;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

José Celso Martinez Corrêa

29/3/2004

O "amor" provoca tanta excitação que o Marechal Deodoro da Fonseca resolveu retirá-lo da bandeira nacional, deixando apenas "ordem e progresso", lamenta o ator e diretor do Oficina

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

[Programa ao vivo, que permitiu a participação do telespectador por telefone]

Paulo Markun: Boa noite. O nome Oficina foi escolhido para dar o sentido de trabalho e provar que teatro não era frescura. A idéia fez surgir um dos mais expressivos grupos teatrais brasileiros que, junto com o Cinema Novo e a Bossa Nova, agitaram a vida cultural do país a partir dos anos 60 [1960]. O [Teatro] Oficina sobreviveu ao regime imposto pelo golpe militar que completa quarenta anos daqui a dois dias. Tanto na ditadura como depois dela sempre foi um espaço de contestação que, agora, transformando o texto de Euclides da Cunha em encenação, terá uma réplica na Alemanha. No centro do Roda Viva esta noite, José Celso Martinez Corrêa, ator, diretor, fundador e algumas vezes refundador do lendário Teatro Oficina.

[Comentarista]: Ele trocou o curso de direito na universidade de São Paulo, pelo grupo de Teatro Oficina, criado com outros estudantes em 1958, estreou sua primeira peça em 59, no saguão da rua Jaceguai no Bixiga [tradicional bairro da cidade de São Paulo], onde o Teatro Oficina funciona até hoje, no coração teatral de São Paulo. Já são 45 anos de história e polêmicas, que também marcam a dramaturgia e a vida brasileira desse tempo: Pequenos burgueses [peça lançada no Brasil em 1963 e suspensa pela ditadura militar em 1964, de autoria do escritor russo Máximo Gorki, foi escrita em 1901, enfocando a sociedade da Rússia com tendências socialistas], Os inimigos [1966], O rei da vela [peça de Oswald de Andrade escrita na década de 1930, mas que só foi encenada na década de 60 (1967)], Roda viva [(1968), peça concebida por Chico Buarque de Holanda com base na letra e música com o mesmo nome], Gracias, señor [1972], montagens históricas, entre outras, que se misturaram à própria história do Oficina. O Teatro pegou fogo em 1966, foi reconstruído em 67, virou alvo do comando [de caça aos] dos comunistas [grupo de estudantes, políticos  e religiosos que se posicionaram a favor do regime militar e sua política anti-comunista] em 68 e acabou invadido pela polícia em 74. Preso e depois exilado por cinco anos em Portugal, José Celso retornou ao Brasil em 79. O Oficina, tombado pelo patrimônio histórico em 82, foi renovado pela arquitetura de Lina Bo Bard [(1914-1992) italiana, veio para o Brasil com o marchand Pietro Maria Bardi (ver entrevista Roda Viva com Bardi), seu marido, e desenvolveu projetos famosos, entre os quais destaca-se o prédio do Masp – Museu de Arte de São Paulo] em 86, espaço reconceituado, palco em passarela que se abre para rua e a luz de fora, o Teatro se colocou como trincheira artística que instiga, provoca, envolve espectadores nas cenas, e movimenta o público em leituras de textos, manifestos e protestos, alguns deles contra o projeto de um shopping center de lazer e entretenimento no quarteirão do Teatro, outra polêmica que tem ocupado o José Celso. Quanto à produção teatral, o diretor está às voltas com Os sertões, espetáculo montado em 2002, no ano do centenário da obra clássica de Euclides de Cunha. Canudos, nordeste da Bahia, guarda na memória o trágico episódio da história brasileira. O confronto entre o exército republicano e os seguidores do líder espiritual e político Antônio Conselheiro, que criou uma comunidade com leis próprias no sertão baiano e entrou em conflito com a República recém proclamada. A Guerra de Canudos, em 1896, foi uma carnificina, onde morreram cerca de 5 mil soldados e 25 mil sertanejos, muitos deles degolados depois de presos. A saga de Antônio Conselheiro foi transposta para o teatro na pele do próprio José Celso, que há muitos anos alimentava a idéia do espetáculo. É um musical coral, dividido em quatro atos de longa duração: “A Terra”, a primeira, narra, como no livro, a geografia e o clima inóspito de Canudos; a segunda e a terceira, “Homem 1” e “Homem 2”, falam das origens do sertanejo, da mestiçagem e das rivalidades entre famílias de vaqueiros e criadores de gado do sertão. A última parte, “A Luta”, que trata do confronto final de Canudos, só fica pronta em maio, é quando ela estréia no festival de Teatro de Hur, um dos mais tradicionais da Alemanha, onde está sendo construída uma réplica do Teatro Oficina para as apresentações dos espetáculos.

[inserção de clipe musical]

Paulo Markun: Para entrevistar José Celso Martinez Correia nós convidamos Beth Néspoli, repórter e crítica de teatro do jornal O Estado de S. Paulo, Contardo Calligaris, psicanalista e colunista da Folha de S. Paulo, Tadeu Jungle, diretor da produtora de cinema Academia de Filmes e dos dvds sobre as peças do Teatro Oficina, Nelson de Sá, jornalista da Folha de S. Paulo, Mário Viana, dramaturgo, repórter de cultura e colaborador do jornal Valor Econômico, Alexandre Delijaicov, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e arquiteto do Departamento de Edificação da Secretária de Serviços e Obras da Prefeitura de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e para Brasília também. Boa noite, Zé Celso.

José Celso Martinez Corrêa: Boa noite.

Paulo Markun: Vou começar pelo seguinte: você acha que 1964, o golpe de 64 [que implantou o regime militar no Brasil, que perdurou até 1985], ainda é um personagem da nossa história determinante ou foi "um rio que passou na nossa vida" e acabou?

José Celso Martinez Corrêa: A verdade, meu amor, mora num poço. É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz, na verdade faleceu por ter pescoço, o infeliz, autor da guilhotina de Paris. Vai orgulhosa, querida, mas leva essa lição, no câmbio incerto da vida, a libra sempre é o coração. O amor vem por princípio e a ordem por base, o progresso é que deve vir por fim, desprezaste esta lei de Augusto Comte e foste viver longe de mim. Vai coração que não vibra, com teus juros exorbitantes, fazer de mais uma letra a de vida flutuante. A intriga vem como um café pequeno, que se toma para ver quem vai pagar, por sentir todo esse teu veneno é que eu resolvi me envenenar, pa ra ra ra pa pa, pã! [cantando e finaliza mostrando a bandeira do Brasil e um cartaz da peça] Está vendo? Tem uma cena no "Homem 2", d'Os sertões.

Paulo Markun: Uma está de cabeça para baixo, a outra, a outra, a outra...

José Celso Martinez Corrêa: Esta aqui?

Paulo Markun: Isso, essa está de cabeça para baixo, não a foto.

José Celso Martinez Corrêa: É o amor em vermelho, a foto está de cabeça para baixo?

Paulo Markun: Isso.

José Celso Martinez Corrêa: Isso, para vir pegar próximo, mas tem uma cena, que é a cena da Proclamação da República, no "Homem" na revolta ao trans-homem, em que tem um momento em que se cogita de seguir a lei de Augusto Comte: “l’amour pour principe et l’ordre pour base; le progres pour but”, [o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim] que seria exatamente o lema positivista da chamada religião humana [refere-se às idéias de Comte expressas em sua obra: Sistema de Política Positiva ou Tratado de Sociologia que institui a Religião da Humanidade, escrito nos anos de 1851 a 1854] e esse lema tem três irmãs, que são as três irmãs que vestiram a faixa, essa faixa para colocar na bandeira: o amor, a ordem e o progresso, mas Marechal Deodoro da Fonseca que está a cavalo, o amor provoca tanta excitação, tanto ouriço, tanta coisa, tanto movimento, que o Marechal Deodoro da Fonseca resolve castrar e resolve guilhotinar, aí ele “tá” [faz o gesto de quem corta], corta isso da faixa e deixa só o Ordem e Progresso, que é um lema pouco motivador, até é uma coisa assim meio que Carandiru [antigo presídio de São Paulo, conhecido pela superlotação, violência e más condições], de ordem e progresso, quem vai viver de ordem e progresso? Se você não tiver uma motivação ali amorosa, ninguém vai fazer isso, você não vai fazer ordem e progresso nenhum e é uma coisa que Eduardo Suplicy [Senador pelo PT – Partido dos Trabalhadores] indo assistir, ficou absolutamente apaixonado por isso e vai entrar com um projeto de lei em que eu vejo que está despertando entusiasmo muito grande, porque nessa vuduzação [negativismo, termo derivado de vudu – ritual macabro] que está o Brasil há tantos anos, há quarenta anos, quer dizer, houve um conchavo, as oligarquias se restabeleceram, se concordaram, não houve eleições diretas, primeiro, depois houve, mas em lugar de eleições diretas veio um tipo de campanha com um marketing violentíssimo, o desejo do povo se manifesta e etc, mas tem alguma coisa que quando chega lá em cima acontece como o “rei da vela”... de Abelardo I, Abelardo II [refere-se ao imperialismo norte americano que, em última análise é o que controla tudo, à semelhança do que faz Abelardo, agiota, personagem da peça O rei da vela], Mister John determina, como determinou em 1964, quer dizer, em 1964 Mister John fez um trabalho porco, um trabalho sujo da repressão, pegou a geração mais anterior a minha, pegou a minha geração também, nós fazíamos Pequenos burgueses no teatro, mas pegou aquela geração maravilhosa de brasileiros como Darcy Ribeiro [(1922-1997), etnólogo, antropólogo, professor, educador, ensaísta, romancista e político - ver entrevista com Darcy Ribeiro no Roda Viva ], o Celso Furtado [(1920-2004), um dos maiores economistas brasileiros - ver entrevista com Furtado no Roda Viva], o Jango, a Lina [Bardi], enfim, aqueles brasileiros e nós todos que estávamos vivendo uma possibilidade de mudar completamente o equilíbrio da Guerra Fria [disputas por posições territoriais estratégicas e conflitos indiretos que marcaram as disputas entre os Estados Unidos e a Rússia no período compreendido entre o término da Segunda Guerra Mundial em 1945 e a extinção da União Soviética em 1991], nós não éramos colonizados nem pela União Soviética nem pelo Estados Unidos, nós sabíamos, nós tínhamos no corpo um caminho próprio, um poder próprio e no corpo individual e no corpo coletivo, assim, a vida era vivida como uma eterna criação de uma maneira de ser tão forte que a gente sentia que com a aliança toda, tanto com essa política maravilhosa que o Celso faz agora, dessa aliança com os países que na época eram chamados de Terceiro Mundo, a Índia, a China, tinham possibilidades enormes assim de emersão. O brasileiro foi! “Poxa”! Uma época inclusive que, acompanhando isso, o movimento de artes maravilhoso, já tinha o Cinema Novo, já tinha o Teatro Oficina, já tinha o Opinião [grupo teatral do Rio de Janeiro], já tinha o CPC [Centro Popular de Cultura da UNE – União Nacional dos Estudantes], já tinham os teatros todos, já tinha o [teatro] Cacilda Becker, já tinha o Movimento de Cultura de Pernambuco [movimento criado no Recife, em 1960 e que foi extinto com o golpe militar de 1964], avançadérrimo, que esse foi o que mais foi prejudicado, tanto que ele só foi renascer depois, eu tenho a impressão que ele chegou só depois que Chico Science [cantor e compositor pernambucano, líder da banda Nação Zumbi e criador do mangue beat] de novo, com o mesmo poderio que ele tinha em 64. Foi uma revolução que reprimiu culturalmente, principalmente Pernambuco, e reprimiu essa geração dos que abriram o caminho do [Oscar] Niemeyer [arquiteto brasileiro com destaque para obras como: o conjunto da Pampulha, o conjunto do Parque Ibirapuera, a criação de Brasília, o Sambódromo e o Memorial da América Latina], que abriram caminho para um país absolutamente universal, não um país nacionalista, mas um país, enfim, que tinha a sua visão sobre o que ele queria como a sua economia, como a sua maneira de ser, tinha o Jango maravilhoso, a mulher dele mais linda ainda, a Maria Tereza, quer dizer, todos nós vindos do suicídio de Vargas, que realmente o suicídio do Vargas foi a primeira herança maior da minha geração, a minha geração que explodiu em 68 revela, nasce do suicídio do pai, diz: olha, por aí meus filhos não dá, te vira que teu pai se matou, por esse caminho, por essa presidência, por essa coisa não dá, então você não tinha pai, era todo mundo órfão e todo mundo órfão, então vamos à luta, vamos inventar nós mesmos, vamos fazer o Brasil. Pegamos aquela carta que é um documento shakespeariano [carta deixada por Getúlio Vargas, comparada com uma tragédia no estilo de William Shakespeare (1564-1616), poeta e dramaturgo inglês], maravilhoso, é a origem da tragédia brasileira, super demonstrada, o momento mais alto talvez, nós estávamos todos jovens e cada um estava no colégio e, enfim, na hora que veio a notícia fomos para a rua, veio aquela multidão e daí veio o movimento que ia explodir nas reformas de base e Darcy Ribeiro tinha um plano maravilhoso, e nós todos recusávamos o acordo Mec-Usaid [acordos firmados entre o Ministério da Educação e Cultura e a Usaid - United States Agency for International Development, no período de 1964 a 1971, visando a oferta de assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira], que transformou depois a educação do Brasil nessa coisa de criar rebanho para o mercado, mas o sentido que tinha a universidade, Darcy Ribeiro é extraordinário, é mais ou menos o mesmo sentido da universidade que, agora, com a leitura d'Os sertões, que é uma universidade! Nós começamos reunindo duzentas pessoas, juntas durante dois meses, com percussão, quando você atravessa o livro você acorda formado, você tem uma formação e quando você passa a aglutinar gente, nós somos mais ou menos, agora, cem pessoas e podemos ser muito mais, você começa a aglutinar para trabalhar esse livro, você redesperta novamente o sentido do estudo do Brasil e você retoma um sonho deste país, porque sonho não é uma coisa que, como diz John Lennon [(1940-1980), músico britânico, um dos quatro integrantes dos Beatles] que acaba, isso aí não vai acabar nunca, você pode ficar uma noite em sonho, você pode não sonhar, mas não vai acabar o seu sonho, eternamente, o dia em que você deixar de sonhar, você deixou de viver. E com a instalação dessa cultura que veio com o golpe de 64 e que depois se firmou na “porrada”, principalmente sobre o meio cultural onde havia exatamente aquela efervescência nas assembléias de teatro, que convocavam todas as artes: as artes plásticas, cinema, literatura, músicos, luta armada, estudantes e tudo, e a Cacilda Becker [(1921-1969), atriz brasileira, ícone do teatro e referência para várias gerações] toca aquilo, maravilhosa, aquela coisa extraordinária, e ao mesmo tempo os teatros todos pulsando com Navalha na carne [(1967), peça de Plínio Marcos], Feira de Opinião [movimento que reunia jovens para debates sobre arte, cultura e outros temas dominantes na década de 60], Rei da vela, Roda viva, aí houve um ataque à Roda viva, que celebrizou a peça pelo ataque, infelizmente, mas o ataque não tem a menor importância diante da beleza que foi a cultura que vinha vindo, que é o Tropicalismo, que hoje no mundo é considerado uma das, talvez a cultura mais importante do século passado.

Paulo Markun: Zé Celso, o Nelson tem uma pergunta.

Nelson de Sá: Tenho?

Beth Néspoli: Eu tenho.

Paulo Markun: Não, pelo menos eu vi aquele sinal.

Beth Néspoli: Por que você sempre fala...

Paulo Markun: Pode ir.

Beth Néspoli: Por que você sempre fala que está fazendo Os sertões não para provocar catartase com o massacre dos condenados?

José Celso Martinez Corrêa: Não, eu quero fazer o massacre do massacre.

Beth Néspoli: Exatamente, para que o massacre não se repita, de que forma você acha que hoje você consegue, com uma peça de teatro, aglutinar em torno de uma idéia, quem seriam esses, quem se agregaria hoje, como o teatro pode estar em um novo movimento hoje?

José Celso Martinez Corrêa: Eu tenho a impressão que está acontecendo um movimento social muito grande no Brasil todo e no mundo e não só social. Eu acho que é um movimento amoroso, porque essa história de cortar o amor da bandeira brasileira, mas cortar o amor é castrar, vou dizer olhando para o Contardo aqui, é pura castração, castrou a libido, cortou a vida e, consequentemente, cortou a cultura, porque a cultura é amor, cultura é cultivo da vida e o que é cultivo da vida? É mais vida, e vida o que é? Vida, vida, vida, vida é libido, vida vem do amor, nós nascemos do amor, nós nascemos para o amor, nós fazemos questão, nós temos uma parte da humanidade que não faz questão que haja desigualdade, tem uma outra que é a hierarquia, que haja essas coisas todas, que a maioria da humanidade está fora, assim como cortou o amor da bandeira brasileira, isso é um corte típico do capitalismo e da própria lógica excludente dele, ele é uma coisa que é assim, ele parte da exclusão, é da natureza dele, mas como o excluído é a maioria, a maior parte da população do mundo, e são talvez as pessoas mais... e a cultura é excluída, o amor ao próximo é excluído, o amor, o tesão ao próximo é excluído, isso é o que acontece, é que sonhos, como, por exemplo, o da Revolução Russa, que fizeram a União Soviética, que teve em um período absolutamente brilhante, de [Constantin] Stanislavski [diretor de teatro, desenvolveu método revolucionário de preparação do ator], de [Vladimir] Maiakovski [maior poeta russo moderno], e de construtivismo de, enfim, de [Sergei] Eisenstein [cineasta russo e referência mundial na área cinematográfica], de período de arte maravilhoso [no início da Revolução Russa, 1917], um grande período assim da cultura pública foi exatamente nesse momento, e ela depois virou capitalismo de Estado, mas não é por isso que a humanidade toda aceita um regime de exclusão, tanto que não deu certo, é um regime que causou guerra, terrorismo, violência. E a única arma que existe, inclusive eu acho, com a vivência que se tem do século XX, a única arma realmente é a cultura, é a arte e hoje eu sinto que começa a haver essa consciência, principalmente quando nós, trabalhando com as crianças no Bixigão, [refere-se à escola de artes, criada no bairro do Bixiga, a qual ele se refere também como universidade] que é um trabalho que se faz com as crianças de um nome vindo, aliás, de um documento que eu enviei ao Silvio Santos [apresentador, empresário, dono do SBT – Sistema Brasileiro de Televisão, disputa área contígua ao prédio do teatro Oficina, com o propósito de fazer um shopping center ], gravei feito Bin Laden [terrorista internacional] no vídeo e mandei também uma proposta através de uma audiência da procuradoria do meio ambiente, propondo que nós trabalhássemos juntos, que nós fizéssemos naquele, tal como estava o quarteirão, que a gente montasse junto Os sertões. Ao meu ver, Os sertões é um livro complexo, é um livro que, para ler, você tem que ir para geologia, para a economia, para arte militar, para filosofia e você tem que desenvolver muita coisa. E o Euclides é um cientista, mas ao mesmo tempo ele é um poeta, porque este ano vai ser lançado em São José do Rio Pardo [cidade do estado de São Paulo onde Euclides escreveu Os sertões] uma série de poemas inéditos dele, e o sonho dele era juntar a ciência e a arte, quer dizer, para que o SBT inclusive entrasse até com o campo todo de experimentação, na TV digital e trabalhasse com as crianças todas do bairro e com os adultos, e fizesse uma universidade, uma universidade popular chamada Bixigão, porque é um nome que é recalcado pelo grupo Silvio Santos, que eles querem fazer no Bela Vista [bairro próximo ao Bixiga] e tem o terror do recalque, nessa castração, esse nome é recalcado, e aí essas crianças que vieram, trouxeram uma renovação extraordinária para o Teatro Oficina, elas são as herdeiras do Teatro Oficina, eu acho que não é só no Teatro Oficina, acho que no Brasil inteiro, todo o trabalho que está sendo feito com as crianças, seja no teatro, seja no cinema, seja no circo, é um trabalho que vai criar uma geração extraordinária, porque as crianças que estão entre estourar carro, o crack, ser avião de droga, se elas descobrem de repente a possibilidade da arte, eu vi isso, a transmutação é enorme, porque elas têm um talento muito grande, elas vivem na rua e, portanto, elas têm a educação da vida, elas estão muito próximas da vida, então elas absorvem com uma facilidade incrível e nos ensinam e se apaixonam pelo texto, esse texto que milhares de brasileiros não conseguem ler, é a coisa que mais dá prazer a elas de dizerem, então eu acho que está havendo no Brasil e eu sinto um movimento, eu vi, mesmo na escola [de samba] do Joãozinho Trinta [carnavalesco carioca], que foi proibida, tapando os carros, porque são aqueles carros suntuosos, aquela coisa que não quer dizer “porra” nenhuma, aqueles carros censurados e aquela multidão sambando e sambando com libido, com prazer, de saber que não está só, simplesmente fazendo uma propaganda para usar camisinha, mas para você usar camisinha você tem que ter tesão, então o mais importante que usar camisinha é ter tesão e o desfile foi um desfile tesudo, como foi tesudo o desfile da [escola de samba paulistana] Vai-Vai, onde nós tínhamos uma ala, e eu brinquei como se brincasse nos anos 30, nos anos 40, aliás, que eu brinquei Carnaval, e eu sinto que hoje mudou muito. Nos festivais internacionais, as pessoas que vêm nos convidar, por exemplo, não são mais aqueles jovens arrogantes, aqueles técnicos, são pessoas de coração aberto.

Paulo Markun: Zé Celso, nosso intervalo e a gente volta daqui um minuto.

José Celso Martinez Corrêa: Tá legal.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina, aqui em São Paulo. Zé Celso, Cândido Tertuliano, que é de Pombal, na Paraíba, diz o seguinte: a nossa colonização já foi um massacre, muitos índios dizimados, n'Os sertões outros massacres. E ele pergunta: qual será o próximo massacre?

José Celso Martinez Corrêa: O próximo massacre: massacrar o que massacra, tem que massacrar o que massacra. Por exemplo, nós estamos ameaçados de massacre no Teatro Oficina. O Teatro Oficina que é um teatro concebido pela Lina Bardi e que, inicialmente, é um teatro de rua, um teatro inspirado em um terreiro eletrônico, é um verdadeiro templo de Apolo para Dionísio, andrógino, quer dizer, é uma rua em que você tem um teatro enorme, você tem todos os elementos da natureza e você tem também toda a tecnologia contemporânea e quer ter mais, só não tem tanto porque não tem dinheiro, mas, enfim, quer ter toda a cibernética, tudo o que precisa.

Paulo Markun: Mas não está tombado pelo patrimônio?

José Celso Martinez Corrêa: Está tombado pelo patrimônio, pelo Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico].

Paulo Markun: Não pode mexer lá, exatamente, patrimônio estadual.

José Celso Martinez Corrêa: Mas o Condephaat teve épocas poderosas, ele foi tombado em uma época maravilhosa em que tinha três pessoas extraordinárias no Condephaat, que era o João Carlos Martins, o pianista de Bachara Bacante, o Flávio Império [1935-1985), cenógrafo, arquiteto e artista plástico brasileiro], que tinha feito o teatro anterior.

Paulo Markun: O projeto anterior, não é?

José Celso Martinez Corrêa: O projeto anterior e o Aziz Ab'Saber [geógrafo e professor - ver entrevista com Ab'Saber no Roda Viva, que tinha tombado a Serra do Mar, quer dizer, tinha de repente três titãs em um lugar, três poderes maravilhosos e, na época, então, nós decidimos, como Silvio Santos queria comprar o Oficina, houve um movimento muito grande dos artistas todos do Rio, de São Paulo, de música, tinha até um show filmado, como eles todos vieram, esse movimento fez com que o Silvio Santos recuasse. E nós até investimos para dar entrada na compra do teatro, porque nós como locatários tínhamos direito preferencial, mas não, a Caixa Econômica não autorizou e a gente acabou investindo em equipamento de vídeo, que nós compramos do Fernando.

Contardo Calligaris: Meirelles? [cineasta, dirigiu Cidade de Deus, entre outros]

José Celso Martinez Corrêa: Meirelles, exatamente, um marketing pesadíssimo e tal e começamos a lutar pelo teatro com esse material, mas o que eu falava mesmo?

Paulo Markun: Não, não sei, está tombado pelo patrimônio?

Beth Néspoli: Está tombado.

José Celso Martinez Corrêa: Então, esse movimento levou ao tombamento e um tombamento super ambicioso, um tombamento que implicasse ao mesmo tempo na transformação do teatro em uma rua de passagem que levaria a uma apoteose, ao Teatro de Estádio, que é o projeto inicial da Lina Bardi, era a visão inicial nossa, porque a Lina Bardi, inclusive ela diz assim: “bom, é uma catacumba, um chão de terreiro, galerias de Ópera de Milão e catacumba dando para o Silvio Santos”, mas para ela Silvio Santos era o Chateaubriand. A Lina Bardi foi uma das primeiras pessoas que, na revista Interview, fez uma entrevista maravilhosa elogiando Silvio Santos, dizendo que ele devia ter estudado na USP [Universidade de São Paulo], que era muito importante o trabalho que ele fazia com o povo e tal, e ela chegou até a pedir uma vez ao Pietro para ir no concurso Miss Brasil, e o Pietro Bardi foi, porque ela queria uma aproximação com ele [com o Silvio Santos] e ela acreditava que ele seria um homem que teria o talento de descobrir a beleza de um Teatro de Estádio.

Paulo Markun: Mas como o problema...

José Celso Martinez Corrêa: Aí foi tombado o teatro nessa época, e foi tombado o entorno de trezentos metros dele e foi tombado por razões históricas. A Lina dizia: “não é Catedral de Colônia [obra gigantesca localizada em Colônia, na Alemanha], mas é um marco importante”. E o próprio Flávio Império, umas das maiores obras, uma das maiores obras dele, porque o texto dele é de uma inteligência, de uma generosidade, mas ele o próprio arquiteto diz: “não, não considere congelado o interior, pode fazer as mudanças”. Quer dizer, pode fazer o projeto da Lina, porque ele é mais alto, ele atende mais a necessidade do trabalho do grupo, porque o grupo quer se expandir ligado à cultura popular brasileira, com o carnaval, o terreiro, e essas coisas todas. Ele precisa desse espaço, porque O rei da vela imediatamente superou aquele entorno.

Beth Néspoli: Mas o entorno não está tombado?

José Celso Martinez Corrêa: Está tombado, claro que está tombado.

Beth Néspoli: Está tombado?

José Celso Martinez Corrêa: Mas o que aconteceu é que em 97...

Beth Néspoli: Mas se tivesse, não teria...

José Celso Martinez Corrêa: Em 97 ele foi desconsiderado pelo Condephaat que, já com uma administração bem mais fraca, uma administração de impotentes mesmo, tombou na moita sem que ninguém soubesse, eu não sabia, tombou alegando que o entorno já estava prejudicado, por casas demolidas, casas que eram tombadas e demolidas pelo próprio grupo Silvio Santos e que....

Beth Néspoli: Ou desse tombamento...

José Celso Martinez Corrêa: E que o "minhocão" [elevado Costa e Silva, via de circulação de carros, do centro de São Paulo, inaugurado em 1971] também tinha deteriorado o entorno, consequentemente, não era para levar em conta. É gente que nunca pisou em um teatro, que não sabe que aquele teatro é daquela maneira. Eu cheguei a falar com o Marcos Mendonça [Secretário da Cultura do Estado de São Paulo], que eu acho que vai ser o futuro diretor desta emissora [TV Cultura], e fui pedir apoio para ele em 2000, quando eu soube pelo jornal que o teatro estava tombado e tinha sido... e que iam começar a fazer um shopping lá... Eu me enderecei ao Marcos Mendonça, eu me enderecei também ao diretor do Condephaat e eles me disseram: “vão ter todo o meu apoio, óbvio, o Teatro Oficina e não sei o quê, que é desapropriado pelo Estado, é construído pelo Estado, tal, claro, claro..." Tremenda hipocrisia! Eles já tinham, três anos antes, eles já tinham eliminado o entorno. Isso realmente foi uma decepção imensa, assim de ficar sabendo disso, mas, enfim, não tem que "chorar em cima do leite derramado", vamos embora! Aí comecei a procurar, começamos a procurar pessoas, encontrei uma série de pessoas [que diziam]: é porque todo mundo acha, é fatal, é inevitável, é um shopping, é um shopping e está acabado! Tem o secretário de Planejamento, por exemplo, ele acha que é um assunto morto. Ele esteve lá, inclusive, mesmo antes das eleições, a Marta [Suplicy, foi prefeita de São Paulo pelo PT - Partido dos Tabalhadores] não, a Marta me apoiava antes, depois ela passou a não me apoiar mais, mas ele, mesmo antes das eleições, que é um assunto morto, que não tem sentido e não tem mesmo.

Paulo Markun: Quer dizer, na sua visão...

José Celso Martinez Corrêa: Ele não compreendeu, não, ele não compreendeu.

Paulo Markun: Na sua visão, Zé Celso, na sua visão, o Silvio Santos não deve fazer o shopping?

José Celso Martinez Corrêa: Agora, o que aconteceu? O que aconteceu atualmente é que eu me dirigi ao Gilberto Gil [músico e ministro da Cultura no período de 2003 a 2008], eu me dirigi agora ao atual diretor do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], Antônio Augusto Arantes, casado com a Antonieta Marília, filha de Oswald de Andrade [escritor, ícone do Modernismo brasileiro, autor de O rei da vela], pedindo o tombamento do teatro como obra de arte. Porque é o seguinte, esse tombamento primeiro foi com razões históricas, então na sofística do burocrata, do patrimônio, eles dizem “não, ao tombamento”, esse atual cara que está no Condephaat, que eu nem me lembro o nome dele, ele diz que inventou o tombamento moderno, que é o tombamento sem o entorno. A mesma coisa com o Instituto Biológico, tombaram o Instituto Biológico, mas não querem tombar o entorno do Instituto Biológico, que precisa daquela área de respiração em volta, porque é uma coisa séria ali, não pode fechar aquilo no Guarujá, aquilo precisa de ar, e esse conceito de tombamento moderno, que só, que considera o teatro substantivo e o entorno adjetivo, sofística pura. E aí eu pedi ao Gilberto Gil, exatamente que tombe como obra de arte.

Beth Néspoli: O que isso significa para a garantia do entorno?

José Celso Martinez Corrêa: A garantia é o seguinte: se você tomba, porque eles me propuseram, o Iphan, que tombasse o Grupo Oficina como um grupo, como um bem material, e eu acho que na nossa cultura é preciso dar créditos materiais ao espírito, eu sei que o espírito é uma coisa que se materializa, soa, a música soa e prova isso, a música veio para o corpo e não tem espírito se não tem corpo, corpo e espírito é uma coisa só, mas esse tipo de dialética sofística então é utilizada. E nós não queremos o tombamento espiritual, nós queremos o tombamento físico, porque é uma obra de arte, foi premiado em Praga, é um teatro único no mundo, os estrangeiros todos que vêm ficam encantados, querem e vão e convidam a gente, vão reproduzir isso, e para "A Luta", nós temos uma idéia, eu quero chegar, eu mudei muito, são 24 anos, 24 anos é uma história! Já é uma bodas de prata, já é um casamento, e em 24 anos eu estou mudando de idéia em relação ao Silvio Santos. O João Gilberto [músico, ícone da bossa nova] me disse um dia: “qualquer pessoa que o povo adora, vai ver porque tem alguma coisa que eles têm razão”. “Vox populi, vox Dei", quer dizer, “evoe, evoe”! [grito de festa, na antiguidade, para evocar o deus Baco] quer dizer, gosto de todo mundo, então eu tenho que descobrir, eu estou descobrindo, com o meu talento e com o talento de vocês e com o talento do público, com o talento desse nosso tempo, a descobrir o talento da pessoa física Silvio Santos, eu queria muito ter estado no lugar daquele sequestrador para falar com ele [refere-se ao episódio que apresentador ficou bastante tempo conversando com o sequestrador quando mantido refém dentro de sua casa], porque eu quero falar pessoalmente com ele.

Mário Viana: Você nunca falou com o Silvio Santos?

José Celso Martinez Corrêa: Nunca falei.

Mário Viana: Nunca encontrou com ele pessoalmente?

José Celso Martinez Corrêa: Eu quero, eu já escrevi para a Porta da Esperança [programa do SBT, comandado por Silvio Santos, em que são realizados desejos das pessoas], fiz uma portinha no teatro com luzes, para que ele derrubasse do outro lado e a gente se cumprimentasse no meio. Nós fizemos uma manifestação, fomos lá, porque o terreno é lindo, o terreno do lado, que agora que eles começaram as demolições dia 25 de janeiro, essa demolição já me inspirou a escrever a primeira peça da "Luta" e me inspirou a fazer lá como está agora, quer dizer, está idealizado em um teatro maravilhoso no plano definitivo, mas irmos na base do que a Lina Bardi dizia: “precariedade radical, vai lá e faz, bota uma arquibancada, bota uma lona, que ao mesmo tempo é projeção, e que pode ser retrátil, é fácil”, hoje a idéia que surgiu de, pega... o terreno ele é curvo assim, ele vai  fazendo degraus que sirvam durante o dia para estacionamento, que um carro possa parar, se constrói lá tal como é. A sinagoga vira a universidade de cultura popular, orgiástica, a sinagoga, porque a sinagoga, primeiro esteve ameaçada de ser comprada, esteve ameaçada de destruição, de virar uma pedra onde estava escrito que foi uma sinagoga, mas a sinagoga é linda, e eu soube que eles querem fazer estacionamento e aí é que tem a equação que está armada, um Teatro de Estádio, cercado por uma fila de floresta e ter uma universidade de cultura popular que é orgiástica.

Beth Néspoli: Mas Zé, o que é que você pretende fazer?

José Celso Martinez Corrêa: Eu quero mostrar para o público...

Beth Néspoli: Ele vai construir um shopping ou ele vai construir um shopping que contracene com o Oficina? Acho que esta é que é a pergunta dele.

José Celso Martinez Corrêa: Não, nós fizemos quatro reuniões, mas a seguinte...

Beth Néspoli: Tem um projeto para essas duas coisas?

José Celso Martinez Corrêa: Nós fizemos quatro reuniões com a Procuradoria do Meio Ambiente e nós compreendíamos o projeto deles e eles nos ofereceram, inclusive, o dobro de área do Teatro Oficina, mas dentro de um contexto que ficava parecendo um playground de um prédio. O Julio Neves chegou a me propor a construção do Estádio atrás do Teatro Oficina, na rua Japurá, onde eu morei muitos anos, e que tem umas casinhas iguaizinhas assim, estilo inglês, e ele me disse: “a gente derruba tudo e faz o estádio lá”. Eu falei: "Não, mas não se trata disso, o conceito não é derrubar. O Bixiga tem que ser revitalizado como bairro de mistura da cidade toda, porque em São Paulo tem os guetos ricos e os guetos pobres e o Bixiga tinha uma tradição, antes do Minhocão, de reunir, através do teatro, das cantinas... O baixo Bixiga era uma área mestiça, como a Lapa [bairro do Rio de Janeiro, ponto de encontro de artistas], como o Pelourinho [Salvador, Bahia], como Gennevilliers, como Rive Droite de Paris, como aquela outra praça maravilhosa, Marais [bairros parisienses muito movimentados com bares, lojas e restaurantes]"; enfim, era um lugar para reunir na multidão de todos os bairros, todos os lugares, e eles vão fazer uma intervenção que eles dizem cultural no Bixiga. Que façam, mas que façam verdadeiramente uma intervenção cultural, começando por não só respeitar, mas investir na ampliação do potencial das coisas que tem de cultura lá, como a [escola de samba] Vai-Vai, por exemplo, a Vai-Vai não tem quadra. A Vai-Vai se tivesse uma quadra muito grande! A Vila Itororó [37 casas construídas ao redor de um palacete, planejada e edificada por Francisco de Castro, imigrante português, em 1922.] é linda, uma vila desmoronando, eu não sei se vocês conhecem a Vila Itororó, você deve saber onde é a Vila Itororó. Tudo isso, quer dizer, as casinhas do lado pedestre da cidade viva, precisa de um centro vivo onde as pessoas se encontrem ao vivo e se encontrem, não simplesmente para comprar e vender.

Mário Viana: Zé, por que o Silvio Santos não te recebe, por que você acha que o Silvio Santos não quer conversar com você?

José Celso Martinez Corrêa: Porque, eu soube que ele consultou um oráculo, não sei o que é que foi, se foi mãe de santo, se foi sei lá o quê, que disse que se por acaso ele se unisse a mim, que ele morreria, mas talvez ele sofreria uma morte iniciática, verdadeiramente, uma morte iniciática que nós todos precisamos, nós cultivamos no teatro a morte iniciática. A gente morre e reencarna na mesma geração várias vezes, a gente não pode ser a vida inteira uma coisa só, a vida é puro movimento, e quem não passou pela morte iniciática, não viveu.

Paulo Markun: Para que você faz teatro, Zé?

José Celso Martinez Corrêa: Eu faço teatro?

Paulo Markun: Para que você faz, para quê? Qual o objetivo maior?

José Celso Martinez Corrêa: Meu objetivo, é porque eu sou apaixonado por teatro, porque eu me apaixonei quando eu consegui escrever uma peça do começo ao fim e essa peça, paradoxalmente, me tirava da minha cidade que chama Vento forte e um papagaio subindo, eu consegui compor uma música e eu faço teatro pela paixão, para apaixonar as pessoas e, através de apaixonar pessoas, apaixonar a mim mesmo, e através de me apaixonar realmente dar essa potência que as pessoas têm, que o ser humano tem naturalmente. O ser humano, inclusive, ele está limitado, às vezes, em um conceito de mero valor de troca ou de cidadão que é um conceito muito limitado, nós não somos só cidadão, cidadão não é nada, você não é um cidadão de um Estado, você é muito mais que isso, o ser humano tem um potencial muito maior do que o de cidadão e esse poder trans-humano que o Nietzsche [(1844-1900) filósofo alemão] fala, esse poder devia ir além do humano, no entanto nós todos vivemos na ordem e progresso dentro de uma tentativa de imposição de um regime de rebanho, nós não somos rebanho, nós somos poderes humanos, todos nós. Tanto é que, da pessoa mais oprimida é de onde vem mais cultura. É o hip-hop, a periferia que se manifesta, onde tem o crime, mas tem também a arte, porque há um poder de transformar as coisas e a gente foi vuduzado, foi colonizado, que determinadas coisas são assim e, em São Paulo, inclusive, é uma cidade que, por influência de um marxismo muito mal assimilado, de um marxismo vulgar e pessimista e muito oportunista, que acha que as coisas todas, que quando não houver, messiânico inclusive, que como não teve a revolução, como não teve isso, não teve aquilo, e de um capitalismo idêntico, acha, portanto, que as coisas têm que se limitar àquelas oportunidades que se oferecem dentro de um padrão e tentam convencer a humanidade disso. Ora, a função de um teatro, o teatro é o espelho, não é só o espelho disso, o teatro, por exemplo, eu sou um homem que estou fazendo Antônio Conselheiro, então o Antônio Conselheiro é o protagonista desse antagonismo humano, quer dizer, o Antônio Conselheiro, Osama Bin Laden, o Senhor dos Anéis, São Pedro, essa imagem assim, que essa barba que eu pus, que eu detestava no começo, porque só as mulheres gostavam, mas eu me prometi tornar essa barba libidinosa, gostosa e estou conseguindo e estou feliz por isso, quer dizer, o que é que eu falava?

Alexandre Delijaicov: Zé Celso, eu vou fazer uma pergunta para você por conta dessa questão do olhar do colonizador, de estar colonizado e como nós estamos dentro desse universo de urbanismo capitalista e mercantilista do mais selvagem, onde o conceito do Teatro Estádio locado naquele recinto que é o Bixiga, que é praticamente uma casa, seria na verdade um núcleo de uma praça de equipamentos onde nós teríamos a cidade como uma escola no seu limite, colocado no seu texto, onde as crianças estão com o olhar brilhando quando participam d'Os sertões e assim, desse modo nós colocamos esse conceito do teatro na dimensão de urbanismo mais humanista, onde o cidadão ele tem o prazer da questão lúdica de conviver em uma metrópole de vinte milhões de pessoas, quer dizer, as virtudes de conviver com as diferenças que seria esse recinto. E aí, dentro desse confronto, dessa "Luta", após essa montagem da "Luta", será que nós não entraríamos em uma questão que é a "Água", já que Euclides da Cunha, após falar do Brasil, do sertão, estava falando do Brasil fluvial, estava navegando pelo rio Purus e falando de um Brasil anfíbio?

José Celso Martinez Corrêa: Claro, eu acho que inclusive fala.

Alexandre Delijaicov: O rio Purus, na verdade, o rio Purus é o maior do...  você vai estar encenando no Vale do Volga ou no Reno, na Alemanha, e os dois são muito menores do que o rio Purus, onde Euclides da Cunha estava navegando para contar o Brasil fluvial. Nós temos agora o próximo século da água  em que, não é o petróleo, vai ser a guerra da água. E, qual seria a nossa luta então para conquistar aquilo que seria um olhar lúdico, a fluidez e o prazer do amor, no caso o amor à vida e à água, dentro dessa dimensão do prazer, da convivência nessa obra que é a praça de equipamentos do Teatro Estádio e pudéssemos colocar...

José Celso Martinez Corrêa: Para começar, a água...

Alexandre Delijaicov: Colocar o rio Tietê, por exemplo, que gera uma situação de transtorno nessa dimensão?

José Celso Martinez Corrêa: Para começar, a água já existia, como existe em Ribeirão Preto, em um teatro grego belíssimo, embaixo do palco, que é o que dá acústica e faz com que no Teatro de Dionísio 15 mil pessoas possam ouvir como nós estamos nos ouvindo aqui agora, sem o menor ruído, a água embaixo, mas que infelizmente lá em Ribeirão Preto, nós fomos duas vezes, na segunda vez já estavam querendo cobrir, dizendo que aquilo tudo era bobagem e tal, tem essa, a tal história de cortar. Mas eu acho que o deserto, as cidades, São Paulo, a cidade, praticamente a população acabou com essa coisa de rural e urbana, eu acho que a cidade tem que se ruralizar e o campo se urbanizar e é tudo uma coisa só. Agora, essa coisa só deve ser vazada de uma cidade que tem esse rio, eu acho que todo um esforço extraordinário devia ser feito para realmente despoluir esse rio, que já foi poluído primeiro pela descida dos gentis e agora está poluído mesmo, está podre mesmo, é nojento mesmo, mas é que esse tipo de mentalidade dominante, as regras ambientais, as leis ambientais no Brasil, qualquer poderzinho escarra em cima, por isso que eu acho que vai ser um ato de atitude política corajosa se Gilberto Gil, ele disse em uma entrevista brilhante ontem, que o Ministério não tem dinheiro, mas ele está lutando por dinheiro, mas isso não custa dinheiro.

Alexandre Delijaicov: O Gil está fazendo um bom ministério?

José Celso Martinez Corrêa: Custa coragem política.

Alexandre Delijaicov: O Gil está fazendo um bom ministério para São Paulo?

José Celso Martinez Corrêa: O Gil está lutando por fazer existir o ministério, porque eu estive lá, me senti muito bem, parecia que eu estava em Brasília e vivendo no tempo de Juscelino [Kubitschek, presidente do Brasil (1956-1961) fundou Brasília] e ele falava com todo mundo e todo mundo maravilhoso, só que não tinha um tostão, só que não rolava nada, e é a mesma coisa que ele diz, ele está tentando aumentar o orçamento no ministério e ele está se desculpando, diz que o Ministério está muito aquém do que o ministério pode, porque o ministério realmente existe. O corte do amor aqui no caso, tanto social, quanto o cultural, o teatro então, absolutamente cortado, não tem mais o teatro no nível brasileiro. Tinha uma época em que o Serviço Nacional de Teatro tinha o mito do teatro brasileiro, pessoas como Paschoal Carlos Magno [(1906-1980) poeta, dramaturgo, diplomata, romancista, animador cultural, produtor, crítico, autor e diretor] criaram [condições] e que a gente viajava pelo Brasil. O federal patrocinava o transporte, o estadual patrocinava os hotéis, as casas davam o teatro e a gente corria o Brasil todo viajando.

Tadeu Jungle: Zé, como é que você vê o teatro, hoje, inserido em um contexto onde a internet, onde as tecnologias são colocadas, a globalização é colocada, como é que você vê o teatro hoje e seu trabalho, qual é realmente a função do teatro, do seu teatro hoje?

José Celso Martinez Corrêa: Bom, o teatro hoje, eu acho que ele está absolutamente enriquecido, mais do que quando apareceu a luz elétrica, no começo do século, com o desenvolvimento tecnológico da tecnologia digital, ele atualmente, a internet é uma aliada extrema do teatro, a revolução digital é uma aliada extrema do teatro e eu acho que até a outra revolução que é discutível, mas eu acredito nela, a da biotecnologia também é importante, não só para o teatro, como para o conceito de cidade. No entanto, se você for nesse Estádio é que ele tem, me lembra muito a construção daquela cúpula de projeções, o aquecimento acontece em vários lugares do mundo, dentro daquela concepção internacional socialista e tal, mas é o cosmo mesmo que está, todo o universo que está ali, eu acho que... O que é que você perguntou mesmo?

Beth Néspoli: Da tecnologia.

Tadeu Jungle: A função do teu teatro?

José Celso Martinez Corrêa: Ah tá, então a tecnologia, nós ganhamos uma parada extraordinária, nós fizemos um trabalho, eu e o Tadeu [Jungle], no Oficina, nós fizemos dentro da produtora dele, nós passamos para dvd quatro peças e deu um resultado assim extraordinário. Eu tenho certeza que hoje o teatro, a partir de agora, está plugado na cibernética.

Beth Néspoli: Quando saem esses dvds?

José Celso Martinez Corrêa: Eu estive em Cuiabá por acaso, fazendo uma conferência, e projetamos um pedaço do dvd, em um teatro lotado, foi um susto, foi um absurdo, porque como foi filmado com o público presente e como é filmado com câmera, a do Tadeu, que pega e entra na boca e entra no cu das pessoas lá e tal, até a câmera do Dib Luft [operador de câmera], que é a câmera do Cinema Novo, a câmera do aberto, as imagens são deslumbrantes e o calor do público, comunica com o público ao vivo, dá para passar em cinema e, como o cinema, não é só para você ver em casa, nós estivemos na Petrobras e conseguimos a promessa do Lucio Rosas...

Tadeu Jungle: [Wilson] Santa Rosa.

José Celso Martinez Corrêa: Santa Rosa, um dos diretores culturais da Petrobras de que liberaria recursos para pagar direitos autorais de músicas, de fonogramas, que permitiriam a liberação imediata desses dvds, que realmente é um trabalho. Eu fico grato na vida por encontrar alguém, como, aliás, todos vocês aqui, eu tenho uma comunicação muito grande com todos vocês, realmente eu fico grato de ser contemporâneo de vocês, porque vocês são pessoas que estão compreendendo avante de nós mesmos o trabalho que nós estamos fazendo.

Paulo Markun: Zé.

José Celso Martinez Corrêa: Isso se revela no vídeo, eu liguei no aniversário dele dizendo: “poxa, muito obrigado”, eu tinha acabado de rever. Eu falei: “que impressionante”, porque tudo o que um artista quer é encontrar o outro, é parceria com muitos, e ser entendido por todos.

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um intervalinho e voltamos já, já.

José Celso Martinez Corrêa: Tá legal.

[intervalo]

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva entrevistando esta noite o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, criador do Oficina, o Teatro Oficina, aqui em São Paulo. Sérgio Torres do Rio de Janeiro, administrador de empresas, pergunta: caso a esquerda tivesse vencido os militares em 64 e implantado no Brasil uma ditadura nos moldes cubanos, o Teatro Oficina teria lutado ao longo de todos esses anos pela liberdade?

José Celso Martinez Corrêa: Não havia a menor hipótese de isso acontecer, porque o governo era muito democrático. Aproveito a oportunidade para falar realmente de um tabu, que para mim é um totem, quer dizer, além do Jango, Brizola é um dos homens que eu mais adoro no Brasil, um dos maiores exemplos de coerência, realmente eu tenho uma admiração profunda pelo programa do PDT [Partido Democrático Trabalhista], que foi escrito por ele e pelo Mangabeira Unger, pelo Darcy Ribeiro, [ver entrevistas no Roda Viva com Brizola, Darcy e Unger] não é exatamente o partido, porque eu não acredito em partido, eu não acredito em representação, acredito em democracia direta, acredito em presentação, não acredito em representação nem no teatro e nem na política, mas não havia essa hipótese, porque era um regime... Estava tendendo... O Partido Comunista não era o mais importante, e todas as tendências do Partido Comunista mais centralizadoras, não eram as mais importantes, tinha uma outra linha que vinha do Instituto Superior de Estudos Brasileiros que tinha um sentido libertário muito grande, muito grande, como Darcy, como Celso Furtado, um sentido de um caminho próprio. Então, não havia perigo nenhum de ditadura, mas o que nós iríamos fazer era contribuir para que realmente se lutasse com aquela ditadura que já havia no Brasil, da oligarquia, através do movimento Deus, Pátria, Família, Propriedade [TFP, movimento de direita, radical, liderado por alas conservadoras da Igreja Católica, promoveu as marchas em defesa do golpe de 1964] e de todo o predomínio, fim do capital financeiro que veio, afinal, a dominar e hoje nos domina. Hoje é a ditadura que nós temos que comer também, nós temos que comer essa ditadura, eu sei que o Grupo Silvio Santos é um grupo de especulação financeira, é um grupo voraz, eu conheço pelo exemplo, mas eu admito que talvez a pessoa do Silvio Santos não seja assim dessa maneira. E, no caso concreto, o Oficina vive uma metáfora, praticamente o que acontece ali deve estar acontecendo em vários lugares do mundo, e quando a gente utiliza uma obra como Os sertões como guia, sempre que tem uma crise dizem isso: “você procura, se você tem um problema amoroso, pessoal para você transplantar, você precisa de uma canção de amor, você precisa de arte, você precisa de alguma coisa”. E, Os sertões, essa obra imensa, essa obra genial que formou Nelson Rodrigues, eu estou fazendo o prefácio do [livro] O Baú do Nelson Rodrigues; o Nelson Rodrigues escreve igual Euclides, só fala do Euclides, ele veio do Euclides, tanto que ele perguntava: “você já leu o Euclides da Cunha? Já leu Os sertões? Era fundamental para ele. E fazendo essa obra, quer dizer, a gente cria lá no teatro mesmo, é um clima, é uma coisa anárquica, o Brasil é, eu não gosto nem da palavra anarquia, porque eu não acredito nem em socialismo, nem em comunismo, nem... eu acredito em uma coisa como a que aconteceu em Canudos, que não tem nome, eu acredito na antropofagia e na orgia. A orgia não só no sentido da origem dela no teatro, da origem, da orgia sexual em que eu acredito nessa também, na orgia dos sambas brasileiros, mas na orgia de você misturar idades, como no Oficina, tem um garoto que é um garotinho de um ano, tem a Renê que tem noventa, de misturar teatro com o virtual, o atual e o virtual, quer dizer, de mistura de idéias diferentes, porque eu acho que todas essas coisas se encontram fora do padrão dominante capitalista da noção de bem, de mau, de certo, de errado, de puritanismo.

Contardo Calligaris: Zé, Zé.

Paulo Markun: O Contardo quer lhe perguntar uma coisa.

Contardo Calligaris: Zé...

Paulo Markun: Zé, só um pouquinho, só um pouquinho, o Contardo quer perguntar uma coisa.

Contardo Calligaris: Justamente nessa direção, eu ainda não entendi muito bem, aliás, talvez não deu para entender muito bem. O que é possível esperar que aconteça ao redor do Teatro Oficina, claro que o teatro em si é preservado, a questão é saber o que é que vai acontecer ao redor dele, por exemplo, não se sabe muito bem se vai ser um shopping center ou não, ou se é um projeto...

José Celso Martinez Corrêa: É um shopping center, aliás, mudou de arquiteto, é o Ricardo Ohtake,
seu irmão foi convidado, inclusive é realmente um grupo muito agressivo, eles têm um divulgador de imprensa que é uma maravilha, eu queria aquele cara comigo, Carlos Brickman, ele é simpaticíssimo, gordo, parece o Alcir Neto assim.

Contardo Calligaris: Então vai ser um shopping center?

José Celso Martinez Corrêa: É... não!

Contardo Calligaris: Não vai ser?

José Celso Martinez Corrêa: É um centro de convenções na realidade, eu proponho um centro de invenções, mas ali é um centro de convenções, eu vi a planta, pelo menos a planta do Julio Neves eu acredito agora, inclusive, que com o nosso pedido de tombamento para o governo federal e com a própria mudança de arquiteto, que é o Ruy Ohtake, que é a história shakspeariana, porque até eu escrevi o começo da "Luta" sobre essa história da dinastia de Ohtake, da ilustre dinastia de Ohtake, cujo irmão, o Ricardo Ohtake terminou a construção do Teatro Oficina e o Ruy Ohtake vem agora e é contratado pelo Silvio Santos. [Ruy e Ricardo Ohtake são irmão e filhos da artista plástica Tomie Ohtake]

Contardo Calligaris: Para fazer o centro de convenções?

José Celso Martinez Corrêa: Para fazer o Teatro de Estádio, e o Ruy que foi o homem amado pela Célia Helena, uma das maiores atrizes que o teatro brasileiro já teve, uma musa do Teatro Oficina, pela Ruth Escobar, pela Ana Maria Miranda, ele deve ser um homem também sensível àquele jeito de centro de convenções. Na realidade é um Vaticano que eles querem construir, eles querem construir um centro de convenções com muitas salas de reuniões, isso que é Julio Neves...

Contardo Calligaris: Aí...

José Celso Martinez Corrêa: Muitas salas de reuniões e também a tal história do culto, ao shopping cultural, o shopping cultural do Parque da Mônica e esse baião todo.

Contardo Calligaris: Eu gostei muito da idéia de um shopping center, porque eu adoraria ver o Teatro Oficina entrar na praça de alimentação do Iguatemi, ou na praça de alimentação do Shopping Higienópolis, eu devo dizer que eu acharia maravilhoso, mas também porque eu gostava do contraste, claro, firme restando a idéia de que o teatro tivesse toda, não só a respiração e o recuo, mas a sua extensão natural, e gostava pela razão seguinte, porque você sabe que eu adoro o Oficina. Bom, e adoro porque eu sinto absolutamente cada vez que decido que sexta-feira vou para lá para ver a "Terra" de novo, muito bem, eu sinto a mesma emoção de quando eu era criança e chegava um circo na cidade, era em Milão, no começo dos anos 50, a cidade bombardeada, aliás, tem uma certa similaridade por causa dos comedidos buracos entre as casas, não é? Bom, e eu era uma criança muito bem comportada, mas me deixavam ir para o circo. Então eu ia para o circo e o circo era muito interativo, sempre tinha alguém que te colocava um macaco nos braços, no colo, e era no circo que eu descobria que eu não era só um aluno bem comportado, que eu tinha também uma vida concreta, que existia vida abaixo da cintura, por exemplo, claro, porque tinham esses corpos maravilhosos, os malabaristas pendurados por todos os lados e porque essa farsa, que é furiosa e viva, que era produzida na minha frente, me fazia sentir que existia uma outra vida do que aquela para qual vestir uma farda a cada dia. Bom, porque eu me lembrei disso, não interessa a ninguém, é só para dizer que o Teatro Oficina vive também desse contraste, porque constrói um shopping center ao lado...

José Celso Martinez Corrêa: Não, claro, mas acontece que se constrói um shopping, não, é o seguinte, eles não têm problema de espaço, porque eles compraram quase o Bixiga inteiro, um shopping em outro local ia mesmo, porque eles pretendem uma intervenção cultural...

Contardo Calligaris: Tá.

José Celso Martinez Corrêa: Uma intervenção cultural no sentido mercadológico.

Contardo Calligaris: Tá.

José Celso Martinez Corrêa: No sentido de entretenimento mesmo, não é?

Contardo Calligaris: Entretenimento, assim, tá.

José Celso Martinez Corrêa: Entretenimento e talvez ele fale...

Paulo Markun: Mas esse shopping não é o teu "moinho de vento"? [Dom Quixote]

José Celso Martinez Corrêa: Como?

Paulo Markun: Esse, desculpe a provocação, esse shopping não é o teu "moinho de vento"?

José Celso Martinez Corrêa: Não.

Paulo Markun: Não é a coisa que te permite...

José Celso Martinez Corrêa: Não.

Paulo Markun: ...Segurar lança e lutar contra o dragão.

José Celso Martinez Corrêa: Não.

Paulo Markun: E ter toda essa...

José Celso Martinez Corrêa: Não, não pelo seguinte...

Paulo Markun: Essa...

José Celso Martinez Corrêa: Eu admito...

Paulo Markun: Batalha?

José Celso Martinez Corrêa: A existência do shopping, mas acontece o seguinte, é que o shopping feito ali, ele vai roubar completamente, porque a Lina Bardi tem um projeto seminal, ali no Oficina, estão lá todas as obras dela e foram tombadas como obras de arte, mas especialmente ali, no Oficina, ela e o Edson Elito que construíram assim uma espécie de DNA de uma cidade contemporânea, que é uma cidade exatamente onde há o rural e o urbano e é tudo isso. Já é onde ela tinha construído, visualizando que aquela rua fosse até ao Anhangabaú, ela tinha um projeto belíssimo.

Mário Viana: O Anhangabaú, muito bonito.

José Celso Martinez Corrêa: De botar verde no Anhangabaú e fazer uma ponte de aço, de árvores de aço, de canos de aço, por onde passariam os carros. Quem ganhou foi o Jorge Wilheim [foi um dos arquitetos vencedores do concurso de reurbanização do Vale do Anhangabaú em São Paulo] e fez de lá um deserto, e o nosso secretário de Planejamento disse que esse assunto está encerrado, inclusive eu acho que ele é muito ciumento da grandeza da Lina. É que a Lina realmente é uma das maiores arquitetas de todos os tempos, não só do Brasil, mas do mundo, e o que a gente tem descoberto lá, naquele lugar que se toma sol, que se tem terra, eu não teria produzido a obra que eu produzi nestes dez anos se não tivesse sol, se não tivesse chuva, se não tivesse terra, se não tivesse a liberdade de acender fogo e tudo. E o shopping, o que acontece? Ele vai botar aquilo como uma geladeira em uma caixa de fósforos. Eles têm muitos lugares ali no Bixiga, eles podem fazer em outros lugares e contracenando com o que eles encontrarem de cultural, dando realces. Tem igrejas, tem uma igreja inclusive não sei onde, acho que é, não sei se é no Paraná, que tem um shopping cercando-a, mas ela tem uma área de respiração em torno, quer dizer, eu não gosto dessa idéia de hoje do teatro inserido como uma caixa de verdura ou de qualquer coisa dentro de um shopping, como são esses teatros de shopping, em que se vai, por razões de segurança, aí você entra naquela caixa, entre naquilo, tem aquele palquinho ali, você entra e sai do jeito que você entrou.

Mário Viana: Seria um desastre, assim.

José Celso Martinez Corrêa: Então, eu acho que o Teatro Oficina tem 45 anos de história e tem um acervo enorme, ele tem que expandir, não cabe mais nada lá dentro, não cabe mais nada, meu Deus! Então, nós queremos o projeto do Paulo, nós queremos ter torre para arquivo eletrônico, nós queremos ter um lugar para a produção, um lugar para ensaios, um lugar para hotel, um no outro lado da rua e nós queremos fazer esse teatro grande, tipo grego e essa escola.

Mário Viana: Então se esse corpo...

José Celso Martinez Corrêa: Viver...

Mário Viana: Então, mas se o Teatro Oficina, então essa "célula-tronco" do espaço público legítimo e o shopping center e o centro comercial simular com o do espaço público, na verdade, você não está de fato em um espaço público ou em um espaço onde a comunidade se encontra.

José Celso Martinez Corrêa: Mas eu acho legal, por exemplo, isso que ele dirigiu, o Paulo também, por isso que o Paulo gosta de fazer galeria, vai por baixo, vai por um lado, vai, não teria importância se aquilo fosse uma coisa dessas, é perfeitamente possível, mas seria preciso que realmente houvesse o entendimento por parte de quem parte da lógica, inicialmente de uma cultura de especulação. Teria que ter a capacidade de ver isso que nós queremos, isso que é difícil, a gente sente que a especulação cega e impossibilita, eles veem ali um barraco desmontado sem nenhum significado histórico e me veem como um velho ranzinza que quer impedir o progresso e vendem essa imagem, eles não conseguem ver. Eu tenho uma gravação maravilhosa do Paulo Mendes da Rocha, que foi colega do Julio Neves, os dois juntos discutindo duas concepções absolutamente diferentes da arquitetura, de teatro, de vida, e o Paulo, na tranquilidade, não ser por morte, se a gente tivesse que ser eliminado já teria que ser eliminado por muito tempo da face da terra, se essa visão fosse tão poderosa assim, essa visão de mercantilizar tudo, de confeccionalizar tudo, de padronizar tudo... É possível, eu acho que, inclusive, o Silvio Santos, eu acho que ele teria talento para uma coisa dessas, porque ele é de uma dinastia de judeus, da família Abravanel [o nome verdadeiro de Silvio Santos é Senor Abravanel]. O Museu de Ufuzzi, a galeria Oficina em Florença, por exemplo, foi um Abravanel que deu para o Cosme Di Medici [um dos mais importantes mecenas no período renascentista] e o Alberto Dines [jornalista] fez um estudo da história toda dele. É uma dinastia de grandes mecenas, e com esse grande capital que ele tem, para ele, acho que é um luxo fazer uma coisa dessas, é uma morte iniciática para um renascimento de uma coisa que nós todos, acho que a gente só ganha uma espécie de consagração quando a gente realmente é capaz de dar bastante, entendeu?

Mário Viana: Mas isso não é uma mentalidade do empresariado brasileiro, não é?

José Celso Martinez Corrêa: Não, mas isso...

Mário Viana: De oferecer assim para um...

José Celso Martinez Corrêa: Não, mas é que essa, claro, essa é uma mentalidade do empresariado da economia, é o corte, é a redução, e a não compreensão do poderio da cultura como fator econômico, porque o investimento na cultura, na cultura como eu vejo, uma cultura ligada à cibernética, uma cultura de multidão, para ter multidão feito futebol, porque eu acredito mesmo que o Brasil tem capacidade de fazer um teatro musical e um teatro musical carnavalesco candomblaido [com elementos do candomblé] que atraia multidões, tão importante quanto o carnaval, quanto o futebol, capaz de gerar... Nós somos cem pessoas, dificílimo segurar isso, mas eu tenho certeza que é possível, se você libera o projeto cultural, o público geral pode ser novecentas pessoas, nove mil, quer dizer, realmente, hoje no mundo é a área que me parece que vai para o futuro; é a área que onde se investir vai compensar, porque a cultura tem um valor econômico...

Mário Viana: É, a nossa salvação que nos espera assim.

José Celso Martinez Corrêa: Um valor econômico enorme, muito maior do que, acho, que um shopping, que é uma coisa já decadente, é uma coisa do século passado. Agora, tudo bem, que exista o shopping, mas faça ali do lado e faça sem prejudicar a casa da "dona Iaiá" ou o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], pelo contrário, ele tem condições de fazer uma coisa maravilhosa, ele tem condições de fazer o seu centro de convenções lá, construir a sua torre, sua torre maior que o [banco] Banespa, seu falos enorme, tudo bem, ele tem esse desejo, eu também tenho, não da torre, meu desejo é mais para baixo sei lá, não sei.

Nelson de Sá: Zé...

José Celso Martinez Corrêa: Fala.

Nelson de Sá: Enfim, a história do Silvio Santos e o conflito de 24 anos que você tem com ele é fascinante e tudo, mas eu queria tocar em uma questão relativa a Os sertões. Eu acho que, eu entendo bastante da sua obra até antes de Os sertões e a partir de Os sertões eu não consegui mais acompanhar, porque eu achei que a coisa é de uma tal proporção, que eu realmente não compreendo, eu não tenho uma compreensão. Eu assisti, obviamente, todas as peças, mas não tenho uma compreensão e eu queria fazer uma pergunta específica com relação a isso. Eu lembro que no começo de Os sertões você fazia um paralelo muito grande, por exemplo, entre os sertanejos e o pessoal do MST, [movimento] dos sem-terra, e teve contato com eles e tudo, eles estiveram no teatro, não é? E hoje, enfim, você basicamente esqueceu esse assunto, quer dizer, o que é que houve com esses movimentos sociais, com esses sertanejos, que desapareceram? Não, eu estou dizendo isso porque não, não... Essa pergunta, ela vem no âmbito do governo Lula, quer dizer, o que é que significou um ano e meio, um ano e três meses de governo Lula, para o MST, para, enfim, para o sertanejo?

José Celso Martinez Corrêa: Não, o MST está super prazer, não só de ir inclusive nas casas, porque de qualquer maneira Os sertões é do DNA, não só do MST, do movimento MST, como trabalho de mutirão que o MST continua. O MST conseguiu criar um dos movimentos mais sofisticados no mundo. O movimento social mais rico que tem e agora em abril ele vai pegar fogo, eu vi o Stédile [João Pedro Stédile, líder dos sem-terra] dizendo que vai ser vermelho, eu adoro o Stédile, eu acho ele maravilhoso, um homem vigoroso, e esse movimento eu acho que o Brasil devia se orgulhar muito, que é um movimento que resolve. Se o regime é exclusivo mesmo, é melhor elas [as pessoas] se reorganizarem e ocuparem as terras do que elas matarem, do que elas roubarem, do que elas mendigarem, porque realmente eu acho que tem que ter crime organizado no Brasil, tem que ter tudo isso, enquanto o regime tiver esse nível de imprudência. Isso é até uma, é uma demonstração de vitalidade que as pessoas não se deixam destruir, massacrar tão facilmente, porque as pessoas lutam. Agora, quando lutam e conseguem uma organização pacífica, maravilhosa como essa que eles conseguem, nossa! Eles são nossa inspiração e, aliás, quando nós decidimos fazer Os sertões, foi exatamente em um lançamento de um jornal dos sem-terra e era exatamente no auge dessa questão, quando nós soubemos que o teatro e que o Silvio ia construir, queria construir o shopping, e nós precisávamos dessa metáfora d'Os sertões e de trabalhar com o movimento, tanto é que hoje nós somos o movimento. O Teatro Oficina é um movimento, pode-se dizer que é o 4º Oficina. Teve o Oficina, que dizem, da época de ouro; depois teve o Oficina subterrâneo, que é o Oficina maravilhoso de amor negro e depois teve o Oficina desses últimos dez anos de Uzyna Uzona, com o repertório todo que nós realizamos e agora nasce um 4º Oficina, que nasce com as crianças do bairro, com as pessoas do bairro, a maioria das pessoas que trabalham lá são de origem popular mesmo, não que eu exclua a burguesia, ao contrário, ela é bem-vinda sim.

Nelson de Sá: Mas trabalha como...

José Celso Martinez Corrêa: É um movimento em si, e é um movimento muito ligado. Os sem-terra nos inspiram muito, se não existisse os sem-terra não existiria Canudos, não existiria a possibilidade de se montar Canudos agora. Agora, evidentemente que uma das coisas mais importantes inclusive que eles falam, o que eles chamam de mística, é a cultura, é o amor e que os outros movimentos mais positivistas recusam e tal, e é uma coisa que nos identifica muito, e eles, muitas vezes, eles foram assistir, muitas vezes em grupo, e eu ganhei muitas vezes presentes e mais presentes deles e pretendo continuar com uma ligação cada vez maior, e agora, por exemplo, que o meu desejo é montar este ano, 450 anos de São Paulo, montar "A Luta", já estou escrevendo, já escrevi o primeiro capítulo, montar no estacionamento do Silvio Santos, os carros todos estacionados lá durante o dia, a noite vão embora e os degraus do estacionamento viram lugar para o público sentar, e a sinagoga vira uma escola e se planta alguma coisa. Enquanto isso a gente vai negociando e vai vendo de que maneira ele pode fazer esse centro com esse novo arquiteto, porque se há um novo arquiteto, acho que esse projeto tem que ser aprovado de novo.

Alexandre Delijaicov: Ô Zé, você tem um método para escrever?

José Celso Martinez Corrêa: Ham?

Alexandre Delijaicov: Você falou que está escrevendo e tal, você tem um método para escrever?

José Celso Martinez Corrêa: Tenho, que é assim, que é assim...

Contardo Calligaris: Porque, assim, sabe o que eu queria falar também? Sobre a criação coletiva também, Zé, que é uma relação um pouco...

José Celso Martinez Corrêa: Relação coletiva, mas ela é o seguinte: Os sertões, primeiro foi lido com todo mundo junto, depois todo mundo improvisou em torno de tudo e desses improvisos se formou esse material e, de repente ,a musa inspiradora veio, dia 25 de janeiro, São Paulo comemorando [aniversário da cidade de São Paulo] e ela ali naquele quarteirão, domingo, sábado e domingo, à nossa volta com Os sertões e aquelas ruas enormes, aquelas girafas parecendo aquelas palestinas, de Israel, destruindo as casas e aquele barulho. Aquilo para mim, como uma música linda, aliás, uma música linda, que se você for ver "O Homem 2", você entra no teatro e você vai ouvir aquela música, uma sinfonia de demolição e aquilo imediatamente me inspirou a escrever o primeiro capítulo da "Luta," porque eu precisava alertar, é por isso que estou aqui aliás, porque eu precisava alertar o país inteiro, o início da guerra sertaneja. Como termina esse capítulo, porque Os sertões foi a primeira guerra que foi transmitida por telégrafo, no mundo inteiro, então eu sinto que eu tenho a necessidade de transmitir o que está acontecendo, que tem uma configuração de guerra, mas uma guerra que eu espero que com o talento de político, que é o talento do ator, que é o talento do artista, seja possível criar uma não guerra, que é exatamente a criação desse Teatro Estádio, que pode ser uma criação conjunta, mesmo com o Ruy Ohtake, tem jovens arquitetos que estão trabalhando conosco, o que trouxe a maquete aqui, o Alexandre da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo], a FAU toda que fez um movimento enorme, a FAU está do nosso lado, tem o Raul Pereira que é um paisagista, que está apaixonado também, e hoje ele me trouxe o nome verdadeiro da árvore que nasce dentro do Oficina, e é a vanguarda e sai para fora, que é gurucaia, é uma Caesalpinia [espécie e gênero de árvore de grande porte que nasce dentro do Oficina e atravessa a parede, projetando-se para o exterior do teatro], uma espécie assim muito fértil, não é? Eu acho que eu, eu não tenho, eu acho inclusive que o SBT se montasse o livro de [Mário] Vargas Llosa [escritor peruano, nascido em 1936, entre outras obras importantes escreveu, Conversa na catedral e A guerra do fim do mundo, onde relata a história de Canudos. Ver entrevista com Llosa no Roda Viva], seria uma maravilha, eu acho que o SBT é a estação ideal para montar o livro de Vargas Llosa, que ele escreveu para o Rui Guerra [cineasta africano, veio para o Brasil em 1952 e atuou como ator e diretor de cinema, tornando-se um dos mais significativos expoentes do Cinema Novo] para virar filme, mas na realidade é uma novela maravilhosa, é muito mais para TV, para o SBT, do que para a TV Globo. Podia ser uma novela popular assim de fazer as pessoas chorarem e se comoverem e conhecerem Canudos, não é? Eu acho que seria maravilhoso. Eu acho que o SBT precisa disso também, porque faz parte da relação com o espectador. O espectador não é só o consumidor, não é só um cidadão, é gente e gente que ama aquele guia dele. O Silvio Santos em um certo sentido é um Antônio Conselheiro.

Paulo Markun: Da era eletrônica?

José Celso Martinez Corrêa: Da era eletrônica, não é? Então esse Antônio Conselheiro tem que ir lá para a gente se encontrar, você tem que se encontrar, Silvio Santos, a gente tem que se encontrar, me dizem que eu tenho que fazer a barba com o Jassa [cabeleireiro de Silvio Santos].

Paulo Markun: No Jassa.

José Celso Martinez Corrêa: No Jassa, para Antônio Conselheiro, para me encontrar com ele lá, eu adoraria encontrar, porque eu estou gostando de você, eu tenho feito a minha cabeça, eu já fui muito briguento, muito radical e eu sou ainda, eu sou guerreiro, eu estou na luta, a luta continua, mas a gente pode transformar essa luta em um prazer enorme para nós mesmos e para a cidade toda e para o mundo, é uma coisa que vai encantar o mundo. Vocês querem fazer uma implantação cultural lá, tudo bem, vamos fazer tanto a implantação cultural de caráter mais mercadológico, mas tudo é comércio, mas vamos fazer junto com aquele que não tem preço, porque não tem preço você respirar em São Paulo, você ter verde em São Paulo, não tem preço, não tem preço você estar em São Paulo, em um lugar, porque em São Paulo você nunca está, você está sempre indo para algum lugar, porque você tem que sair de fim de semana, você tem que sair no Natal, você tem que sair no Ano Novo, porque você sempre está trabalhando fechado e a cidade, a cidade é bela, está ficando bela a cidade, a cidade era muito pior, a cidade está melhorando e a gente pode dar uma contribuição extraordinária nesses 450 anos, nascer assim...

Paulo Markun: Zé! não sei se está bem...

José Celso Martinez Corrêa: Esse oásis ali, juntos.

Paulo Markun: Vamos para mais um intervalo e voltamos já, já.

José Celso Martinez Corrêa:

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, que entrevista esta noite o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina aqui em São Paulo. Carla Aurora, do Tatuapé, aqui em São Paulo, pergunta o seguinte: “você diz que gosta e que você pode recriar, no entanto em Os sertões você segue fielmente as falas que estão contidas no livro, por que é que você escolheu interpretar assim?

José Celso Martinez Corrêa: Olha, está super recriado, viu? Que eram as falas do livro, mas realmente a principal coisa que tinha que acontecer é que eu tinha que ter a mesma crença do Antônio Conselheiro e o Antônio Conselheiro realmente é um homem do cristianismo ascético, para mim é muito difícil, eu não sou cristão.

Paulo Markun: Nem ascético?

José Celso Martinez Corrêa: E nem ascético. Então eu interpretei, eu estou interpretando o Antônio Conselheiro. Ele tem uma fala belíssima que é assim: “O amor é livre e grande demais para ser julgado por nós, pobres pecadores”. Porque em Canudos tinha esse lado do amor ser livre. Porque era um bando de gente de várias etnias, de várias coisas, eram índios, eram negros, eram jagunços e tinham realmente uma certa... ele não dava importância para a coisa do casal e dos filhos, nem dos filhos que nasciam, os filhos do gozo, ele abençoava os filhos do gozo, e tem coisas maravilhosas nele, tanto que pode ser que a minha reinterpretação de Canudos nós vamos fazer na Bahia, nós queremos fazer no Morro da Favela na Bahia, onde aconteceu a guerra, aquele sítio arqueológico, a gente quer gravar o dvd, aliás, lá nesse sítio, evidentemente, vai escandalizar, porque o meu Conselheiro fica nu, meu Conselheiro é um "fiofólatra" entendeu? Ele era, porque o Conselheiro se compara, é por isso que ele era um agnóstico, agnóstico eram as pessoas que experimentavam Deus através do corpo, então ele tem muito de ator, ele tem uma interpretação, é uma interpretação de Canudos, é impossível você... Porque ele acreditava em Deus, o único Deus que eu acredito é Eros, é Dionísio, que é todas as máscaras, todos os deuses, Eros é o amor, é o cio, é a libido, eu acredito nisso, eu acho que o homem vive para a vida, não é?

Contardo Calligaris: Isso não exclui uma certa forma de ascetismo, não é? Porque sem uma certa paixão de ascetismo você não teria percorrido...

José Celso Martinez Corrêa: Ah claro, não, isso custa muito caro.

Contardo Calligaris: Ah é!

José Celso Martinez Corrêa: Eu, por exemplo, eu vou fazer, eu estou nascendo, às duas e meia eu vou nascer, eu estou aqui dentro, eu vou nascer para os meus 67 anos, às duas e meia eu vou abrir champanhe e vou nascer, não é? E eu estou assim em um momento muito importante da minha vida e eu acho que nunca na minha vida eu fiz, a não ser forçado, quando fui torturado ou coisa assim, alguma coisa que eu não gostasse, eu só fiz porque eu gosto.

Contardo Calligaris: Mas isso custa?

José Celso Martinez Corrêa: Custa caríssimo! Isso é uma fortuna, isso é um luxo, isso é uma coisa que realmente, eu não tenho um tostão, eu não tenho nada, não tenho propriedade, não tenho nada, nada, nada, nada, vivo na corda bamba, tendo que inventar a minha vida, mas eu não me arrependo um minuto disso, porque... agora existe uma luta, mas a luta pelo prazer,  você tem que lutar pelo prazer, o prazer não vem assim [sem luta], quando você nasce você faz um esforço.

Contardo Calligaris: Escuta, justamente sobre isso, você disse antes e eu não saberia concordar mais do que concordo, que viver é sonhar, desejar é sonhar, não tem desejo sem devaneio, não é?

José Celso Martinez Corrêa: Mas é uma coisa muito física.

Contardo Calligaris: Claro.

José Celso Martinez Corrêa: Tem conseqüências muito físicas.

Contardo Calligaris: Claro.

José Celso Martinez Corrêa: Muito concretas.

Contardo Calligaris: Mas eu quero te perguntar, além dos...

José Celso Martinez Corrêa: Eu não sou um messiânico, por exemplo.

Contardo Calligaris: Não, isso não, imagina, o que você espera, espera de si mesmo.

José Celso Martinez Corrêa: Claro.

Contardo Calligaris: Mas além d'Os sertões, além da Alemanha, da luta, da luta com o Grupo Silvio Santos.

José Celso Martinez Corrêa: Que é a mesma coisa para mim, é a mesma coisa, é a mesma coisa.

Contardo Calligaris: Claro que é a mesma coisa

José Celso Martinez Corrêa: Eu acho inseparável uma pessoa conseguir entender Os sertões se ele não entender a luta que se trava no Oficina, não só com o Silvio Santos.

Contardo Calligaris: Claro, porque parece a mesma história.

José Celso Martinez Corrêa: Mas com a sociedade, com o Estado.

Contardo Calligaris: Absolutamente.

José Celso Martinez Corrêa: Com tudo, é a mesma coisa, você só consegue ler isso, isso que eu acho bonito no teatro.

Contardo Calligaris: Além de, qual, qual é o devaneio que vai te carregar mais 67 anos?

José Celso Martinez Corrêa: Não tenho a menor idéia, porque ele vai surgindo e cada paixão que você vai encontrando e cada necessidade que você vai encontrando, você vai ressuscitando, é uma outra cultura e você vai mudando, sempre na hora certa, eu não acredito em milagre, mas sempre, como pinta em filme americano, mas vem, vem, se você está aberto, vem, agora, eu quero muito fazer Cacilda também, eu gostaria, eu não digo, eu escrevi  quatro peças sobre Cacilda, e eu queria ter feito tipo Os sertões, uma atrás da outra, mas as atrizes não toparam fazer, porque achavam que não ia dar certo. Agora eu estou topando, estou com uma multidão que está topando ir nessa viagem e essa viagem ainda é longa, a luta é enorme, a maior parte do livro tem, deve ter, uns três espetáculos no mínimo.

Beth Néspoli: Zé, o Alexandre falou do lúdico, da importância de botar essa dimensão lúdica na vida, que é o que você tenta fazer e que  me parece que é a sua luta em que você fala do Brasil mercado, o Brasil nação, o Brasil arte, eu até estava conversando com o Contardo, um pouco antes de vir para cá, a sua linguagem também é lúdica, você quando se expressa, você fala da morte iniciática ou do centro orgiástico, até que ponto, às vezes, você sente que essa linguagem dificulta lidar justamente com essas pessoas que poderiam viabilizar o que você quer fazer?

José Celso Martinez Corrêa: Não, aí que está o meu talento, não é?

Beth Néspoli: Digo de mecanismo de financiamento.

José Celso Martinez Corrêa: Eu sei que é conclusivo, que o meu talento agora depende disso, mas eu acho que o mecanismo de financiamento não vem da sua submissão às regras que eles estabelecem, porque são regras muito estreitas e que só servem para um tipo de produção. Não é a produção que é criadora, que não é colonizada, não é como um tipo de criação que vem do seu próprio prazer, da sua própria profundidade como ator. Ela precisa, ainda - não há uma compreensão disso muito grande - de uma leitura disso, mas eu acho que é o nosso dever, em nível de compreensão do empresariado, porque aí é uma questão de força. Eu acho que na medida que você cria uma obra, que é cada vez mais maravilhosa, como é a que nós estamos criando agora, é inevitável, aquilo passa e aquilo vai ser... Eu estive na Petrobras, eu quero ter para o Oficina as condições que tem o Grupo Coop, [Cooperativa Paulista de Teatro, fundada em 1979] o Grupo Galpão [fundado em 1982], o Grupo da Débora Cocker [ companhia de dança] eu quero ter as condições de poder, porque com o mínimo, com o dinheiro que nós tivemos do  dvd nós fizemos uma coisa fantástica: qualidade técnica perpétua, aquilo vai durar sempre, a qualidade do som, de imagem, tudo! E nós podemos fazer coisas belíssimas, mas a mesma coisa que o Gil está dizendo: é preciso convencer o empresariado que a cultura é uma coisa estratégica e é uma coisa que realmente depende deles passarem por um processo. Depende, também, de nós perdemos os preconceitos e eles também, e eles passarem a ver a cultura como alguma coisa que... O Oswald de Andrade escreveu Poesias reunidas, porque tinha as Indústrias Reunidas Matarazzo, ele era o homem mais rico de São Paulo, ele achava que o mesmo valor que a Poesias reunidas dele tinha, tinha a Indústria Matarazzo e é verdade, foi por causa da Poesias reunidas que tem aquele teatro de pé, tem aqueles tijolos, por causa daquele teatro, por causa dessa mentalidade nova, desse grande filósofo, dessa grande antena do mundo, Oswald de Andrade, que até hoje ele sempre submerge, ele vai e volta, mas ele tem muito a dizer, esse poeta.

Paulo Markun: O nosso tempo está acabando, a última pergunta tem que ser a resposta curta. Você imagina que o Oficina sobrevive à Rádio Excelsior?

José Celso Martinez Corrêa: Totalmente, eu tenho certeza, porque eu venho de alguma coisa que é muito anterior a mim mesmo, eu venho a partir do momento que eu me dei ao teatro, que eu me entreguei ao teatro, eu venho do dionizismo, eu venho do dionizismo da minha avó índia que andava a cavalo de pé e tinha um olho só e vivia com o meu avô e um outro homem, e o meu avô hippie que jogava balas para as crianças, que tocava guitarra, quer dizer, muito antes de mim a sociedade já tem essa inspiração, já teve o teatro grego, já teve o teatro elizabetano, já teve o Modernismo, já teve o Tropicalismo, já teve o pós-modernismo. Em 1928, Oswald de Andrade disse: “Eu não sou mais modernista, eu sou o primeiro pós-moderno”. Entende? Quer dizer, é uma coisa que me transcende. Eu sinto nas crianças, nas pessoas que estão lá, que conforme a gente vai tendo a possibilidade do crescimento material, você vai criando. O Oficina está gerando vários diretores, tem Marcelo Drummond, que vai dirigir agora uma peça de José Vicente [dramaturgo mineiro, autor de Santidade], o Fransérgio [Araújo] que dirigiu uma peça da Beth Miranda, o Nelson, que é muito ligado ao Oficina, que está dirigindo maravilhosamente bem a  [peça de] Sarah Kane [dramaturga inglesa]. Quer dizer, isso para se dizer o seguinte, que está se criando uma série de cabeças no Oficina, porque o processo de criação lá é um processo que leva todo mundo a participar de tudo, junta ensaio, junta a direção de arte, junta a luz, junta som, junta banda, junta músicos, junta todos, a gente junto pega o roteiro e vai transformando, vai virando aquilo, depois faz ensaios com o público, vê como é que resulta com o público e é isso que está dando certo.  É um processo que eu, infelizmente, por comodismo, a mídia toda foca a minha pessoa, então mesmo no Estadão saiu aquela manchete: O Oficina leva Os sertões de Zé Celso, não é de Zé Celso, realmente é do Antônio Conselheiro. Zé Celso, ele é uma conseqüência social e amorosa de todo aquele bando de pessoas que está lá, do público que está lá, se não fosse isso, esse teatro não existiria. Esse teatro tem 45 anos por quê? Não é  o Zé Celso, isso me transcende, a bola está passada, bola para frente, e, olha, para terminar... Entra rápido a maquete, entra rápido a maquete, rapidíssimo, corre, voa, olha o presente de aniversário que eles me deram da FAU: um bolo de carnaval. Não, põe aí, põe aí, deixa aí, deixa eu explicar. [trazem uma maquete no cenário e entregam ao entrevistado]

Paulo Markun: O Roda Viva fica por aqui, na próxima segunda-feira estaremos de volta com mais um Roda Viva, uma ótima semana e até segunda.

José Celso Martinez Corrêa: Merda! [termo utilizado no teatro para desejar boa sorte antes das apresentações]

[Risos]

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco