;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Benedita da Silva

18/11/2002

Uma das principais lideranças do PT carioca, a então governadora, que também foi a primeira senadora negra do Brasil, fala das dificuldades para governar o Rio de Janeiro e defende uma política de cotas para negros

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

Paulo Markun: Boa noite. Quarta feira, 20 de novembro é o dia da Consciência Negra; e o Roda Viva dedica hoje mais um programa ao debate da questão racial, dos problemas sociais e da busca de políticas públicas que possam resolver melhor os problemas das minorias raciais, ou das maiorias raciais e dos excluídos de uma forma geral. Nossa convidada desta noite é uma personagem que está há muitos anos envolvida nesse debate, e que escolheu a política como caminho para encontrar soluções. No centro do Roda Viva, esta noite, a governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, primeira mulher negra a ocupar uma cadeira no Senado Federal e primeira mulher negra a governar um estado no Brasil.

[Comentarista]: Ela já contava vinte anos de carreira pública quando assumiu o governo do Rio de Janeiro, em abril deste ano. Benedita da Silva era vice de Anthony Garotinho [foi prefeito de Campos (RJ) pelo PDT e governador do Rio de Janeiro em 1998-2002. Candidatou-se à Presidência da República em 2002 pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), porém perdeu as eleições para Lula], que renunciou para concorrer à Presidência da República. Assumiu sem um processo de transição, já que o PT [Partido dos Trabalhadores] do Rio de Janeiro estava rompido com Garotinho desde 2000. No cargo, sem maioria na Assembléia e buscando ajuda do governo federal para enfrentar o crime organizado e a violência, Benedita tentou reeleger-se governadora; perdeu para Rosinha Garotinho [eleita em 2002 pelo PSB], que venceu a disputa já no primeiro turno. Sem cargo público a partir de janeiro de 2003, quando ela deixa o governo do Rio, Benedita não será exatamente uma estrela solta do PT; seu nome freqüenta as especulações em torno da formação do futuro governo Lula. Auxiliar de enfermagem, e com formação universitária em serviço social e estudos sociais, Benedita ganhou sua primeira eleição em 1982, quando foi vereadora no Rio de Janeiro. Sempre filiada ao Partido dos Trabalhadores, seguiu na vida parlamentar como deputada federal em 86, sendo reeleita em 90. Em 92 concorreu à prefeitura do Rio, mas não ganhou; voltou à disputa eleitoral em 94 para eleger-se senadora pelo estado do Rio, e foi a primeira mulher negra a ocupar uma vaga no Senado Federal. Anos mais tarde, a primeira negra senadora também seria a primeira negra governadora da história do Brasil. Aos 60 anos de idade, quase 50 deles vividos na favela do Chapéu Mangueira, no Rio, Benedita exibe uma história de vida singular: filha de lavadeira, também lavou roupas, foi vendedora ambulante, empregada doméstica e líder comunitária da favela. Da liderança no morro à militância do PT, Benedita da Silva marcou sua atuação política trabalhando junto a associações de favelas e nas organizações não-governamentais de defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos excluídos em geral. Ela mesma, nascida sob o signo da exclusão, é, ao mesmo tempo, símbolo e resultado dessa luta. Mulher e negra adquiriu projeção política nacional conquistando espaços num cenário tradicionalmente branco e masculino.

Paulo Markun: Para entrevistar a governadora Benedita da Silva, do estado do Rio de Janeiro, convidamos Marcelo Godoy, repórter da editoria de Cidades do jornal O Estado de S. Paulo; Marcelo Beraba, diretor das sucursal do Rio de Janeiro da Folha de S. Paulo; Silvia Fonseca, editora do caderno “O país” do jornal O Globo; Edna Roland, doutoranda pelo programa de psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e presidente da organização não-governamental Fala Preta e relatora geral da Terceira Conferência Mundial Contra o Racismo. Convidamos ainda, Maria do Socorro Souza Braga, doutoranda pelo Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo; e Sérgio Lírio, subeditor da revista Carta Capital. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros, e também para Brasília. Boa noite governadora.

Benedita da Silva: Boa noite.

Paulo Markun: Vou começar pelo ponto que foi um dos temas polêmicos do programa de segunda-feira passada, que foi também dedicado a essa questão da raça no Brasil: é em relação às cotas para negros [ação afirmativa]. A senhora é a favor ou é contra essa idéia de se estabelecerem cotas nas universidades, no serviço público, em diversas instâncias do país?

Benedita da Silva: Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer muito em poder estar participando do programa, e dizer que a cota é um instrumento muito mais de denúncia de todo o processo de exclusão que a comunidade negra até hoje viveu, do que propriamente dito um fato que possa resolver uma questão que há séculos nós estamos trabalhando. A cota faz parte de uma série de outras ações que implementamos no combate à discriminação e [para] a inclusão dos afro-brasileiros. E, hoje, por exemplo, no estado do Rio de Janeiro, nós temos uma política de inclusão, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde os afrodescendentes e também as pessoas carentes têm uma cota na universidade. Mas ele participa primeiro do vestibular, ele presta exames, ele tem que ter o mesmo nível que os demais, ele tem que fazer os pontos que todos os demais precisam. A única coisa que ele tem é um espaço onde, atingido o percentual ali qualificado, ele passa a ter, por parte daquela universidade, o seu espaço garantido. Eu coloco isso assim didaticamente porque existe uma discussão, um debate, que desqualifica todo esse esforço que foi feito até então para que se haja o reconhecimento, e esse reconhecimento existe, o reconhecimento da pobreza, o reconhecimento de que os afrodescendentes estão excluídos do processo.

Paulo Markun: Eu só queria entender, é mais ou menos o que se discutiu aqui, governadora, na semana passada, não sei se a senhora teve a oportunidade de assistir o programa, que pega no seguinte ponto: que o sistema é efetivamente uma maneira de demarcar a questão e dizer o seguinte: olha, há uma parte importante da sociedade brasileira, que eu não sei nem porque é que se chama minoria, porque se a gente for analisar estatisticamente a realidade...

Benedita da Silva [interrompendo]: Na verdade somos maioria.

Paulo Markun: ... Será uma maioria? É uma maioria excluída do processo, e se a gente examina as estatísticas de mortes de jovens, a senhora conhece muito melhor do que eu, só estou citando porque essa é a nossa obrigação de apresentar o problema, em todas essas questões, salários, mortes de jovens, violência, acesso à universidade, os negros são prejudicados; então se a cota é a maneira, ou uma das maneiras, de realmente reduzir essa desigualdade, qual é a dificuldade de assumir que ao se estabelecer uma cota está se definindo critérios diferentes para pessoas que tiveram oportunidades diferentes?

Benedita da Silva: Eu penso que nós temos, realmente, que ter critérios diferentes, e isso não desqualifica o conhecimento adquirido pelo indivíduo afrodescendente, porque você não pode tratar os diferentes como você trata os chamados iguais. Porque existe toda uma situação, que é uma situação de classe e o governo atual reconhece que existem preconceito e racismo no Brasil, e isso existe. Isso pesa evidentemente, então, são heranças que nós trouxemos desde a escravidão, e da inclusão que não houve no processo de libertação do Brasil.

Marcelo Godoy [interrompendo]: Governadora...

Benedita da Silva: Então, agora, só um minutinho, Marcelo. É que agora, quando nós tratamos dessa questão de garantir o mínimo dessa presença - porque já existe diagnóstico, comprovação, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] está aí para dizer, o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] também - nós enfrentamos mais uma vez um debate, que é o fato da população negra com acesso através das cotas à universidade tornar-se desqualificada, ou então estaria ocupando indevidamente um lugar que não seria dele se ele não fosse afrodescendente, ou se ele não fosse pobre. O que não é verdade, porque nós participamos de todo o processo, o critério de escolha apenas reserva mais vagas para os afrodescendentes, mas você vai fazer a mesma prova, o mesmo teste, e é por isso que eu penso que está distorcida, e que é preciso manter esse debate; bom seria se nós não precisássemos verdadeiramente de cotas. Ela denuncia uma falha do sistema.

Marcelo Godoy: A senhora acha que essa é uma política que o governo Lula deveria assumir?

Edna Roland: Governadora Benedita, juntando à pergunta do Marcelo, o governo da senhora já foi para os anais da história, é um governo histórico por ter colocado 20% de negros no primeiro escalão. É um fato inédito e a senhora será lembrada não somente por toda sua trajetória de luta, mas por esse fato pontual, isso será reconhecido na história do Brasil. E, na mesma direção que o Marcello lhe perguntou, a senhora considera que há possibilidade do governo Lula seguir nessa mesma direção, desse exemplo que a senhora deu? E a senhora aconselharia o Lula a fazer isso?

Benedita da Silva: Eu penso que o Lula tem acompanhado toda a nossa trajetória, a nossa luta, Edna, e também - respondendo ao Marcelo - eu tenho certeza que ele trabalhará a questão da inclusão, das ações afirmativas. O nosso processo de escolha no estado do Rio de Janeiro partiu pela competência que a gente reconhece que os afrodescendentes têm; partiu também do fato de reconhecer que o mercado de trabalho - nós somos minoria no mercado de trabalho - e [isso trouxe] perplexidade para alguns que, quando se deram conta - a imprensa mesmo publica – de que nós temos 20% de afrodescendentes no governo no primeiro escalão, isso trouxe para a população do estado do Rio de Janeiro uma reflexão da competência dessas pessoas e que os levou a fazer aquela disputa, que é natural para ocupação dos cargos. E ali, eles foram indicados e estão dando conta, juntamente comigo, dos desafios que o estado do Rio de Janeiro tem hoje. Eu penso que o Lula deverá certamente compreender essa falta de inclusão, compreender também que é preciso ter ações afirmativas sem que, com isso, ele possa ser visto como um governo que desqualifica o fato de não termos a oportunidade de estarmos nas universidades, ou no primeiro escalão de governo.

Marcelo Beraba: Governadora, essa questão não tem uma resistência hoje tão forte, embora - a senhora me corrija se estiver errado - no caso do Rio de Janeiro, o sistema de cotas [ação afirmativa] o próprio governador Anthony Garotinho, no período dele, já estava sendo implantado o sistema de cotas na UERJ [Universidade Estadual do Rio de Janeiro], não é isso?

Benedita da Silva: Não, nós não tínhamos o sistema de cotas. O sistema de cotas foi um debate muito acirrado, realmente tivemos aí a iniciativa do projeto, mas o debate foi extremamente acirrado no estado do Rio de Janeiro, a compreensão. Só depois é que nós conseguimos implantar, houve a iniciativa, não podemos negar, mas ela não teve êxito na medida em que o debate não foi feito como deveria ter sido, e o respaldo que deveríamos [ter], também não veio. Já nessa minha gestão é que nós conseguimos realmente implantar essas ações afirmativas.

Sérgio Lírio: Governadora, volta e meia, alguns analistas falam das dificuldades técnicas de se implantar cotas, falam da maioria mestiça, ou negros que não se assumem como negros. A senhora vê alguma dificuldade técnica em definir isso, em nível federal, outros estados?

Benedita da Silva: Não, em absoluto. Eu acho que o problema não está conosco, o que acontece é que as pessoas não indicam, não escolhem, não acham, somos praticamente invisíveis na hora de uma escolha, de uma indicação. Nós temos hoje, no estado do Rio de Janeiro, figuras, personalidades, que podem perfeitamente estar no primeiro, no segundo, no terceiro escalão - têm competência para tal - e, no entanto, continuam sendo observados e indicados; o que eu fiz, e não encontrei nenhuma dificuldade. A primeira era a experiência, o critério da experiência, o critério da competência, e eles são afrodescendentes; aí a questão de gênero prevaleceu, e prevaleceu também o fato de serem afrodescendentes. Além de tudo isso, eles eram afrodescendentes, com competência e com experiência, e que podiam ocupar o cargo.

Marcelo Godoy: A senhora acha, governadora, que o presidente Lula vai ter o mesmo critério que a senhora, ou seja, vai levá-la para o ministério?

Benedita da Silva: Eu acho que cada critério é um critério; eu não sei se ele levaria pelo fato, pura e simplesmente, de ser a Benedita da Silva, uma mulher negra. Porque eu sou uma militante, sou um quadro do Partido dos Trabalhadores, e eu governo o estado do Rio de Janeiro com uma experiência que pode verdadeiramente ajudá-lo, mas o critério que ele vai usar para escolher o seu ministério, eu realmente não tenho conhecimento.

Paulo Markun: A senhora, sendo integrante do Partido dos Trabalhadores - que é um partido que sempre pautou a sua ação política pela ampla discussão em debate, pela democracia, pelo orçamento participativo - a senhora concorda com essa posição do presidente Lula, de dizer “olha, o ministério quem escolhe sou eu, e quem plantar inclusive uma notícia qualquer nos jornais, está construindo o caminho para sua não indicação”. A senhora agiria da mesma maneira?

Benedita da Silva: Sim, porque o que ele diz está respaldado pelo fato de que o partido vem de uma diretriz, ele já vem debatendo. Primeiro discutiu-se a política de alianças, depois os apoios; tudo isso fez parte e está fazendo parte ainda de uma discussão acompanhada pelo presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, José Dirceu, e também o secretário-geral, quer dizer, toda a executiva nacional do Partido dos Trabalhadores tem acompanhado os entendimentos. Agora, quem foi eleito foi o Lula; é ele quem vai escolher, ele que tem a responsabilidade e ele é quem vai responder. É lógico que nós estaremos estimulando, incentivando e, de certa forma, respaldando a decisão que ele tomará, mas compete realmente a ele.

Marcelo Godoy: A senhora respaldaria essa decisão também de um governo Lula, ou seja, das escolhas dele, principalmente de levar para o governo duas pessoas, possivelmente duas pessoas que sempre, digamos assim, estiveram como adversários da senhora, por exemplo, o grupo do ex-governador Leonel Brizola [(1922-2004), fundador do PDT, foi presidente de honra da Internacional Comunista e histórico opositor ao regime militar. Foi governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro e candidato derrotado às eleições presidenciais em 1989], e o grupo do governador Anthony Garotinho? A senhora não se sente constrangida com essa possibilidade, governadora?

Benedita da Silva: Ninguém governa sozinho, nós somos “aliancistas” e defendemos isto, e trabalhamos para que o projeto nacional dê certo; está aí “Lula presidente do Brasil”. Nós queremos que o Lula dê certo, porque o povo brasileiro irá ganhar com isso, e ele tem que realmente se respaldar de todas as forças vindas de todos aqueles que querem um Brasil diferente para que ele possa governar, e não tem porque ter algum problema...

Marcelo Godoy [interrompendo]: Mas são pessoas que ofenderam a senhora, por exemplo, no passado.

Benedita da Silva: Mas é uma questão que a gente resolve, uma questão menor diante da possibilidade de governarmos este país. É preciso que o Brasil tenha pessoas que estejam dispostas a não defender pura e simplesmente a sua honra, mas a honra do coletivo, e o que nós fazemos agora é exatamente isso. Lógico que as divergências, elas permanecerão, e se elas forem do ponto de vista pessoal caberá a mim resolver. E, do ponto de vista político, o tempo é o senhor da política, da verdade. Eu acredito que na política tudo é possível, desde que seja com ética.

Silvia Fonseca: A senhora já foi convidada para participar do governo Lula?

Benedita da Silva: Eu já fui convidada para trabalhar. O Lula disse que a gente tem que trabalhar muito; e eu comecei a trabalhar quando eu assumi o governo do estado do Rio de Janeiro.

Paulo Markun: A senhora não é mineira, não?

[risos]

Benedita da Silva: Eu sou filha de mineiros. Mas acontece que eu já comecei a trabalhar, porque pegar o estado do Rio de Janeiro, governar o estado do Rio de Janeiro, é um grande desafio.

Silvia Fonseca: A senhora não queria assumir o governo do Rio de Janeiro, o  Lula, pessoalmente, o José Dirceu, convenceram a senhora a assumir, e agora já estaria certa a sua participação no governo?

Benedita da Silva: Não, porque eu não estava candidata à ministério, eu estava candidata à governadora do estado do Rio de Janeiro. Eu acredito que, como servidora pública, acredito que como um quadro técnico – porque eu sou técnica na área do serviço social - e também omo quadro político do Partido dos Trabalhadores, e a necessidade que se tem de desenvolver uma política pública voltada principalmente para o combate à fome e à miséria, na área social, geração de emprego e renda, eu quero crer que eu tenho uma contribuição a dar e já estou trabalhando para isso, isso independentemente da questão de escolha, a escolha fica por conta do governo.

Marcelo Beraba: A sua conversa hoje, como foi com o Lula e o José Dirceu, aqui em São Paulo?

Benedita da Silva: Olha, eu vim dar um abraço no Lula, porque...

Marcelo Beraba: Mas a senhora está dando abraço toda hora

[risos]

Benedita da Silva: Mas eu vivo dando abraço, é um abraço amigo. Dizem que o sorriso negro traz felicidade, eu sempre gosto de estar esboçando o meu sorriso, dando o meu abraço, dizendo realmente... meu carinho que eu tenho, da minha paixão por esse homem, por esse, hoje presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. E tenho compartilhado realmente as minhas preocupações com ele, nunca foi diferente; as minhas preocupações podem ser de ordem pessoal, podem ser de ordem administrativa, mas o abraço de hoje foi realmente... Porque eu não tinha passado ainda no comitê; na verdade eu passei no comitê, dei um abraço grande nele, falei que ele pode voltar ao estado do Rio de Janeiro mais uma vez, ele disse que vai ver, mas eu vim conversar mesmo foi com o José Dirceu. Porque nós estamos com uma audiência marcada com o ministro Malan [ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique no período 1995-2002] estamos discutindo a situação do estado do Rio de Janeiro - financeira do estado do Rio de Janeiro - algumas preocupações.

Marcelo Beraba: A preocupação maior é o 13º [salário], governadora?

Benedita da Silva: É o 13º, é verdade. Me preocupa bastante, e todo e qualquer administrador público sabe que não pagar o 13º - vai ser pago evidentemente - mas eu queria que fosse agora, e estou trabalhando para isso, e vou conversar com o ministro Malan. Então, eu estava conversando com o José Dirceu da importância de nos ajudar agora, até esse período de transição, para que se converse um pouco a respeito do estado do Rio de Janeiro, que acumulou suas dívidas e hoje tem uma situação financeira desconfortável. E tem também uma situação na área de segurança que requererá atenção muito grande do governo federal. Eu acredito que o estado do Rio de Janeiro fica ingovernável se não tiver uma política de apoio e de sustentação também do governo federal. Então, como eu moro no estado do Rio de Janeiro, eu gosto do meu estado, eu estou sempre me colocando a favor desse estado, e hoje, na condição de governadora, eu venho conversar também para que essa transição pense nesses dias finais no meu governo, no estado do Rio de Janeiro.

Maria do Socorro Souza Braga: Governadora, a senhora está - como a gente acabou de ouvir e tem lido nos jornais - cotada para pertencer, a participar de algum ministério, inclusive na área social, não é? A senhora é assistente social de formação, e na sua visão - eu fiquei pensando - o que seria mais interessante, dar comida diretamente às pessoas, ou essa idéia de dar o cartão e a pessoa sacar o dinheiro?

Benedita da Silva: Olha, essa é uma discussão que a gente tem uma experiência pequena no estado do Rio de Janeiro. Depende da região; cabe ter cartão, cesta básica, todo e qualquer método, bolsa escola, renda mínima, vai depender realmente do critério que se vai usar para cada região.

Marcelo Beraba: Mas não tem uma questão de cidadania, não? Essas metodologias diferentes, essas formas diferentes não implicam em questões de cidadania diferenciada também? Uma coisa é a senhora ganhar alimento, a outra é a senhora poder utilizar o seu dinheiro da maneira que quiser usar? Não são coisas diferentes?

Benedita da Silva: Pois é, quando o Lula coloca que ele quer... o combate à fome e miséria não inclui só uma cesta básica, não inclui só uma bolsa escola, inclui também outros instrumentos: geração de emprego e renda. Porque o que as pessoas na realidade querem é ter o seu dinheiro, chegar na loja, fazer suas compras ou chegar num armazém e levar a sua comida para casa; isso que as pessoas realmente querem, e temos que dar essa condição. Mas também há de se reconhecer que tem fome, que tem miséria, e que aumentou no Brasil. Nós tínhamos 36 milhões, hoje já ultrapassamos a casa de 50 milhões. É preciso então, tirar essas pessoas da condição de miseráveis, passá-los para a condição de pobres; esse é um esforço que deve ser coletivo e por isso o chamamento do presidente eleito à sociedade como um todo, a todos os segmentos, à iniciativa privada, para que a gente possa dar as mãos. Mas tem outras ações que complementarão e certamente esse será um dos grandes desafios que está colocado para nós, e eu quero crer que ele já está recebendo, por parte da sociedade brasileira, uma sinalização de que está no caminho certo e que poderão ajudar. Eu acho que aí nós teremos outras políticas públicas a acrescentar a essa iniciativa.

Marcelo Beraba: A senhora acha que o governo do presidente Fernando Henrique [presidente do Brasil entre 1995 e 2002 pelo PSDB] falhou nessa parte, fracassou nessa área?

Benedita da Silva: Olha, eu penso que muita coisa deixou de ser feita, e uma das coisas principais - eu acho que nós temos muitas ações sobrepostas, não tem um planejamento realmente, não tem um plano estratégico de combate a qualquer coisa, seja desemprego ou na área de segurança, do combate ao narcotráfico - então é preciso ter. Então tem que se planejar evidentemente para poder se ter o resultado que é de curto, de médio e de longo prazo. Mas alguma coisa foi feita, não se pode negar, mas não foi o suficiente, agora temos que atacar realmente.

Marcelo Godoy: Mas, governadora, é ter planejamento, governadora, contratar um "Zeppelin" [apelido do dirigível equipado com câmera que ficou durante algum tempo sobrevoando os céus do Rio de Janeiro, bastante criticado inclusive pelos altos custos operacionais] para se cuidar da segurança pública no Rio de Janeiro, por exemplo? Isso não é uma ação, digamos assim, pouco confiável - pelo menos quem estuda a área diz isso - governadora?

Benedita da Silva: Olha, eu acho que tem teoria e tem prática, não é? Nós tínhamos uma teoria que estava sendo aplicada há décadas e décadas - todo mundo sabe que tem crime organizado no estado do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco - todo mundo sabe disso; todo mundo sabe que a gente tem uma máfia que chegou no Brasil, que veio da América Latina, todo mundo sabe disso; que tem o tráfico de drogas, de armas. E por que não combatem? Porque a teoria nós já temos, que é o diagnóstico, é esse levantamento; agora a prática requer instrumentos, e tem que ser um dos mais sofisticados. Quando nós falamos que Nova Iorque é tolerância zero [referência à política adotada pelo prefeito Rudolph Giuliani que diminui drasticamente os índices de violência daquela cidade] - e lá pôde ser usado Zeppelin – por que não pode ser usado no estado do Rio de Janeiro? O que importa é o custo-benefício e isso nós temos tido resultados no estado do Rio de Janeiro.

Marcelo Godoy: A Secretaria Nacional de Segurança Pública divulgou na semana passada uma pesquisa onde ela mostrava que, por exemplo, o roubo de carros no Rio de Janeiro cresceu 41%, ou seja, mostrava que outros roubos cresceram 24% no primeiro semestre, que já engloba parte do governo da senhora, não é? A senhora acha isso um resultado, isso é eficiência, por exemplo, da polícia? Ou seja, a eficiência da polícia não é só prender o Elias Maluco [perigoso bandido carioca, principal acusado, entre outras coisas, de assassinar com crueldade o jornalista Tim Lopes da Rede Globo], é também combater esse tipo de crime.

[Todos falam ao mesmo tempo]

Benedita da Silva: Eu quero responder, um momentinho, deixa eu responder um pouco aqui ao Marcelo Godoy, porque esse debate é um bom debate. Porque agora se tem o que discutir sobre o estado do Rio de Janeiro, agora se identificou verdadeiramente as nossas ações que combatem o crime organizado, e vem as falhas, os buracos deixados inclusive pelo governo federal. Porque o estado do Rio de Janeiro não fabrica armas, o estado do Rio de Janeiro também não fabrica cocaína, e por que então temos isso no estado do Rio de Janeiro? Por que essa coisa não foi combatida com eficácia? Porque faltou verdadeiramente, primeiro, vontade política de se fazer, segundo, colocar o dedo na ferida. Nós não temos instrumentos, nós não temos equipamentos, a situação é uma situação difícil e ruim; mas o que foi que nós fizemos no estado do Rio de Janeiro? Nós começamos a investir nas pessoas, no servidor público, no policial militar e no policial civil que, com uma situação mesmo precária, conseguiu fazer grandes prisões, e prisões que certamente levantaram a suspeita para aqueles que não estão acostumados a usar a técnica e a inteligência, como foi a prisão do Elias Maluco. Porque não houve derramamento de sangue, nós não tivemos mortos na comunidade, ele foi preso, como nós estávamos buscando fazê-lo; e não somente o Elias Maluco, nós já prendemos mais de 1800 traficantes do estado do Rio de Janeiro, temos até problema na área do sistema penitenciário porque nós estamos combatendo realmente o crime organizado. E aí questionar valores em relação aos instrumentos que são usados para ajudar na técnica, na eficácia do resultado - eu acho que a vida das pessoas vale muito mais do que qualquer recurso que nós estejamos gastando nesses oito meses de governo. E se fizermos um comparativo com os governos passados, de quatro anos e oito meses, nosso resultado é bem maior.

Paulo Markun: Governadora, nós vamos voltar a tratar dessa questão logo depois do intervalo, e com certeza nós voltaremos ao ponto daqui a alguns instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, e nesta noite, no centro a governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva. Governadora, temos várias perguntas de telespectadores abordando justamente essa questão que nós vamos retomar agora no segundo bloco. Ailton da Costa, aqui de São Paulo, que é mecânico, pergunta “a que a senhora atribui o crescimento da violência no Rio de Janeiro desde que assumiu?”; Sandra Viana, aqui de São Paulo, “porque a senhora não fala sobre a situação das drogas no seu estado, levando em consideração o estado em que a senhora encontrou o governo?”; e Márcio Barros, também de São Paulo, “o que a senhora acha da segurança pública que herdou do ex-governador Garotinho?”. Mas eu queria acrescentar um pouco de pimenta nessa história: a Edna, no bloco anterior, falou que a senhora deixou o governo histórico porque colocou 20% de negros no primeiro escalão do governo; agora, nas urnas, a senhora foi derrotada pela Rosinha Garotinho. Eu sei que a razão básica da senhora não estar continuando no governo é porque a Rosinha Garotinho teve mais votos do que a senhora, mas a minha pergunta é a seguinte: se a senhora acredita que a questão da segurança pública foi o tema central da campanha, e foi onde a senhora perdeu a eleição.

Benedita da Silva: Nós tivemos vários fatores, eu nem tive tempo para analisar o que levou a que nós não chegássemos, evidentemente porque me empenhei no segundo turno na campanha do Luiz Inácio Lula da Silva; e é claro que o estado do Rio de Janeiro continua sendo muito bem governado e, principalmente na área de segurança, que era uma demanda já de décadas, uma demanda reprimida...

Paulo Markun [interrompendo]: A senhora não aceita que a segurança foi um ponto que, no seu governo, foi atacado?

Benedita da Silva: Não só a segurança, eu poderia lhe dizer que eu peguei uma bomba de efeito retardado, foi o maior desafio político que eu tive em minha vida. Todos sabemos de que em oito meses, que é o meu caso, não se poderia resolver todos os problemas e mazelas do estado do Rio de Janeiro - de desigualdade social, da questão de segurança, do endividamento do estado - quer dizer, não se poderia resolver. E o que buscou-se naquele exato momento era que resolvêssemos em oito meses a situação do estado do Rio de Janeiro, que é uma situação em que hoje eu recebi uma herança que estou devolvendo, na medida em que algumas coisas eu realmente não consegui resolver; mas houve uma dedicação da minha parte na questão da segurança, porque demandava alguém que pudesse, com muita transparência, com muita determinação, começar a combater o crime organizado no estado do Rio de Janeiro para valer, e não se preocupar com a campanha eleitoral. Foi o que eu fiz, então, diante desse desafio... é evidente que esse foi um fator, mas existiram outros fatores; por exemplo, nós, por exemplo, pegamos um estado endividado e esse estado endividado fez com que nós tivéssemos que cortar custeio, parar algumas obras e isso somou na hora do voto, provavelmente.

Paulo Markun [interrompendo]: Desculpe interromper a senhora, governadora. O que eu queria entender e, eu acho que o eleitorado que não é do Rio de Janeiro gostaria de entender, é o seguinte, a senhora pegou um estado endividado - se pegou endividado, pelo governador Garotinho - e a senhora entrega o estado para a mulher do governador Garotinho; ou seja, o eleitor que elegeu a Rosinha Garotinho no primeiro turno não faz essa leitura que a senhora faz. O eleitor acha que antes estava melhor, senão por que ele votou na Rosinha e não votou na governadora Benedita, que fez uma política diferente, que colocou negros no primeiro escalão, que combateu o crime organizado, que tentou sanear o estado?

Benedita da Silva: É uma questão de tempo. A população do estado do Rio de Janeiro, eu penso que ela já começa agora a analisar um pouco o nosso governo, porque eles tiveram três anos e três meses para fazer uma campanha e eu tive menos de três meses. Porque, afinal de contas, o estado do Rio de Janeiro, nós, quando o pegamos - com esse déficit mensal de 160 milhões, mais obras para tocar e o problema na área de segurança - tudo isso fez com que nós tivéssemos uma dedicação maior nessa questão da governabilidade do que propriamente dito preocupados com uma campanha; quer dizer, eu fui muito tarde também para a rua nessa campanha, porque a atenção estava voltada para o governo, eu acho que isso também pesa realmente.

Marcelo Beraba: Não tem outra componente, que é a questão social mesmo?

Benedita da Silva: Mas que questão social?

Marcelo Beraba: Por exemplo, a senhora ou o PT tem divergências claras em relação à política assistencialista, vamos chamar assim, do governador Anthony Garotinho, e que depois foi, vamos dizer assim, assumido claramente pela candidata Rosinha durante a campanha eleitoral; mas durante a sua gestão, mesmo pequena, essa política deles, assistencialista, não foi alterada, foi mantida, não é isso? Quer dizer, então, acho que para a população, passou a idéia de que é uma política boa – cheque-cidadão, bolsa-escola - todos os programas sociais deles foram mantidos inalterados.

Edna Roland: Mas me parece, governadora, que seria importante a senhora nos responder em que medida alguns momentos difíceis e conturbados que a senhora enfrentou lá poderão ter sido resultado da desarticulação do crime organizado e das redes existentes dentro e fora dos presídios do Rio de Janeiro. Será que, com sua atuação política, a senhora tirou algumas coisas de lugar, rompeu acordos que existiam anteriormente naquele estado?

Benedita da Silva: O estado do Rio de Janeiro conviveu muito com uma política “olha, vocês não sobem [o morro], eu não desço, e fica tudo como está”; e nós fomos para o enfrentamento direto, com ameaças, ameaças de conhecimento público, verdadeiras, porque nós estamos realmente enfrentando. Não há concessão e não haverá concessão; até dia 31 de dezembro continuarei firme, e isso pesou também na questão da campanha eleitoral. Eu não quero, de forma nenhuma, ficar atribuindo “olha, pesou isso, pesou aquilo” no momento em que eu não tive tempo ainda para analisar. Mas um debate dessa natureza, em que os questionamentos são colocados, é preciso que a gente identifique uma série de situações do estado do Rio de Janeiro, principalmente na área de segurança. Porque eu pensava que nos oito meses eu pudesse dar destaque às minhas ações na área social - como profissional que sou da área, e pelo compromisso assumido - no entanto, não se pôde, por conta dessa demanda, por conta da cobrança da área de segurança. [Até agora] o povo do estado do Rio de Janeiro não estava acostumado a ter uma estatística onde nós comprovávamos que morreram tantos, foi furtado isso, está acontecendo de tal forma, está morrendo aqui, matando acolá, e não é de agora. Você pega e vai fazer um comparativo, e vai observar que, verdadeiramente, a situação hoje no estado do Rio de Janeiro no combate ao crime organizado é totalmente diferente. Isso pesou porque nós contrariamos uma série de interesses, inclusive da marginalidade, porque nós fizemos rastreamento, tiramos celulares, estamos constantemente fazendo rastreamento, fazendo varredura dentro do presídio, não dando a eles a oportunidade de ter o que chamam de tratamento VIP dentro do sistema penitenciário, e isso pesa; eles reagem e reagiram durante o período da campanha.

Silvia Fonseca: Mas a senhora não está se esquecendo que foi eleita juntamente com ele, que era vice-governadora dele? Talvez não tenha sido isso o mal-explicado, quer dizer, o eleitorado não viu na senhora a continuidade do governo dele, e na Rosinha a possibilidade de mudança? A senhora não explicou direito porque que era oposição na medida em que foi eleita com ele, ficou três anos e pouco no governo do estado e não denunciou esse tipo de coisa? A questão da segurança, a questão do rombo financeiro, só foi falar nisso depois.

Benedita da Silva: Eu não falei depois, Silvia, aí é que está. O momento eleitoral é um momento muito difícil; ficou na minha conta, na conta da ex-vice, exatamente o ônus.

Silvia Fonseca: De não ter denunciado?

Benedita da Silva: Não, de tudo que o governo não fez, das armadilhas que eu encontrei no governo - é bom que se diga isso. Agora a gente não precisa ter dedos para dizer, por exemplo, que o governo gastou em três meses o que eu teria que gastar até o final do ano. Eu já peguei uma situação dessa natureza, tendo que sustentar, por exemplo, o cheque-cidadão, que era um dos carros-chefe, e eles disseram antes - por isso, eles tiveram três anos e três meses - para dizer o seguinte “olha vão acabar com o cheque-cidadão”; mas eles diziam isso preparando a população, porque eles tinham a absoluta certeza que eu não teria condição de dar continuidade ao cheque-cidadão, porque eu não tinha dinheiro. Foi preciso mesmo competência para manter o cheque-cidadão, mesmo assim você encontrava pessoas nas ruas que diziam “você está acabando com cheque-cidadão”. Restaurante popular, não fechamos nenhum, mas você encontrava - porque foi preparado antes – “vocês vão fechar o restaurante popular”, porque eles sabiam que nós não iríamos ter recursos para isso, e tantas outras ações dessa área. E se nós reclamássemos, pareceria o quê? Um choro verdadeiramente “de quem não tem competência, de quem não sabe administrar”, porque eles tinham dito que deixaram 500 milhões de reais, mas nós comprovamos no dia 16, nós mandamos para o tribunal de contas - nós assumimos no dia 6 – e dia 16, nós mandamos a situação para tribunal de contas de um bilhão e 800 milhões de reais de déficit. E nós, com o corte e custeio, passamos para um bilhão e 300 milhões de reais. [Assim] com um déficit mensal de 160 milhões, pode-se hoje constatar que já estamos chegando à casa de quatro bilhões de reais.

Marcelo Godoy: Governadora, houve um momento no governo da senhora em que não houve prevenção. Eu digo especificamente quando Fernandinho Beira-mar foi transferido para Bangu-1 [presídio de segurança máxima], e alguns expoentes do governo da senhora já [diziam] da necessidade da instalação de bloqueadores de celulares no presídio. Mas só foram fazer isso depois que o Fernandinho dominou o presídio, não é? Não faltou prevenção do governo, não faltou a ação do governo especificamente nesse caso, governadora?

Benedita da Silva: Eu penso que não, porque quem sabe e conhece a burocracia, sabe que a gente não coloca um bloqueador e você chega lá e compra sem uma licitação, sem nada; quer dizer, a máquina [administrativa] é uma máquina emperrada em que as coisas não acontecem como nós queremos. Imagine um administrador - no caso o nosso governo, que chegou realmente para colocar o dedo na ferida, e colocou - se não gostaria muito de ter, por exemplo, sanado as finanças do estado do Rio de Janeiro, servidor em dia, pago o 13º [salario], todos os bloqueadores; porque somos nós que estamos implementando essa política, ela não existia antes, somos nós que estamos implementando, então nós teríamos toda essa vontade, mas não funciona dessa forma, mas pelo menos nós temos feito esse debate transparente com a sociedade.

Paulo Markun: Qual foi a maior lição que a senhora teve nesses oito meses de governo?

Benedita da Silva: Primeiro é não ficar na defensiva.

Paulo Markun: É uma boa lição.

Benedita da Silva: Isso é uma boa lição; o governo é para executar, é para fazer. Depois a gente sabe como administrar as críticas, mas tem que fazer, e nós temos feito, não olhar para as dificuldades, elas sempre existirão...

Paulo Markun [interrompendo]: A gente olha para a trajetória de vida da senhora e vê que a senhora já as enfrentou outras vezes.

Benedita da Silva: Isso eu não sabia a dimensão, eu sabia que iria enfrentar as dificuldades, mas está meio exagerada a dose. E pegar essas dificuldades e transferir, adiar, começar a trabalhar; eu acho que essa foi uma grande lição e, por um outro lado foi inédito para mim, estar governando e estar candidata, quer dizer, talvez não soubesse, também trabalhado um pouco essa coisa de estar governando e estar candidata; eu fui muito mais governo do que propriamente dito candidata, o partido foi que conseguiu levar a campanha e ,graças a Deus, o partido unificado no estado do Rio de Janeiro. Mas para quem já estava fazendo campanha e tinha todos os adversários - porque eram todos contra a nossa campanha, todos falando a mesma linguagem, na área de segurança - mesmo que nós tivéssemos tido êxito e estamos tentando não só nas prisões, mas estão realmente observando a nossa luta, o nosso combate, mas isso não foi o suficiente para que o eleitorado do estado do Rio de Janeiro pudesse fazer uma leitura do nosso trabalho.

Marcelo Beraba: A senhora acha que foi um erro ter assumido, ou foi um acerto depois de ter vivido essa dificuldade, de ter perdido a eleição?

Edna Roland: Foi o "limão do qual você fez uma limonada"? [referência ao dito popular para situações em que se reverte um fato negativo, transformando-o em um componente positivo]

Benedita da Silva: Exatamente isso! Nós fizemos uma limonada de um limão, e não me arrependo, porque eu sou uma pessoa que tenho um sonho e esperança ideológica, e nós não tivemos um resultado totalmente negativo, está aí “Lula presidente do Brasil”, e o estado do Rio de Janeiro não poderia ficar órfão naquele momento em que o ex-governador resolveu sair candidato à Presidência da República; eu, como vice-governadora, pude assumir e penso que estou dando conta com muita dignidade, até porque durante todo o período em que eu fui vice-governadora, em nenhum momento eu criei qualquer dificuldade para o ex-governador, mas qualquer dificuldade, de ordem administrativa, de ordem política, mas a mim foram criadas todas e nós estamos conseguindo superar.

Marcelo Beraba: A senhora já parou para pensar por que é que isso aconteceu, porque eles criaram tantas dificuldades, como a senhora descreveu aqui, tantos problemas, tantas armadilhas, na medida que em algum momento vocês caminharam juntos?

Benedita da Silva: É porque cada um arruma um mecanismo para disputar; eles resolveram fazer a disputa com esses critérios que não são os meus, eu resolvi manter o meu código.

Marcelo Beraba: A senhora diria que são anti-éticos os critérios deles?

Benedita da Silva: Eu, no mínimo, posso dizer que eles foram [anti-éticos] por demais com o povo do estado do Rio de Janeiro; porque perder a eleição ou ganhar faz parte do jogo político, a população do estado do Rio de Janeiro ficou à mercê de um critério e de uma vaidade política; se não fosse a responsabilidade do Partido dos Trabalhadores, a coisa ficava ingovernável, porque como nós encontramos o estado do Rio de Janeiro, era para que, no máximo no terceiro mês, já não tivéssemos condição nenhuma: "fechado para balanço." Então nós fomos capazes de, em meio a essas dificuldades, enfrentar; quer dizer, aí tornou-se muito mais difícil a disputa eleitoral para nós, para quem vinha fazendo milagres, dando pão, matando a fome, fazendo uma série de coisas, e chega uma pessoa que vai acabar com tudo aquilo. Então é evidente que, psicologicamente também, o eleitorado foi prejudicado; se olhar o meu mapa vocês vão ver que uma determinada escolaridade - não quero aqui fazer comentários - nós crescemos, no setor de classe média, por exemplo, nenhum candidato com perfil de classe média do Partido dos Trabalhadores no estado do Rio de Janeiro alcançou um índice de votação que eu alcancei no setor de classe média. Perdi exatamente nesses setores do cheque-cidadão, os setores que nós encontramos desassistidos, do restaurante popular. Quer dizer, nesses setores, realmente o trabalho foi  feito ...

Paulo Markun: Mas o Lula ganhou nesse setor, não é?

Benedita da Silva: O Lula ganhou nesses setores, porque a leitura foi uma leitura de política nacional. E todo o trabalho que foi feito no estado do Rio de Janeiro foi voltado realmente para essa população, e trabalhar psicologicamente nessa população. Meu Deus, eu morei 57 anos em favela, quem é que pode imaginar que Benedita da Silva iria fazer alguma coisa contra os favelados? Imagine, de forma nenhuma! Então trabalharam muito esses momentos da população, principalmente a população carente, mas eu acho que está todo mundo acordando e agora prestando atenção; acho que o segundo turno do Lula foi um pouco, no estado do Rio de Janeiro, esse resultado, quer dizer, uma compensação entre “bom, agora o Lula cuida da gente também”.

Paulo Markun: Eu gostaria de entender o seguinte: quanto custa para a senhora assimilar isso e dizer “tudo bem, temos agora que falar na política nacional”, e nas entrelinhas lê-se também “bem, se o governador Garotinho estiver apoiando o governo Lula, tudo bem, fazemos um acordo porque está em jogo uma questão mais importante”. Que preço tem isso?

Benedita da Silva: Isso foi um "Rio que passou em minha vida" [risos - pelo trocadilho com o verso de um sambra famoso]. Eu não "amontôo brasas sobre a minha cabeça", graças a Deus, não é possível. Eu, além de ter perdido a eleição, governando o estado na maior dificuldade, ainda vou ficar pensando nisso? Acabou, agora já tem uma governadora eleita, a responsabilidade é dela de governar o estado do Rio de Janeiro, eu tenho...

Paulo Markun [interrompendo]: Agora, imagino que ela vai ver "o que é bom para a tosse" [risos - referência ao dito popular para quando se vê realmente as consequências de um ato].

Benedita da Silva: Imagina não, ela sabe o que tem, eles sabem o que eles fizeram. Eu não estou fazendo absolutamente... eu não fiz conta, eu não aumentei, não fiz conta. Eu estou apenas devolvendo aquilo que eu não consegui resolver do que eu recebi. Eu avancei na área social com ações, como foi o projeto Crescer, de combate à desnutrição; além do cheque-cidadão, que é o mais badalado, restaurante popular que eu não fechei; o piscinão de Ramos [área de lazer que consiste em uma praia artificial associada a uma piscina pública de água salgada, instalada no bairro de Ramos, na cidade do Rio de Janeiro], que eu também não fechei; e me parece que até dezembro, se não tiver problema com a Justiça, tem outro piscinão, que é o piscinão lá de São Gonçalo. Nós estamos trabalhando bastante... o Jovem Total - política de inclusão de qualificação dos jovens em situação de risco. Nós fizemos e estamos fazendo ainda um bom trabalho nessa área. O Paif - Programa de Assistência Integral à Família, implantado nos municípios - é um programa que nós fizemos para atender a lei orgânica da assistência social, que estaria apresentando para o Lula. Porque é muito interessante quando você vai combater a miséria diretamente voltada para o núcleo familiar. Criar esses núcleos no Brasil vai ser uma coisa muito interessante. Tivemos grandes iniciativas, eu acredito que amanhã, quando passar e tiver o estado do Rio de Janeiro na calmaria, de poder realmente olhar e ver que nós demos nove meses de um "parto de fórceps" no estado do Rio de Janeiro.

Maria do Socorro Souza Braga: Eu vou voltar àquela questão anterior sobre campanha, de como se deu essa campanha, porque tenho um estudo justamente sobre o PT do Rio, e eu acabei tendo que estudar muito a formação de como se originou, quais foram os grupos que deram origem, e mostrando a distinção muito em relação a São Paulo... e até pelo menos 92 eram formados por vários grupos muito reticentes à política eleitoral; a política de alianças era um problema, e a senhora justamente fez sempre parte, vamos dizer assim, da tendência [de política interna ao partido] que foi mais para o lado eleitoral. Eu queria saber qual foi o envolvimento justamente do PT do Rio de Janeiro quanto à organização em sua gestão, se houve esse relacionamento, como é que se deu? E na campanha também, como é que eles se organizaram? Poderíamos ter, como uma das razões, o PT enquanto organização mais distante em relação à campanha, como que foi que se deu essa relação?

Benedita da Silva: Não, o partido teve que fazer a campanha porque eu já disse que eu fiquei muito mais na questão de governo e o Partido dos Trabalhadores... eu não fiz nada até agora sem o partido, em absoluto. Se errei, errei com o partido, se acertei, acertei com o partido. Acho que eu penso dessa forma porque não é realmente um governo do Partido dos Trabalhadores, porque nós pegamos no meio do caminho, quer dizer, na reta final, mas nós assumimos. Então, ao assumir, eu assumi com o partido - nas indicações, com um partido na composição de governo, do acompanhamento, da campanha - eu coloquei realmente essa responsabilidade porque o resultado... quando não dá certo o resultado é sempre do candidato, o candidato que não deu certo; quando ganha não, aí foi todo mundo. Mas no estado do Rio de Janeiro tem uma coisa muito interessante - mesmo perdendo, a população do estado do Rio de Janeiro tem reconhecido nosso trabalho no governo do estado. Então isso é importante para o Partido dos Trabalhadores, isso pesou também para a performance, o partido teve uma boa performance no estado. Há de se convir também de que no estado do Rio de Janeiro nós temos duas grandes candidaturas: uma que foi vitoriosa, da governadora eleita, a Rosinha; e também do ex-governador Garotinho, candidato à Presidência da República. Isso no estado do Rio de Janeiro, para que nós tivéssemos a performance que nós tivéssemos com todas aquelas cobranças que estavam sendo canalizados para o nosso governo, a nossa performance deveu-se muito ao fato de que o partido estava unificado, senão aí teria sido um "deus nos acuda".

Marcelo Beraba: Governadora, só uma questão para complementar o que ela colocou, porque eu tenho a impressão que essa idéia de que o partido no Rio vinha de traumas seguidos, ao contrário de outros PT´s, de outros estados, no Rio ele foi sofrendo vários traumas divergências grandes...

Maria do Socorro Souza Braga [interrompendo]: Inclusive, sempre houve... entre o PT nacional e o PT local...

[...]: Governadora, só em relação a isso que o Beraba fala...

Benedita da Silva [interrompendo]: Nessa eleição nós unificamos, até porque não houve a aliança, nós estávamos praticamente sozinhos.

Marcelo Godoy: A senhora acha que foi um erro, a senhora ter saído na chapa do governador Garotinho em 98, como vice? Hoje, retrospectivamente, a senhora pensa que foi um erro, que talvez naquele momento fosse melhor ter uma candidatura do PT?

Benedita da Silva: Não, eu acho que não, não pode andar para trás, é andar para frente; nós somos “aliancistas”, estamos buscando uma política de aliança. A política foi correta, o que não deu certo foi o governo, paciência se não deu certo, isso acontece também na política. Então era preciso prosseguir e prosseguimos, não fomos nós que mudamos, eles mudaram, não fomos nós; a nossa política continua sendo a mesma, de avançar, de buscar alianças e elas foram... exatamente essas alianças deram também resultados altamente positivos ao Partido dos Trabalhadores, quando ganhamos [as eleições em] várias cidades e com isso possibilitando ganhar o governo de estado e hoje no plano federal ganhamos a Presidência da República.

Paulo Markun: No plano federal, nós estamos assistindo a uma transição inédita em termos de Brasil - e já se chegou a dizer aqui, talvez até pelos envolvidos, que é inédita em termos de mundo, ou pelo menos de país subdesenvolvido ou em desenvolvimento - que é o governo federal atual, Fernando Henrique, abrindo as portas para o novo governo e tudo sendo muito claramente negociado, conversado, discutido - aparentemente isso que a gente vê no noticiário. A senhora imagina que isso vá acontecer ou isso está acontecendo no governo do Rio de Janeiro?

Benedita da Silva: Eu não tive transição.

Paulo Markun: Eu digo agora quando a senhora entrega o governo.

Benedita da Silva: Eu não tive transição, vamos colocar isso. Eu não tive transição, tivemos alguns apagões, e informações não tivemos nenhuma, mas eu estou fazendo a transição do estado do Rio de Janeiro. Então, o meu secretário de controle Renê Garcia, [que] está na fundação Getúlio Vargas, é responsável pela transição no estado do Rio de Janeiro. [Estamos fazendo] os entendimentos necessários, não tem porque não fazer uma transição, não tem porque não abrir, verdadeiramente. Criamos um portal, o portal da transição, onde eles terão acesso às informações chamadas privilegiadas. E eu acredito que no dia seis de dezembro eu estarei entregando também já os relatórios de todas as secretarias para a governadora eleita.

Marcelo Godoy: Governadora, a senhora falou em apagões quando assumiu, eu não entendi...

Edna Roland: Seriam apagões nos computadores?

Benedita da Silva: É, apagões sim, tivemos apagões nos computadores, das informações que nós não tínhamos. Nós chegamos, e onde nós iríamos encontrar informações? Isso é muito difícil. A gente sabe que a transição, por mais transparente e aberta que ela seja, não dá a você condição de conhecer verdadeiramente todos os vícios da máquina, mas ajuda que você compreenda e toque, mas quando você não tem nenhuma informação...

[...]: Foram várias informações?

Benedita da Silva: Não deixaram nenhuma informação, porque a transição não foi feita e aí nós tivemos ainda um tempo para tomar conhecimento da máquina e poder trabalhar. Foi realmente... é realmente uma equipe muito competente que eu tenho, para poder dar conta dessas coisas, sem ter o tempo devido para uma leitura da população do que nós estivéssemos fazendo, então eu atribuo à minha equipe realmente o sucesso que nós temos hoje.

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: E começa aqui o terceiro bloco do Roda Viva, nesta noite com a governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva [...] Agora, governadora, vamos voltar à questão das cotas para as universidades, porque há várias perguntas de telespectadores a respeito do assunto e vou fazer fazê-las todas. Porque no fundo tem a ver com o mesmo assunto. Sérgio Silva, de Goiânia, vendedor, pergunta “quando a senhora diz afrodescendentes não ajuda a reforçar a separação?”; Marcelo Rodrigues, de São Paulo, empresário, pergunta “as cotas para negros nas universidades não podem representar um preconceito social, não tiraria dos negros a sensação de igualdade perante à Lei?”; Álvaro Benedito de Souza, de Pirituba, São Paulo, analista de sistemas, “quais seriam os critérios para definição de quem teria direito às cotas nas universidades?”; Fábio Hernandes, de Belo Horizonte, técnico, ”qual é o critério da senhora para definição de afrodescendentes?”; José Roque, de Salvador, “o que a senhora acha de dividir uma universidade pública meio a meio, 50% para a rede particular de 50% para a rede pública?”; e Jair Freire de Santana, de Vila Velha, diz o seguinte “com a cota para negros nas faculdades, o mercado de trabalho não fará um processo de seleção diferenciado com relação aos negros? Hoje os negros têm a oportunidade de estudar em escolas públicas, não seria melhor determinar cotas para alunos das escolas públicas nas universidades, independente da cor e da raça?"

Benedita da Silva: Isso nós já temos, está escrito na Constituição: todos são iguais perante a Lei, mas o tratamento não é o mesmo, não é? Agora, é claro que quando nós estabelecemos cotas... vamos falar de outra cota, que também foi um grande debate nacional e hoje a população brasileira aceita, a sociedade brasileira aceita com a maior naturalidade, que foi a política de cotas de gênero para participação nos partidos políticos no processo eleitoral. O Partido dos Trabalhadores foi o primeiro a ter cota mínima de 30% de mulheres na direção do partido, de mulheres candidatas. Hoje [há] muito mais naturalidade, mas foi debate, um debate nacional. As cotas são instrumentos para dar visibilidade à injustiça e à falta de inclusão de nós, negros brasileiros - a minha tradução é essa. Quando nós chamamos afrodescendentes, nós estamos falando de uma nova denominação, que é dada, mas eu até prefiro falar dos negros brasileiros, os afro-americanos, aí você vai encontrar toda a África e sua diáspora. Por isso é que se trata dos afrodescendentes, mas isso não implica, e eu já disse e vou repetir, na desqualificação que o preconceito tenta fazer no uso do instrumento da cota. Porque a cota garante, pura e simplesmente, que os negros tenham acesso àquele espaço universitário por ter passado pelo teste, não tem uma prova diferente para os negros. [Assim] o mercado de trabalho poderá absorvê-los depois de concluída a sua universidade, porque também não tem um estudo diferenciado para ele, vai ter que - se ele optou para ser médico, se optou para ser professor - ele vai ter as mesmas matérias pertinentes àquela cadeira.

Paulo Markun: A senhora não admite a possibilidade da cota para negros não [ser] justa? Porque tem gente - pelas perguntas dos telespectadores, por editoriais de jornais, por opinião das pessoas - tem gente que acha que não é justo. E acha, por exemplo, que existe sim uma cota nas universidades públicas, que é a cota para os ricos, já que os filhos da classe média e classe alta - mas basicamente na classe média, porque o filho da classe alta pode estudar no exterior se quiser - basicamente da classe média, que estuda em colégios particulares, dominam os vestibulares, depois de bons colégios e bons cursinhos, e todas as vagas ou 90% das vagas nas escolas públicas gratuitas. E os filhos da classe pobre estudam em escolas públicas e a eles restam as faculdades particulares. Não é esse problema que, digamos assim, está por trás dessa discussão das cotas? A senhora não enxerga nessa polêmica, algum outro viés que não seja o preconceito? Para a senhora quem é contra a cota, ou pelo menos quem acha que a cota desqualifica, é preconceituoso?

Benedita da Silva: Olha, eu não posso negar que não exista o preconceito, e por outro lado a ameaça, as pessoas sentem-se ameaçadas. Eu sempre estudei aqui, porque a deputada, hoje deputada estadual Jurema Batista [primeira deputada estadual negra do estado do Rio de Janeiro pelo PT e militante do movimento de mulheres negras], ela disse “a cota dos outros sempre teve e ninguém nunca reclamou”. Nós estamos agora reclamando a cota dos negros, e quando se reclama a cota dos negros, aí tem problema. Então, tem preconceito, é evidente, e eu não tenho nenhuma xenofobia, graças a Deus, encaro e faço esse debate pelo menos há 50 anos - não vou exagerar e dizer 60 anos, porque eu tenho 60 anos - mas a minha compreensão com essa relação do preconceito começou lá na escola, foi na escola que eu comecei a ser discriminada, evidentemente eu posso dizer que já batalho há 53 anos dos meus 60 anos, de combate ao preconceito e ao racismo. Nós temos que fazer esse debate com mais serenidade, quando nós tivemos oportunidade para todos, no ponto de vista social, nós ainda iremos identificar preconceito racial. Existe o preconceito social e o preconceito racial, e nessa questão das cotas estão realmente inseridos os dois preconceitos: o social e racial.

Edna Roland: A imprensa noticiou, governadora, a possível criação de uma secretaria nacional de combate ao racismo no governo Lula, eu gostaria de saber se a senhora teria informações que possam confirmar a criação dessa secretaria, e qual seria a sua opinião: se além de medidas de combate ao racismo, seria desejável que essa secretaria fosse para além disso, e de fato pensasse em medidas de promoção da igualdade, políticas públicas que possam promover o desenvolvimento econômico e social da população negra no Brasil?

Benedita da Silva: Olha, eu não tenho realmente conhecimento, Edna. O Partido dos Trabalhadores tem uma secretaria nacional de combate ao racismo, ela formula políticas para o partido, que por sua vez indica aos nossos governantes, sejam municipais ou estaduais, para que implementem nos seus estados e nos seus municípios. Eu acredito que nós, que temos um programa de combate ao racismo e estaremos implementando a nível nacional; se por secretaria ou não, eu não tenho conhecimento. Posso aqui expressar a minha opinião, eu penso que essa questão do combate ao racismo deve permear todos, todos os ministérios, porque...

Edna Roland [interrompendo]: E isso seria o que no seu governo se chamou de transversalidade?

Benedita da Silva: Exatamente! Foi o que eu fiz no estado do Rio de Janeiro, não tenho uma secretaria, mas tenho um programa, um programa que é executado por todas as secretarias. Todas as secretarias têm o papel de combate ao preconceito e à discriminação, e as ações afirmativas, elas são realmente tocadas por todas as secretarias, com esse cuidado de olhar a questão étnica, a questão de gênero também, nas políticas que vão implementar, porque só assim nós vamos aproximando o que eu chamo da eqüidade. Porque eu tenho muito medo de que a gente tenha um instrumento de que nos leve a um gueto, mesmo que com recursos que se possa ter para isso, mas nós precisamos ampliar, nós precisamos estar em todos os lugares e compreender que é através dessas políticas igualitárias é que nós alcançaremos o nosso objetivo. Então se nós temos uma situação que se identifica, por exemplo, na área da saúde, eu não tenho que tratar fora da área de saúde, então é o Ministério da Saúde que eu quero tratar; se tem também relacionado à educação eu não quero tratar num outro ministério ou numa outra secretaria, eu quero tratar exatamente naquele ministério. Eu penso que dessa forma nós chegaremos lá.

Edna Roland: Talvez caberia a essa secretaria o papel de formulação e coordenação das políticas que fossem desenvolvidas pelos diferentes ministérios e secretarias que compõem a administração federal. Poderia ser talvez esse o papel?

Benedita da Silva: Se a secretaria for uma secretaria que formule essa política ou uma secretaria com status de ministério, com os recursos próprios para implementação dessa política - segundo o Lula, ele disse que vai cobrar dos ministérios que as políticas sejam executadas e que elas sejam políticas que tenham suas etapas, e essas etapas serão cobradas - pode ser que consigam. Eu realmente não pensei, porque tenho o pensamento voltado exatamente para ter essa política permeando, com compromissos, com recursos, todos os ministérios.

Sérgio Lirio: Governadora, voltando ao tema da segurança, no auge dos problemas que a senhora enfrentou com o crime organizado, o governo federal compôs e mandou para o estado uma força-tarefa. Eu queria que a senhora me dissesse qual a avaliação que a senhora faz desse trabalho, e que papel o policial militar e o governo federal têm que ter na ajuda aos estados no combate ao crime organizado?

Benedita da Silva: Eu tenho colocado que a nossa política de segurança, é uma política que não abre mão de ter o governo federal, porque a questão de segurança não é uma questão de governo, é uma questão de Estado, principalmente quando se identifica as conexões internacionais existentes nesses traficantes que hoje estão em São Paulo, no estado do Rio de Janeiro. Não vou abrir mão da força de inteligência da nossa aeronáutica, da nossa marinha, do nosso exército, a serviço do combate ao crime organizado, no que diz respeito ao tráfico de armas e ao tráfico de drogas. E a força-tarefa, ela foi uma força, é uma força, altamente limitada, ainda na execução de ações no estado do Rio de Janeiro, mas é importante para o início de um diálogo e de uma relação que não se tinha anteriormente com o governo federal. Eu não fico procurando quem é o responsável, quem é o culpado, eu estou procurando agregar, somar, para que as nossas ações no estado do Rio de Janeiro possam servir como um exemplo de política a ser aplicada na relação do estado com governo federal, é só isso. Nós temos um sistema que não recupera, um sistema caótico, que é o nosso sistema penitenciário; nós temos o treinamento, o aperfeiçoamento dos policiais - sejam eles militares e civis, da polícia civil, da polícia rodoviária, da polícia federal. Nós estamos precisando ter um investimento na qualidade, na qualificação, e ter treinamento para que eles possam manusear hoje os instrumentos mais sofisticados de combate ao crime organizado. Sem ter uma política voltada para dentro, que realmente há uma política com os nossos policiais, e uma para fora, que eu chamo de política de ação preventiva, e aquela repressiva, fica extremamente difícil, nós vamos ficar “enxugando o gelo”, é isso que eu tenho colocado. Então, essa força tarefa tem de ser uma coisa para valer, tem que ser uma ação que realmente acione a inteligência do governo federal, através do exército, da marinha e da aeronáutica.

Marcelo Godoy: Os resultados da força-tarefa têm sido satisfatórios, pelo menos até agora, governadora, ou a senhora acha, por exemplo, que essa experiência deve ser de alguma forma revista, de alguma forma ampliada, talvez com a participação de mais agentes federais como, por exemplo, prevê o plano de segurança pública do presidente Lula?

Benedita da Silva: Deve ser ampliada, nós não podemos abrir mão de nenhuma ação que possa ajudar a compreender e a combater o crime organizado. Eu estou acionando a cada momento o governo federal e gostaria que a força-tarefa tivesse realmente uma eficácia maior, há de se considerar também que é muito curto o tempo que nós temos.

Marcelo Godoy: A senhora não acha que se fez isso muito tarde no Rio de Janeiro, que talvez o governador Garotinho devesse ter pedido isso para o governo federal antes, por exemplo?

Benedita da Silva: Bom, ele deveria trabalhar com outro critério, até porque nós tínhamos um programa na área de segurança, no início do governo Garotinho, com o Luiz Eduardo Soares [sociólogo e professor que coordenou a área de segurança pública do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000] coordenando, depois o Luiz Eduardo saiu e a sua saída também teve uma modificação nesse programa. O que nós fizemos agora nesses oito meses é recuperar, com a ajuda inclusive do Luiz Eduardo e do Roberto Aguiar, que também trabalharam no programa de segurança do Lula, para que pudéssemos ajudar a implementar algumas dessas políticas no estado do Rio de Janeiro.

 Marcelo Godoy: A senhora está dizendo que os benefícios desses programas vão ser gozados pela futura governadora, pela Rosinha, é isso?

Benedita da Silva: Eu quero crer que nós continuaremos o treinamento, a nova relação que se tem com os policiais civis e militares no estado do Rio de Janeiro; nós temos hoje um segmento muito jovem dentro da polícia, e que tem demonstrado uma vontade enorme, a sua capacidade, a auto-estima, nós temos trabalhado a valorização desses servidores do ponto de vista financeiro, a gente conversa muito; eu tenho colocado para as corporações, tanto civil como militar: dinheiro não temos, nós temos um bom papo, então vamos conversar, vamos treinar, vamos trabalhar. E tenho demonstrado que eles são bons policiais, na sua maioria, e que deve ter um investimento maior nisso.

Paulo Markun: A Bíblia diz que "no princípio era o verbo" [risos]. Então, eu queria mudar um pouquinho o eixo e dizer o seguinte: a senhora, ao contrário do ex-governador Garotinho, a senhora tem uma atuação, ou digamos, uma crença religiosa clara e nítida - até do ponto de vista mais amplo, semelhante a do governador Garotinho, se for dividir entre católicos e protestantes, se a gente for seguir essa visão ortodoxa - mas no entanto, a senhora não utiliza isso na sua prática política. Mas não é isso que eu queria perguntar, o que eu queria perguntar é o seguinte: a crença religiosa da senhora tem uma severa crítica à vaidade, mas a senhora é vaidosa, não é?

Benedita da Silva: E quem não é? [risos]. Se vaidade é você andar limpo, arrumadinho, caprichada, eu quero ser. Até porque eu tive oportunidade de ser outra coisa, me faltou muita coisa na vida. E hoje que eu tenho a oportunidade de fazer, eu quero fazer com prazer, até porque é bíblico, está escrito na minha bíblia que é para botar a melhor roupa para ir para casa de Deus. Eu tenho feito isso, agora que posso, que tenho, eu tenho feito isso. A questão da religiosidade para mim é uma coisa muito séria, não que a política não seja séria, mas eu não...

Paulo Markun [interrompendo]: Mas preocupa a junção entre as duas coisas?

Benedita da Silva: Mas eu não tenho nenhuma contradição entre fé e política na minha vida. Eu já sou evangélica há 35 anos, eu fui para a igreja tinha 26, estou com 60 anos de idade. Todo mundo sabe que eu sou evangélica, eu sempre disse isso e até brinco que sou “PTcostal” eu tenho dito isso, é fogo puro, tanto a igreja pentecostal [uma das divisões das igrejas evangélicas que tem a ver com a crença nas manifestações do Espírito Santo, da Santa Trindade] quanto o PT. Mas é importante que as pessoas saibam e eu tenho dado o meu testemunho de como Cristo mudou a minha vida, e como a política tem me feito bem. Eu não misturo essas coisas, e até [agora] acho que tenho tido êxito. Às vezes sou cobrada, é evidente que às vezes eu sou cobrada, ainda porque a Igreja, ela hoje, também tem muito orgulho e nisso eu tenho uma ponta de vaidade. Eu sou mesmo assim, Deus me escolheu para coisas difíceis, porque eu fui uma das primeiras da Igreja [evangélica] no Partido dos Trabalhadores, uma coisa mesmo séria. E eu fui eleita, então, a princípio, era muito difícil a participação da Igreja, e sendo mulher mais ainda. Hoje, eu vejo a Igreja participando e não fazendo mais aquelas cobranças que me fizeram, e vejo os evangélicos participando desse processo. A Igreja Católica não, porque eu sempre estive com a Igreja Católica na[s] [atividades da] Pastoral. Eu sou politicamente formada nas pastorais [organizações internas à Igreja Católica com forte atuação social e política]. Então, sempre tive essa convivência, e a Igreja sempre teve essa prática, não a Igreja corpo de Cristo, a Igreja instituição. Mas na igreja evangélica a coisa foi muito dura para mim também, no princípio. Me escolheram no PT, por ser do PT, e ser uma das primeiras a ser eleita. Hoje não, hoje já tenho muita gente disputando e aí tem uma coisa que a Igreja precisa pensar um pouco, é aquela história: “irmão vota em irmão” [irmão - como se chamam, entre si, os membros das igrejas evangélicas] e eu não, eu sempre questionei isso, quer dizer, irmão deve votar até no irmão, mas se conhecer o seu projeto, seu programa, essa coisa. E eu, por fazer esse discurso de deve, eu perco, porque o outro chega lá na igreja “irmão vota em irmão e pronto e acabou”, e eu sobro. Uma observação que é boa para concluir e eu lhe dou atenção imediatamente é o fato de [haver] duas candidatas evangélicas no estado do Rio de Janeiro e aí eu perguntaria...

[...]: Irmão vota em que irmão?

[risos]

Marcelo Beraba: Governadora, agora o PT do Rio está pacificado, é paz e amor e tudo mais. Mas a senhora foi acusada [pelo] próprio PT de fazer uso parecido, semelhante, quando teve aquela questão das filiações no Rio de Janeiro, no núcleo evangélico, e tudo mais. Naquele momento, a acusação que pesava sobre a senhora era exatamente essa, de que estavam se formando núcleos evangélicos, filiações fora do...

Benedita da Silva [interrompendo]: E que não se comprovaram mais adiante, foi realmente o calor de uma disputa, quem é que tem núcleo evangélico apoiando não sei o quê e etc...

Marcelo Beraba: Elegeu um vereador com esse núcleo, não foi?

Benedita da Silva: A bandeira não foi o núcleo que elegeu, pelo amor de Deus! A gente vai dizer que um núcleo do PT elege um candidato do PT? Não elege, quem elege é todo partido, toda uma história; quem não tem trabalho não pode ser eleito no PT. O PT é um partido difícil, é um partido que tem programa, é um partido que tem idéia. Eu sou 35 anos evangélica e agora vocês puderam ver o resultado no estado do Rio de Janeiro, que eram duas evangélicas. O que eu tenho que ela não tem? Ué, por que eu não canalizei o maior número dos votos dos evangélicos se irmão vota em irmão?

Paulo Markun: A senhora tem resposta para isso?

Marcelo Beraba: O cheque-cidadão ajuda a explicar isso ou não?

Benedita da Silva: Eu não sei, eu só quero lhe dizer que nós trabalhamos com preconceito. Nós, que trabalhamos com o preconceito, nós temos que entender que ele existe em tudo quanto é parte - no PT, fora do PT, e ele pode ser preconceito de gênero, racial, religioso – e eu tenho muito cuidado. O cuidado que eu sempre tive foi exatamente para não ficarem discriminando os evangélicos, porque ninguém pergunta para os outros se ele é espírita, se ele é católico, mas pergunta ele é deputado, ele é senador, ele é governador, por que fazer com os evangélicos? Eu sou contra isso, eu brigo também por isso, essa coisa eu realmente faço, e faço dentro do meu partido. Essa coisa de ficar rotulando, porque é evangélico ou não, porque nós temos católicos no PT, nós temos ateus, nós temos os cristãos, tudo dentro do partido, porque o partido não é uma igreja.

Paulo Markun: Governadora, nosso tempo está acabando, e eu faço a última pergunta que é de Alzira Rufino, presidente da Casa da Cultura da Mulher de Santos, em São Paulo, que, como vários telespectadores, parabeniza a senhora e a classifica como um modelo de ética e coragem na política, mas pergunta “o que significa hoje a consciência negra, onde precisamos avançar?”

Benedita da Silva: Alzira, eu quero dizer que a consciência é nossa, a consciência você não faz, você tem essa consciência. Eu acho que a consciência negra, para mim, é vista de uma forma para outros, certamente será vista de forma diferente. E hoje o que falta realmente, na minha consciência negra, é que haja mais ousadia de nossa parte, que haja mais unidade entre nós, no nosso propósito. Porque hoje ainda ouvir o que nós estamos ouvindo por conta de uma política de cotas, sendo a maioria de uma população de um país, tem nos negado praticamente tudo, e essa consciência precisa estar mais aguçada, dos nossos direitos, e buscar mesmo esses objetivos que não são apenas nossos, são para nós, para nossos filhos, são para nossos netos, no meu caso.

Paulo Markun: Governadora, muito obrigado, pela sua entrevista. Eu gostaria de agradecer a participação dos nossos colegas aqui de bancada, a você que está em casa, lembrar que sempre nosso telefone, nosso fax e nosso e-mail está aí à disposição. Como de costume todas as perguntas serão remetidas ao entrevistado, muitas delas não são possíveis de serem respondidas aqui, e convidar você para estar aqui no próximo Roda Viva, na segunda-feira dez e meia da noite. Uma ótima semana e até segunda.

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco