhar com os músicos. 

Paulo Markun: Tem algo a ver com técnico de futebol? Pergunta boa.

John Neschling: Tem muito a ver com técnico de futebol, tem muito a ver com técnico em geral, tem muito a ver, é uma profissão técnica, não é? É preciso estar como um atleta olímpico. Um músico de orquestra, os grandes músicos são atletas olímpicos. Têm uma vida sacrificadíssima, tocam todas as noites, ensaiam nas horas mais estranhas, nos dias mais estranhos, não tem horário, são especializadíssimos em instrumentos absolutamente sensíveis como o violino, como a flauta, como o corne inglês [instrumento de sopro da família do oboé], como o corne de basseto [instrumento de sopro da família da clarineta], como a tuba wagneriana, em suma, é muito complicado. Então, tem a ver com muito treino, com uma acuidade mental e física extremamente trabalhada, com concentração, com disciplina. 

Luiz Paulo Horta: O Felipão seria um bom maestro?

John Neschling: Eu acho que ele foi um bom maestro na copa do mundo, não é verdade? Ele ganhou. 

Luiz Paulo Horta: O resultado é que define.

Eduardo Camenietzki: Tem o problema da passagem do pódio à estante, que é sempre complicada. Alguns músicos que estavam na estante passaram ao pódio, historicamente, não é? Se eu não me engano, eu acho que o caso do próprio Toscanini. 

John Neschling: É, grande parte dos músicos passaram da estante para o pódio, porque não havia grandes escolas de regência, naquela altura. O músico regente era um músico completo, muitas vezes era um músico de orquestra, um pianista que vinha... Só a partir dos anos 40, 50, que apareceram as grandes escolas de regência e mesmo assim não pegou muito, porque o que tem de pianista, oboísta, contrabaixista e percussionista tentando reger. A regência é uma coisa que você aprende na prática, na verdade, para qual você precisa um talento muito específico, não só o talento musical, mas também o talento de saber como lidar com uma grande massa, como passar para essa gente uma interpretação complicada, sem ser chato, sem dar informações desnecessárias, é muito difícil! É uma técnica muito complicada.

Arthur Nestrovski: Bom, já que falamos de educação musical, já que a própria Osesp tem um projeto de educação musical, são duas perguntas: primeiro, como vai esse projeto? Qual a idéia da escola de música da Osesp? E segundo: digamos que tenha um jovem de 17, 18 anos muito talentoso, quer ser maestro no Brasil, o que deve fazer? 

John Neschling: Daí são duas coisas: a escola de música não é necessariamente uma escola de regência. O nosso projeto musical faz parte do tal "Ministério da Música" que nós temos que fazer. Eu parto do princípio de que não é só a escola da Osesp que é necessária, é necessário o ensino de música no país. Esse país é um país completamente despreparado para a música hoje em dia. O ensino musical nas escolas é um ensino que não existe mais, que já existiu e não existe mais. Hoje em dia, você tem uma preparação para as artes plásticas no Brasil muito maior do que para música nas escolas. E a falta desse preparo, que não é só preparo de músico, é preparo de público, na verdade, porque a apreciação musical nas escolas não é só para os músicos, mas para aqueles que depois vão aos concertos e vão curtir a música, seja ela qual for. A boa música não precisa ser necessariamente música clássica, e nem precisa ser necessariamente jazz, ela pode ser qualquer boa música. Eu acho que a Orquestra de São Paulo, a nossa orquestra, o que ela, o nosso... Nós temos dois projetos principais. O primeiro é criar, ou melhor, apetrechar os professores para que eles possam voltar para as suas salas de aula e dar apreciação musical para os seus alunos, depois trazer os alunos para a Sala São Paulo. Nós fizemos isso com uma série de professores esse ano, continuamos fazendo. O segundo grande projeto que nós temos - e esse projeto vai muito além de somente apetrechar os professores - vai no sentido de criar um site de música, onde as crianças podem entrar diretamente no site, e trabalhar com música no site. É um projeto enorme, profundo e complicado. O outro projeto que nós temos é a criação de uma escola técnica para músicos de orquestra, porque os músicos têm que começar muito cedo para ser, o que é diferente de um médico, ou de um engenheiro que vai aos 18, 19 anos estudar engenharia. O violinista que não começar aos 10 anos, aos nove anos nunca mais vai ser violinista.

Paulo Markun: Neschling, só um rápido parênteses, o Luiz Fernandes Caderim, que é aqui de São Paulo, diz que foi violinista da Orquestra Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo Maestro Eleazar de Carvalho, que foi criada pelo senhor no Festival de Campos de Jordão. Ele pergunta: “O que é que o senhor acha das orquestras jovens? E se o conceito de orquestra de estudantes é hoje o mesmo de 23 anos atrás?” 

John Neschling: Eu acho que as orquestras jovens são importantíssimas desde que elas não se transformem em bico, desde que não se transformem em semi-profissionalismo. O que acontece aqui no Brasil é que as orquestras jovens são consideradas hoje em dia, um bico para jovens alunos que ganham lá uma bolsinha de estudos e vão trabalhar e viram semi-profissionais. Na verdade são explorados pelas instituições, porque não são nem profissionais nem mais alunos. Então, eu não gosto da idéia de orquestra jovem no Brasil. A Orquestra Jovem de São Francisco, por exemplo, que é uma orquestra famosíssima, que viaja para o mundo inteiro, do Michael Tilson Thomas, que faz parte da Orquestra Sinfônica de São Francisco, não ganha um tostão, é uma honra para os meninos poderem estudar e tocar naquela orquestra. E não é uma orquestra semi-profissional, é uma orquestra jovem, é uma espécie de - evidentemente que a situação no Brasil é diferente, você tem alunos que precisam de uma bolsa de estudos para poder pagar o transporte para ir lá. E nós não estamos trabalhando aqui com uma classe média imensa, que tem não sei quantos instrumentos em casa, que pode, que tem... Nós temos que pagar merenda... Eu concordo com isso. Agora, transformar a orquestra jovem em uma forma de sobrevivência para ajudar em casa, os caras acabam ganhando dois salários mínimos, vão levar em casa o dinheiro... Aí não. E uma orquestra experimental de repertório, que tem músicos de trinta e poucos anos, entendeu? Isso não existe, essas orquestras eram orquestras jovens, que estavam aqui para... Eram orquestras que deviam criar jovens dos 14 anos aos 17, para que eles se transformassem em músicos profissionais. Eles ficam até os 30 nas orquestras jovens, hoje em dia, tocando e tocando barato, pela metade do preço de um profissional, e fazendo as grandes temporadas, mal feitas. Então não tem sentido, eu não acho que seja por aí. Eu só tenho que acabar de dizer que tem um projeto da orquestra da escola, esse projeto da escola é um projeto que me é muito caro, que é um projeto de escola técnica para músicos de orquestra. Só que como no Brasil, geralmente, os músicos vêm das bandas, vem do interior, em que eles tocam um instrumento mais cedo do que aprendem a música, vamos ter que fazer uma coisa muito especial, que é ensinar música para essas pessoas também. Na verdade, eu queria fazer só uma escola superior de instrumentos, mas eu vou ter que ensinar música também. Então, a minha idéia é fazer uma academia ligada à Osesp, na qual a Osesp tenha um corpo de professores que ensinem, e outros professores que ensinem solfejos, teorias, instrumento, tudo, e que se transforme em uma escola padrão. Assim como a Osesp é uma orquestra padrão, que eu faça uma escola padrão na América Latina para músicos, especificamente músicos de orquestra.

Arthur Nestrovski: Isso é para quando? 

John Neschling: Isso é para quando nós tivermos dinheiro. Isso é muito caro, isso é para quando nós pudermos fazer, por exemplo, uma co-produção com a Secretaria de Educação também, ou com o Ministério da Educação, ou quando nós tivermos dinheiro do Estado, ou quando tivermos dinheiro de grandes empresas particulares, que nos dêem. O projeto está prontíssimo, eu tenho livros escritos sobre isso, eu tive pessoas que vieram de todo o Brasil e que fizeram... O projeto está completamente pronto para ser colocado em prática, o que eu preciso é de dinheiro.

Paulo Markun: Tom Zé. 

Tom Zé: Heim! Ah, é para eu perguntar?

Paulo Markun: É se você quiser. 

Tom Zé: Ah, pensei, que vocês iam me provocar de alguma maneira. Eu estou aqui, tão feliz, tocando meu violino na quarta estante, como ele mesmo disse, que eu estou tão..., recebendo informações tão preciosas e tal, de todo esse tipo de coisa, que eu não me lembrava... É claro, eu estudei numa escola, vi uma orquestra, vi os problemas que [...] teve na Bahia, e quando ele saiu, o que aconteceu com aquela orquestra... Mas só tem uma coisa que eu vou forçar aqui para transformar em pergunta, maestro? É engraçado como um mito se intromete nas coisas aparentemente mais cotidianas. É como uma juna, que o senhor teve que matar sete ou oito pais, filhos ou netos para poder... Outra coisa importantíssima no Brasil é a força do fracasso, como os queixosos. Quem está com queixa parece que está falando do pedestal das prerrogativas estéticas, em qualquer hora que isso se manifestou aqui, perguntas que vieram pelo telefone, vieram com esse sentido, não é?

John Neschling: Por isso que a minha resposta foi também um pouco agressiva. Eu peço desculpas aos ouvintes e espectadores, pela agressividade da minha resposta, mas é que eu fico tão, hoje em dia, tão irritado com essa constante agressão que você recebe, na medida em que você faz sucesso, na medida em que você apresenta um resultado, na medida em que as pessoas vão lá - basta ir à Sala São Paulo ouvir, não é preciso mais nada, e só preciso ir lá, ver a sala, ouvir a orquestra e conferir o que nós estamos fazendo. Por que é preciso criar sempre uma celeuma... Basta ir e ouvir as outras orquestras. Basta ouvir os outros teatros para ver a diferença do que a Osesp está fazendo... E daí, por que é que não fala das outras, você entendeu? Onde o músico não ganha, onde o músico recebe atrasado há seis meses, onde a qualidade é péssima, onde não se toca música brasileira, onde não se grava. 

Paulo Markun: Eu não estou aqui para defender o partido dos telespectadores, que, aliás, não precisa de defesa. Mas nós temos várias perguntas justamente nessa direção...

John Neschling: Eu imagino que tenha. 

Paulo Markun: Não na direção da reclamação do fracasso, mas na direção de reconhecer o bom funcionamento da Osesp e de querer que a sua orquestra funcione bem. É o caso de Alexandre Teixeira, de Vitória, no Espírito Santo, que diz o seguinte: “A Osesp, graças ao incentivo estatal, está vivendo uma fase excepcional, semelhantemente ao que aconteceu com a Orquestra Sinfônica da Paraíba na década de 80. Lá na Paraíba a orquestra quase acabou, quando mudou o governo”. Ele pergunta: “Como a Osesp pretende sair desse círculo vicioso de dependência de poder político de ocasião?

Tom Zé: Olha, desculpa, antes do Neschling responder, o próprio Markun, outro dia, falou de um negócio que se chama “audiência a todo custo”, ele próprio escolheu as perguntas, mais contra a orquestra. É claro que deve ter perguntas carinhosas aí. 

John Neschling: Essa pergunta é carinhosa, essa pergunta é carinhosa. Deixa eu responder, porque é uma boa pergunta, é uma pergunta que aflige a todos na verdade, eu recebo essa pergunta quase todos os dias. Eu preciso dizer o seguinte: todas as orquestras do mundo são dependentes do governo, mesmo as orquestras particulares americanas são dependentes do governo. Porque a generosidade fiscal nos Estados Unidos é muito maior que aqui, mas no fundo é dinheiro do imposto que se aplica nas orquestras, então todas as orquestras do mundo dependem ou diretamente do Estado, ou da generosidade do Estado, que permite que os cidadãos apliquem seu imposto de renda nas orquestras. Portanto não há orquestras privadas nesse sentido, isso é coisa do século XVIII. A orquestra privada era orquestra de nobre, não é verdade? Então, todas as orquestras vão sempre depender, e você tem constantemente no mundo inteiro orquestras acabando, porque os governantes ou estrangulam a orquestra, ou porque se acabam os incentivos fiscais. Ora, isso aconteceu na Itália há alguns anos atrás, quatro orquestras foram terminadas de um dia para o outro. A Orquestra Sinfônica da Rádio Roma, a Orquestra Sinfônica da Rádio Milano, a Orquestra Sinfônica da Rádio Nápoles foram terminadas no dia 30 de junho ao dia primeiro de julho, deixaram de existir, porque o governo deixou de pagar essas orquestras. Você tem orquestras nos Estados Unidos que estão constantemente com grandes problemas, você tem orquestras particulares que estão acabando. Saint Louis está em grandes dificuldades, Chicago, que é uma orquestra mítica, está em dificuldades nesse momento; Detroit quase acabou. Portanto, essa história de que só no Brasil há o ciclo de acabar e começar é um pouco de mito, todas as orquestras dependem da boa vontade do governo. O que é preciso é haver uma tradição de sobrevivência das orquestras, assim como tem que haver uma tradição de que o maestro pode ficar mais de cinco anos na frente de uma orquestra. O Karajan ficou 35 anos na frente da Filarmônica de Berlim, [Ricardo] Mutiestá há 22 anos na frente do [teatro] Scala de Milão. E na medida que você tem muito tempo para criar uma tradição, quer dizer, os grandes maestros americanos que criaram [a Orquestra de] Cleveland,[como] George Szell, [Fritz] Reiner, [a de]Chicago, [Eugene] Ormandy, com a [Orquestra da] Filadélfia, ficaram décadas à frente dessas orquestras, trabalhando pouco a pouco, criando essa tradição da orquestra na cidade, da orquestra no país. É isso que vai criar a sobrevivência da Osesp, quando a Osesp estiver suficientemente capilarizada na sociedade e que o desmantelamento da Osesp signifique um ônus político grande demais, aí ela terá a sua garantia de sobrevivência. Eu acho que hoje em dia, a Osesp já é uma orquestra, já é uma realidade. Eu acho que o nosso amigo, nosso companheiro que tenta paragonar [comparar] a orquestra [Osesp] com Paraíba, não é bem assim. A Paraíba foi realmente um sonho de um governador que era o Tarcísio [de Miranda] Burity, que quis fazer uma orquestra na Paraíba, e fez, ele, uma orquestra pessoal na Paraíba, quase nos moldes do século XVIII, do grande mecenato, da grande orquestra, criou lá. E até fez uma coisa boa que foi juntar a orquestra com escola e tudo. Só que o Wilson Braga, que foi o governador que veio logo depois dele, acabou com a orquestra, e quando o Tarcísio Burity voltou depois, não conseguiu mais reerguer a orquestra. Ela existe até hoje, mas é diferente, porque a Paraíba, por mais que você queira, não é São Paulo, ou seja, João Pessoa não é São Paulo. E não é um meio no qual uma orquestra possa frutificar como uma orquestra pode frutificar em São Paulo. São Paulo é a única cidade do Brasil que tem condições de manter uma orquestra sinfônica como uma Osesp, e que precisa manter uma orquestra e ter uma orquestra com a Osesp. E se São Paulo tem a Osesp e a Osesp hoje em dia, como disse o nosso colega Eduardo, é uma orquestra que dá orgulho ao cidadão. Eu vejo, quando eu não rejo, quando estou no saguão da orquestra conversando com as pessoas, e as pessoas aparecem lá, dizendo: “Eu tenho vaidade, eu tenho orgulho, eu venho para cá, eu gosto, isso aqui é um orgulho, isso aqui virou uma marca de São Paulo”. É aí que eu imagino que a orquestra pode sobreviver, não porque o próximo governador, ou porque o governador que eu espero seja reeleito e vá manter a orquestra viva, porque esse vai, não sei se os outros vão, mas se vão ou não vão, também é secundário. À medida que a orquestra for importante, que ela for fundamental na vida da cidade, que a cidade vestir a camisa da Osesp, nenhum governador vai ter o poder de acabar com essa orquestra.

Luiz Paulo Horta: Maestro, o que é que, nesse contexto, significou a Sala São Paulo? 

John Neschling: A Sala São Paulo foi fundamental para o início, porque quando eu disse “eu preciso de uma orquestra em uma sala”, eu sabia que não adiantava construir uma sala de 40 milhões de dólares e depois não ter uma orquestra dentro. Eu me senti muito mais seguro no início, quando nós inauguramos a Sala São Paulo, porque era impossível você... Essa orquestra foi construída, quer dizer, a sala foi construída para uma orquestra.

Paulo Markun: Maestro, eu queria pedir licença para o senhor, pelo seguinte: nós temos dois minutos da inauguração da Sala São Paulo com áudio, com as imagens, sem nada além da música e das imagens. Eu queria exibir para corroborar isso que o senhor falou. 

John Neschling: Obrigado.

[VT da Orquestra Sinfônica de São Paulo, executando Gustav Mahler, Sinfonia n0.2, “Ressurreição”, em 2 de julho de 1999] 

John Neschling: É bonito, não é?

Paulo Markun: A pergunta é a seguinte, maestro: por que o senhor escolheu uma obra tão complicada? 

John Neschling: Eu acho que todas as obras são complicadas, qualquer obra para ser bem tocada é complicada. Essa obra chama-se “Ressurreição”. Eu acho que nós tínhamos que, naquele momento, festejar a ressurreição da orquestra sinfônica do país, de uma grande orquestra sinfônica, a ressurreição da Osesp, sobretudo, que tinha, como a gente comentou no início aqui, passado por um processo de destruição e decrepitude enorme, eu acho que não havia nada melhor do que fazer, a sinfônica, a segunda sinfonia de Mahler. Não é tão complicada como parece. É uma sinfonia grande, difícil, mas eu acho que a Júpiter, de Mozart, é tão complicada quanto a segunda de [Gustav] Mahler. Se você quiser fazer bem Mozart, ou bem Beethoven, ou bem [Franz Joseph] Haydn, é tão complicado quanto fazer Mahler. Você consegue até esconder mais coisas em Mahler, do que você esconde coisas em Mozart e Haydn, onde a transparência é muito maior.

Paulo Markun: O senhor falou de vários projetos, nenhum deles estritamente musical, quer dizer, reger uma determinada peça na Osesp, qual seria esse? 

John Neschling: Não, mas eu tenho uma série de projetos musicais aqui... a gente é sempre levado pela...

Paulo Markun: Está falando mais da política cultural. 

John Neschling: É sempre levada a falar de política cultural, eu acho importantíssimo, porque a parte... A coisa mais fácil de fazer hoje em dia é a programação da Osesp, uma orquestra grande, que tem todas as possibilidades virtuosísticas e técnicas de fazer o que você quiser. Então eu sento ali e penso: “ah, eu gostaria de fazer a Sagração da Primavera [balé em dois atos composto por Igor Stravinsky]”. Pode fazer; está lá a orquestra, estão lá os músicos, a gente faz a Sagração perfeita, como fizemos. “Eu gostaria de fazer os cinco ciclos de Mahler”. Pronto, já estamos acabando, já estamos fazendo a sétima este ano, falta só a oitava e a nona. Eu gostaria de fazer o que for! “Quero gravar as sete sinfonias de Camargo Guarnieri bem gravadas”. Vamos gravar. Então, na verdade, eu tenho diversos planos musicais. Mas, sobretudo, o primeiro plano musical é de melhorar constantemente a qualidade instrumental, ou seja, não só dos músicos, mas dos instrumentos da orquestra, porque uma orquestra se faz também dos instrumentos que ela toca, ou seja, eu preciso comprar bons violinos para essa orquestra, porque muitos músicos vêm com instrumentos que não são tão bons; eu preciso ter uma unidade maior nos arcos, nos violinos, você não pode imaginar como é caro comprar um arco de violino, hoje em dia, não é verdade? Um bom arco.

Paulo Markun: Quanto é que custa? 

John Neschling: Ah, ele pode custar de mil a cinqüenta mil dólares, um arco de violino, um bom arco de violino. Mas se for um arco antigo... mas nós estamos falando de arcos bons, mesmo assim a gente consegue arcos industriais baratos por volta de mil dólares o arco, mil e poucos dólares o arco, mas a gente precisa de bons instrumentos, bons arcos, boas trompas. Compramos agora as famosas tubas wagnerianas, que só tem na Alemanha, então tivemos que mandar fazer, leva tempo para chegar, para podermos fazer - era para fazer O anel do Nibelungo, que nós não fizemos - mas dá para fazer a Sinfonia de [Anton] Brukner, por exemplo, que precisa das tubas wagnerianas, e assim por diante. Outros instrumentos como uma harpa nova, um piano novo, isso tudo são projetos musicais que a orquestra tem, de tocar ciclos, repetir... Você tem que imaginar que a orquestra durante os primeiros cinco anos, praticamente, a cada semana, tocava um repertório novo. Como a orquestra não tinha tocado muito, poucas coisas, ela era muito especializada em um pequeno Eleazar - com todo respeito - tinha um repertório muito pequeno, e a orquestra repetia constantemente aquele repertório. Nós abrimos o repertório de uma forma incrível, quer dizer, tocamos desde o século XVII até o século XXI. Tocamos tudo: muita música brasileira, muitas primeiras audições de música brasileira, muita música do século XX. 60% do nosso repertório é música do século XX e XXI, isso é um coisa especial, que dizer, dos 60% de música, 50% é música brasileira. Nós somos a orquestra que mais toca música brasileira no país e que mais editamos, projetos musicais é o que nós temos aos montes; trazer grandes nomes a preços reduzidos, subvencionar a vinda de Kurt Mazur [renomado maestro alemão] ao Brasil, já volta no ano que vem, grandes pianistas, grandes violinistas, grandes trompetistas, grandes harpistas, grandes compositores. Fizemos a [...] este ano aqui em São Paulo, que é uma peça que nunca tinha sido feita no Brasil, foi um sucesso impressionante. Na semana seguinte fizemos Pierrot Lunaire de [Arnold] Schoenberg, junto com o concerto de [Alban] Berg para violinos; quer dizer, repertórios que outras orquestras não teriam coragem de fazer porque não são tão subvencionadas como nós, que somos mais libertos das amarras da necessidade de ter um público. Mesmo assim, os concertos de música contemporânea são os concertos que mais sucessos têm, com a Orquestra Sinfônica do Estado.

Paulo Markun: Maestro, eu vou pedir mais um intervalo para o senhor, a gente volta em seguida. 

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, entrevistando o maestro John Neschling. Maestro, essa não veio pela internet não, ela está no site do jornal O Estado de S. Paulo, dizendo o seguinte: “Um impasse ameaça a continuidade do maestro John Neschling à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo”. O impasse seria que por decisão pessoal do governador Geraldo Alckmin, o contrato de Neschling com o Estado que é intermediado aqui pela Fundação Padre Anchieta, que é a mantenedora da TV Cultura, está sendo renegociado, e o maestro terá que baixar suas pretensões salariais, se quiser continuar no cargo. Eles mencionam aqui que o senhor ganha 20 mil dólares mensais, como o jornal O Estado de S. Paulo teria informado em 97, mais 9 mil por regência, e que o contrato é feito no padrão dólar, e que o senhor recebe no exterior, e que o governo quer que passe a receber no Brasil em real e que o valor seja menor, é fato? 

John Neschling: Não, é tudo mentira. Em primeiro lugar, eu não recebo no exterior, sempre recebi no Brasil, sempre recebi em real. Havia uma referência a dólar, mas isso não interessa. Meu contrato foi renegociado, o governador nunca teve nada a ver com isso, é um affair [negócio] do secretário de Cultura. Esse jornalista faz parte de uma corja que é uma gentalha mesmo, gentúcia eu diria, sabe? Uma espécie de... É uma coisa horrorosa, de pessoas que inventam histórias. Esse artigo é tão inventado que nem foi para o jornal, ele ficou no site; ele é completamente inverídico, tudo o que esse artigo diz é mentira. E eu me pergunto como as pessoas fazem isso, com que direito essas pessoas invadem a minha privacidade. Se eu perguntar a você, Markun, quanto é que você ganha?

Paulo Markun: Pouco. [risos] 

John Neschling: Eu também, eu também, quanto é que você ganha? Por que vem perguntar para mim quanto é que eu ganho, que história é essa?

Arthur Nestrovski: Porque é verba pública. Esse é o princípio da pergunta. 

John Neschling: E a verba do [Luiz Felipe] Scolari [técnico da Seleção Brasileira de Futebol que foi a campeã da Copa do Mundo em 2002] não é pública, da CBF [Confederação Brasileira de Futebol]?

João Marcos Coelho: Não, não é. 

John Neschling: Como é que não, a CBF...

João Marcos Coelho: A CBF é privada. 

John Neschling: A CBF é privada?

João Marcos Coelho: A CBF é privada, não é governo, não.

John Neschling: A CBF não é privada!

Arthur Nestrovski: É totalmente privada. 

João Marcos Coelho: Não é governo, é privada.

John Neschling: E quem pergunta para o [Gustavo] Kuerten [tenista brasileiro] o quanto ele ganha? Eu negocio os meus contratos e está acabado! Eu sou um artista que negocio o meu contrato com quem for e ganho o que eu acho que seja necessário, e o que as pessoas me pagam, eu ganho e acabou-se! E o que as pessoas têm que ver é o meu trabalho, é o que eu faço, é o que eu apresento. Não gostou, demite. Pelo amor de Deus! Mas é assim que se faz na vida, não é verdade? Eu tenho um mandato, o mandato é feito, e eu faço um contrato com quem eu bem entender e faço o meu trabalho. Dou trabalho a 300 pessoas, produzo arte e cultura, melhoro a visão que o mundo tem deste país, desta cidade, levo essa orquestra para tocar música brasileira fora do país, gravo música brasileira para o mundo inteiro comprar. 

João Marcos Coelho: Maestro, deixa eu colocar duas coisas mais...

John Neschling: Levo a orquestra para os Estados Unidos e para a Europa, tenho 5800 assinantes dentro da Sala São Paulo, levo 130 mil pessoas para a Sala São Paulo. E as pessoas vem me perguntar quanto eu ganho? Por que é que não vão ver o quanto se gasta com a porcaria das orquestras que têm 200 pessoas nos concertos e que gastam a metade do que a gente gasta para nada, para deseducar as pessoas. Então, isso é um absurdo, é exatamente o que o Tom Zé, meu amigo Tom Zé dizia, é a impossibilidade de você aceitar o sucesso do próximo. É o que Tom Jobim dizia, que o Brasil detesta quem faz sucesso, não é verdade? O Brasil odeia quem faz sucesso e adora a mediocridade, porque se compara com ela própria, não é verdade? Essa história de não posso fazer parte do clube que me aceita de sócio. 

Eduardo Camenietzki: Mas eu acho que não é só isso, Neschling. Tem um detalhe só que eu acho importante nessa história toda é que há uma sinistrose no Brasil realmente, como você citou, e que sempre vai aparecer na hora que se gasta um volume de verba pública, em algo que é cultura, e se deixou de aplicar em algo que deveria de ser aplicado. Então, é sempre assim. O próprio Ministério de Cultura coloca como fundo perdido. Você fez uma análise também e deve saber que esse é um ato falho, chamar um dinheiro que você aplica para reformar um museu, ou aplica para... como fundo perdido, e outros que se... Fundo perdido, não! Isso é um investimento em cultura, um investimento em cultura ainda é visto como...

John Neschling: É, mas também tem um erro enorme aí, é que o fato de você fazer hoje em dia... 

Eduardo Camenietzki: É chamado de fundo perdido porque não tem retorno.

John Neschling: Você fazer cultura é tão importante quanto ter hospital. 

João Marcos Coelho: Evidente.

John Neschling: Você não terá cultura se você não tiver hospital, e não terá hospital se não tiver cultura, entendeu? Esse negócio é o seguinte: o Brasil precisa sim de escola de ensino básico, precisa sim de ensino nas escolas, mas precisa sim do Projeto Genoma, precisa sim de um Hospital do Câncer, precisa sim do Hospital do Coração, precisa sim de parâmetros de qualidade altíssimos que levem o Brasil a fazer melhor o que ele faz na base. Se fizesse uma base, não vai aparecer nunca. A pesquisa é importantíssima, não há pesquisa no Brasil, não se investe em universidade e não se investe em música. E dizer que não se investe em música... A Orquestra não custa um metro de túnel que se faz em São Paulo, entendeu? Um viaduto de três metros custa mais do que a Orquestra por ano, aqui em São Paulo. Então é uma besteira pensar nisso em São Paulo, uma cidade de 16 milhões de habitantes, que quer fazer parte do Primeiro Mundo, que não tem dinheiro para manter uma orquestra média, que ganha muito menos do que ganha uma orquestra européia. É um absurdo! Essa conversa é uma conversa de jogar fora, é conversa de medíocre, é conversa de pessoas pequenas, que não conseguem ver além do seu próprio nariz. 

João Marcos Coelho: Eu queria voltar para a música. O senhor tocou em dois pontos importantes. Primeiro, quanto à questão das orquestras jovens, eu conversando com um músico outro dia, que deu aulas em Campos do Jordão muito tempo, ele atribui a esse falso profissionalismo do músico de orquestra jovem, o esvaziamento progressivo do Festival de Inverno de Campos do Jordão, que hoje enfrenta problemas para bolsistas etc.

John Neschling: O esvaziamento de Campos de Jordão... 

João Marcos Coelho: Porque eles já se sentem meio profissionais, então acham que...

John Neschling: Você pega um músico de 17 anos e começa a dar um dinheirinho para ele tocar, ele se acha um profissional, entendeu? E passa depois anos tocando por dinheirinho. Mas o próprio Festival de Campos do Jordão foi muito esvaziado porque tem muito pouco dinheiro, não pode fazer, é muito difícil... 

João Marcos Coelho: A sequência da pergunta era porque que ele não...

John Neschling: ...você programar um concerto, um festival a curto prazo, um festival tem que ser programado a longuíssimo prazo, é muito difícil nesse momento. A Secretaria da Cultura é uma secretaria muito pouco... Tem muito pouco dinheiro a Secretaria da Cultura. Você pensa que a grande briga da classe cultural brasileira é tentar ver se consegue 1% do nosso orçamento para a cultura, quando o orçamento da cultura é 0,00 alguma coisa, entendeu? Então, é muito difícil. A Petrobras aplica mais em cultura no Brasil do que a Secretaria Estadual do Estado de São Paulo de Cultura, no estado de São Paulo. Portanto é muito difícil uma secretaria que tem que manter uma orquestra sinfônica como a Osesp, tem que manter a Pinacoteca, tem que manter o Arquivo do Estado e fez um trabalho enorme; agora fez o Museu do Imaginário Brasileiro, do povo brasileiro, faz o Festival de Campos do Jordão, tem Projeto Guri. É uma secretaria extremamente ativa, uma secretaria importantíssima e que trabalha com o mínimo. A Secretaria da Educação tem dezenas de vezes mais dinheiro do que a Secretária da Cultura. É muito difícil falar mal de alguma coisa, porque o esforço que se faz na Secretaria da Cultura é um esforço absolutamente hercúleo aqui. 

João Marcos Coelho: Mas a minha pergunta era com relação à mentalidade do músico jovem, que fica distorcida, não é?

John Neschling: A mentalidade é outra coisa, é porque aqui no Brasil as orquestras jovens se transformaram, já falamos nisso, em "bicos", em pequenos cabides de emprego. 

Luiz Paulo Horta: Nessa programação da Osesp que o senhor mencionou que é variada, que vai até o século XX, tem um tipo de repertório que o senhor faça com uma paixão especial, ou o maestro não tem direito de ter preferência pessoal?

Paulo Markun: Essa é a pergunta aqui de Benedito Soares, de Cosmópolis, interior de São Paulo. Como é escolhido o repertório? Quem escolhe?  

John Neschling: O repertório é escolhido como em todos os lugares do mundo. Qual é o repertório que você escolhe para um disco? As músicas que fazem sucesso. Eu escolho um repertório, evidentemente que é o diretor artístico que escolhe o repertório sempre consultando o diretor artístico adjunto e em conversas com o... mesmo ouvindo o feed back e o input que o público me dá. Mas quem é responsável pela programação sou eu. Como é que eu escolho? Eu tenho uma série de peças, que são as peças que a orquestra tem que tocar, principalmente aquelas que o público espera que a orquestra toque: as grandes, as sinfonias de Beethoven, as sinfonias de [Johannes] Brahms, um grande repertório, um repertório clássico romântico. Depois eu procuro trazer ao público uma série de obras que de outra forma ele não ouviria; o cara não vai a uma loja de discos comprar um concerto de Alban Berg para violino. Então eu faço o concerto de Alban Berg para violino, eu faço Pierrot Lunaire, de Schoenberg, faço Three places in New England, de Charles Ives. Depois eu dou uma enorme importância à música contemporânea e à música do século XX, porque eu acho que se nós não fizermos isso, ninguém vai fazê-lo. E, em último lugar, eu dou uma importância grande à música brasileira, porque somos nós que temos que fazer a música brasileira nesse país, porque se não formos nós, ninguém mais vai fazer. Portanto o repertório é escolhido por mim, pela direção artística, em consultas com outras instâncias e recebendo muitos inputs do povo.

Luiz Paulo Horta: Agora, tudo isso é a voz da razão, e a sua emoção, aonde é que vai? 

John Neschling: A minha emoção é minha, pessoal, mas a pergunta que você fez é se eu acho... eu procuro não impor o meu gosto na programação da Osesp, mas eu rejo aquilo que eu gosto, você entendeu?

Luiz Paulo Horta: A gente quer saber o seu gosto? 

John Neschling: Meu gosto é um gosto... Eu sou na verdade um músico clássico, que vem da escola vienense. Então eu tenho uma predileção por Mozart, Beethoven, Brahms, Mahler, [Johann] Strauss, e o século expressionista, ou seja, Shoenberg, Berg, [Alexander von] Zemlinsky, que eu vou fazer esse ano, por exemplo, a Sinfonia Lírica, que é uma peça que não se faz nunca; eu vou fazer o Capricho, de Strauss. Então, isso é a minha predileção pessoal, mas não quer dizer que não se faça Berlioz, por exemplo, no ano Berlioz, que não se faça Cesar Franck, que não se faça Tchaikovsky, que não são, digamos assim, os meus preferidos. Mas eu, absolutamente, acho que não tenho nenhum direito de impor o meu gosto à Osesp, eu só imponho meu gosto nas obras nas quais que eu vou reger.

Dante Pignatari: Maestro, isso quanto ao repertório. Bom, na temporada de 2001 a Lígia Amadio... 

John Neschling: Amadio.

Dante Pignatari: Amadio, a regente brasileira escolhida para dirigir a Osesp. Neste ano de 2002 a gente tem o Luís Gustavo Petri, que vai reger agora. 

John Neschling: Entrou agora um rapaz, um jovem rapaz chamado Arakaka, um jovem...

João Marcos Coelho: Que ganhou o concurso? 

John Neschling: Que ganhou o concurso Petrobras.

Dante Pignatari: Eu queria saber: quais são os critérios que norteiam a escolha dos regentes convidados? 

John Neschling: Qualidade, só há um critério, qualidade. Evidentemente que eu não sei de antemão se a qualidade que eu gostaria que ele tivesse, ele vai apresentar quando chegar, isso eu não posso saber. Mas eu me norteio por aquilo que eu conheço do maestro, que eu leio do maestro, se eu conheço ele pessoalmente, aquilo que eu ouvi do maestro, somente qualidade. Eu queria dizer uma coisa muito importante, eu recebo, por exemplo, perguntas de pessoas: “Por que eu sou paulista e não consigo tocar com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo?” Horas bolas! Se fosse assim, todos os nova-iorquinos tinham que tocar na Filarmônica de Nova Iorque, e todos os vienenses com a Filarmônica de Viena. Eu acho que a Orquestra de São Paulo é uma orquestra de chegada, neste momento, não é uma orquestra de princípio, não é uma orquestra de partida. Você tem diversas outras orquestras no Brasil, orquestras mais importantes, menos importantes, e você não pode querer que a Orquestra de São Paulo seja aquela que receba todos aqueles que querem tocar com a Orquestra de São Paulo. Eu tenho sim um parâmetro que é a qualidade, um certo nível de carreira, um certo nível de qualidade já demonstrada na sua carreira, para que a pessoa possa tocar com a Orquestra de São Paulo. Isso não significa que eu não dê também oportunidade a jovens, como é o caso da Lígia, como é o caso do Petri este ano, como é o caso do Pablo, um jovem pianista que tocou conosco, e como é o caso de outros pianistas brasileiros e jovens músicos brasileiros que tocam conosco, o músico de orquestra inclusive. Mas eu não posso é, de repente, me transformar no grande celeiro de músicos brasileiros, porque eu tenho que manter uma certa... inclusive porque a própria orquestra exige dos maestros e exige dos solistas a qualidade que eles apresentam como orquestra hoje em dia. Você não pode botar um mal regente na frente dessa orquestra, senão a orquestra não toca mais, o que é perfeitamente compreensível, eu exijo deles tanto, eles também exigem muito dos maestros.

Paulo Markun: Arthur. 

Arthur Nestrovski: Nós estamos no último bloco do programa, não quero deixar de perguntar: o boato que corria é que você estava escrevendo um livro autobiográfico. Você está escrevendo um livro?

John Neschling: Eu estou escrevendo um livro sim, mas isso não significa que eu vou publicá-lo não é? Porque, especialmente... 

Arthur Nestrovski: Não, a gente pode publicar, os editores vão publicar.

John Neschling: É, não, ou que os editores vão publicá-lo. Houve uma idéia, eu escrevi um bocado, adiantei um bocado, mas nós chegamos à conclusão que a autobiografia de uma pessoa de 55 anos, que está no meio da sua carreira, da sua vida, talvez seja um pouco prematura. Então como eu não sou um escritor e também não tenho nenhuma veleidade literária, o que eu estava fazendo era contar um pouco a minha experiência na Osesp, a minha experiência como músico na Europa, como músico brasileiro fora do país, os encontros que eu tive com grandes músicos na minha vida, e foram tantos. Então isso eu achei que fosse interessante, mas como se trata de muita gente que vive, e que está do nosso lado, e como eu sou uma pessoa um tanto quanto, digamos, honesta naquilo que eu digo, era melhor esperar mais um pouco para que esse livro fosse publicado, para que essa... Mas eu estou escrevendo sim e eu tenho o maior prazer em escrever. 

Paulo Markun: O senhor tem uma outra vertente da sua atividade musical, que teve importantes manifestações, que são as trilhas sonoras, a música para teatro, música para cinema. Agora tem uma que ainda não foi - se não me falha a memória, o filme do Alain - ainda não foi exibido[a].

John Neschling: Não foi exibido. 

Paulo Markun: Desmundo [filme de 2003, dirigido por Alain Fresnot], não é?

John Neschling: O Desmundo não foi exibido, é uma trilha que eu gostei muito de fazer. Mas tem a novela das oito, Esperança, que tem a minha música, e Os maias [série exibida pela Rede Globo em 2001] que eu fiz também. 

Arthur Nestrovski: Estação Carandiru.

John Neschling: Eu vou fazer, quer dizer, isso depende muito do [Hector] Babenco [diretor de cinema - ver entrevista no Roda Viva, com Babenco], se ele vai querer música ou não na Estação Carandiru [o nome do filme é Carandiru]. Ele me chamou, mas nós não temos ainda nenhuma decisão ou definição quanto a que tipo de música, ou se vai haver música nesse filme. 

Paulo Markun: Eu vi uma entrevista sua que dizia que o senhor era um compositor da linha do Nino Rota [(1911-1979) compositor italiano que fez inúmeras trilhas musicais para filmes, principalmente os de Frederico Fellini, é famosa também a música de Romeu e Julieta (do italiano Franco Zefirelli) e do Poderoso, chefão do norte-americano Francis Ford Coppola] nessa coisa da música para cinema, não é?

John Neschling: Fico muito honrado, mas nunca pensei nisso, nunca... Eu sou compositor bissexto, na verdade. Eu acho que o compositor é uma pessoa que tem um comprometimento real com a composição, é uma pessoa que sente a necessidade de compor, mesmo que não lhe peçam para compor nada. Eu, toda a minha vida, compus quando me chamaram para compor. Então, eu me considero um compositor de segunda, isso agora sem nenhuma, não quero.... Eu acho que eu não sou um compositor que vai para casa, não tem nada que fazer e compõe. Eu componho quando eu tenho vontade. 

Paulo Markun: Instigado.

John Neschling: Instigado, quando me chamam, quando me pedem para compor. Eu comecei a compor, na verdade, como uma forma de sobrevivência, em uma época em que eu regia muito pouco, no Rio de Janeiro, e eu comecei a compor para teatro e para cinema, por causa disso. Deu certo, porque eu sou um profissional e estudei tanto compor como reger. Então, eu sei compor, e sei compor em diversos estilos e conheço, sei orquestrar, então para mim é uma atividade quase que corriqueira compor, mas não é uma coisa de... 

Eduardo Camenietzki: Você acha menor, desculpa, você acha menor a composição para...

John Neschling: Não, pelo amor de Deus! 

Eduardo Camenietzki: ... para cinema, teatro?

John Neschling: Não, eu não acho menor nada, eu me acho menor, eu não acho que a composição seja menor. Eu acho que a minha composição não é uma composição de você parar e ouvir muito, você pode até gostar...

 João Marcos Coelho: Você nunca tentou algo sério em composição?

John Neschling: Hein? 

João Marcos Coelho: Nunca tentou alguma coisa séria em composição, nunca? 

John Neschling: Tentei, tentei, escrevi algumas coisas sim, mas eu sempre tive mais vontade de fazer a músicas dos outros que a minha, entendeu? Eu sempre preferi fazer Strauss e Mahler do que fazer a minha música, e sempre achei que Brahms não deixou muito espaço para que eu fizesse a outra coisa, eu não tenho muita vontade, eu não tenho vontade, eu não acho que tenha... Às vezes penso, às vezes eu ouço, por exemplo, outro dia eu estava ouvindo um Quarteto de Villa Lobos, que o Quarteto Amazônia tocou brilhantemente na Osesp, e me deu vontade de escrever um quarteto, entendeu? Me deu vontade de escrever um quarteto! Mas aí eu me sento na frente do papel e digo assim: “Mas o Villa já escreveu o quarteto, por que eu vou escrever um quarteto depois de ouvi-lo”.

Tom Zé: Escrever o quarteto dele, não é? 

John Neschling: Eu queria ouvir, ele escreveu o dele! Eu não vou escrever o meu, não!

Luiz Paulo Horta: Mas eu estou me lembrando aqui de uma trilha que o senhor fez para o Patinho feio, de Maria Clara Machado, era uma belíssima parceria, não é? 

John Neschling: Eu gosto das parcerias, eu fiz coisas interessantes; tem algumas coisas que eu fiz que hoje em dia eu ouço com prazer. Eu fiz o filme da TizukaYamasaki, o Gaijing [Gaijin, os caminhos da liberdade], que tinha uma belíssima trilha.

Paulo Markun: O Pixote [filme de 1981, dirigido por Hector Babenco]. 

John Neschling: O Pixote, O beijo da mulher aranha [filme de 1985, dirigido por Hector Babenco], o Lúcio Flávio [Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, filme de 1977, dirigido por Hector Babenco]; tem tantos, O cortiço [filme de 1978, dirigido por Francisco Ramalho Jr.], [tem] um filme que eu fiz há muitos anos atrás, a Viena dos Condenados.

Paulo Markun: A peça A mandrágora [peça teatral de 1518 de Nicolau Maquiavel (1469-1527)]

John Neschling: A mandrágora, diversas peças com a Fernanda. A primeira peça que eu fiz, As desgraças de uma criança, do Martins Pena...[(1815-1848), escritor considerado o fundador da comédia de costumes no teatro brasileiro] Então eu tenho muita coisa escrita, muita...

João Marcos Coelho: Podia ter enriquecido com essa atividade aí. 

John Neschling: Quem disse que eu não enriqueci? [risos] Certamente ganhei mais dinheiro com a composição do que eu ganho com a regência.

Arthur Nestrovski: Olha, essa do Martins Pena, eu me lembro... nós nos conhecemos, eu tinha 13 anos, eu não vou dizer... 

John Neschling: Eu devia ter uns nove, eu devia ter uns nove.

Arthur Nestrovski: No Festival de Teresópolis, eu me lembro que você estava escrevendo para [a peça] [d]o Martins Pena. Agora eu vou perguntar uma coisa que eu nunca tive chance de perguntar, eu vou perguntar em público aqui: eu tinha 13 anos e você se gabava muito naquela época, que você gostava de brigar, uma ou duas vezes por ano, você gostava de puxar uma briga em um bar, ou na estrada, pelo menos era o que você contava para os meninos que tinham 13 anos, que você brigava com alguém na estrada e se sentia bem depois. Contou que antes de chegar a Teresópolis, tinha tido uma briga dessa, tinha batido em um caminhoneiro, estava se sentindo ótimo agora, relaxado. Isso era verdade ou era para impressionar a meninada toda?  

John Neschling: Mentira absoluta.

Arthur Nestrovski: Total mentira, sempre achei.  

John Neschling: Nada disso é verdade, nada disso é verdade!

Arthur Nestrovski: Olha o que você contava para os alunos, hein! 

John Neschling: Eu briguei na minha vida, eu gosto de... É o que o Markun estava dizendo, eu sou um brigão, não é? Eu sou um brigão, mas eu não sou um brigão físico não.

Paulo Markun: E gosta de ver luta de boxe? 

John Neschling: Eu sou, eu gosto de... Eu acompanho boxe, acompanho todo tipo de luta marcial, eu gosto muito. É uma forma que eu tenho de me liberar de certas agressões, mas eu não sou brigão não, eu não sou brigão físico, nunca fui. Quando briguei, briguei por necessidade, ou porque fui instado a tanto, mas não porque eu quis brigar não. Deve ter sido um grande "bafo" de um rapaz de 17 anos.

Luiz Paulo Horta: Eu tinha uma última pergunta, eu sei que a gente está terminando. Nesse repertório da Osesp, a sua referência à percentagem de música contemporânea me deixou impressionado. Eu queria perguntar como é que o público reage a isso? 

John Neschling: Olha, eu vou lhe dizer uma coisa. Eu parto do princípio de que a minha orquestra é uma orquestra do Estado, e que tem obrigação de apresentar coisas que o público não iria comprar, se fosse a uma loja de discos, porque ela pode comprar um Tchaikovsky, em qualquer loja de discos, tem que fazer [Tchaikovsky] também. Eu achei pessoas, por exemplo, que foram assistir o concerto... Uma vez eu fiz uma peça de Bruno Maderna, e uma velhinha, daquelas que eu achava que gostava de ouvir [Luigi] Boccherini, veio falar comigo depois da obra e disse assim: “Maestro, eu nunca teria comprado esse disco do Maderna, mas eu acho importantíssimo que eu tenha ouvido esse Maderna no seu concerto, porque eu nunca ouviria isso de outra forma”. E o público, eu lhe digo, o maior sucesso dos últimos anos da Osesp foi a Sinfonia do [Luciano] Berio. Talvez tenha sido o maior sucesso em toda a história da Osesp, a Sinfonia do Berio, um dos grandes sucessos, como se fosse o Pierrot Lunaire de Schoenberg. A gente vai educando, às vezes, o povo para isso. À medida que você não precisa necessariamente tocar Tchaikovsky para conseguir as pessoas, e você pode fazer, e eu converso muito com o público, eu explico um bocadinho, sem querer ser exageradamente didata, eu procuro fazer com que o público tenha uma visão um pouquinho mais interessante da obra. O povo adora ouvir música do século XX. A Sagração da Primavera foi um grande sucesso que nós fizemos. E eu digo, a música... Agora, evidentemente, que Richard Strauss também é música do século XX, não se esqueçam.

João Marcos Coelho: Não é uma pena que a Osesp se apresente tão pouco em outras cidades importantes do estado de São Paulo? 

Paulo Markun: Essa é a pergunta, aliás, de Marlene Dias, de Três Lagoas, que é dona de casa diz: “Quando a orquestra irá fazer uma turnê pelo país, não só pelo estado?”.

John Neschling: Olha, a orquestra já quis fazer ano passado uma grande turnê pelo país, nós não tivemos apoio dos estados, e numa orquestra como a Osesp são 120 pessoas que viajam. 

Paulo Markun: É uma operação?

John Neschling: É uma operação de guerra, eu devo dizer uma coisa: para já viajar no Brasil é um grande problema, porque os aviões são pequenos, os aviões que viajam. E nós viajamos com uma carga imensa - harpas, tímpanos, e o diabo. Para você fazer um vôo Fortaleza - Teresina, não existe um vôo desses. Então você tem que pegar um caminhão para levar a orquestra, e para isso leva três, quatro dias. Para você manter 120 pessoas, três, quatro dias em Fortaleza para poder tocar depois em Teresina, depois fazer a mesma coisa para.., é muito difícil. É mais difícil você organizar uma turnê no Brasil do que no exterior. Nós tocamos muito nas cidades do interior de São Paulo, vamos tocar este ano mais uma vez, antes de viajar para os Estados Unidos, vamos fazer uma grande turnê pelo estado. Agora é muito complicado, é caro, e o estado nem sempre pode cobrir todas as despesas, de todas as viagens. Nós tentamos fazer uma viagem no ano passado, porque era a minha intenção viajar primeiro pelo Brasil, depois para o exterior. Mas não tivemos nem o apoio financeiro dos estados, nem o apoio financeiro do governo federal, que nos levassem a esses... Porque a única forma de fazer uma viagem dessa é fretar um avião, fretar um avião grande e viajar com esse avião fretado pelas cidades. Eu queria ir para Rondônia, eu queria levar a orquestra para cidades que nunca tinham ouvido uma orquestra sinfônica. 

Dante Pignatari: O Roberto Carlos ia, de avião fretado e orquestra.

John Neschling: O Roberto Carlos tem dinheiro, e nós não temos. 

Paulo Markun: Ministro, [nota que se equivocou] ministro, oh! [risos]

John Neschling: Me chamou de ministro! 

Paulo Markun: Maestro, última pergunta de Eduardo Figueiredo, de Natal, que é psiquiatra: “Os movimentos de um maestro são padronizados ou são personalizados?

John Neschling: São padronizados. Evidentemente que você coloca um input pessoal depois do movimento, mas existe uma linguagem gestual do maestro, que é tão importante quanto a linguagem gestual de um ginasta. Você faz exercícios de ginástica também que são todos padronizados, ou na coreografia do balé, são padronizados alguns movimentos. Depois você coloca uma série de emoções pessoais e mesmo gestos pessoais, você é maior, você é menor, você tem braços mais longos, mais curtos; você conhece melhor a orquestra, conhece pior a orquestra, os músicos já te conhecem melhor, tudo isso pode influenciar muito a regência. Mas, basicamente, os gestos são padronizados. 

Paulo Markun: Maestro John Neschling, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores, e a você que está em casa.    

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