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Memória Roda Viva

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Kenneth Serbin

28/1/2002

As reuniões secretas entre a Igreja e as Forças Armadas, na época da ditadura, serviram para impedir uma ruptura entre essas instituições e evitaram torturas e mortes, é o que conta o historiador americano em seu livro Diálogos na sombra

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[Programa gravado, não permitiu a participação dos telespectadores]  

Paulo Markun: Boa noite. Ele traz uma análise nova sobre as relações entre a Igreja e as Forças Armadas durante o regime militar no Brasil: como bispos e generais se relacionaram e como a Igreja interferiu nos principais episódios dos chamados "anos de chumbo". O Roda Viva entrevista esta noite o historiador norte-americano Kenneth Serbin, professor universitário e escritor. Desde 1986 ele estuda o papel da Igreja Católica na sociedade brasileira. Kenneth Serbin vive em San Diego, na Califórnia, mas morou seis anos no Brasil, período em que entrevistou personagens e pesquisou arquivos para analisar episódios pouco conhecidos da nossa história recente. Esse trabalho resultou no livro Diálogos na sombra, editado pela Companhia das Letras, onde Kenneth Serbin fala das relações entre bispos e militares, e sobre tortura e justiça social na ditadura. Diálogos na sombra, como o autor conta no prefácio, é a história do esforço de algumas lideranças católicas e de alguns militares brasileiros para superar o conflito entre a Igreja e o Estado, durante a ditadura de 1964 a 1985. Foram os "anos de chumbo", os momentos da repressão mais pesada, quando líderes religiosos e generais chegaram a uma relação muito delicada na disputa para influenciar a sociedade. Prisão, tortura, assassinatos, direitos humanos, autoritarismo, foram questões que afetaram também as relações entre o poder e a fé e determinaram o papel que alguns líderes católicos assumiriam frente aos militares e frente aos episódios violentos provocados pela repressão. Para entrevistar o historiador Kenneth Serbin, convidamos: o cardeal arcebispo de Aparecida, dom Aloísio Lorscheider; o historiador e escritor Jacob Gorender, autor de Escravismo colonial e Combate nas trevas, editado pela editora Ática; o jornalista Cláudio Camargo, editor de internacional da revista Istoé; José Maria Mayrink, editor-executivo e repórter do jornal O Estado de S. Paulo; o cientista político João Roberto Martins Filho, coordenador do Arquivo de Política Militar da Universidade Federal de São Carlos; a cientista política Maria Celina D'Araújo, professora e pesquisadora do Cepedoc da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade Federal Fluminense, e a jornalista Mônica Teixeira, da TV Cultura. Boa noite, Kenneth.

Kenneth Serbin: Boa noite. Obrigado. 

Paulo Markun: Nós é que agradecemos. Queria começar pela pergunta que eu acho que é a mais complicada, mas, enfim, que imagino será tema de boa parte deste programa. Esses diálogos entre militares e representantes da Igreja foram um bom negócio para a sociedade brasileira?

Kenneth Serbin: Foram. Foram um bom negócio porque essa Comissão Bipartite, embora ela não tenha mudado os rumos da história brasileira, evitou uma ruptura total entre as Forças Armadas e a Igreja Católica, as duas instituições mais importantes do Brasil daqueles anos. De 1964 até o começo da bipartite, em 1970, a Igreja e os órgãos de repressão vinham vivendo uma relação cada vez mais conflituosa. E os bispos cada vez mais confusos com o trato que eles recebiam do regime militar. Mas ao mesmo tempo querendo, pelo menos no início, dar uma chance aos militares de mostrarem o que eles podiam fazer na sociedade brasileira. Teríamos que lembrar que, em 1964, a grande maioria dos bispos apoiou a derrubada do presidente João Goulart, porque a Igreja, por natureza, era anti-comunista, e o Golpe de 64 era uma golpe fundamentalmente anti-comunista. Então os bispos aplaudiram, vamos dizer, no sentido geral, o Golpe de 64. Mas mesmo naqueles primeiros meses do Golpe já militantes de base da Igreja vinham sofrendo repressões das Forças Armadas. Então, em 1970, com o AI-5 de 1968 e uma repressão contínua à Igreja, os dois lados vêem que estão à beira da ruptura, e decidem fazer essa comissão que, por quatro anos, manteve um canal de diálogo aberto entre os principais líderes episcopais do país e representantes do governo militar. E conseguiram evitar vários problemas sérios através dessa comissão.  

Mônica Mônica Teixeira: Você disse que os dois lados resolveram então se sentar, em 1970, e permaneceram conversando durante quatro anos. Na pessoa de quem, vamos dizer assim? Quer dizer, lados... porque você diz inclusive no livro que acha que história é muito feita pelas pessoas. Que pessoas que tomaram, então, a iniciativa, quem teve a primazia nessa idéia de criar a Bipartite?

Kenneth Serbin: Bom, é importante assinalar que a gota d'água que levou à criação da Comissão Bipartite aconteceu justamente pela detenção de um dos nossos presentes esta noite, o dom Aloísio, que em outubro de 1970, numa investida que as forças de segurança faziam contra a Juventude Operária Católica, a JOC - que era um movimento socialista que queria a transformação da sociedade brasileira, mas não violenta. Essa investida contra a JOC, que vinha acontecendo há vários anos, levou as forças de segurança a invadir um instituto de estudos dos jesuítas no Rio de Janeiro. Naquele dia, dom Aloísio esteve presente e foi detido por mais de quatro horas e mantido incomunicável. Então isso foi um vexame enorme para os dois lados, porque não era mais só a base que estava sendo atingida pela repressão, agora a própria cúpula, dom Aloísio era o secretário geral da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] naquele momento. Então um professor de filosofia, Tarcísio Padilha, que hoje é presidente da Academia Brasileira de Letras - um homem muito católico, muito respeitado - temia junto com os bispos e também alguns militares, como o general Antônio Carlos da Silva Muricy [General, chegou a ser cotado para a Presidência durante o regime militar. Comandou a primeira tropa a marchar contra o presidente João Goulart], que é um personagem central do livro... O Tarcísio Padilha fez uma reunião e juntou o professor Cândido Mendes, que era um representante da CNBB, era subsecretário para a ação social, um homem também muito católico, que vinha de uma grande tradição de defesa da Igreja, o bisavô dele tinha defendido os bispos no século XIX contra o Império, na famosa questão religiosa. Tarcísio Padilha, que era afilhado de casamento do general Murici e colega de Cândido Mendes, no colégio Santo Ignácio, no Rio de Janeiro, trouxe os dois para uma reunião, e nesta reunião o Cândido Mendes propôs que se formasse uma comissão para lidar com esses conflitos cada vez mais sérios entre a Igreja e o Estado. Então, por um lado, na Bipartite, havia o grupo religioso, chefiado pelo Cândido Mendes, com participação de dom Aloísio [Lorscheider], o primo dele, dom Ivo Lorscheider, dom Eugênio [de Araújo] Sales [cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro], na época ainda arcebispo da Bahia, mas, logo depois, arcebispo do Rio de Janeiro; dom Avelar Brandão Vilela, irmão do Teotônio Vilela; dom Lucas Moreira Neves [foi arcebispo de Salvador (BA)], cardeal do Brasil hoje também; dom Paulo Evaristo Arns [arcebispo emérito de São Paulo]- ver entrevista com dom Paulo no Roda Viva], que participou uma ou outra vez na Comissão Bipartite. E, pelo lado dos militares, o general Muricy, que era general de quatro estrelas, tinha sido o chefe do Estado Maior do Exército, no início do governo [general Emílio Garrastazu] Médici [governou de 1969 a 1974], junto com Tarcísio Padilha e vários outros oficiais, incluindo representantes do Serviço Nacional de Informações e o Centro de Informações do Exército, que eram dois dos órgãos mais importantes na caça à oposição no Brasil. Foram esses dois grupos - o grupo religioso e o grupo da situação – este era chamado o grupo dos militares. E debatiam, em 24 reuniões, no decorrer de quatro anos, temas de suma importância para a Igreja e o Estado. 

Maria Celina D'Araújo: É importante para o ouvinte ficar logo claro que estas eram conversas sigilosas. Eu acho que o seu livro nos leva por um túnel do tempo à casa dos horrores, num momento em que a própria Igreja, as autoridades eclesiásticas, tinham que conversar na clandestinidade. Então são 24 encontros que a gente está conhecendo agora, que não eram noticiados, e isso dá uma idéia do que é a humilhação que a ditadura impunha. Inclusive sobre uma instituição como a Igreja, sobre pessoas como o dom Aloísio. Eu queria que você falasse mais sobre como eram armados esses encontros, para ficar claro para a gente continuar.

Dom Aloísio Lorscheider: Aliás, eu queria só dizer que a invasão do Ibrades [Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, ministra cursos de formação de lideranças], para mim, até hoje, é uma coisa misteriosa. Eu estava na sede da CNBB, que naquele tempo estava no Rio de Janeiro, na Glória, praticamente, eu recebi um telefonema que o Ibrades tinha sido invadido. Eu não acreditava. Então eu chamei o motorista e disse: "escuta, vamos lá". Mas, quanto ao mistério, eu não sei até hoje quem telefonou. Quando nós chegamos lá, primeiro nós olhamos - era a rua da Bambina - olhamos tudo para ver se tinha algum sinal e não vimos nada. Então eu disse ao motorista "vamos entrar", e entramos. Eu desembarquei, ele também, vimos algumas pessoas, perguntei, e me disseram: "suba". E quando eu subi, eles nos prenderam. Então já tinham invadido pela manhã. Agora, até hoje eu não sei quem telefonou, porque nós não conseguimos nos comunicar. E, por acaso, eu, naquele dia, tinha programado um encontro com o ministro da Justiça, na época, Alfredo Buzaid [foi ministro de 1969 a 1974], e justamente lá no hotel Glória. E eu fui até falar com o chefe deles que tinham invadido e eles não permitiram telefonar. Nós estávamos de fato completamente incomunicáveis. E veio depois uma jornalista do Jornal do Brasil, mais tarde - e eu não sei como ela descobriu -, que veio para saber notícias. Mas nós estávamos lá em cima, no segundo andar, e tinha diversos padres presos e ... Então só para dizer: misterioso aquele telefonema, até hoje eu não sei quem telefonou. Só para complementar um pouco o fato. 

Kenneth Serbin: Depoimento muito importante do senhor, porque realmente esse momento foi, como eu disse, a gota d'água. Os cinco cardeais do Brasil, depois desse incidente - depois eu respondo a sua pergunta - enviaram uma carta particular ao presidente Médici, protestando, dom Aloísio, [contra] a sua detenção, e dizendo que isso estremecia as relações entre a Igreja e o Estado.

Dom Aloísio Lorscheider: É engraçado que na época quem noticiou não foi nem o jornal do Rio, foi noticiado em Goiânia, a primeira vez.  

Kenneth Serbin: Do que eu levantei nas minhas pesquisas é que a censura não deixava a notícia...

Dom Aloísio Lorscheider: Não deixava publicar. E o cardeal Rossi se encontrava no Acre - naquele tempo ele era nosso presidente da Conferência - ele imediatamente veio. Então eu disse: "não..." [com a entonação de “deixa pra lá”]. Foi interessante a gente viver essas aventuras, mas foi como o senhor disse: nós ficamos quatro horas, de fato, incomunicáveis.  

Kenneth Serbin: De fato, tudo que vinha acontecendo eram coisas cada vez mais humilhantes para a Igreja. Esse incidente do dom Aloísio, por exemplo, uma humilhação total. Daí os bispos... não sei se o senhor concordaria, mas eu acho que a partir daquele momento começaram a sentir na pele o que era a repressão. Porque até aquele momento eram poucos bispos que tinham sido atingidos. O dom Waldir Calheiros de Novaes, o bispo de Volta Redonda, tinha sido detido também e teve que fazer um depoimento de 25 horas em Volta Redonda. dom Hélder [foi arcebispo emérito de Olinda e Recife] teve a casa dele metralhada no Recife. O padre Henrique, o assessor dele, tinha sido assassinado antes, em 1969. Mas eram casos um pouco à margem, porque dom Hélder e dom Waldir eram tidos como radicais. Agora, dom Aloísio, como secretário geral da Conferência dos Bispos, respeitadíssimo entre o episcopado brasileiro... aliás no ano seguinte é eleito presidente da Conferência e fica na presidência por oito anos. Foi muito duro para os bispos verem isso. Então, isso em si foi uma humilhação. Agora, a própria Bipartite... eu não usaria a palavra humilhação para descrever essas reuniões porque elas eram completamente abertas. Você tem razão: por causa da censura, por causa da repressão, era a única maneira, naqueles anos, de poder conversar. Mas tinham liberdade total nessas reuniões para falarem sobre abusos de direitos humanos, os generais podiam se queixar dos documentos que a Igreja estava lançando, então havia essa abertura para conversar.

Maria Cecília D'Araújo: Uma abertura junto com as pessoas dos órgãos de informação, que isso fique claro, né? As pessoas podiam fazer denúncias, mas estava ali o representante do SNI [Serviço Nacional de Informações], o representante do Serviço de Informação das Forças, quer dizer, era uma situação delicada, né?

Dom Aloísio Lorscheider: A gente se preocupava na época também com a defesa do povo, não era só "vamos defender a Igreja". A gente começou a olhar... E eu acho que para a Igreja foi muito bom naquela época. Parece que a Igreja nunca tinha se aproximado tanto do povo... embora estivesse se aproximado já antes como naquela época. Foi uma espécie, para os bispos, de descoberta do nosso povo. E aí começou também antes com as torturas. A gente ouvia falar das torturas, mas ninguém tinha certeza. Até que um dia a gente teve documentos que comprovavam de fato a tortura. Havia também impasses, havia aquelas hesitações - que o senhor mesmo diz - mas depois a gente foi descobrindo, e a gente disse: "nós, como Igreja, temos que defender as coisas da Igreja, mas vamos defender também o povo”. Porque a gente viu que muita gente desaparecia, não voltava mais. Que fim eles levaram? Antes disso, antes desse ano, teve uma tripartite, lá no Rio de Janeiro, tripartite, antes disso. E essa durou três semanas só. Depois disso, acho que talvez por influência dessa tripartite, um pouco mais tarde nasceu a Bipartite.

João Roberto Martins Filho: Pensando agora nos militares, esse general Muricy. Quem acompanha a história desse período dos anos 1950 e o período antes e depois do Golpe, [nota que] ele aparece muitas vezes. Você definiria o general Muricy como uma pessoa importante dentro do regime? Qual era a posição dele dentro daquelas várias correntes que havia no regime militar? 

Kenneth Serbin: O general Muricy era uma figura central. Ele foi um dos líderes do Golpe de 64, uma das pessoas que ajudaram a tramar o golpe e era amicíssimo do [marechal Humberto de Alencar] Castello Branco [governou o Brasil de 1964 a 1967], do [general] Ernesto Geisel [governou o Brasil de 1974 a 1979], do Orlando Geisel [irmão de Ernesto Geisel, foi chefe do Estado Maior do Exército e ministro do Exército], tinha estudado na academia militar com muitos generais daquela época, conhecia as lideranças mais importantes e tinha um bom trânsito entre vários setores. Eu diria que em todos os setores: entre a linha dura, entre a linha “castelista”; era um tipo como quase um intermediário entre essas duas linhas. Mas ele era “castelista”. E ele foi o único general a, de fato, comandar tropas em 1964. Ele que tomou o comando do destacamento Tiradentes, que saiu de Minas para entrar no Rio de Janeiro para derrubar o [João] Goulart. E, por exemplo, na morte do Castelo, quem dá o discurso é o general Muricy.

Paulo Markun: Mas parece, Kenneth, pelo relato que você faz no livro, que o general Muricy estava realmente convencido de que aquela função era importante, não estava fazendo uma coisa só para, digamos assim, agradar a Igreja. Ele era um católico convicto. 

Kenneth Serbin: Era um católico, não só um católico convicto, mas amigo de vários bispos. O exemplo mais importante seria dom Hélder Câmara. Dom Hélder, que era odiado por muitos militares pelas denúncias que ele fazia contra a desigualdade social, pela denúncia que ele fez contra a tortura em Paris, em maio de 1970 - e todo mundo sabe que ele foi completamente censurado nos anos 1970. General Muricy foi amicíssimo de dom Hélder por 30 anos, porque a primeira mulher do Muricy era assessora de dom Hélder no Rio de Janeiro, e eles vinham mantendo essa amizade, e só em 1966 que eles rompem no Recife, porque dom Hélder recusa rezar uma missa a favor do golpe, da comemoração do golpe.

Cláudio Camargo: Mas qual era a representatividade desse grupo militar dentro do governo? Porque o senhor cita que o dom Eugênio Sales chegou a dizer o que faltava ao general de quatro estrelas. Ou seja, o Muricy tomou iniciativa porque ele era um católico e anticomunista - e tinha preocupações que não se chegasse a uma ruptura entre a Igreja e o Estado. Do ponto de vista do governo, quem apoiava essa iniciativa? Ou era uma iniciativa exclusivamente do general Muricy, que tinha prestígio nas Forças Armadas, mas não tinha mais comando, era ex-chefe do estado maior, ou seja, se não me engano estava na reserva, inclusive? E essa observação do cardeal Eugênio Sales que faltava ao general de quatro estrelas a mais na Bipartite?

Kenneth Serbin: Boa pergunta. Eu acho que também responderia um pouco a pergunta da Maria Celina, um pouco mais profundamente, porque de fato a Bipartite... A Igreja punha os titulares, os cardeais, o presidente da CNBB, como o dom Aloísio, dom Ivo, dom Eugênio, que era o interlocutor mais importante entre a Igreja e o Estado naqueles anos, respeitadíssimo entre os militares. Mas, de fato, as Forças Armadas colocaram o general Muricy, como você fala, ele passa para a reserva e os outros representantes não têm o mesmo cacife. E por isso o título do livro é Diálogos na sombra, porque não só era [...] de sombra, quando não se sabia exatamente o que acontecia nos quartéis, quando as pessoas procuravam os queridos desaparecidos, havia censura, esse tipo de sombra, mas também no próprio regime. Não ficava muito claro quem controlava, quem aprovava ou desaprovava. Eu pude levantar a documentação no Arquivo Nacional e também no Cepedoc, mostrando que, de fato, os militares queriam usar essa Bipartite para tirar da Igreja concessões, mas para não ceder em nada. Isso talvez responda à sua pergunta sobre a humilhação.

Cláudio Camargo: Inclusive o Muricy? 

Kenneth Serbin: Inclusive o Muricy. Mas o Muricy teria tido, eu diria, uma crise de consciência, porque tendo sido um homem muito católico e amigo pessoal de vários bispos; e homem também que, em várias ocasiões, ajudava a procurar os desaparecidos, tirava gente da prisão. Em 1964, por exemplo, no Recife. Castelo Branco mandou o Muricy para acabar com as torturas que aconteciam nos quartéis, como uma missão meio sigilosa do Muricy naquele momento. Tem uma senhora comunista que deu depoimento sobre isso na revista Teoria e Debate, a revista do PT. Eu cito isso no livro. O Muricy tinha essa consciência e certamente ele não queria ver as relações entre a Igreja e o Estado serem abaladas. E também ele não se identificava com essa linha dura que queria continuamente bater na Igreja. O Muricy era um general que queria um diálogo, queria trazer para os militares. Queria convencer os bispos a participarem do governo militar, no sentido de colaborar no desenvolvimento, e até de dar um aval, uma bênção para o regime. Ele tinha essa esperança, que também era uma crise de consciência. Mas, ao mesmo tempo, o próprio Médici, o general [João Baptista] Figueiredo [último militar a governar o Brasil, de 1979 a 1985], o chefe do gabinete militar, não queriam que essa Bipartite comprometesse o regime. Agora, então, nesse sentido, os bispos eram usados. E com o tempo eles iam percebendo que essa comissão não iria mudar os rumos do regime. Porque embora o Médici lesse os relatórios, e outros generais importantes, o [Carlos Alberto da] Fontoura, o chefe do SNI, também recebia esses relatórios, os bispos não recebiam. Mas os militares, os membros do grupo dos militares, recebiam. Nesse caso, então, os militares tinham uma vantagem de informações. Usavam a Bipartite como uma ferramenta política. Mas, com o tempo, os bispos aprenderam a também usar a Bipartite e, de certa forma, viraram essa comissão contra os militares ao usar a Bipartite como plataforma de denúncia de violações dos direitos humanos.

Jacob Gorender: Professor Serbin, em primeiro lugar eu quero parabenizá-lo por seu livro, que passou a ser um título singular e certamente insubstituível da historiografia sobre o período da ditadura militar. A Comissão Bipartite, que é o objeto do livro, atuou, como ficamos sabendo, de 1970 a 1974, que é o período mais pesado da ditadura militar, o período do governo Médici, período que concentra a quase totalidade dos mortos e desaparecidos, período das maiores agressões aos direitos humanos, da tortura, enfim, da censura à imprensa, e de tudo mais. Justamente em 1974, quando se torna presidente o general Geisel, a Comissão é dissolvida. E é justamente no período do general Geisel que o movimento democrático anti-ditadura começa a crescer, e o próprio presidente dá curso a um processo que ele mesmo chamou de "distensão lenta, segura e gradual". Então, como explicar isso: que quando existiu a Comissão foi o período de tortura mais pesada, e quando ela desapareceu é que a distensão ganhou curso? Eu fico com a impressão que o resultado histórico dessa Comissão foi somente de manter um canal entre o episcopado da Igreja Católica e o alto comando do Exército, que fora disso, eu não vejo outros efeitos da existência dessa Comissão. Eu gostaria que o senhor abordasse isso. 

Kenneth Serbin: Em primeiro lugar, obrigado pelo elogio, vindo de você é realmente muito importante para mim ouvir isso. Mas essa Comissão evitou a ruptura entre essas cúpulas, evitou uma ruptura institucional. Ela teve efeitos para a sociedade brasileira no sentido de reformas sociais? Não. No sentido de ajudar na redemocratização no país? Não. Ela não foi causa, por exemplo, dessa distensão. A distensão não era discutida. Por outro lado, é importante lembrar que alguns dos participantes desta Bipartite depois participaram da abertura. O próprio general Golbery [do Couto e Silva, figura influente, estrategista no regime militar, foi chefe da Casa Civil entre 1974 e 1981] participou de uma das reuniões da Bipartite. O Cândido Mendes, conhecido como um articulador de elites, tentou plantar a idéia da abertura já durante o governo Médici. Então, a Bipartite acaba sendo um exemplo de descompressão. Descompressão entre duas instituições, das cúpulas de duas instituições. E também uma tentativa de aparar as arestas pela base, porque eles discutiam casos de padres subversivos, e os bispos queriam controlar os padres. E também os militares esperavam isso dos bispos. Mas, para o historiador, você sabe disso muito bem, nós ficamos muito nos documentos. Mas se nós especulássemos um pouco, se não houvesse essa Comissão Bipartite, o que teria acontecido com as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil? Poderia ter levado a uma crise política mais séria no Brasil daqueles anos.

Jacob Gorender: Mas isso é suposição. 

Kenneth Serbin: Suposição. Pois é, os documentos não comprovam isso. Mas a Bipartite também é muito importante para os direitos humanos, porque ela permite que os bispos dêem um recado direto para os generais de que sabem o que está acontecendo nos campos de tortura, que têm evidências e que vão continuar denunciando, particularmente, nos bastidores, e também publicamente. A Bipartite faz... Muitos casos são levados à Bipartite. No meu livro eu relato dois: o caso de Barra Mansa e o caso do Alexandre Vanucchi Leme [líder estudantil brasileiro que, no início da década de 1970, se destacou pela luta em defesa da democracia e dos direitos humanos. Morreu precocemente aos 22 anos, vítima de atropelamento, segundo a versão oficial do governo, porém há denúncias de que ele teria morrido em decorrência de tortura durante interrogatório]. O caso de Barra Mansa teve uma resolução importante por várias razões, podemos falar sobre isso mais para frente, que fica no final do livro. E o caso de Vanucchi Leme também é muito importante para a igreja, porque ele marca o começo dos desafios frontais da Igreja contra os abusos aos direitos humanos. Na historiografia, como todos vocês sabem muito bem, é sempre citado o caso do Vladimir Herzog [jornalista, conhecido também como Vlado, assassinado pelos órgãos de repressão durante a ditadura militar no Brasil em 1975, aos 38 anos. O laudo oficial do governo foi de suicídio por enforcamento]. O caso do Vanucchi não é nunca citado. Dom Paulo faz uma missa para três mil pessoas e isso não resolve o caso. Os advogados da família vão à justiça militar, pedindo a exumação do corpo, não resolve o caso. O que acaba sendo a última instância? Justamente a Bipartite?

Jacob Gorender: E eu acrescento: esse caso teve uma imensa repercussão dentro da Universidade de São Paulo, da qual o Vanucchi Leme era aluno. A importância desse evento é muito grande, e eu também quero ressaltar que foi importante você abordar o caso dos soldados torturados e mortos miseravelmente em um quartel de Barra Mansa. Porque não tinham a ver diretamente com a esquerda, não eram de esquerda, era um caso policial de outra ordem. No entanto, a tortura é uma doença tão contagiante que ela se disseminou no corpo militar e se tornou, então, um hábito, que veio a se exibir de uma maneira tão monstruosa nesse caso.  

Kenneth Serbin: Quero completar ainda a sua pergunta, porque é importante ver a Bipartite não só no contexto daqueles quatro anos; nós temos que olhar a Bipartite de toda a história das relações entre Igreja e Estado e entre Igreja e as Forças Armadas no século XX. Porque os bispos iriam dialogar com representantes do SNI e do Ciex [Centro de Informação do Exército], justamente nos anos mais gloriosos da Igreja, quando ela está criando as comunidades de base, a Teologia da Libertação está nascendo, um pouco depois a Comissão Pastoral da Terra surge, a Pastoral Operária acontece também. Porque os bispos iriam negociar ou conversar? Fazia parte da missão dos bispos...

José Maria Mayrink: E fora que eles estavam defendendo privilégios. A Igreja estava defendendo privilégios enquanto militares e policiais prendiam, torturavam e matavam. Que privilégios eram esses? 

Kenneth Serbin: A Igreja defendia sim os privilégios. Há evidências disso no livro, sem dúvida. Porque a Igreja vivia, há várias décadas, em um sistema de... O que eu chamo de "concordata moral". A concordata sendo um acordo formal entre o Estado e a Igreja. Essa formalidade não existia no Brasil, mas sempre havia um entendimento de bastidores, e isto eu chamo de concordata moral: a Igreja dando o aval às políticas sociais dos governos e, em retorno, a Igreja recebendo benefícios, inclusive benefícios financeiros dessa relação. Mas a Igreja, através dessa Comissão, queria se manter nessa posição que ela sempre tinha, que era de interlocutor junto ao poder. Agora, por que falar com torturadores? Por que falar com o inimigo? Temos que lembrar também que naqueles anos a Igreja está passando por uma renovação... A renovação mais importante nos dois mil anos de história da Igreja, que foi o Conselho/Concílio Vaticano II, dos anos 1960. E justamente uma das palavras chaves da década de 1960 na Igreja é o diálogo. A Igreja começa a dialogar com quem? Com comunistas, com protestantes, com judeus, ou seja, é o começo do ecumenismo. Então, se a Igreja se abre para esses grupos... Porque também é um trabalho do missionário se abrir para um diálogo com os militares.

Paulo Markun: Kenneth, eu queria pedir licença para nós fazermos um rápido intervalo e voltamos já.

[intervalo] 

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o historiador norte-americano Kenneth Serbin, autor do livro Diálogos na sombra. Kenneth, o seu livro se beneficia, de maneira muito competente pelo seu trabalho, de uma raridade, que são documentos militares, ou documentos produzidos por um militar que chegam até a opinião pública. No Brasil isso é um caso raríssimo, há outros exemplos de períodos da história brasileira dos quais nós ignoramos completamente o que se passou no campo militar, porque aquilo continua sob censura, não importa se o sigilo for de, sei lá o termo que se usa, 20, 50, 100, 200 anos e... Nem da Guerra do Paraguai a gente tem documentos que ainda não foram disponibilizados. Do lado da Igreja, houve documentos desse tipo também a que você teve acesso?

Kenneth Serbin: Eu pesquisei nos arquivos, por exemplo, da JOC, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E há referências a essa Comissão Bipartite. Mas por parte da Igreja, no geral, a documentação está fechada ainda. Tive notícia de que na Conferência dos Bispos do Brasil havia alguns documentos fazendo menção a essa Bipartite, mas que não eram documentos... Era pouca informação, mas eu não tive acesso.  

Paulo Markun: Quer dizer que não é só o Exército, então, que guarda tudo a sete chaves...

Kenneth Serbin: Não é. Muitas dioceses até hoje não têm uma política de pesquisa: chega o pesquisador e, para não errar, preferem não abrir nada. Por exemplo, na arquidiocese de São Paulo não é fácil pesquisar o período. Em outras dioceses também. É mais fácil pesquisar o século XIX. A preocupação é com o fato de haver gente viva ainda. Mas eu faria um chamado para Igreja, porque ela tem muita história a contar, muitos documentos a revelar, e também tem muitos bispos que poderiam falar sobre o período. Eu acho um ato muito corajoso da parte do dom Aloísio participar do programa, falar sobre o período. Eu acho que outros bispos poderiam fazer isso. Para o meu livro eu tentei entrevistar outros membros da Bipartite pelo lado dos bispos, e recusaram... 

Paulo Markun: Dom Lucas?

Kenneth Serbin: Dom Lucas Moreira Neves, que foi cardeal-arcebispo da Bahia, e agora está no Vaticano, e dom Ivo Lorscheider, que era na época secretário geral da CNBB, hoje bispo de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, também recusou entrevista. Eu acho que esses bispos têm uma riqueza para contar para a história do país.  

Dom Aloísio Lorscheider: Eu acho que você poderia ter pesquisado nos arquivos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Não sei se pesquisou.

Kenneth Serbin: Pesquisei. 

Dom Aloísio Lorscheider: Porque lá deve ter material também desta época. Só que nós não tomamos nota como tomavam nota os militares, porque nós não dávamos tanta importância à Bipartite como eles davam. Nós íamos, conversávamos, procurávamos defender as pessoas. Eu acho que a Bipartite teve um resultado muito bom, evitamos a morte de muitas pessoas e também a tortura de muitas pessoas. Porque isso foi aparecendo cada vez mais e mais forte. Era um ambiente também de denúncia. Eu acho que o senhor diz isso uma certa hora no seu livro muito bem, que se falava com muita clareza, e eles que vinham, sabiam escutar, isso é interessante. Então, nesse sentido, acho que teve um resultado - para a época - relativamente bom, e a gente foi descobrindo também muita coisa. Porque depois a gente se reunia - e também eles faziam isso - mas nós nos reuníamos entre nós, e aí se comentava, se fazia uma revisão. Eu acho que no fundo foi positivo. E eu ainda diria que quem deu um pouco origem a isso, acho que foi o próprio general Médici. Ele achou que pediu para eles assumirem isso. Porque o Médici era de difícil acesso conosco. Antes, o [marechal Arthur da] Costa e Silva [ex-ministro do Exército, governou o Brasil de 1967 a 1969)] era mais fácil, mas com ele [Médici] ficou mais difícil. Depois, o Geisel era mais fácil também. Mas o Médici era muito difícil. Então eu acho que ele mesmo deve ter pedido isso, acredito. Precisaria comprovar isso.

Kenneth Serbin: Eu acho muito importante esse ponto, dom Aloísio, porque o Muricy era amigo do Médici, era amigo também do Orlando Geisel, que era ministro do Exército e também chefe de repressão. Estes dois aprovaram a Bipartite. O Figueiredo e o Fontoura eram contra a Bipartite. Embora houvesse essas restrições - várias pessoas têm feito alusão a essas restrições - havia mesmo assim uma ordem, um entendimento para chegar a um entendimento com os bispos. E era de fato uma missão na sombra. Mas eu concordo com o senhor de que evitou conflitos mais sérios.  

Mônica Teixeira: A Bipartite tomava decisões? E, se ela tomava decisões, elas eram implementadas, quer dizer, decidiam-se coisas entre bispos e militares, e isso tinha depois repercussões fora da reunião?

Kenneth Serbin: Tomavam decisões. Um exemplo seria a comemoração do sesquicentenário aqui em São Paulo, o sesquicentenário da Independência (em 1972). Aconteceu logo depois de dom Paulo Evaristo Arns ter feito com os bispos do estado de São Paulo um documento muito importante, feito na cidade de Brodowski. Esse documento hoje é conhecido como "documento de Brodowski", é uma denúncia muito forte contra a tortura. Esse documento é emitido e censurado, é só passado de mão em mão, não saiu nos jornais, os universitários passavam entre si esse documento, por exemplo. Ele foi feito em junho de 1972. E a Igreja planejava também uma declaração sobre o estado do Brasil ao fazer 150 anos de independência. Havia muita preocupação que a Igreja soltasse documentos criticando tortura, criticando a desigualdade no país, e a Bipartite fez uma reunião de emergência, alguns dias antes do sesquicentenário para discutir esse documento. De fato, foi lançado um documento muito mais ameno, e eu chamo... 

Mônica Teixeira: Neste caso, a Comissão atuou contra os interesses do povo brasileiro?

Kenneth Serbin: Atuou.  

Mônica Teixeira: Contra a denúncia, contra a radicalização da denúncia... Se é que pode chamar essa comissão de bispos de radical, né?

Kenneth Serbin: Mas havia também a preocupação de que estourasse um conflito muito grande em São Paulo, porque lembremos que São Paulo é o centro de repressão.  

Mônica Teixeira: Digamos então: os militares obtiveram aí uma...

Kenneth Serbin: Uma conquista. 

Mônica Teixeira: E o que eles deram em troca?

Kenneth Serbin: Nada. Neste momento não deram nada em troca.  

Paulo Markun: Do outro lado nunca houve uma vitória?

Kenneth Serbin: Justamente, a Igreja virou essa Comissão contra os militares, denunciando as violações dos direitos humanos. E como eu disse: os bispos iam aprendendo. De certa forma, desculpe a frase dom Aloísio, os bispos iam lá com uma certa boa fé, uma certa ingenuidade no início. Mas eu vejo a Bipartite uma aprendizagem política dos bispos: como lidar com o regime militar. Não só através da Bipartite, mas através de tudo que está acontecendo no país. Porque na sede da CNBB, que ficava no Rio, naqueles anos, diariamente dom Ivo Lorscheider recebia denúncias de desaparecimentos, de violações de direitos humanos e outras formas. E a Bipartite fez parte dessa aprendizagem. É importante ver a Bipartite como um exemplo de fazer política. Como é que se faz política em um regime autoritário, quando não há jornais não censurados, quando outros canais de comunicação são fechados? Justamente é a política de bastidores... 

Cláudio Camargo: Mas será que não teria sido mais importante para o desenvolvimento da democracia brasileira que houvesse realmente um confronto entre a Igreja e o Estado para apressar a abertura democrática? Porque essa distensão do governo Geisel demorou muito tempo, ou seja, o regime militar permaneceu muito tempo depois que já estava esgotado como modelo político. Será que esse confronto entre Igreja e Estado não teria sido desejável do ponto de vista do desenvolvimento da democracia no Brasil?

Kenneth Serbin: Mas esse confronto teria levado a quê, eu me pergunto. Porque os militares... 

Paulo Markun: Quantas divisões tem o papa, não é?

Kenneth Serbin: Exatamente. Os militares tinham o poder efetivo. Agora, a Igreja tinha poder moral. A longo prazo, eu acho que a Igreja foi quem ganhou nessa história. Mas mesmo na época da abertura, quando se podia falar, quando a Igreja podia lançar um documento sem essa censura negociada na Bipartite... Eue eu chamo a Bipartite de censura negociada, no lugar de baterem em você, eu converso com você e digo a você para não lançar esse documento: censura negociada. Repressão negociada também aconteceu na Bipartite. Mas, mesmo durante a abertura, a Igreja continuou apanhando no campo. Dom Pedro Casaldáliga [como bispo de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, durante o regime militar, sofreu inúmeras ameaças de morte e, por cinco vezes, foi alvo de processos de expulsão do Brasil], a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário, todos os grupos novos que a Igreja estava formando sofriam os efeitos da repressão mesmo durante essa abertura e de momentos de conflitos mais abertos entre as Forças Armadas e a Igreja. 

Cláudio Camargo: Mas o senhor diz aqui no livro que quem, de fato, ganhou mais com essa Bipartite foram os militares. Quem dava as cartas era a Igreja, mas ela ganhou pouco com isso. Aprendeu a negociar, aprendeu a entender como funcionava a mentalidade militar, mas quem ganhou mais em termos de concessão foram os militares.

Kenneth Serbin: Sem dúvida, quem ganhou foram os militares. Mas em direitos humanos não. Em direitos humanos quem ganhou foi a Igreja. Porque, veja bem: os militares fizeram na Bipartite o que eles nunca admitiram publicamente, que foi sentar com representantes da Igreja, pessoas que defendiam os direitos humanos e ouvir informações sobre essas violações, principalmente no caso do Alexandre Vanucchi Leme. Em três ocasiões os bispos levam informações contradizendo a versão que o regime tinha colocado nos jornais de que o Alexandre tinha sido atropelado ao tentar fugir da polícia.  

Cláudio Camargo: Mas os militares não sabiam disso? Que o Alexandre tinha sido...

Mônica Teixera: Não chegava ser uma novidade para os militares que ele não tinha sido atropelado. 

Kenneth Serbin: Não, não chegou a ser uma novidade, mas eles nunca admitiram discutir isso publicamente. Colocavam nos jornais a versão deles - atropelamento, tiroteio, qualquer que tenha sido a maneira de fazer desaparecer a pessoa, de matar - e o outro lado nunca era ouvido nos jornais. Mas na Bipartite era.

Cláudio Camargo: Mas era uma reunião secreta, não era tão [...] assim, não é? 

Paulo Markun: Desculpe meter a minha colher. Mas nem que seja para que hoje a gente tenha o registro histórico de que os militares sabiam disso e que isso se passava, a comissão já teve o seu papel.

Kenneth Serbin: Eu queria só lançar uma coisa aqui, que é muito importante. Eu vou falar um pouco como historiador. Porque é importante ver a Bipartite não como um placar: quem ganhou, quem levou vantagem. Isso, me desculpem, é uma abordagem muito jornalística e talvez um pouco de ciência política também – eu faço isso como brincadeira, João, pelos meus amigos cientistas políticos. Mas a gente tem que analisar a Bipartite também como um fenômeno religioso, um fenômeno cultural, no contexto das relações Igreja-Estado do século XX. É uma relação que a Igreja vem mantendo. Primeiro ela faz uma concordata moral. Ela trabalha com Getúlio [Dornelles Vargas, governou o Brasil de 1930 a 1934 no governo provisório; de 1934 a 1937, eleito pelo Congresso Nacional; de 1937 a 1945 no Estado Novo (ditadura) e de 1951 a 1954, eleito pelo voto direto], trabalha com Juscelino [Kubitschek de Oliveira foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961], trabalha com o Jango [João Goulart, foi eleito duas vezes consecutivas vice-presidente do Brasil  (1955 e 1960) e deposto por um golpe militar em 31 de março de 1964]... 

Paulo Markun: Eles não falavam na Itália e na Alemanha?

Kenneth Serbin: Concordatas formais e colaboração com os regimes totalitários. A Igreja, em partes diferentes do mundo, tem abordagens diferentes. Mas, no caso brasileiro, ela vem fazendo isso, ela passa a ser o quê no regime militar? Passa por um processo de aprendizagem e ela fica não mais na concordata moral, mas na oposição moral. A palavra chave é moral, porque ela tem uma auto-imagem de guardiã moral da sociedade brasileira, ela quer guiar essa sociedade a favor do bem-estar do povo, principalmente a partir dos anos 1960. Hoje em dia ela é o quê? A Igreja não é mais a posição moral, essa concordata moral não existe; ou, se existe, é muito mais fraca hoje em dia, porque o Brasil agora, em termos religiosos, é um país pluralista. Mas ainda ela se mantém numa posição de denúncia moral. O dom Aloísio faz isso no dia 7 de setembro em Aparecida, com o Grito dos Excluídos [manifestação política organizada anualmente por setores da Igreja Cotólica]. Durante o governo Fernando Henrique, por exemplo, com as privatizações, quem criticou isso frontalmente? Foi dom Luciano Mendes de Almeida, arcebispo de Mariana e ex-presidente da CNBB. Então, isso não é só história de embate militar e Igreja, faz parte também de uma coisa mais global da história do Brasil. 

Maria Celina D’Araújo: Sobre os documentos que foram mencionados aqui, você teve acesso a documentos de militares, mas é importante dizer que foram documentos produzidos pelos militares que estão aí em um arquivo privado. Nós não temos acesso no Brasil a arquivos institucionais, quer dizer, a própria CNBB, obviamente, não tinha os informantes para fazer as atas das reuniões. Mas a gente teve a sorte de que um militar que participou guardou as atas, e essas atas foram para o Cepedoc da Fundação Getúlio Vargas.

Paulo Markun: Foi o general Muricy. 

Maria Celina D’Araújo: Foi o general Muricy. Então isso é importante para não dar a impressão de que os arquivos militares estão tão disponíveis como a gente gostaria. O professor Jacob Gorender fez uma observação que é muito importante. A Bipartite acaba exatamente quando a abertura pra valer começa, quando a conversa, quando a negociação com a sociedade começa, no governo Geisel. E aí eu acho que é importante a gente pensar dois estilos de fazer política na ditadura. Um é este que você está falando aqui: a negociação dos bastidores. É tudo na sombra, tudo clandestino. Porque isso é um instrumento de poder! Você conversar na moita é um instrumento de poder! E o estilo de governar do presidente Geisel, que não é um democrata, mas é um homem da ordem, é um homem de fazer as coisas institucionalmente. “Vamos repor as hierarquias”! E acho que no seu livro – eu procurei muito isso, essa pergunta do professor foi a pergunta que eu me fiz o tempo todo – você dá a resposta para isso. Você dá a resposta na medida em que você disse... Quando o Geisel assume, há dois encontros só da Bipartite, e depois o que ele faz? "Não, a negociação vai ser feita com a CNBB e o comando militar, com o comandante do Exército. Vamos repor a hierarquia da instituição militar e a instituição Igreja e vamos negociar e conversar o que for preciso, contrapondo e conectando as hierarquias correspondentes". Não estou falando em passar do autoritarismo para a democracia, não é isso, mas são dois estilos de fazer política muito diferentes – política institucional e essa política escusa que, às vezes, eu entendo até como humilhação, como eu já falei aqui. Não sei se você concorda com isso...

João Roberto Martins Filho: Eu poderia complementar? Eu acho que o dom Aloísio colocou com clareza isso. Quer dizer, a Comissão foi criada porque não havia mais canais. Às vezes me parece que você sugere no livro que o governo Médici não era tão fechado quanto a história registra, ele tinha algumas aberturas. Mas a questão aí é o quão fechado ele era para ter fechado até a comunicação com a Igreja Católica. Isso é um índice de fechamento e não de uma pequena válvula de escape. A válvula de escape existia, dado o tamanho justamente da asfixia que havia, não é? 

Kenneth Serbin: A Bipartite, ela... Eu digo no livro que... Bom, primeiro a sua pergunta. [voltando-se à Maria Celina] Justamente, o Geisel não quer mais a Bipartite, porque ele quer o quê? Ele quer ver as relações Igreja-Estado como um fenômeno de Estado a Estado: o [Estado do] Vaticano falando com o Estado brasileiro. Então ele fala com o núncio apostólico [espécie de embaixador do Vaticano], ele quer contato com os cardeais, arcebispos. E também ele fazia restrições à CNBB, porque ela era um órgão relativamente novo na história da Igreja e tinha posições muito combativas. Então ele preferia ir justamente por esses canais mais tradicionais, de Estado a Estado. É interessante notar que o Vaticano nunca rompeu com o Estado brasileiro, manteve as relações; o Papa estava informado do que estava acontecendo, sabia da tortura, denunciou indiretamente o governo brasileiro em 1970 por causa da tortura, mas manteve as relações. O Vaticano nunca quis romper, pois achava importante manter, com a maior nação católica do mundo, relações normais. E a Bipartite indiretamente contribuiu para isso.

José Maria Mayrink: O caso de Barra Mansa - que foi uma denúncia de dom Waldir Calheiros de que havia torturas e ,depois da tortura, o assassinato dos soldados - ali a Bipartite também discutiu o assunto, e o general Muricy e os militares se viram obrigados a admitir que as denúncias de dom Waldir eram verdadeiras. O livro salienta que foi o único caso em que o Exército levou a investigação até o fim e tomou providências, embora as vítimas não tenham sido devidamente indenizadas até hoje. Sem falar em quem ganha e quem perde, aí não foi mais uma vitória da Igreja, no caso do Waldir e daquele grupo, com relação ao comando militar na pessoa do general Muricy? 

Kenneth Serbin: Foi, sem dúvida. Porque, depois disso, acaba a tortura em Barra Mansa. Barra Mansa tinha tortura desde meados dos anos 1960, porque os próprios militantes de dom Waldir eram presos, torturados. Dom Waldir teve que responder um inquérito de 25 horas dentro desse quartel. Então ele vinha vivendo uma série de atritos com esses militares. No caso de Barra Mansa, ele tem provas concretíssimas de tortura, ele denuncia a várias instâncias, a mais importante sendo o próprio núncio apostólico, que leva para a cúpula do governo essa denúncia, e também através da Bipartite. E os militares, então, começam a investigar isso com mais seriedade. Porque, de fato, há uma investigação falsa, feita pelos próprios torturadores, no início do caso; com a denúncia de dom Waldir, eles são forçados a fazerem um outro inquérito policial-militar, para desvendar o caso de verdade. Deve-se dar também um crédito às Forças Armadas nesse sentido, porque pelas pesquisas que eu fiz – falei com o juiz da Justiça Militar, por exemplo, falei com o coronel que fez o IPM [Inquérito Policial Militar], o coronel Sampaio. Homem muito corajoso, que mesmo sob ameaça de morte levou essa investigação às últimas consequências, que foi a prisão, o julgamento e a condenação, pela própria Justiça Militar, desses soldados. E dom Waldir depois envia uma carta para o Orlando Geisel elogiando a atuação das Forças Armadas no caso. Então, temos que dar crédito também às Forças Armadas nesse caso específico. Para mim, o trágico do caso de Barra Mansa são várias coisas. Primeiro, é um caso esquecido. Muitos jornalistas conhecem, é comentado de vez em quando na imprensa, mas ele não foi tratado da mesma forma que outros casos de tortura têm sido tratados.

José Maria Mayrink: Você diz que os livros de esquerda ignoram esse episódio.  

Kenneth Serbin: Eu acho que ignora porque...

José Maria Mayrink: Você não está generalizando? 

Kenneth Serbin: Acho que não, porque qualquer livro, salvo a exceção do livro do professor Gorender [Combate nas trevas], um dos poucos a mencionar o caso, salvo poucas exceções – Brasil nunca mais [livro de Dom Paulo Evaristo Arns, que conta as torturas que ocorriam no Brasil durante a ditadura militar com depoimentos das próprias vítimas], o excelente livro do deputado Nilmário [Nilmário Miranda, em parceria com o jornalista Carlos Tibúrcio, escreveu Dos filhos deste solo, livro que registra a história de cada um dos mortos e desaparecidos políticos levantados por meio dos trabalhos da Comissão Especial do Ministério da Justiça]. Não quero tirar mérito nenhum desses livros, desses dossiês; o dossiê dos familiares dos desaparecidos e mortos, e muitos outros livros, não falam desse caso de Barra Mansa. Eu acho que a esquerda perdeu o bonde da história naquele momento, porque podia ter dito: “olha, não são só os nossos que estão apanhando de tortura. É o povo também”. Quatro jovens de 19 anos, que serviam à pátria, eram recrutas, soldados rasos, morreram; e mais 11 foram torturados. E as famílias não entraram nessas comissões especiais que existem. Eu acho que existe um preconceito de classe nesse caso. E também os militares perderam o bonde da história.

José Maria Mayrink: Eles eram pobres e negros. 

Kenneth Serbin: Pobres e negros. A mãe de um deles era lavadeira, os outros eram operários da siderúrgica nacional, famílias muito humildes.

Paulo Markun: Vamos fazer mais um intervalo e voltamos em seguida. 

[intervalo]

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o historiador americano Kenneth Serbin, autor do livro Diálogos na sombra, que registra as reuniões secretas e de alta-cúpula entre bispos e militares durante o período mais duro da ditadura brasileira, de 1970 a 1974. Kenneth, quem viveu aquele período, como involuntariamente vítima da ditadura, quem sofreu na pele algum tipo de problema com os direitos humanos sabe muito bem que os bispos eram um porto seguro, eles não perguntavam qual era a posição ideológica de quem ia lá bater na porta e pedir ajuda, se o filho daquela senhora tinha sido guerrilheiro ou não, se tinha matado alguém ou não tinha. Eles sempre se manifestaram, de modo geral, em defesa dos direitos humanos. Agora, o seu livro faz justiça a algumas figuras que dentro desse plano geral eram vistas como as pessoas que não ajudavam. Cito o caso do [cardeal] dom Vicente Scherer [em 1971, foi eleito delegado da CNBB], e do dom Aloísio. Dom Aloísio, desculpe [Markun se equivoca quanto aos nomes]. De dom Eugênio Sales... eu me confundi aqui, o dom Aloísio estava sempre na lista dos que sempre tiveram uma ação afirmativa. Mas dom Eugênio Sales e dom Vicente Scherer eram tidos como bispos que não atuavam em favor dos direitos humanos. Não é isso que o seu livro registra, não é? Que papel eles tiveram? 

Kenneth Serbin: Principalmente no caso do dom Eugênio eu fiquei muito surpreso com o que eu levantei. Meu livro não é uma biografia de dom Eugênio, eu só estudo uma pequena parte da atuação de dom Eugênio Sales, quero registrar isso. Eu acho que falta ainda fazer a biografia de grandes líderes episcopais, como o dom Eugênio, como o dom Aloísio. Mas eu sempre tinha na minha cabeça a idéia de que dom Eugênio era um conservador, que era como que conivente com a tortura, que ele apoiava abertamente o regime militar, que ele não tinha sensibilidade pelas questões sociais. Mas eu descobri uma coisa bastante diferente nas minhas pesquisas: de fato dom Eugênio era um defensor dos direitos humanos.

Mônica Teixeira: Mas não publicamente. E aí eu queria fazer uma pergunta. 

Kenneth Serbin: Não publicamente, não. [Só] Nos bastidores.

Mônica Teixeira: Absolutamente. Isso que você está dizendo sobre dom Eugênio eu, como observadora do período, não penso isso e tenho o direito de continuar pensando como eu sempre pensei. Porque a face pública dele, ou o fato de ele no bastidor ter conversado com o general Muricy e tal, não elimina, vamos dizer assim, o que possa ter havido de deletério na ação dele a favor do regime militar, tá certo? Pode relativizar e tal, mas, quer dizer... E essa é a pergunta que eu quero fazer. Uma coisa é a conversa na Bipartite, outra coisa era o que acontecia publicamente. Porque também do ponto de vista de quem olhava de fora, a Igreja absolutamente não parecia estar conversando. Muitas vezes a Igreja, vista aqui de São Paulo especialmente, que é um pouco a ótica dessa Igreja da qual o Markun falou agora há pouco, era um porto seguro mesmo. A Igreja não parecia estar disposta a ter atitudes mais amenas com o regime; visto aqui de São Paulo havia quase que uma escalada mesmo na relação. Então, como é que é? Você estudou essa relação entre o que acontecia ali e o que acontecia em um cenário mais amplo? 

Kenneth Serbin: Eu queria responder primeiro o ponto sobre dom Eugênio.

Mônica Teixeira: Não estou discutindo dom Eugênio. É o problema de como eles apareciam. Que papel eles tiveram na arena política? Porque esse lugar podia ser político mas, como você disse, estava na sombra... 

Kenneth Serbin: Justamente, a história é feita de muitas facetas. Se nós estudarmos só a faceta pública do período, é claro que dom Paulo Evaristo Arns é o grande herói, o campeão dos direitos humanos; e dom Eugênio faz vista grossa para as violações dos direitos humanos. Mas, estudando os documentos, na medida em que os documentos ficam disponíveis para o historiador, na medida em que as pessoas falam sobre o período, a gente vê outras facetas. Justamente, a Bipartite é uma faceta completamente diferente, desconhecida na historiografia sobre o período.

Paulo Markun: E dom Eugênio teria, inclusive, comboiado algumas pessoas perseguidas até o aeroporto, não é?  

Kenneth Serbin: Comboiava. Eu tive registro da ação de dom Eugênio na entrevista com ele, mas também com outras pessoas. É muito interessante. Nesses últimos dias que eu venho fazendo o lançamento, e falo desse papel de dom Eugênio, as pessoas dizem: "sim, você tem razão, o dom Eugênio fez isso, fez aquilo, fez muita coisa a favor dos direitos humanos". Eu quero registrar isso. Primeiro, como historiador, é muito importante ser isento, é muito importante colocar no papel o que aconteceu, na medida do possível; sempre vai ter viés de interpretação, sempre vai faltar um documento, um ou outro depoimento, uma sutileza, mas a gente vai construindo a história aos poucos. Meu livro não pretende ser, nunca pretenderia ser, a última palavra sobre as relações entre Igreja e Estado durante a ditadura. Há muito trabalho a ser feito ainda, não só sobre as relações entre Igreja e Estado, mas muitas outras facetas da vida do país naqueles anos. De certa forma, meu livro é um chamado para os historiadores entrarem em campo e pesquisar cada vez mais.

Mônica Teixeira: Ok. Mas a articulação entre o que se decidia ali, o que era conversado ali e a faceta pública das duas instituições, do governo que aparentemente não se incomodava muito com a comissão, e a ação, o recuo ou o não recuo entre o lado dos bispos. Você estudou, você cotejou isso? Como é que essa articulação era feita? Por que dom Eugênio, então, se colocou sempre como alguém conservador e que apoiava o regime, se ele tinha essa outra ação? 

Kenneth Serbin: Não, mas ele não se colocava assim. Dom Eugênio de fato... Porque o livro não é só a Comissão Bipartite, ele também fala de outros diálogos na sombra. Por exemplo, há uma troca de cartas interessantíssima entre o dom Eugênio e o Muricy, na época do AI-5. E já dom Eugênio faz restrições...

Paulo Markun: Quando o dom Hélder, de alguma forma, aceita... 

Kenneth Serbin: Dom Hélder... - isso não é pesquisa minha - mas a biografia de dom Hélder mostra que ele teria uma atitude de “esperar para ver” no momento do AI-5. Eu nunca criticaria dom Hélder por isso. Porque dom Hélder era um homem abertíssimo e, inclusive, na biografia dele, que é do professor [Nelson] Piletti e do professor [Walter] Praxedes, um excelente livro [Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia], fala justamente que dom Hélder não gostava dessa falta de entendimento [das razões] dos militares, e que ele queria que os quadros da Igreja mantivessem a cabeça aberta para compreender as pessoas. Dom Hélder era de uma grande visão. Mas é claro que depois dom Hélder toma as posições mais duras e de certa forma se sacrifica.

Maria Celina D'Araújo: Kenneth, e eu acho que uma coisa importante para a gente entender esse diálogo de bispos e militares. É que a gente não pode falar “os bispos”, porque são personalidades muito distintas. Quer dizer, o dom Eugênio tem uma personalidade, tem uma maneira de agir publicamente que é assim "não se mistura política com Igreja". Privadamente, eu fiquei impressionada, são milhares de refugiados políticos que passam pela casa dele, digamos. E é um papel que ele vai continuar tendo no governo Geisel, que a gente está organizando o arquivo do Geisel no Cepedoc, e eu fiquei muito surpresa. Ele é o bispo que mais procura as autoridades, pelo menos nos registros, ele diz: "Vamos acabar com a tortura, vamos tirar os presos políticos dos quartéis, vamos cuidar de ter uma polícia mais eficiente, vamos acabar com a censura". Quer dizer, ele está ali. É um estilo de personalidade de... Só para a gente lembrar porque a gente fica falando “os bispos” e a gente fica esperando o comportamento pactado. 

Dom Aloísio Lorscheider: Eu gostaria de dar um testemunho sobre dom Eugênio. Eu acho que dom Eugênio teve um papel muito positivo. É claro, são figuras diferentes. Ele já disse “as facetas”. Mas eu acho que a gente tem que olhar... Por exemplo: eu, naquele tempo, era secretário geral. Quantas vezes eu me dirigia a dom Eugênio e dizia: "Dom Eugênio, como a gente vai agir?". Ele estava na Bahia naquela época, ele era administrador apostólico. E, às vezes, ele vinha da Bahia para a CNBB lá no Rio, para a gente conversar e ver mais claramente. Porque a questão não era tão fácil. Hoje, tudo vemos muito fácil, mas naquela hora não era nada fácil, a gente estava diante de muitas perplexidades. Então eu acho que dom Eugênio tomava posição, mas não tomava essa posição tão pública. Ele era, nesse ponto, mais discreto, com outro modo de agir. Mas ele, no meu entender, não se omitiu. Ele dava um grande apoio a dom Hélder. Por exemplo, dom Hélder não foi mais perseguido, não foi mais colocado, assim, como um excluído, à margem... grande parte [disso] se deve a dom Eugênio. Dom Eugênio apoiava, ajudava. Então eu acho que isso é muito positivo. Agora, como você diz, é um modo político de agir, naquelas ocasiões não era nada fácil. Não era fácil.

Kenneth Serbin: Com respeito a isso, o dom Eugênio justamente deixa a Comissão Bipartite em 1972. Porque um padre fica preso, que não devia ficar preso, estava, entre aspas,  "em retiro", na casa de dom Eugênio. O Dops [Departamento de Ordem Política e Social, foi o órgão do governo brasileiro criado durante o regime militar para controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao poder estabelecido], a polícia política chama esse padre para um depoimento e dom Eugênio diz: "Tudo bem, mas ele vem de volta". Não o levaram de volta e, como protesto, ele renunciou à própria política de bastidores dele, que era a Bipartite, e nunca mais foi [à reunião]. Mandaram um comandante da Vila Militar - e vários outros generais - à casa de dom Eugênio, rogando que ele voltasse para a Bipartite. E ele não voltou. E isso foi uma forma de protestar, porque esse entendimento especial que ele tinha com os militares, de ajudar, foi desrespeitado naquele momento.  

Cláudio Camargo: É por isso que você diria que ele tem uma avaliação pouco crítica em relação aos resultados da Bipartite?

Kenneth Serbin: Ele tem. Ele justamente colocou esse ponto dos generais de quatro estrelas. Por um lado, os titulares eclesiásticos, por outro lado o Muricy - mas [ele] na sombra, está na reserva - e os outros oficiais não tinham esse cacife como os cardeais e os arcebispos tinham. E por isso o dom Eugênio teve uma avaliação bastante crítica da Bipartite. Ele acha que teve resultados positivos, mas que não foram tão positivos quanto poderiam ter sido. É importante ver que ele não é a única pessoa que avalia, o dom Aloísio tem uma visão mais positiva, eu também tenho. E várias pessoas que eu cito no livro têm uma visão mais positiva dos resultados. E, por outro lado, tem pessoas mais céticas ainda, o dom Pedro Casaldáliga [ver entrevista Roda Viva com dom Pedro Casaldáliga], por exemplo, da ala mais radical. Era contra, achava que isso era... 

Cláudio Camargo: Mas eu tenho a impressão... Você conclui no seu livro, me parece, que essa Bipartite foi sincera na tradição de conciliação das elites brasileiras, pelo que eu entendi da conclusão do livro. É isso mesmo?

Kenneth Serbin: É uma outra faceta. Alguém falou das personalidades... Porque essa reunião não é só de duas instituições. É uma reunião que traz pessoas que se conheciam, que eram amigos de bispos, que estudavam no mesmo colégio. Hoje em dia três membros dessa Comissão são membros da Academia Brasileira de Letras: o Cândido Mendes, o dom Lucas Moreira Neves e o Tarcísio Padilha, que é o presidente. E um outro padre, que estava muito junto a tudo aquilo e que foi preso também com dom Aloísio, o padre Ávila. Então, quatro membros desses incidentes... E isso é um reflexo de como era não só instituição versus instituição, mas membros da elite, católicos que achavam que em conversas e em almoços podiam conciliar. E a Bipartite tem esse aspecto também.  

José Maria Mayrink: Professor, eu acho uma pena que você não tenha conseguido uma entrevista com o dom Lucas Moreira Neves. Porque ele também está citado no livro paralelamente a dom Eugênio, mas em um caso muito concreto, em que ele fica muito mal assistindo a opinião pública e continua assim dentro da Igreja. Esse caso é citado, trata-se de quando ele foi ao presídio para constatar se havia ou não tortura. E constatou-se que o frei Tito de Alencar havia sido torturado, depois ele morreu, suicidou-se. O dom Lucas teria se negado a prestar testemunho na Justiça Militar sobre o caso de tortura do frei Tito, que era dominicano como ele. E ele teria alegado que não poderia fazer isso porque se ele fosse prestar esse depoimento isso prejudicaria a atividade pastoral dele. O seu livro, que procura - eu tive essa impressão - dar crédito às pessoas, ele reconhece a honestidade das personagens, tanto de um lado como de outro. No caso de dom Lucas, o senhor cita vários episódios que redimiriam essa ação do dom Lucas contra a ditadura pelos direitos humanos, sobretudo contra a censura - ele dirigia na época um departamento aqui de comunicação, imprensa - mas a imagem continua ruim. Como é que o senhor analisa, como é que o senhor vê o dom Lucas nesse período? Na época ele não era cardeal, ele era bispo auxiliar de São Paulo.

Jacob Gorender: Eu gostaria, só para adicionar mais um elemento à questão colocada, de comentar a atitude de dom Paulo Evaristo Arns. Eu me encontrava no presídio Tiradentes, em 1970, quando dom Paulo se tornou arcebispo aqui de São Paulo, da capital. E eu me recordo que o primeiro ato dele foi ir ao presídio Tiradentes, diante de todos os presos que estavam ali no pátio, fazer uma visita aos dominicanos que estavam ali também. Dominicanos que eram execrados naquela época, postos no pelourinho pela imprensa e, enfim, sofrendo uma série de acusações. Essa atitude de dom Paulo foi extremamente solidária e, eu diria, a melhor atitude cristã possível naquele momento.  

José Maria Mayrink: Eu acho que há uma retificação, se me permite, a fazer aí. O dom Paulo foi ao presídio Tiradentes ainda como bispo auxiliar. E foi por ordem, por incumbência do cardeal [Agnelo] Rossi, que já tinha enviado lá o dom Lucas. E quando o dom Paulo saiu e disse que, de fato, os frades e os outros presos estavam sendo torturados e correndo o risco de morte, o dom Rossi, o cardeal Rossi, observou para ele: "Mas eu mandei outra pessoa de minha confiança lá e essa pessoa me disse que não há tortura". O dom Paulo não fala isso claramente no livro dele, nesse livro Do sonho à utopia, mas há vários testemunhos de que essa pessoa que disse que não havia tortura, e que depois se recusou a prestar um depoimento no caso do frei Tito, era também o dom Lucas.

Kenneth Serbin: Eu já tive confirmada essa história várias vezes, é uma história conhecidíssima no âmbito do clero brasileiro. Eu abordo a questão de dom Lucas de uma forma diferente da questão de dom Eugênio. Eu acho que realmente no caso de dom Eugênio existe um maniqueísmo religioso, ou seja, querendo afirmar que só progressista pode defender direitos humanos. E meu livro diz que não, os conservadores que eram cristãos também defendiam os direitos humanos. Tem o caso interessantíssimo do dom Jaime Barros de Câmara, o arcebispo do Rio de Janeiro, [que] apoiava o golpe. [Ele] dizia que quem apanhava merecia punição por ter errado. Mas depois o sobrinho-neto dele, membro de uma organização revolucionária, é morto no Doi-Codi [Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna. Órgão repressivo do regime ditatorial que se instalou em 1964] de Belo Horizonte, e ele começa a mudar. Ele é uma figura que vê cada vez mais estremecida a relação entre Igreja e Estado. Então os bispos passaram por uma evolução. Agora, no caso de dom Lucas, realmente é lamentável - eu digo isso no livro - que ele não tenha dado um depoimento para mim. Eu entreguei pessoalmente as perguntas para ele na noite da posse dele na Academia Brasileira de Letras, conversei com ele por telefone, trocamos cartas. Eu queria entrar nisso, justamente para dar a ele a oportunidade de esclarecer e acrescentar informações. Porque a atuação de dom Lucas não é só nesse caso de frei Tito. Dom Lucas é uma das figuras mais importantes do episcopado brasileiro dos últimos 30, 40 anos, ele tem muita coisa a falar. E levantei, de fato, documentos da Bipartite em outros arquivos mostrando nos bastidores, a firmeza de dom Lucas. Agora, é verdade que na esfera pública ele nunca assumia. E, nesse caso de frei Tito, realmente, ele temia que a carreira dele fosse prejudicada. Dom Lucas, dizem os padres que ele é carreirista, que ele não queria ofender os militares com medo de não poder subir mais na hierarquia episcopal. Uma frase que me falou um padre, que era membro da JOC, Juventude Operária Católica, muito torturado, personagem chave naqueles anos, disse o seguinte sobre dom Lucas: "Dom Lucas entra no mato de costas para dar a impressão de que está saindo". [risos] Ou seja, um homem que sempre fica em cima do muro, um político habilíssimo... 

José Maria Mayrink: Isso porque ele é mineiro...

Kenneth Serbin: Existe essa parte da “mineirice” na história também. 

Mônica Teixeira: Kenneth, no seu prefácio, você diz duas vezes uma mesma coisa que está sintetizada na página 12, na seguinte frase: "A história, no final, é entender pessoas". Eu queria que você dissesse para a gente o que você entende por história, se não tem nenhuma outra determinação a não ser o desejo das pessoas, ou de se encontrarem, ou de conversarem? Qual é a relação entre o que está determinado na história, exteriormente às pessoas e às pessoas?

Kenneth Serbin: É claro que a história é bastante complexa.  

Mônica Teixeira: Mas você sintetizou assim: “A história, no final, é entender pessoas”. E antes você diz assim, só para o telespectador saber: "A história deve ser vista como conflito entre indivíduos".

Kenneth Serbin: A história inclui isso, certamente. A história é sobre os seres humanos. Mas também a história inclui meio ambiente, a história inclui as estruturas sociais, a história inclui muitas facetas. Cada vez mais o campo da história se divide em sub-campos. O que eu quero resgatar com esse livro... e por isso ponho essa frase, que é uma frase que não deveria ser tomada de forma isolada, ela tem que ser tomada no contexto do livro. Porque o historiador, nos últimos 30, 40 anos - tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, em muitas partes do mundo - perdeu a capacidade de fazer narrativa. O cientista social, o sociólogo, o cientista político, o antropólogo, têm métodos muito bem definidos. O historiador também tem uma metodologia, mas essa metodologia fica mais aberta para outros campos. E o que eu quero resgatar com esse livro, principalmente na versão brasileira, que é uma versão feita para o Brasil... se você lesse a versão americana você veria uma coisa muito mais enquadrada na academia. Mas eu queria dar ao leitor brasileiro a sensação de como era o período. 

Mônica Teixeira: E qual é o papel da narrativa na história?

Kenneth Serbin: O papel da narrativa é recapturar os sentimentos do período, recapturar os fatores que não podem ser avaliados através de documentos, o intangível. O fato, por exemplo, desses homens serem de uma mesma classe social e hoje fazerem parte da Academia Brasileira de Letras é um comentário muito importante. E, também, vamos ser honestos com isso, o prazer da leitura. Porque a falha da academia hoje, no mundo inteiro, é que os livros são difíceis de ler. Eu brinquei antes com os cientistas políticos e jornalistas, o grande mérito de vocês, jornalistas, é que vocês sabem escrever, vocês sabem transmitir as idéias. E o acadêmico perdeu isso.  

Mônica Teixeira: Mas será que você não está falando particularmente da realidade anglo-saxônica? Da realidade da academia? Você diz: “A academia no mundo inteiro, hoje”. Mas não é uma distorção?

Kenneth Serbin: Pegue qualquer tese de doutorado em francês, em alemão, em português, em inglês...  

Maria Celina D'Araújo: Da Unicamp, da USP... [risos]

Kenneth Serbin: São trabalhos difíceis de entender. E esses trabalhos são para quem? Não deveriam ser só para nossos colegas de pesquisa, também são para os nossos alunos. E se nós, historiadores e também acadêmicos, vamos ter uma contribuição para a sociedade, nós temos que nos comunicar com as pessoas através de narrativas.  

Jacob Gorender: Serbin, um detalhe. O seu livro é muito rico de detalhes e chega ao ponto de apontar o prato preferido do professor Cândido Mendes, que é o peixe ao molho de camarão. Qual a preferência gastronômica dos outros personagens? [risos] Por que omitiu?

Kenneth Serbin: Fica para o próximo livro, [risos] Os bispos e a culinária. Mas aponto isso justamente porque... quantos brasileiros podem comer peixe ao molho de camarão, não é? A leitura deveria ser uma coisa prazerosa, as pessoas gostam de ler isso. Combate nas trevas é um ótimo livro porque você narra do início até o fim, e o parabenizo por isso. Eu queria que o livro fosse um chamado para um novo tipo de história. Na Associação Americana dos Historiadores houve um painel, em 2000, eu cito isso em uma nota de rodapé no livro, onde há uma tentativa de juntar essas técnicas jornalísticas com as técnicas do historiador.  

Paulo Markun: Kenneth, eu queria agradecer você pela sua entrevista e pela disponibilidade de vir aqui para gravar este programa, esticando a sua permanência no Brasil, quando sei que você tinha compromissos nos Estados Unidos, até familiares. E dizer para o telespectador que a melhor continuação deste programa, como, aliás, de todos os programas em que a gente apresenta autores de livros, é comprar livro. O Brasil tem muito mais farmácia do que livraria. O dia em que essa situação mudar, o país será melhor.

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