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Paulo Markun: Boa noite. Ele traz uma análise nova sobre as relações entre a Igreja e as Forças Armadas durante o regime militar no Brasil: como bispos e generais se relacionaram e como a Igreja interferiu nos principais episódios dos chamados "anos de chumbo". O Roda Viva entrevista esta noite o historiador norte-americano Kenneth Serbin, professor universitário e escritor. Desde 1986 ele estuda o papel da Igreja Católica na sociedade brasileira. Kenneth Serbin vive em San Diego, na Califórnia, mas morou seis anos no Brasil, período em que entrevistou personagens e pesquisou arquivos para analisar episódios pouco conhecidos da nossa história recente. Esse trabalho resultou no livro Diálogos na sombra, editado pela Companhia das Letras, onde Kenneth Serbin fala das relações entre bispos e militares, e sobre tortura e justiça social na ditadura. Diálogos na sombra, como o autor conta no prefácio, é a história do esforço de algumas lideranças católicas e de alguns militares brasileiros para superar o conflito entre a Igreja e o Estado, durante a ditadura de 1964 a 1985. Foram os "anos de chumbo", os momentos da repressão mais pesada, quando líderes religiosos e generais chegaram a uma relação muito delicada na disputa para influenciar a sociedade. Prisão, tortura, assassinatos, direitos humanos, autoritarismo, foram questões que afetaram também as relações entre o poder e a fé e determinaram o papel que alguns líderes católicos assumiriam frente aos militares e frente aos episódios violentos provocados pela repressão. Para entrevistar o historiador Kenneth Serbin, convidamos: o cardeal arcebispo de Aparecida, dom Aloísio Lorscheider; o historiador e escritor Jacob Gorender, autor de Escravismo colonial e Combate nas trevas, editado pela editora Ática; o jornalista Cláudio Camargo, editor de internacional da revista Istoé; José Maria Mayrink, editor-executivo e repórter do jornal O Estado de S. Paulo; o cientista político João Roberto Martins Filho, coordenador do Arquivo de Política Militar da Universidade Federal de São Carlos; a cientista política Maria Celina D'Araújo, professora e pesquisadora do Cepedoc da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade Federal Fluminense, e a jornalista Mônica Teixeira, da TV Cultura. Boa noite, Kenneth.
Kenneth Serbin: Boa noite. Obrigado.
Paulo Markun: Nós é que agradecemos. Queria começar pela pergunta que eu acho que é a mais complicada, mas, enfim, que imagino será tema de boa parte deste programa. Esses diálogos entre militares e representantes da Igreja foram um bom negócio para a sociedade brasileira?
Mônica Mônica Teixeira: Você disse que os dois lados resolveram então se sentar, em 1970, e permaneceram conversando durante quatro anos. Na pessoa de quem, vamos dizer assim? Quer dizer, lados... porque você diz inclusive no livro que acha que história é muito feita pelas pessoas. Que pessoas que tomaram, então, a iniciativa, quem teve a primazia nessa idéia de criar a Bipartite?
Maria Celina D'Araújo: É importante para o ouvinte ficar logo claro que estas eram conversas sigilosas. Eu acho que o seu livro nos leva por um túnel do tempo à casa dos horrores, num momento em que a própria Igreja, as autoridades eclesiásticas, tinham que conversar na clandestinidade. Então são 24 encontros que a gente está conhecendo agora, que não eram noticiados, e isso dá uma idéia do que é a humilhação que a ditadura impunha. Inclusive sobre uma instituição como a Igreja, sobre pessoas como o dom Aloísio. Eu queria que você falasse mais sobre como eram armados esses encontros, para ficar claro para a gente continuar.
Kenneth Serbin: Depoimento muito importante do senhor, porque realmente esse momento foi, como eu disse, a gota d'água. Os cinco cardeais do Brasil, depois desse incidente - depois eu respondo a sua pergunta - enviaram uma carta particular ao presidente Médici, protestando, dom Aloísio, [contra] a sua detenção, e dizendo que isso estremecia as relações entre a Igreja e o Estado.
Kenneth Serbin: Do que eu levantei nas minhas pesquisas é que a censura não deixava a notícia...
Kenneth Serbin: De fato, tudo que vinha acontecendo eram coisas cada vez mais humilhantes para a Igreja. Esse incidente do dom Aloísio, por exemplo, uma humilhação total. Daí os bispos... não sei se o senhor concordaria, mas eu acho que a partir daquele momento começaram a sentir na pele o que era a repressão. Porque até aquele momento eram poucos bispos que tinham sido atingidos. O dom Waldir Calheiros de Novaes, o bispo de Volta Redonda, tinha sido detido também e teve que fazer um depoimento de 25 horas em Volta Redonda. dom Hélder [foi arcebispo emérito de Olinda e Recife] teve a casa dele metralhada no Recife. O padre Henrique, o assessor dele, tinha sido assassinado antes, em 1969. Mas eram casos um pouco à margem, porque dom Hélder e dom Waldir eram tidos como radicais. Agora, dom Aloísio, como secretário geral da Conferência dos Bispos, respeitadíssimo entre o episcopado brasileiro... aliás no ano seguinte é eleito presidente da Conferência e fica na presidência por oito anos. Foi muito duro para os bispos verem isso. Então, isso em si foi uma humilhação. Agora, a própria Bipartite... eu não usaria a palavra humilhação para descrever essas reuniões porque elas eram completamente abertas. Você tem razão: por causa da censura, por causa da repressão, era a única maneira, naqueles anos, de poder conversar. Mas tinham liberdade total nessas reuniões para falarem sobre abusos de direitos humanos, os generais podiam se queixar dos documentos que a Igreja estava lançando, então havia essa abertura para conversar.
Dom Aloísio Lorscheider: A gente se preocupava na época também com a defesa do povo, não era só "vamos defender a Igreja". A gente começou a olhar... E eu acho que para a Igreja foi muito bom naquela época. Parece que a Igreja nunca tinha se aproximado tanto do povo... embora estivesse se aproximado já antes como naquela época. Foi uma espécie, para os bispos, de descoberta do nosso povo. E aí começou também antes com as torturas. A gente ouvia falar das torturas, mas ninguém tinha certeza. Até que um dia a gente teve documentos que comprovavam de fato a tortura. Havia também impasses, havia aquelas hesitações - que o senhor mesmo diz - mas depois a gente foi descobrindo, e a gente disse: "nós, como Igreja, temos que defender as coisas da Igreja, mas vamos defender também o povo”. Porque a gente viu que muita gente desaparecia, não voltava mais. Que fim eles levaram? Antes disso, antes desse ano, teve uma tripartite, lá no Rio de Janeiro, tripartite, antes disso. E essa durou três semanas só. Depois disso, acho que talvez por influência dessa tripartite, um pouco mais tarde nasceu a Bipartite.
Kenneth Serbin: O general Muricy era uma figura central. Ele foi um dos líderes do Golpe de 64, uma das pessoas que ajudaram a tramar o golpe e era amicíssimo do [marechal Humberto de Alencar] Castello Branco [governou o Brasil de 1964 a 1967], do [general] Ernesto Geisel [governou o Brasil de 1974 a 1979], do Orlando Geisel [irmão de Ernesto Geisel, foi chefe do Estado Maior do Exército e ministro do Exército], tinha estudado na academia militar com muitos generais daquela época, conhecia as lideranças mais importantes e tinha um bom trânsito entre vários setores. Eu diria que em todos os setores: entre a linha dura, entre a linha “castelista”; era um tipo como quase um intermediário entre essas duas linhas. Mas ele era “castelista”. E ele foi o único general a, de fato, comandar tropas em 1964. Ele que tomou o comando do destacamento Tiradentes, que saiu de Minas para entrar no Rio de Janeiro para derrubar o [João] Goulart. E, por exemplo, na morte do Castelo, quem dá o discurso é o general Muricy.
Kenneth Serbin: Era um católico, não só um católico convicto, mas amigo de vários bispos. O exemplo mais importante seria dom Hélder Câmara. Dom Hélder, que era odiado por muitos militares pelas denúncias que ele fazia contra a desigualdade social, pela denúncia que ele fez contra a tortura em Paris, em maio de 1970 - e todo mundo sabe que ele foi completamente censurado nos anos 1970. General Muricy foi amicíssimo de dom Hélder por 30 anos, porque a primeira mulher do Muricy era assessora de dom Hélder no Rio de Janeiro, e eles vinham mantendo essa amizade, e só em 1966 que eles rompem no Recife, porque dom Hélder recusa rezar uma missa a favor do golpe, da comemoração do golpe.
Kenneth Serbin: Boa pergunta. Eu acho que também responderia um pouco a pergunta da Maria Celina, um pouco mais profundamente, porque de fato a Bipartite... A Igreja punha os titulares, os cardeais, o presidente da CNBB, como o dom Aloísio, dom Ivo, dom Eugênio, que era o interlocutor mais importante entre a Igreja e o Estado naqueles anos, respeitadíssimo entre os militares. Mas, de fato, as Forças Armadas colocaram o general Muricy, como você fala, ele passa para a reserva e os outros representantes não têm o mesmo cacife. E por isso o título do livro é Diálogos na sombra, porque não só era [...] de sombra, quando não se sabia exatamente o que acontecia nos quartéis, quando as pessoas procuravam os queridos desaparecidos, havia censura, esse tipo de sombra, mas também no próprio regime. Não ficava muito claro quem controlava, quem aprovava ou desaprovava. Eu pude levantar a documentação no Arquivo Nacional e também no Cepedoc, mostrando que, de fato, os militares queriam usar essa Bipartite para tirar da Igreja concessões, mas para não ceder em nada. Isso talvez responda à sua pergunta sobre a humilhação.
Kenneth Serbin: Inclusive o Muricy. Mas o Muricy teria tido, eu diria, uma crise de consciência, porque tendo sido um homem muito católico e amigo pessoal de vários bispos; e homem também que, em várias ocasiões, ajudava a procurar os desaparecidos, tirava gente da prisão. Em 1964, por exemplo, no Recife. Castelo Branco mandou o Muricy para acabar com as torturas que aconteciam nos quartéis, como uma missão meio sigilosa do Muricy naquele momento. Tem uma senhora comunista que deu depoimento sobre isso na revista Teoria e Debate, a revista do PT. Eu cito isso no livro. O Muricy tinha essa consciência e certamente ele não queria ver as relações entre a Igreja e o Estado serem abaladas. E também ele não se identificava com essa linha dura que queria continuamente bater na Igreja. O Muricy era um general que queria um diálogo, queria trazer para os militares. Queria convencer os bispos a participarem do governo militar, no sentido de colaborar no desenvolvimento, e até de dar um aval, uma bênção para o regime. Ele tinha essa esperança, que também era uma crise de consciência. Mas, ao mesmo tempo, o próprio Médici, o general [João Baptista] Figueiredo [último militar a governar o Brasil, de 1979 a 1985], o chefe do gabinete militar, não queriam que essa Bipartite comprometesse o regime. Agora, então, nesse sentido, os bispos eram usados. E com o tempo eles iam percebendo que essa comissão não iria mudar os rumos do regime. Porque embora o Médici lesse os relatórios, e outros generais importantes, o [Carlos Alberto da] Fontoura, o chefe do SNI, também recebia esses relatórios, os bispos não recebiam. Mas os militares, os membros do grupo dos militares, recebiam. Nesse caso, então, os militares tinham uma vantagem de informações. Usavam a Bipartite como uma ferramenta política. Mas, com o tempo, os bispos aprenderam a também usar a Bipartite e, de certa forma, viraram essa comissão contra os militares ao usar a Bipartite como plataforma de denúncia de violações dos direitos humanos.
Kenneth Serbin: Em primeiro lugar, obrigado pelo elogio, vindo de você é realmente muito importante para mim ouvir isso. Mas essa Comissão evitou a ruptura entre essas cúpulas, evitou uma ruptura institucional. Ela teve efeitos para a sociedade brasileira no sentido de reformas sociais? Não. No sentido de ajudar na redemocratização no país? Não. Ela não foi causa, por exemplo, dessa distensão. A distensão não era discutida. Por outro lado, é importante lembrar que alguns dos participantes desta Bipartite depois participaram da abertura. O próprio general Golbery [do Couto e Silva, figura influente, estrategista no regime militar, foi chefe da Casa Civil entre 1974 e 1981] participou de uma das reuniões da Bipartite. O Cândido Mendes, conhecido como um articulador de elites, tentou plantar a idéia da abertura já durante o governo Médici. Então, a Bipartite acaba sendo um exemplo de descompressão. Descompressão entre duas instituições, das cúpulas de duas instituições. E também uma tentativa de aparar as arestas pela base, porque eles discutiam casos de padres subversivos, e os bispos queriam controlar os padres. E também os militares esperavam isso dos bispos. Mas, para o historiador, você sabe disso muito bem, nós ficamos muito nos documentos. Mas se nós especulássemos um pouco, se não houvesse essa Comissão Bipartite, o que teria acontecido com as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil? Poderia ter levado a uma crise política mais séria no Brasil daqueles anos.
Kenneth Serbin: Suposição. Pois é, os documentos não comprovam isso. Mas a Bipartite também é muito importante para os direitos humanos, porque ela permite que os bispos dêem um recado direto para os generais de que sabem o que está acontecendo nos campos de tortura, que têm evidências e que vão continuar denunciando, particularmente, nos bastidores, e também publicamente. A Bipartite faz... Muitos casos são levados à Bipartite. No meu livro eu relato dois: o caso de Barra Mansa e o caso do Alexandre Vanucchi Leme [líder estudantil brasileiro que, no início da década de 1970, se destacou pela luta em defesa da democracia e dos direitos humanos. Morreu precocemente aos 22 anos, vítima de atropelamento, segundo a versão oficial do governo, porém há denúncias de que ele teria morrido em decorrência de tortura durante interrogatório]. O caso de Barra Mansa teve uma resolução importante por várias razões, podemos falar sobre isso mais para frente, que fica no final do livro. E o caso de Vanucchi Leme também é muito importante para a igreja, porque ele marca o começo dos desafios frontais da Igreja contra os abusos aos direitos humanos. Na historiografia, como todos vocês sabem muito bem, é sempre citado o caso do Vladimir Herzog [jornalista, conhecido também como Vlado, assassinado pelos órgãos de repressão durante a ditadura militar no Brasil em 1975, aos 38 anos. O laudo oficial do governo foi de suicídio por enforcamento]. O caso do Vanucchi não é nunca citado. Dom Paulo faz uma missa para três mil pessoas e isso não resolve o caso. Os advogados da família vão à justiça militar, pedindo a exumação do corpo, não resolve o caso. O que acaba sendo a última instância? Justamente a Bipartite?
Kenneth Serbin: Quero completar ainda a sua pergunta, porque é importante ver a Bipartite não só no contexto daqueles quatro anos; nós temos que olhar a Bipartite de toda a história das relações entre Igreja e Estado e entre Igreja e as Forças Armadas no século XX. Porque os bispos iriam dialogar com representantes do SNI e do Ciex [Centro de Informação do Exército], justamente nos anos mais gloriosos da Igreja, quando ela está criando as comunidades de base, a Teologia da Libertação está nascendo, um pouco depois a Comissão Pastoral da Terra surge, a Pastoral Operária acontece também. Porque os bispos iriam negociar ou conversar? Fazia parte da missão dos bispos...
Kenneth Serbin: A Igreja defendia sim os privilégios. Há evidências disso no livro, sem dúvida. Porque a Igreja vivia, há várias décadas, em um sistema de... O que eu chamo de "concordata moral". A concordata sendo um acordo formal entre o Estado e a Igreja. Essa formalidade não existia no Brasil, mas sempre havia um entendimento de bastidores, e isto eu chamo de concordata moral: a Igreja dando o aval às políticas sociais dos governos e, em retorno, a Igreja recebendo benefícios, inclusive benefícios financeiros dessa relação. Mas a Igreja, através dessa Comissão, queria se manter nessa posição que ela sempre tinha, que era de interlocutor junto ao poder. Agora, por que falar com torturadores? Por que falar com o inimigo? Temos que lembrar também que naqueles anos a Igreja está passando por uma renovação... A renovação mais importante nos dois mil anos de história da Igreja, que foi o Conselho/Concílio Vaticano II, dos anos 1960. E justamente uma das palavras chaves da década de 1960 na Igreja é o diálogo. A Igreja começa a dialogar com quem? Com comunistas, com protestantes, com judeus, ou seja, é o começo do ecumenismo. Então, se a Igreja se abre para esses grupos... Porque também é um trabalho do missionário se abrir para um diálogo com os militares.
Paulo Markun: Kenneth, eu queria pedir licença para nós fazermos um rápido intervalo e voltamos já.
[intervalo]
Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o historiador norte-americano Kenneth Serbin, autor do livro Diálogos na sombra. Kenneth, o seu livro se beneficia, de maneira muito competente pelo seu trabalho, de uma raridade, que são documentos militares, ou documentos produzidos por um militar que chegam até a opinião pública. No Brasil isso é um caso raríssimo, há outros exemplos de períodos da história brasileira dos quais nós ignoramos completamente o que se passou no campo militar, porque aquilo continua sob censura, não importa se o sigilo for de, sei lá o termo que se usa, 20, 50, 100, 200 anos e... Nem da Guerra do Paraguai a gente tem documentos que ainda não foram disponibilizados. Do lado da Igreja, houve documentos desse tipo também a que você teve acesso?
Paulo Markun: Quer dizer que não é só o Exército, então, que guarda tudo a sete chaves...
Paulo Markun: Dom Lucas?
Dom Aloísio Lorscheider: Eu acho que você poderia ter pesquisado nos arquivos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Não sei se pesquisou.
Dom Aloísio Lorscheider: Porque lá deve ter material também desta época. Só que nós não tomamos nota como tomavam nota os militares, porque nós não dávamos tanta importância à Bipartite como eles davam. Nós íamos, conversávamos, procurávamos defender as pessoas. Eu acho que a Bipartite teve um resultado muito bom, evitamos a morte de muitas pessoas e também a tortura de muitas pessoas. Porque isso foi aparecendo cada vez mais e mais forte. Era um ambiente também de denúncia. Eu acho que o senhor diz isso uma certa hora no seu livro muito bem, que se falava com muita clareza, e eles que vinham, sabiam escutar, isso é interessante. Então, nesse sentido, acho que teve um resultado - para a época - relativamente bom, e a gente foi descobrindo também muita coisa. Porque depois a gente se reunia - e também eles faziam isso - mas nós nos reuníamos entre nós, e aí se comentava, se fazia uma revisão. Eu acho que no fundo foi positivo. E eu ainda diria que quem deu um pouco origem a isso, acho que foi o próprio general Médici. Ele achou que pediu para eles assumirem isso. Porque o Médici era de difícil acesso conosco. Antes, o [marechal Arthur da] Costa e Silva [ex-ministro do Exército, governou o Brasil de 1967 a 1969)] era mais fácil, mas com ele [Médici] ficou mais difícil. Depois, o Geisel era mais fácil também. Mas o Médici era muito difícil. Então eu acho que ele mesmo deve ter pedido isso, acredito. Precisaria comprovar isso.
Mônica Teixeira: A Bipartite tomava decisões? E, se ela tomava decisões, elas eram implementadas, quer dizer, decidiam-se coisas entre bispos e militares, e isso tinha depois repercussões fora da reunião?
Mônica Teixeira: Neste caso, a Comissão atuou contra os interesses do povo brasileiro?
Mônica Teixeira: Contra a denúncia, contra a radicalização da denúncia... Se é que pode chamar essa comissão de bispos de radical, né?
Mônica Teixeira: Digamos então: os militares obtiveram aí uma...
Mônica Teixeira: E o que eles deram em troca?
Paulo Markun: Do outro lado nunca houve uma vitória?
Cláudio Camargo: Mas será que não teria sido mais importante para o desenvolvimento da democracia brasileira que houvesse realmente um confronto entre a Igreja e o Estado para apressar a abertura democrática? Porque essa distensão do governo Geisel demorou muito tempo, ou seja, o regime militar permaneceu muito tempo depois que já estava esgotado como modelo político. Será que esse confronto entre Igreja e Estado não teria sido desejável do ponto de vista do desenvolvimento da democracia no Brasil?
Paulo Markun: Quantas divisões tem o papa, não é?
Cláudio Camargo: Mas o senhor diz aqui no livro que quem, de fato, ganhou mais com essa Bipartite foram os militares. Quem dava as cartas era a Igreja, mas ela ganhou pouco com isso. Aprendeu a negociar, aprendeu a entender como funcionava a mentalidade militar, mas quem ganhou mais em termos de concessão foram os militares.
Cláudio Camargo: Mas os militares não sabiam disso? Que o Alexandre tinha sido...
Kenneth Serbin: Não, não chegou a ser uma novidade, mas eles nunca admitiram discutir isso publicamente. Colocavam nos jornais a versão deles - atropelamento, tiroteio, qualquer que tenha sido a maneira de fazer desaparecer a pessoa, de matar - e o outro lado nunca era ouvido nos jornais. Mas na Bipartite era.
Paulo Markun: Desculpe meter a minha colher. Mas nem que seja para que hoje a gente tenha o registro histórico de que os militares sabiam disso e que isso se passava, a comissão já teve o seu papel.
Paulo Markun: Eles não falavam na Itália e na Alemanha?
Maria Celina D’Araújo: Sobre os documentos que foram mencionados aqui, você teve acesso a documentos de militares, mas é importante dizer que foram documentos produzidos pelos militares que estão aí em um arquivo privado. Nós não temos acesso no Brasil a arquivos institucionais, quer dizer, a própria CNBB, obviamente, não tinha os informantes para fazer as atas das reuniões. Mas a gente teve a sorte de que um militar que participou guardou as atas, e essas atas foram para o Cepedoc da Fundação Getúlio Vargas.
Maria Celina D’Araújo: Foi o general Muricy. Então isso é importante para não dar a impressão de que os arquivos militares estão tão disponíveis como a gente gostaria. O professor Jacob Gorender fez uma observação que é muito importante. A Bipartite acaba exatamente quando a abertura pra valer começa, quando a conversa, quando a negociação com a sociedade começa, no governo Geisel. E aí eu acho que é importante a gente pensar dois estilos de fazer política na ditadura. Um é este que você está falando aqui: a negociação dos bastidores. É tudo na sombra, tudo clandestino. Porque isso é um instrumento de poder! Você conversar na moita é um instrumento de poder! E o estilo de governar do presidente Geisel, que não é um democrata, mas é um homem da ordem, é um homem de fazer as coisas institucionalmente. “Vamos repor as hierarquias”! E acho que no seu livro – eu procurei muito isso, essa pergunta do professor foi a pergunta que eu me fiz o tempo todo – você dá a resposta para isso. Você dá a resposta na medida em que você disse... Quando o Geisel assume, há dois encontros só da Bipartite, e depois o que ele faz? "Não, a negociação vai ser feita com a CNBB e o comando militar, com o comandante do Exército. Vamos repor a hierarquia da instituição militar e a instituição Igreja e vamos negociar e conversar o que for preciso, contrapondo e conectando as hierarquias correspondentes". Não estou falando em passar do autoritarismo para a democracia, não é isso, mas são dois estilos de fazer política muito diferentes – política institucional e essa política escusa que, às vezes, eu entendo até como humilhação, como eu já falei aqui. Não sei se você concorda com isso...
Kenneth Serbin: A Bipartite, ela... Eu digo no livro que... Bom, primeiro a sua pergunta. [voltando-se à Maria Celina] Justamente, o Geisel não quer mais a Bipartite, porque ele quer o quê? Ele quer ver as relações Igreja-Estado como um fenômeno de Estado a Estado: o [Estado do] Vaticano falando com o Estado brasileiro. Então ele fala com o núncio apostólico [espécie de embaixador do Vaticano], ele quer contato com os cardeais, arcebispos. E também ele fazia restrições à CNBB, porque ela era um órgão relativamente novo na história da Igreja e tinha posições muito combativas. Então ele preferia ir justamente por esses canais mais tradicionais, de Estado a Estado. É interessante notar que o Vaticano nunca rompeu com o Estado brasileiro, manteve as relações; o Papa estava informado do que estava acontecendo, sabia da tortura, denunciou indiretamente o governo brasileiro em 1970 por causa da tortura, mas manteve as relações. O Vaticano nunca quis romper, pois achava importante manter, com a maior nação católica do mundo, relações normais. E a Bipartite indiretamente contribuiu para isso.
Kenneth Serbin: Foi, sem dúvida. Porque, depois disso, acaba a tortura em Barra Mansa. Barra Mansa tinha tortura desde meados dos anos 1960, porque os próprios militantes de dom Waldir eram presos, torturados. Dom Waldir teve que responder um inquérito de 25 horas dentro desse quartel. Então ele vinha vivendo uma série de atritos com esses militares. No caso de Barra Mansa, ele tem provas concretíssimas de tortura, ele denuncia a várias instâncias, a mais importante sendo o próprio núncio apostólico, que leva para a cúpula do governo essa denúncia, e também através da Bipartite. E os militares, então, começam a investigar isso com mais seriedade. Porque, de fato, há uma investigação falsa, feita pelos próprios torturadores, no início do caso; com a denúncia de dom Waldir, eles são forçados a fazerem um outro inquérito policial-militar, para desvendar o caso de verdade. Deve-se dar também um crédito às Forças Armadas nesse sentido, porque pelas pesquisas que eu fiz – falei com o juiz da Justiça Militar, por exemplo, falei com o coronel que fez o IPM [Inquérito Policial Militar], o coronel Sampaio. Homem muito corajoso, que mesmo sob ameaça de morte levou essa investigação às últimas consequências, que foi a prisão, o julgamento e a condenação, pela própria Justiça Militar, desses soldados. E dom Waldir depois envia uma carta para o Orlando Geisel elogiando a atuação das Forças Armadas no caso. Então, temos que dar crédito também às Forças Armadas nesse caso específico. Para mim, o trágico do caso de Barra Mansa são várias coisas. Primeiro, é um caso esquecido. Muitos jornalistas conhecem, é comentado de vez em quando na imprensa, mas ele não foi tratado da mesma forma que outros casos de tortura têm sido tratados.
Kenneth Serbin: Eu acho que ignora porque...
Kenneth Serbin: Acho que não, porque qualquer livro, salvo a exceção do livro do professor Gorender [Combate nas trevas], um dos poucos a mencionar o caso, salvo poucas exceções – Brasil nunca mais [livro de Dom Paulo Evaristo Arns, que conta as torturas que ocorriam no Brasil durante a ditadura militar com depoimentos das próprias vítimas], o excelente livro do deputado Nilmário [Nilmário Miranda, em parceria com o jornalista Carlos Tibúrcio, escreveu Dos filhos deste solo, livro que registra a história de cada um dos mortos e desaparecidos políticos levantados por meio dos trabalhos da Comissão Especial do Ministério da Justiça]. Não quero tirar mérito nenhum desses livros, desses dossiês; o dossiê dos familiares dos desaparecidos e mortos, e muitos outros livros, não falam desse caso de Barra Mansa. Eu acho que a esquerda perdeu o bonde da história naquele momento, porque podia ter dito: “olha, não são só os nossos que estão apanhando de tortura. É o povo também”. Quatro jovens de 19 anos, que serviam à pátria, eram recrutas, soldados rasos, morreram; e mais 11 foram torturados. E as famílias não entraram nessas comissões especiais que existem. Eu acho que existe um preconceito de classe nesse caso. E também os militares perderam o bonde da história.
Kenneth Serbin: Pobres e negros. A mãe de um deles era lavadeira, os outros eram operários da siderúrgica nacional, famílias muito humildes.
[intervalo]
Kenneth Serbin: Principalmente no caso do dom Eugênio eu fiquei muito surpreso com o que eu levantei. Meu livro não é uma biografia de dom Eugênio, eu só estudo uma pequena parte da atuação de dom Eugênio Sales, quero registrar isso. Eu acho que falta ainda fazer a biografia de grandes líderes episcopais, como o dom Eugênio, como o dom Aloísio. Mas eu sempre tinha na minha cabeça a idéia de que dom Eugênio era um conservador, que era como que conivente com a tortura, que ele apoiava abertamente o regime militar, que ele não tinha sensibilidade pelas questões sociais. Mas eu descobri uma coisa bastante diferente nas minhas pesquisas: de fato dom Eugênio era um defensor dos direitos humanos.
Kenneth Serbin: Não publicamente, não. [Só] Nos bastidores.
Kenneth Serbin: Eu queria responder primeiro o ponto sobre dom Eugênio.
Kenneth Serbin: Justamente, a história é feita de muitas facetas. Se nós estudarmos só a faceta pública do período, é claro que dom Paulo Evaristo Arns é o grande herói, o campeão dos direitos humanos; e dom Eugênio faz vista grossa para as violações dos direitos humanos. Mas, estudando os documentos, na medida em que os documentos ficam disponíveis para o historiador, na medida em que as pessoas falam sobre o período, a gente vê outras facetas. Justamente, a Bipartite é uma faceta completamente diferente, desconhecida na historiografia sobre o período.
Kenneth Serbin: Comboiava. Eu tive registro da ação de dom Eugênio na entrevista com ele, mas também com outras pessoas. É muito interessante. Nesses últimos dias que eu venho fazendo o lançamento, e falo desse papel de dom Eugênio, as pessoas dizem: "sim, você tem razão, o dom Eugênio fez isso, fez aquilo, fez muita coisa a favor dos direitos humanos". Eu quero registrar isso. Primeiro, como historiador, é muito importante ser isento, é muito importante colocar no papel o que aconteceu, na medida do possível; sempre vai ter viés de interpretação, sempre vai faltar um documento, um ou outro depoimento, uma sutileza, mas a gente vai construindo a história aos poucos. Meu livro não pretende ser, nunca pretenderia ser, a última palavra sobre as relações entre Igreja e Estado durante a ditadura. Há muito trabalho a ser feito ainda, não só sobre as relações entre Igreja e Estado, mas muitas outras facetas da vida do país naqueles anos. De certa forma, meu livro é um chamado para os historiadores entrarem em campo e pesquisar cada vez mais.
Kenneth Serbin: Não, mas ele não se colocava assim. Dom Eugênio de fato... Porque o livro não é só a Comissão Bipartite, ele também fala de outros diálogos na sombra. Por exemplo, há uma troca de cartas interessantíssima entre o dom Eugênio e o Muricy, na época do AI-5. E já dom Eugênio faz restrições...
Kenneth Serbin: Dom Hélder... - isso não é pesquisa minha - mas a biografia de dom Hélder mostra que ele teria uma atitude de “esperar para ver” no momento do AI-5. Eu nunca criticaria dom Hélder por isso. Porque dom Hélder era um homem abertíssimo e, inclusive, na biografia dele, que é do professor [Nelson] Piletti e do professor [Walter] Praxedes, um excelente livro [Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia], fala justamente que dom Hélder não gostava dessa falta de entendimento [das razões] dos militares, e que ele queria que os quadros da Igreja mantivessem a cabeça aberta para compreender as pessoas. Dom Hélder era de uma grande visão. Mas é claro que depois dom Hélder toma as posições mais duras e de certa forma se sacrifica.
Dom Aloísio Lorscheider: Eu gostaria de dar um testemunho sobre dom Eugênio. Eu acho que dom Eugênio teve um papel muito positivo. É claro, são figuras diferentes. Ele já disse “as facetas”. Mas eu acho que a gente tem que olhar... Por exemplo: eu, naquele tempo, era secretário geral. Quantas vezes eu me dirigia a dom Eugênio e dizia: "Dom Eugênio, como a gente vai agir?". Ele estava na Bahia naquela época, ele era administrador apostólico. E, às vezes, ele vinha da Bahia para a CNBB lá no Rio, para a gente conversar e ver mais claramente. Porque a questão não era tão fácil. Hoje, tudo vemos muito fácil, mas naquela hora não era nada fácil, a gente estava diante de muitas perplexidades. Então eu acho que dom Eugênio tomava posição, mas não tomava essa posição tão pública. Ele era, nesse ponto, mais discreto, com outro modo de agir. Mas ele, no meu entender, não se omitiu. Ele dava um grande apoio a dom Hélder. Por exemplo, dom Hélder não foi mais perseguido, não foi mais colocado, assim, como um excluído, à margem... grande parte [disso] se deve a dom Eugênio. Dom Eugênio apoiava, ajudava. Então eu acho que isso é muito positivo. Agora, como você diz, é um modo político de agir, naquelas ocasiões não era nada fácil. Não era fácil.
Cláudio Camargo: É por isso que você diria que ele tem uma avaliação pouco crítica em relação aos resultados da Bipartite?
Cláudio Camargo: Mas eu tenho a impressão... Você conclui no seu livro, me parece, que essa Bipartite foi sincera na tradição de conciliação das elites brasileiras, pelo que eu entendi da conclusão do livro. É isso mesmo?
José Maria Mayrink: Professor, eu acho uma pena que você não tenha conseguido uma entrevista com o dom Lucas Moreira Neves. Porque ele também está citado no livro paralelamente a dom Eugênio, mas em um caso muito concreto, em que ele fica muito mal assistindo a opinião pública e continua assim dentro da Igreja. Esse caso é citado, trata-se de quando ele foi ao presídio para constatar se havia ou não tortura. E constatou-se que o frei Tito de Alencar havia sido torturado, depois ele morreu, suicidou-se. O dom Lucas teria se negado a prestar testemunho na Justiça Militar sobre o caso de tortura do frei Tito, que era dominicano como ele. E ele teria alegado que não poderia fazer isso porque se ele fosse prestar esse depoimento isso prejudicaria a atividade pastoral dele. O seu livro, que procura - eu tive essa impressão - dar crédito às pessoas, ele reconhece a honestidade das personagens, tanto de um lado como de outro. No caso de dom Lucas, o senhor cita vários episódios que redimiriam essa ação do dom Lucas contra a ditadura pelos direitos humanos, sobretudo contra a censura - ele dirigia na época um departamento aqui de comunicação, imprensa - mas a imagem continua ruim. Como é que o senhor analisa, como é que o senhor vê o dom Lucas nesse período? Na época ele não era cardeal, ele era bispo auxiliar de São Paulo.
José Maria Mayrink: Eu acho que há uma retificação, se me permite, a fazer aí. O dom Paulo foi ao presídio Tiradentes ainda como bispo auxiliar. E foi por ordem, por incumbência do cardeal [Agnelo] Rossi, que já tinha enviado lá o dom Lucas. E quando o dom Paulo saiu e disse que, de fato, os frades e os outros presos estavam sendo torturados e correndo o risco de morte, o dom Rossi, o cardeal Rossi, observou para ele: "Mas eu mandei outra pessoa de minha confiança lá e essa pessoa me disse que não há tortura". O dom Paulo não fala isso claramente no livro dele, nesse livro Do sonho à utopia, mas há vários testemunhos de que essa pessoa que disse que não havia tortura, e que depois se recusou a prestar um depoimento no caso do frei Tito, era também o dom Lucas.
José Maria Mayrink: Isso porque ele é mineiro...
Mônica Teixeira: Kenneth, no seu prefácio, você diz duas vezes uma mesma coisa que está sintetizada na página 12, na seguinte frase: "A história, no final, é entender pessoas". Eu queria que você dissesse para a gente o que você entende por história, se não tem nenhuma outra determinação a não ser o desejo das pessoas, ou de se encontrarem, ou de conversarem? Qual é a relação entre o que está determinado na história, exteriormente às pessoas e às pessoas?
Mônica Teixeira: Mas você sintetizou assim: “A história, no final, é entender pessoas”. E antes você diz assim, só para o telespectador saber: "A história deve ser vista como conflito entre indivíduos".
Mônica Teixeira: E qual é o papel da narrativa na história?
Mônica Teixeira: Mas será que você não está falando particularmente da realidade anglo-saxônica? Da realidade da academia? Você diz: “A academia no mundo inteiro, hoje”. Mas não é uma distorção?
Maria Celina D'Araújo: Da Unicamp, da USP... [risos]
Jacob Gorender: Serbin, um detalhe. O seu livro é muito rico de detalhes e chega ao ponto de apontar o prato preferido do professor Cândido Mendes, que é o peixe ao molho de camarão. Qual a preferência gastronômica dos outros personagens? [risos] Por que omitiu?
Paulo Markun: Kenneth, eu queria agradecer você pela sua entrevista e pela disponibilidade de vir aqui para gravar este programa, esticando a sua permanência no Brasil, quando sei que você tinha compromissos nos Estados Unidos, até familiares. E dizer para o telespectador que a melhor continuação deste programa, como, aliás, de todos os programas em que a gente apresenta autores de livros, é comprar livro. O Brasil tem muito mais farmácia do que livraria. O dia em que essa situação mudar, o país será melhor.