;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Lester Brown

24/1/2000

O influente pensador do movimento ambientalista internacional fala da necessidade de reestruturação da economia global em função da nova realidade ambiental e diz que, num futuro próximo, a vantagem será daqueles que controlam terras e água

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

Paulo Markun: Boa noite. Ele diz que o mundo tem uma preocupação obsessiva com o presente e que nós só estamos atentos aos índices econômicos. E, por isso, perdemos o senso de responsabilidade em relação ao futuro. Estamos nos comportando como se não tivéssemos filhos. O Roda Viva entrevista esta noite Lester Brown, um dos mais influentes pensadores do movimento ambientalista internacional. Ele é presidente e fundador do World Watch Institute, entidade não governamental sediada em Washington, dedicado à observação, pesquisa e troca de conhecimentos científicos sobre as questões do meio ambiente. Lester Brown é formado em ciências agrícolas, com mestrado em economia agrícola e administração pública. Já atuou como analista e assessor de órgãos do governo americano na área de agricultura até 1974, quando fundou o World Watch. É autor de quase duas dezenas de livros, além de revistas e publicações anuais como o States of the World, editado em várias línguas e que se tornou uma espécie de “bíblia do movimento ambiental internacional”. Para entrevistar Lester Brown, nós convidamos: João Paulo Capobianco, biólogo, ambientalista e coordenador do Instituto Socioambiental e pesquisador da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]; Marcelo Leite, repórter especial da Folha de S. Paulo. Fernando Rios, jornalista, publicitário e consultor de empresas na área de comunicação e meio ambiente. O físico J. W. Bautista Vidal; Lia de Souza, coordenadora de pauta do programa Repórter Eco da TV Cultura. Regina Sharf, repórter de meio ambiente do jornal Gazeta Mercantil e o economista Walter Belik, coordenador do Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Hoje você não pode participar do programa porque ele foi gravado [...] Boa noite...

Lester Brown: Ok.

Paulo Markun: No seu trabalho Estado do mundo, recentemente publicado, há um capítulo que fala sobre as perspectivas de se criar uma economia sustentável, capítulo número dez. E ali é citada a frase de H. G. Wells [(1866-1946), escritor britânico, pioneiro da ficção científica. Autor de clássicos da literatura como o romance A máquina do tempo, O homem invisível (1897), A guerra dos mundos (1898), entre outros. Também escreveu ensaios sobre o futuro da sociedade, tais como O esboço da história (1920) e O trabalho, riqueza e felicidade humana (1932)] que diz o seguinte: “a história humana se tornou cada vez mais uma corrida entre a educação e a catástrofe”. E a sensação que eu fiquei lendo esse fantástico relatório, extremamente cheio de dados e de avaliações sobre a nossa situação ambiental é de que, no que toca ao retrato da perspectiva da catástrofe, o relatório é extremamente denso, completo. [Mas] a sensação que eu tenho [é] que fica faltando entender como a gente vai evitar que, nessa corrida entre catástrofe e educação, a gente perca para a catástrofe. Em outras palavras, toda hora que vai se analisar as soluções propostas, as alternativas parecem depender de milhares de pequenas iniciativas e não de uma solução única - e eu estou me estendendo na pergunta, na verdade. Quando a gente sabe que, por trás de boa parte desse desrespeito ao meio ambiente, existe um objetivo maior que é ganhar dinheiro; são empresas interessadas em ganhar dinheiro, que desrespeitam normas de bom senso, muitas vezes em outros países - aqui no Brasil inclusive - normas legais que existem para ganhar dinheiro. Então, a pergunta é essa: como é possível evitar a catástrofe e convencer essas empresas de que é possível ganhar menos dinheiro e durar mais tempo a nossa humanidade?

Lester Brown: A questão não é lucrar menos, mas como construir uma economia em que o progresso econômico possa continuar. Se olharmos para o mundo agora, como fizemos ao editar o relatório Estado do mundo,  o que fazemos é um check-up anual da Terra, o mesmo check-up que você faz quando vai ao médico. O que vemos, nos 17 anos em que editamos o relatório, é que, a cada ano, a saúde do paciente deteriora. Vemos os sinais da deterioração: florestas desaparecendo, a pesca está acabando, espécies desaparecendo, o nível do mar subindo, crescimento populacional contínuo, erosão do solo, a vegetação morrendo. E a lista continua. E sabemos que, se essa tendência continuar, os sistemas de suporte econômico irão... Se a deterioração continuar, a economia também vai piorar. Hoje, nós estudamos sítios arqueológicos de antigas civilizações que seguiram uma rota econômica ambientalmente insustentável. No Oriente Médio, a antiga civilização da Mesopotâmia, a mais avançada da época – eles inventaram a escrita, tinham a linguagem escrita, deviam tratar aquilo como tratamos a internet, as primeiras cidades bem projetadas – era uma civilização avançada, baseada na irrigação. Mas eles cometeram um erro no sistema de irrigação, eles não o projetaram para evitar a elevação dos lençóis freáticos. Isso resultou na inundação e no salgamento das Terras, e o suprimento de alimentos começou a cair. E, hoje, a região onde essa civilização prosperou é um deserto. Podemos pensar em outras civilizações: os Maias, na América Central, onde agora fica a planície da Guatemala. Havia mais gente lá no ano 900, do que há atualmente. Uma civilização florescente que se acabou aparentemente devido ao desflorestamento e erosão do solo. Há outros exemplos. A história é bem clara. Se começarmos a destruir os sistemas de suporte ambiental, quer sejam eles sistemas de irrigação, florestas ou solo, teremos problemas. Outro exemplo dramático é o norte da África. O norte da África já foi o celeiro de Roma. Os romanos comiam o trigo produzido lá. Foi uma grande região fornecedora de alimentos. E devia ter um solo altamente fértil, considerando a tecnologia disponível na época. Hoje é um grande deserto. Não é mais um celeiro para o mundo.

Paulo Markun: Mas tudo isso não reforça justamente a idéia de que caminhamos para uma catástrofe. O que eu queria entender [é] como a gente pode acreditar que não chegaremos a essa catástrofe, que isso não vai acontecer, na medida em que cada produtor individual, cada grande empresa, às vezes, um pequeno empresário de um país pouco desenvolvido, ele está pouco interessado em saber se as florestas estão se acabando. O que ele quer é resolver o problema imediato dele, quer dizer, essa consciência do longo prazo e essa visão de que as coisas precisam mudar, porque senão iremos "para o buraco", como se diz, existe em muitas pessoas, mas ela não determina as nossas decisões, as decisões econômicas e principalmente as decisões políticas.

Lester Brown: Esta é uma das responsabilidades do governo. Historicamente, quando a economia global era muito pequena, comparada com o tamanho da Terra, o crescimento era bom. Não havia problemas. Mas quando chegamos perto dos limites das florestas, da pesca, dos solos, recursos hídricos, então, temos de replanejar o sistema. E o governo deve desempenhar um papel importante. Nós achamos que o instrumento político mais importante que os governos têm para reestruturar a economia – por exemplo, para reduzir as emissões de carbono – é reestruturar o sistema tributário. Hoje, o governo tributa fortemente a renda. A renda das pessoas e das empresas. Mas não se deve taxar tudo indiscriminadamente. As pessoas devem trabalhar, elas devem economizar, as empresas devem ganhar dinheiro. O que não queremos são atividades ambientalmente destrutivas. Emissão de gás carbônico, que afeta o clima da Terra, o descarte de lixo tóxico, geração de lixo, destruição de florestas, destruição de espécies animais e vegetais, da diversidade biológica do planeta. Precisamos reestruturar o sistema tributário. Vamos taxar atividades ambientalmente destrutivas, desencorajando-as, e encorajar atividades ambientalmente construtivas. Você está certo; empresas individualmente, por si mesmas, não conseguem criar uma resposta eficaz. O governo tem de estar envolvido. Mas as empresas e os indivíduos, como eu e você, podem ajudar o governo a realizar essas mudanças.

Paulo Markun: Regina.

Regina Sharf: O Terceiro Mundo quer consumir, hoje ele consome muito abaixo das suas necessidades, mas se ele acompanhar o padrão de consumo dos países ricos, provavelmente vai ser a destruição final do planeta. Como equilibrar essa questão, quer dizer, como elevar o nível [de consumo] da população sem que isso seja excessivo?

Lester Brown: A questão não é o quanto consumimos, mas como produzimos o que consumimos. Posso dar vários exemplos. Este é um exemplo de fora da comunidade ambiental. Nos EUA, em Atlanta, Geórgia, há um grande fabricante de carpetes. Ele produz carpetes para uso comercial, não residencial, para escritórios e sedes de corporações. O dono dessa empresa de carpetes – que tem fábricas em 9 países e vende em mais de 100 países, é uma enorme empresa – ele começou a se preocupar com questões ambientais, e pensou: “O que posso fazer, na minha empresa, para mudar o sistema, para torná-la ambientalmente sustentável, para criar um sistema econômico que permita que o progresso econômico continue?” Ele disse: “Não venderemos o carpete. Venderemos o serviço. Uma empresa nos contratará para acarpetar seus escritórios. Digamos, por 10 anos. Nós faremos a manutenção. Se o carpete se desgastar, nós o trocaremos. Mas o carpete voltará para a fábrica - quer ele seja de náilon, poliéster - ele será decomposto, reprocessado, refeito, e voltará a forrar um outro chão”. Essa mudança elimina a necessidade da matéria-prima, pois sempre se usa o carpete no sistema. E nada vai para o lixo, não há desperdício. Ele achou um modo de fechar o ciclo. Assim, não é uma questão de usarmos o carpete, mas de como fabricamos o carpete que usamos. Podemos acarpetar casas por toda parte, não importa, com carpetes muito bons, se o fizermos de um modo ambientalmente sustentável. E o que ele fez por essa economia – e seu objetivo é não perder uma única molécula do carpete – é que ele fechou o ciclo. Fica tudo dentro do ciclo. Basicamente, é nisso que temos de pensar, em como fazer isso para a economia global. Como reestruturá-la para atender nossas necessidades, mas sem agirmos de maneira autodestrutiva no processo, como acontece atualmente.

Regina Sharf: O grande gerador de empregos, então, seria o setor de serviços, não tanto a indústria, a produção de bens materiais?

Lester Brown: Continuaria sendo a produção, mas utilizando materiais reciclados, não matéria-prima virgem. Pode haver um uso maior da mão-de-obra, porque muitas indústrias voltadas para a reciclagem usam mais mão-de-obra e menos matéria-prima do que as que temos atualmente. Um dos motivos pelos quais o atual governo alemão está reestruturando seu sistema tributário, reduzindo o imposto de renda e aumentando o imposto energético, é para aumentar a eficácia energética da economia e para estimular a criação de fontes de energia alternativas como a energia eólica, que está se tornando importante no norte da Alemanha. A economia ambientalmente sustentável, que podemos ver, sabemos como é, podemos descrever com detalhes, é voltada para maior uso de mão-de-obra. E também é uma grande oportunidade de investimento. Se reestruturarmos a economia global atual, voltada para o combustível fóssil, o automóvel e o descarte, tornando-a uma economia ambientalmente sustentável, ela não apenas será muito mais agradável, mas também será uma grande oportunidade de investimento. A maior oportunidade da história. Nunca houve nada igual.

Paulo Markun: João.

João Paulo Capobianco: Doutor Lester, mas essa questão... Voltando ainda, insistindo um pouco nessa pergunta da Regina; na verdade, hoje, os Estados Unidos produzem 25% de todo o carbono jogado na atmosfera do planeta. Portanto, um país com uma população relativamente pequena é responsável por 25% da poluição. Isto significa que esse país tem um padrão de consumo extremamente alto. E a resposta que o senhor deu, até agora, trata de mudanças no processo de produção. Mas a pergunta que nós nos colocamos, a cada dia que passa, é se bastará uma mudança no processo de produção ou [se] será necessária [haver] uma mudança do padrão de consumo. Ou seja, uma redução do consumo, uma redução da produção, para que outros países, emergentes, países do Terceiro Mundo, possam também produzir e poluir. Porque será uma conseqüência da sua produção, por mais bem feito, do ponto de vista técnico, que isso ocorra, haverá uma emissão de carbono, por exemplo, isso é inevitável. Então, de que forma se pode buscar uma ação política que permita aos países que mais produzem, que mais consomem, reduzir esse padrão, para que outros países possam produzir mais, ter melhor condição de vida e o equilíbrio do planeta ser alcançado?

Lester Brown: É verdade que os EUA, que têm 5% da população mundial, emitem pelo menos 25% do gás carbônico. Os EUA, sozinhos, desequilibram o sistema climático da Terra. A questão não é quanta energia consumimos, mas como a produzimos, de onde ela vem. O interessante, agora, é que nos EUA há um grande crescimento da energia eólica. O que teremos a longo prazo é que a economia atual, baseada nos combustíveis fósseis, será substituída por uma economia solar de hidrogênio. E, por solar, eu defino um grupo que inclui combustíveis de biomassa, madeira, álcool, até energia eólica, painéis solares, etc. O que vemos, agora, é o seguinte: o motivo para o uso dos combustíveis fósseis é que, quando compramos um litro de gasolina, só pagamos parte do custo do uso da gasolina. A extração do petróleo, o refinamento, a distribuição para os postos. É isso que pagamos. Não pagamos pela poluição, problemas de saúde, danos causados pela chuva ácida, mudança climática e danos ao sistema climático global. O que um imposto do carbono faria seria incluir os custos da queima do combustível. Ao comprarmos um litro de gasolina, pagaríamos o total, não apenas o custo direto. Assim que isso acontecesse – por isso é importante reestruturar a tributação – assim que isso acontecesse, todo o investimento em energia começaria a mudar. Atualmente, há um grande crescimento da energia eólica: na década de 1990, vem crescendo 22% ao ano. O carvão cresce 0%, petróleo e gás natural, 2% cada. Mas a energia eólica cresce muito rápido. E, em muitos lugares, tem um custo menor que o carvão. As novas turbinas são muito eficientes. E há um enorme potencial. O Departamento de Energia dos Estados Unidos fez um levantamento nacional de recursos eólicos. O governo americano concluiu que três estados: Dakota do Norte, Dakota do Sul e Texas, têm potencial de energia eólica suficiente para atender a demanda de energia de todo o país. Quando conseguirmos energia barata do vento, nós a usaremos para eletrolisar a água e produzir hidrogênio. O hidrogênio será o combustível básico. Por isso falamos em uma economia solar de hidrogênio. O interessante é que até empresários de petróleo estão discutindo a necessidade de mudar de uma economia baseada no combustível fóssil para uma economia baseada no hidrogênio. Estão começando a ver isso. Fiz uma palestra na conferência anual de empresas de petróleo e falei sobre essa transição. Mas não sou apenas eu. Até membros da indústria já falam nisso. A questão não é quanta energia produzimos e utilizamos, mas como a produzirmos, se é ou não prejudicial, em termos ambientais. O interessante do vento é que não altera o clima da Terra, não gera nenhum poluente. Este é o caminho do futuro. Não é necessariamente o quanto consumimos, mas como produzimos o que consumimos. E se produzirmos de um modo ambientalmente sustentável, então, todos poderão ter um bom padrão de vida e um estilo de vida saudável.

Paulo Markun: Bautista Vidal.

J. W. Bautista Vidal: Se nós levarmos em consideração essa hipótese que a necessidade de ganhar dinheiro leva irremediavelmente à catástrofe, nós estamos admitindo que a humanidade tem uma tendência suicida, e que os agentes econômicos são delinqüentes. Eu não acredito nessa hipótese. Eu acredito mais na análise, na publicação do World Watch [The world watch reader (1991)] de 1990, Lester Brown faz a seguinte afirmação...

Paulo Markun: 1980... 80 não é?

J. W. Bautista Vidal: Não, 90... "Três sistemas biológicos - as terras cultiváveis, as florestas e os campos - sustentam a economia mundial", Lester Brown; e vai mais longe dizendo: “São as mudanças nas dimensões do produto fotossintético, ou seja, das plantas, da biomassa, que determinam, em última instância, quantos de nós a Terra pode sustentar”. E Lester Brown diz mais ainda. “O processo de fotossíntese, que é comum em todos esses sistemas biológicos, é a capacidade que os vegetais possuem de fazer uso da energia solar, graças a qual combina água e dióxido de carbono de modo a produzir biomassa”, carboidrato. Eu acho que com isso a equação energética e ambiental do planeta, está equacionada do ponto de vista da ciência. Se há outros ingredientes, eu não tenho motivação para analisá-los, porque isso aqui é física rigorosa, é a natureza como ela é. Bom, nesse contexto, na sua própria análise, nós temos a grande fonte de energia que é o Sol, que é o reator, a fusão nuclear; que dificilmente o homem conseguirá administrá-lo, mas que existe. E tem sua influência maior nos trópicos; e se nós adicionarmos que o Brasil tem 22% da água do planeta, e um continente vazio, qual é a influência e a responsabilidade que o povo brasileiro e a classe dirigente brasileira tem com essa eventual catástrofe, sobre a economia mundial, sobre a vida e, sobretudo o que representa as civilizações e o que vale a pena viver por isso?

Lester Brown: O Brasil, com sua enorme extensão territorial, tem uma abundância de energia solar. Há muita luz solar no Brasil. Isso pode ser convertido em energia, em energia bioquímica, que nós e outros seres vivos podemos usar pela fotossíntese. Esse processo fotossintético também pode gerar energia na forma de álcool, cana-de-açúcar e álcool combustível. Essa mesma energia pode ser usada por painéis solares para gerar eletricidade, e a mesma energia solar gera diferenciais de ventos, diferenciais térmicos que geram o vento. Em termos de riquezas energéticas, o Brasil é um país muito rico em energia renovável. Enquanto o Sol – esse reator nuclear – existir, o Brasil será rico em energia. A questão é como captar essa energia e como se afastar dos combustíveis fósseis que afetam o clima da Terra e geram poluição em São Paulo e partir para as fontes de energia renováveis. Esse é um desafio para o Brasil e para o mundo. O interessante, agora, é que podemos ver as tecnologias, por exemplo, a energia eólica. Há muitas fazendas nos EUA, mais recentemente, em Iowa, onde a empresa local criou fazendas de vento. Fez isso nas plantações de milho. As fazendas continuam produzindo o milho, mas, ao mesmo tempo, têm turbinas para produzir eletricidade. Elas produzem milho e eletricidade no mesmo local; à leste de São Francisco cria-se gado há muito tempo. Agora, também há turbinas eólicas. Eles vendem carne e eletricidade. Isto está se tornando um novo modelo. E os que possuem terras, em especial fazendeiros, poderão gerar eletricidade junto com sua produção. Estamos vendo um novo modelo de energia. Nos EUA, no Texas, há uma empresa de gás chamada Enron. Agora é uma empresa global, mas eles têm campos de gás natural, têm dutos no nordeste e meio-oeste dos EUA e fornecem gás natural. Mas eles compraram duas empresas de energia eólica e planejam usar a eletricidade do vento para eletrolisar a água e produzir hidrogênio e aproveitar a infra-estrutura utilizada para o gás, usando-a para o hidrogênio. E eles se vêem como parte da transição da economia do combustível fóssil para a economia da energia solar de hidrogênio do futuro. Assim, já estamos vendo nas empresas, executivos que olham para o futuro, começando a reestruturar a economia e investindo em novas fontes de energia.

J. W. Bautista Vidal: Mas o hidrogênio não existe na natureza. Portanto, ele não é uma fonte de energia. Por que excluir a fórmula mais prática, mais direta da biomassa dos trópicos? Porque essas soluções podem ser úteis para os Estados Unidos, que não têm energia solar em grande quantidade, nem tem água e nem tem território. Então a solução tropical pode ser uma solução muito mais vantajosa, inclusive para os Estados Unidos, tendo em vista que é uma fonte absolutamente direta de energia e, do ponto de vista da física, absolutamente não competitiva em termos da natureza.

Lester Brown: Em primeiro lugar, não podemos destruir os sistemas biológicos naturais. Em segundo lugar, a eficiência da conversão de energia solar para energia utilizável é menor com a fotossíntese, muito menor que com os painéis solares ou energia eólica. O interessante da energia eólica é que ainda podemos aproveitar a terra. Captamos o vento no alto, assim, captamos as duas fontes de energia. Esse é o sistema mais eficiente. E esse deve ser o nosso objetivo.

[intervalo]

Paulo Markun: Ok. Estamos de volta com o Roda Viva esta noite entrevistando Lester Brown, que é o presidente do World Watch Institute, é uma organização não governamental, sediada em Washington, tem várias publicações, tem um site na internet no Brasil que é: www.worldwatch.org.br. Também há um telefone pelo qual é possível entrar em contato, está aí no vídeo, (0XX71) 315-1458 e tem essas publicações aqui, esta revista é bimestral, já está no volume 12 aqui e nesta aqui Estado do mundo que é a mais recente edição, de 1990, que apresenta aí uma avaliação da situação do relatório do World Watch sobre a sociedade em que nós vivemos e a situação ambiental. Eu queria aproveitar aqui a prerrogativa do entrevistador, para começar com uma questão, que eu sei que vai acabar ficando para o escanteio, porque as pessoas aqui, cada um tem o seu interesse específico e nunca ninguém fica satisfeito com as explicações dos nossos entrevistados. Isso é uma regra de um programa de uma hora e meia, é natural...

[risos]

Paulo Markun: E a minha questão é a seguinte: a avaliação que vocês fazem das mudanças necessárias na economia e na política, tem um peso muito grande das organizações não governamentais. O relatório apresenta vários dados sobre o crescimento dessas organizações, o chamado terceiro setor, que aqui no Brasil também cresce. Mas eu volto a insistir, a sensação - e na primeira pergunta o senhor falou da importância do papel dos governos nisso - a sensação que se tem, quando se fala muito em organizações não governamentais e terceiro setor, como sendo a saída para grandes mudanças na nossa sociedade, é de que isso depende menos do governo. Pelo que eu entendi da sua primeira resposta, embora existam organizações não governamentais e o crescimento dessas organizações, vocês não estão pregando aí o fim do papel dos governos nessas mudanças maiores da economia e do meio ambiente?

Lester Brown: Os governos têm um papel central e, quanto mais complexo o mundo se torna, mais exigente é esse papel. As ONGs cresceram para ocupar o vazio deixado por governos em vários países do mundo. E o crescimento do setor dessas organizações, as ONGs, é um interessante fenômeno social dos últimos 50 anos. É interessante que falemos hoje do relatório Estado do mundo, que é um relatório ambiental do estado do mundo. Ele deveria ser feito pelas Nações Unidas, mas a ONU não faz um relatório ambiental anual. Ela faz para o estado da alimentação e agricultura, para o estado da saúde no mundo, da Organização Mundial da Saúde. Mas como a ONU não faz um relatório ambiental, então, uma ONG, neste caso, o World Watch Institute, se apresentou para preencher esse vazio. É interessante que o relatório que nós fazemos, produzido por uma ONG, seja visto atualmente como semi-oficial. Governos do mundo todo o usam, a ONU o usa, grupos ambientais o usam, professores os usam nas universidades. Nos EUA, mais de mil cursos universitários o adotaram. Falo isso para ilustrar que as ONGs tentam preencher os vazios que os governos, ou a ONU, não preenchem. É um fato interessante. Não significa que o governo não seja mais importante. Um dos papéis das ONGs é influenciar os governos. Na reunião da OMC, em Seattle, ficou bem claro que as ONGs terão um papel importante, influenciando os governos que têm representantes nessas organizações, para negociar a liberalização do comércio. E os grupos ambientais querem ter certeza de que os avanços no comércio não sejam ambientalmente destrutivos. O fenômeno das ONGs é um interessante fenômeno político e social, ele representa um terceiro setor. E é muito mais desenvolvido em determinados países. No Japão, tradicionalmente, havia o governo e o comércio. Basicamente isso. Não havia um setor independente, um terceiro setor. As ONGs não existiam. Agora, o terceiro setor está crescendo. No Brasil, há um terceiro setor bem desenvolvido. Há muitos grupos ambientais, muitos grupos trabalhando em todos os tipos de questões sociais. A evolução da comunidade das ONGs no mundo é um importante avanço social. Historiadores reconhecerão essa importância quando escreverem a história da segunda metade deste século.

Paulo Markun: Walter.

Walter Belik: Doutor Brown, eu gostaria de voltar ao tema da energia renovável. Na década de 1980, o senhor lançou um livro que fez muito sucesso no Brasil, cujo nome era Construindo uma sociedade viável [Por uma sociedade viável (1983)]. E o que me impressionou bastante na época era a defesa que o senhor fazia do programa nacional do álcool, programa brasileiro de produção de álcool. E o curioso, nessa observação do senhor, é que o senhor tomava os planos do governo, da década de 1970, como planos que estavam se realizando. E o governo brasileiro, naquela época, previa a produção de álcool de várias fontes alternativas de energia. Não apenas da cana-de-açúcar, como do babaçu no norte, da mandioca no centro do país, se propunha também à produção de álcool em micro destilarias, produção de óleos vegetais, que iriam substituir óleo diesel, uma série de outras fontes de energias renováveis.  Bom, passados 25 anos desse lançamento do pró-álcool, o que a gente percebe é que hoje se volta a falar novamente em uma retomada desse programa, em função da elevação do preço do petróleo em termos internacionais, da própria escassez de outras fontes de energia. E o que se observa, é que nesses 25 anos, o modelo de produção de álcool no Brasil caminhou para o lado contrário daquilo que o senhor previa, se produz hoje álcool em grandes propriedades, de forma extensiva, com utilização pesada de agrotóxicos, mecanização, queima da cana no corte. Então, que avaliação o senhor faz desses programas? Como o senhor vê uma retomada desse programa no Brasil daqui para frente?

Lester Brown: Há dois aspectos a se considerar na sua pergunta. Um é usar recursos que produzem alimento para produzir combustível. Se a projeção do crescimento populacional mundial, de mais 3 bilhões de pessoas até o ano de 2015, se realizar – isso é quase tanto quanto tivemos em meio século – precisaremos de todos os recursos agricultáveis só para produzir alimento. Notei que, embora o Brasil produza muito mais álcool – principalmente da cana, que é o modo mais eficiente de produzir álcool a partir de plantações – também é o maior importador de grãos do ocidente. A longo prazo, teremos que escolher entre o uso da agricultura para produzir combustíveis ou alimento. Talvez não tenhamos o bastante para produzir combustível. Desde o livro que você citou, houve um grande avanço tecnológico, em painéis solares e em energia eólica, que reduziram muito o custo e aumentaram a eficiência da produção de energia dessas fontes. No futuro, nós vemos a economia da energia solar de hidrogênio crescendo, baseada mais na energia eólica e em painéis solares que na biomassa. Haverá lugares onde fará sentido converter biomassa em combustível. Afinal, a madeira foi o primeiro combustível e foi importante para a evolução humana, começando há meio milhão de anos. Foi o primeiro meio organizado de produzir energia. Mas, a longo prazo, teremos que criar meios mais eficientes de converter a luz solar em energia utilizável. Por enquanto, temos a energia eólica e os painéis solares. Uma nova tecnologia desenvolvida no Japão é um revestimento solar para telhados que transforma o telhado da casa, do edifício, numa usina elétrica para a edificação. Ele gera eletricidade. Isso é interessante, porque todos os edifícios têm telhados e, se o telhado produzir eletricidade, além de abrigar, isso será uma vantagem. Isso está se espalhando rapidamente no Japão, em vários países em desenvolvimento e também na Alemanha, na Europa, onde há um grande impulso. Outra coisa em que temos de pensar é quão rápido podemos mudar para a economia de hidrogênio e deixar a economia baseada no carbono que temos agora. O interessante aqui – e falamos disso no Estado do mundo – é que um grupo de empresas procurou o governo da Islândia para torná-la a primeira economia do mundo baseada no hidrogênio. Isso é interessante porque as duas empresas que lideram o consórcio são a Shell Oil e a Daimler-Chrysler, antiga Daimler-Benz. A Shell Oil está interessada, porque há muita energia hídrica barata na Islândia e eles podem usá-la para produzir hidrogênio. O hidrogênio poderá ser usado como combustível para o transporte, por exemplo. Ou no motor tradicional de combustão interna, queimando hidrogênio como queimamos a gasolina, ou, o que é mais eficiente, usando células combustíveis. A Daimler-Chrysler é pioneira no desenvolvimento de automóveis movidos a células combustíveis [célula electroquímica que tem a função de converter a energia química de um combustível e de um oxidante em energia eléctrica], bem diferente dos motores de combustão interna. A Daimler-Chrysler vê a Islândia como um país onde pode introduzir seu motor usando o hidrogênio como combustível. Estamos vendo um salto empresarial para o futuro, em alguns casos, adiante dos governos. Não foi o governo da Islândia que teve a idéia. Foram empresas que tiveram a idéia. Elas procuraram o governo querendo tornar a Islândia a primeira economia mundial baseada no hidrogênio. E já estão começando a caminhar nessa direção. A longo prazo, o sistema energético global, baseado em sistemas de energias renováveis, será dominado por fontes de energia que vêm do sol, que produz energia com maior eficiência.

Paulo Markun: Lia.

Lia de Souza: Bom, a gente está falando muito da questão da energia e da questão do consumo. Eu gostaria de introduzir dois novos elementos aqui, nessa discussão. Porque o senhor disse que a forma como se produz, o recurso que a gente está utilizando para produzir energia é mais importante do que o quanto que está sendo consumido. Mais eu gostaria de colocar a questão da população. Em 2050, a população da Índia, por exemplo, deve ultrapassar a população da China; água é um recurso finito no planeta. Quer dizer, não dá, por exemplo, para toda a população da China ou para toda a população da Índia, consumir como consomem os norte-americanos, por exemplo, cada duas pessoas na Índia têm um automóvel. Eu gostaria que o senhor apontasse caminhos nesse sentido. Como ter um desenvolvimento sustentável, o que mais se fala hoje, esse conceito que ninguém sabe direito o que é. Quais são os caminhos para se chegar a isso, considerando, por exemplo, essas duas novas variáveis? A questão da população, crescimento populacional e a questão da escassez da água?

Lester Brown: Agradeço por essa pergunta. Quero falar também do sistema de transportes, já que citou os carros. É verdade que a Índia nunca terá um carro em cada garagem assim como a China não terá um carro em cada garagem. Não há espaço suficiente para acomodar o carro como uma peça central do sistema de transportes. Na China, um grupo de cientistas conceituados contestou a idéia do governo de encorajar a fabricação de automóveis na China. O principal motivo é que não há terras suficientes na China para produzir veículos para que todos tenham um carro. Não há espaço para as ruas, estradas, estacionamentos... E para alimentar o povo. É preciso fazer uma escolha. A questão básica da sua colocação é que temos de replanejar o sistema de transportes. O automóvel foi um meio de transporte atraente durante boa parte deste século, pois dá mobilidade. Isto, numa época em que o mundo era muito rural. Mas, com o mundo cada vez mais urbanizado, como hoje, vemos que há um conflito natural entre o automóvel e a cidade. O automóvel não pode dar a mobilidade prometida num ambiente urbano. Se você mora em São Paulo, conhece os congestionamentos. Chegou-se a um ponto em que vários governos, municipais e federais, começaram a questionar se o automóvel deve ser o centro do sistema de transporte urbano. Em Londres, atualmente, a velocidade média dos carros na cidade é quase a mesma das carruagens de um século atrás, apesar dos investimentos. Não que o carro não corra, mas ele não se move por causa dos congestionamentos. Ano passado, na Tailândia, em Bancoc, para falar de um país em desenvolvimento, o motorista passou, em média, 44 dias de trabalho sentado em seu carro, indo para lugar nenhum. Não funciona. Temos de repensar o sistema. Vemos a evolução de um novo modelo de transporte urbano centrado em vias férreas, incluindo sistemas de metrôs, e na bicicleta. Nos EUA, algo interessante, que envolve a polícia, ocorre em 300 cidades. Os policiais descobriram que, quando são chamados para uma ocorrência, uma emergência qualquer, demoram para chegar. Eles ligam a sirene, piscam luzes, mas é difícil se deslocar nos congestionamentos. Então, começaram a pôr policiais em bicicletas. E descobriram que um policial de bicicleta atende 50% mais ocorrências em um dia que um colega numa viatura. Quando vou correr – à tarde, após o trabalho, costumo correr – passo pela casa do vice-presidente. Os agentes fazem a segurança em bicicletas, não em carros. Até na Casa Branca eles usam bicicletas. Mas, o que a polícia descobriu, em 300 cidades nos EUA, é que a bicicleta é melhor que a viatura em muitas situações. Os policiais são mais produtivos, ficam mais próximos das pessoas, e o custo da manutenção da bicicleta é muito menor que o de um carro. Estamos vendo uma mudança na idéia de como deve ser um sistema de transporte urbano. E ele não é mais centrado no automóvel. Se quisermos mobilidade na cidade, o automóvel não serve. Essa é a conclusão básica. Estamos vendo uma mudança nos sistemas de transporte. Curitiba é um exemplo brasileiro para o mundo, que é replanejar o sistema para diminuir o papel do carro e, assim, os congestionamentos. Quanto à pergunta sobre crescimento populacional... Quero falar outra coisa. Se a China atingisse um carro ou dois em cada garagem, como nos EUA, eles consumiriam 80 milhões de barris de petróleo por dia. O mundo produz, atualmente, apenas 72 milhões de barris. Não é possível. Não irá acontecer. Temos de repensar a pergunta. A pergunta não é quantas pessoas terão carros, mas como dar maior mobilidade. Estudiosos chineses recomendam um sistema ferroviário de alta tecnologia alternando com a bicicleta. Quanto à outra pergunta: no World Watch Institute, achamos que a questão da água é a questão mais subestimada no mundo de muitas formas, é um problema invisível. Há 20 anos, o mundo começou a se preocupar com as florestas tropicais. E podíamos ver as florestas tropicais sendo derrubadas, sendo queimadas, víamos na televisão. Mas o lençol freático não é visível. Sabemos que a água está acabando quando o poço seca. E isso está acontecendo em várias partes do mundo. Estima-se que na Índia, a quantidade de água extraída da terra é o dobro da quantidade de água que volta pela chuva. Assim, os lençóis freáticos estão baixando na Índia. E, em algum momento, haverá cortes no fornecimento. Deixar de pensar no crescimento populacional e na água irá comprometer a capacidade dos governos de fornecerem a qualidade de vida que as pessoas querem.

Lia de Souza: Não é o caso de se mudar o padrão de consumo, porque na consideração que o senhor fez em relação à questão da energia, eu acho que a questão básica... Acho que todo mundo praticamente que está aqui concorda que foi essa a discussão do intervalo: é que é preciso mudar o padrão de consumo. Os norte-americanos não podem continuar consumindo o quanto eles produzem, independentemente se eles tiveram a re-energia renovável sendo utilizada.

Lester Brown: A questão básica, pensando apenas na energia, não é quanto utilizamos e, sim, como a produzimos. Mas pensando na vida em si, se quisermos mobilidade, se isso for um objetivo social – e costuma ser – aí temos de pensar como podemos fornecer mobilidade, o máximo de mobilidade. E não é com automóveis. Respondendo a essa pergunta, diminuímos o nível de consumo, porque, se quisermos mobilidade... Para ter mobilidade, nos EUA, os policiais usam bicicletas. Se satisfizermos o desejo da mobilidade, isso implicará uma boa redução no consumo. Também há uma situação nos EUA em que notamos um desequilíbrio entre as calorias que consumimos e as calorias que utilizamos como indivíduos.  As pessoas estão cada vez mais obesas. Aí elas vão para academias, onde ficam numa bicicleta ergométrica por meia hora suando, gastando calorias, depois tomam banho, entram no carro e voltam para casa. Elas fazem isso porque não se sentem à vontade indo trabalhar de bicicleta. O sistema de transportes não é amigável para as bicicletas. Ele foi projetado para automóveis. Temos de mudar isso. Quando mudarmos essa situação, o ar ficará mais limpo, o clima será menos afetado e seremos mais saudáveis. Nós estaremos ganhando. Será ganhar, ganhar e ganhar. A maioria das pessoas concordaria que o automóvel não funciona. Mas temos de replanejar o sistema. Automóveis não funcionam nas cidades, então temos de replanejar o sistema para gerar a mobilidade, sem afetar o clima e sem a poluição que temos.

Paulo Markun: Marcelo.

Marcelo Leite: Professor Brown, eu gostaria de entender um pouco melhor qual é o papel que o senhor atribui à tecnologia na questão da sustentabilidade? Quando o senhor diz, e repetiu mais de uma vez aqui, que o problema não é tanto quanto se produz, mas como se produz, eu posso entender isso. Eu acho que muitas pessoas entenderão que o senhor é adepto da idéia de que existe ou pode ser criada uma solução tecnológica para qualquer problema. E, certamente, isso é uma coisa bastante discutida hoje em dia. Uma razão é - como o senhor mesmo disse - os recursos, pelo menos alguns deles, são finitos para efeitos práticos. Então, a tecnologia não tem solução para tudo. Como no caso da terra para acomodar todos os carros [para] todos os chineses. Mas também porque as tecnologias têm que ser socialmente aceitáveis. Eu quero lhe dar o exemplo da engenharia genética. Os defensores dos alimentos transgênicos dizem que eles são imprescindíveis, porque sem eles, o mundo não vai ser capaz de alimentar a população de 9 bilhões de pessoas em 2050. Mas, certamente, há muita gente que discorda disso, especialmente na Europa, por motivos de outra ordem - éticos, científicos, ambientais ou os que forem. Não é o caso dos Estados Unidos, onde o público, pelo menos até o presente não manifestou uma reação mais forte a isso. Eu queria saber, primeiro, se o senhor concorda com essa idéia de que existem soluções tecnológicas para quaisquer problemas na área da sustentabilidade. E segundo, se a engenharia genética figura entre essas tecnologias salvacionistas?

Lester Brown: Primeiro, eu não defendo a idéia de que há uma solução tecnológica para cada problema. Acho que os avanços tecnológicos podem desempenhar um papel importante. Cito os avanços tecnológicos na geração de energia elétrica eólica. Há 50 anos, era muito mais simples e primitiva em comparação com a de hoje, quando temos turbinas baseadas em projetos e desenhos aeroespaciais. A tecnologia ajuda a resolver muitos problemas, mas não resolve todos, e não é a solução para todos os nossos problemas. Muitas vezes, é questão de replanejar o sistema, como nos transportes. Falamos nas bicicletas como sendo o veículo do futuro. Muita gente não sabe que a produção mundial de bicicletas é três vezes maior que a de carros. Há tecnologias que testamos, mas que não funcionaram. Por exemplo, o transporte supersônico. No final da década de 1960, eu li artigos afirmando que, se europeus ou americanos o produzissem primeiro, isso determinaria o futuro da história econômica. Seria uma vantagem decisiva. Na verdade, nenhum avião desses foi vendido comercialmente. Apenas empresas aéreas estatais o compraram. É uma tecnologia acabada. Energia nuclear é outra tecnologia onde o fator econômico pesou e não é mais uma fonte de eletricidade competitiva. Na questão dos organismos transgênicos, é uma pergunta difícil para mim, como analista, responder. Há situações em que... Primeiro, [sobre]  o potencial para aumentar a produção mundial; há alguns anúncios das empresas envolvidas na biotecnologia dizendo que se pode dobrar a produção mundial, a fim de atender futuras demandas, eu acho que não. Digo isso porque cientistas, usando técnicas tradicionais, fizeram o máximo possível para aumentar a produção. E atingimos vários limites fisiológicos, agora, incluindo eficiência fotossintética e outros processos metabólicos nas plantas. Então, a questão [é]: “podemos usar a engenharia genética para reduzir o uso de inseticidas?” E, se tivermos de escolher entre o uso de inseticidas, conhecendo alguns dos riscos associados a isso, ou o uso de um alimento geneticamente codificado, com informações para se defender contra inseticidas, qual é a melhor tecnologia? Qual é a menos prejudicial, ambientalmente? Como analista, eu não sei a resposta. Em parte, porque sabemos mais sobre o efeito de inseticidas, sobre o ambiente, sobre a saúde, do que sabemos sobre as conseqüências ambientais, inclusive à saúde de alimentos transgênicos. É uma questão complexa e, como líder de um instituto de pesquisas, tenho de pensar com a cabeça, não com minhas emoções. E, em alguns casos, organismos transgênicos levam ao aumento do uso de herbicidas. Soja é um bom exemplo. A soja é modificada para resistir aos herbicidas para que herbicidas possam ser usados na nova soja de uma forma que não podiam na soja tradicional. É uma questão complicada, e lembro-me de um livro chamado: O declínio das sociedades complexas [escrito em 1988 por Joseph Tainter, em inglês seu nome é The Collapse of complex societies. Traduzido para o português como O colapso das sociedades complexas]. Nele, o autor diz que, quando a sociedade atinge o ponto em que a tecnologia criada ultrapassa a capacidade que a instituição política tem para gerenciá-la, ela normalmente decai. É uma tese interessante. Mas acho que, com muitas das nossas tecnologias atuais, nossa compreensão das conseqüências é inadequada. Isso ocorre com o uso de inseticidas e com o uso de alimentos transgênicos.

Fernando Rios: Doutor Brown, eu tenho percebido que o ser humano tem passado, desde a sua origem, de uma coisa que a gente pode chamar de biodiversidade solidária para algo que seria uma “sociodiversidade belicosa”. E a gente pode perceber isso, se considerarmos que, em 42 mil anos, a população chegou a 1 bilhão de habitantes; nos 200 anos ela passou para 6 bilhões de habitantes. O que eu gostaria de saber, citando um psiquiatra que eu entrevistei há alguns anos o [...], ele me dizia que - é uma visão pessimista da humanidade -  ele dizia que o ser humano é o câncer da Terra. Porque onde ele se instala, a rapidez com que ele transforma o meio ambiente é tamanha, que aparentemente isso passa a ser uma situação incontrolável. Eu teria duas questões para o senhor: primeiro, se essa visão pessimista, parece que está se realizando, se concretizando, até, hoje no mundo? E se poderíamos considerar que, nessa dimensão, o ecossistema urbano seria hoje aquele mais ameaçado em todo planeta?

Lester Brown: A pergunta que você fez sobre nossa espécie ser um câncer no ambiente, é uma questão profunda. No mês passado, eu estive na Áustria para uma conferência de empresários. E um dos palestrantes era líder de um instituto de pesquisas na Suíça. Um instituto de pesquisas de política pública. Ele disse algo para mim, quando estávamos sentados - ele sentou-se ao meu lado - ele disse: “tecnologia é a experiência da natureza com o homem”. Ele inverteu as coisas. Sempre vemos a natureza começando com nós mesmos. Ele olhava para nós começando com a natureza. É preciso pensar nisso. Estamos claramente em contraste com antigas civilizações que tomaram um caminho ambientalmente insustentável. Nós somos uma civilização global. Eles eram civilizações locais. O que houve na Mesopotâmia, ou com os Maias, afetou apenas a região, não o resto do mundo. Hoje, sabemos que somos parte de uma economia global, que estamos alterando o ecossistema da Terra, o clima da Terra. Não apenas o clima dos EUA, ou o clima do Brasil. E fazemos isso sem compreender totalmente. Se possível, gostaria de falar sobre o aquecimento global. Sobre as evidências disso, o que pode significar. É um grande experimento que fazemos sem ter a menor idéia de quais serão as conseqüências. A idéia de que alguém possa ver nossa espécie como um câncer no ambiente global não é absurda. Estamos claramente numa situação agora, que, se não fizermos ajustes rapidamente no relacionamento entre nós, 6 bilhões, atualmente, os sistemas naturais e os recursos dos quais dependemos - a biodiversidade de vida, recursos hídricos, clima – veremos os sistemas naturais solaparem a economia. Assim como em muitas civilizações antigas. Esse é o grande desafio: fazer as correções no caminho econômico que irão proteger os sistemas ambientais dos quais dependemos.

Paulo Markun: E a questão urbana?

[...]: A questão urbana é a questão da ameaça...

Paulo Markun: Se os meios urbanos são... Os sistemas urbanos são efetivamente os mais ameaçados?

Lester Brown: As cidades não são naturais. Elas necessitam de concentrações de energia, água, alimentos, materiais, que temos de reunir. Trazemos alimentos do outro lado do mundo, materiais de outro lugar; até água pode vir de centenas de quilômetros de distância. Pequim terá um sistema que trará água de um rio a 1.400 quilômetros de distância. A Califórnia usa água do Colorado, que é transportada centenas de quilômetros até Los Angeles. Nós concentramos enormes quantidades de energia, alimento, água e materiais, e depois temos de disseminar tudo. Não podemos deixar os poluentes se acumularem, ou as cidades ficariam inabitáveis. Assim, jogamos o lixo em rios, ou o descarregamos no ar para nos livrarmos dele, ou para evitar que se acumule. Mas alguém vivendo na cidade requer muito mais recursos, energia para transportar água e alimentos, que alguém vivendo mais perto da natureza. É possível, no futuro, se houver escassez de alimentos, que haja uma mudança. Historicamente, desde o início da Revolução Industrial, os que viviam nas cidades tinham a vantagem econômica, pois controlavam a tecnologia e o capital. Mas, no futuro, se água e terras ficarem escassos, aqueles que controlam terras e água, a população rural, e não a urbana, terá a vantagem. É possível que os termos comerciais, que, historicamente, têm favorecido a cidade, voltem a favorecer a área rural. Isso pode reverter o processo de urbanização. Não pensamos nisso, supomos que a rápida urbanização continuará no próximo século. Talvez não. Pelos motivos implícitos na sua pergunta.

Paulo Markun: Eu começaria, então, abordando a questão, que é muito presente nesse trabalho sobre o Estado do mundo, que é do aquecimento global. Não há dúvida, pergunto bem objetivamente, de que realmente a temperatura do mundo está aquecendo, ou simplesmente o tempo enlouqueceu?

Lester Brown: Muita gente pergunta se o clima enlouqueceu, porque parece haver mais extremos. Uma das características do aumento da temperatura, em escala mundial, é o aparecimento freqüente de extremos. Uma das coisas que fazemos no Estado do mundo é colocar a temperatura média global em um gráfico que começa em 1866 e vem até o presente. Quando fomos colocar o dado de 1988, ele ultrapassou o topo do gráfico. Tivemos de mudar a escala do eixo vertical por causa dele. Isso tem várias conseqüências: um, causa tempestades mais destrutivas. Quanto mais energia no sistema, quanto mais alta a temperatura das águas tropicais e subtropicais, mais energia irradia para a atmosfera, alimentando sistemas de tempestades. Em 1988, tivemos algumas das piores tempestades, algumas das piores inundações já registradas. Em 1988, 300 milhões de pessoas foram forçadas a sair de suas casas por eventos climáticos, tempestades, inundações etc. Metade delas na bacia do rio Yang-tsé, na China, que teve uma das piores inundações da história. Quando a temperatura sobe, há um maior derretimento de neve, como no Himalaia, o que causou a elevação do nível do Yang-tsé; isso faz aumentar a evaporação; quanto mais alta a temperatura, mais evaporação; mais água sobe mais água desce. Houve um deslocamento de pessoas inacreditável. Mas uma das coisas que mais me preocupa no clima - além do fato de os 15 anos mais quentes do século serem todos a partir de 1980 - assim há uma clara tendência ascendente na temperatura - o que mais me perturba é a quantidade de gelo derretendo. Vemos partes da calota antártica se separando em um índice alarmante nos últimos dois anos. Nós vemos gelo derretendo na Antártica, no Alasca. Estive na Áustria falando sobre o “Homem do gelo”, descoberto nos Alpes, na fronteira entre Áustria e Itália, há sete anos. Alguns montanhistas encontraram um corpo saindo da geleira porque o gelo derretia e alguém que estava lá havia cinco mil anos passou a ficar visível. No Canadá, próximo do Alasca, há poucos meses, outro corpo foi encontrado saindo de uma geleira, devido ao derretimento. Nossos ancestrais estão, literalmente, emergindo do gelo com o derretimento, e eles têm um recado para nós. O recado é a resposta à sua pergunta: a Terra está esquentando. Quanto mais gelo derrete, mais o nível do mar sobe. E regiões costeiras no mundo serão ameaçadas. Numa época em que a população continuará a crescer, a superfície habitável vai diminuir. Este é um dos perigos da mudança climática: a elevação do nível do mar.

Paulo Markun: Fernando.

Fernando Rios: Doutor Brown, com relação a essa questão do consumo, do aquecimento global, nós devemos, eu acredito, considerar que há um modelo de consumo, um modelo de produção que costuma ser, e que precisaria eventualmente, ser questionado. Nós produzimos para a cidade, principalmente produzimos para atender a uma determinada demanda, que tende a ser, inclusive simbólica. A minha pergunta é: não seria o caso de nós mudarmos a maneira de informar a essas pessoas que estão consumindo. E, mais do que isso, mudar um pouco as relações entre a remuneração do capital e a remuneração do trabalho, para que uma sociedade pudesse caminhar em uma direção melhor?

Lester Brown: Em termos de mudanças nas políticas governamentais, eu colocaria no topo a mudança do sistema tributário para diminuir o imposto sobre a renda e aumentar impostos sobre atividades ambientalmente destrutivas. A segunda prioridade seria o que chamo “eco-rotulação”. Permitir que o consumidor saiba, ao comprar um objeto de madeira, móveis, por exemplo, que ele saiba se a madeira veio de uma floresta que é reflorestada ou se foi apenas cortada sem pensar no ambiente. Deixar os consumidores falarem com seus bolsos. Os consumidores podem falar com seus votos, quando escolhem seus líderes. Mas também podem falar com seus bolsos. Uma das iniciativas mais bem sucedidas nos EUA nos últimos anos é uma na qual, empresas de eletricidade oferecem aos seus clientes uma escolha entre energia vinda de combustíveis fósseis, como carvão, ou energia de fontes renováveis, como o vento ou painéis solares. Ás vezes, isso envolve um aumento no custo, e o cliente deverá pagar 20% mais para ter energia do vento ou solar em vez das fontes tradicionais. Mas, pelo menos, eles têm a opção, e muita gente está escolhendo a que hoje é a fonte mais cara, mas é renovável. Ao longo do tempo, o custo deverá diminuir. Mas agora, as empresas investem em fazendas de vento para terem capacidade de atender essa demanda. A idéia de informar aos consumidores sobre os efeitos ambientais das coisas que compram a eficiência do motor de um carro, em termos de km/L é um passo essencial para criar um futuro ambientalmente sustentável. Nós mudamos o comportamento em função de novas informações ou novas experiências e, em muitos casos, novas informações irão trazer as mudanças de que precisamos.

Fernando Rios: O senhor não acha que seria necessário uma nova moral mundial para discutir isso? E que isso pudesse ser mais amplamente apresentado para a sociedade, essa nova moral, para diminuir essa intensidade desse consumo?

Lester Brown: Uma das coisas que devemos perguntar é o que é importante para nós. E o que as maiores religiões nos ensinam é que o consumo não leva à felicidade. Na verdade, consumo excessivo pode causar infelicidade. Ficamos preocupados demais com bens materiais e perdemos a noção do que é realmente importante. No meu caso, eu levo uma vida simples. Eu tenho uma bicicleta, apartamento de um quarto em Washington. Se alguém me desse um carro, eu não aceitaria. É muito trabalho. Encontrar vaga para estacionar, levar para conserto, o seguro... É muito mais fácil andar de bicicleta ou a pé para me deslocar em Washington. Cito isso como um exemplo. Já tive um carro, há 25 anos. Mas vejo a mudança para a bicicleta como uma melhora na minha qualidade de vida. Uma melhora significativa. Isso também diminui o consumo de recursos. E, quando as pessoas tiverem mais opções, elas perceberão que um consumo maior não leva a uma vida melhor.

Paulo Markun: Marcelo.

Marcelo Leite: Eu queria aproveitar essa deixa aí do papel da vida pessoal na militância, vamos dizer assim, ambiental. Eu queria saber se o senhor concorda com a proposta feita por [ambientalista norte-americano] Bill Mckibben, de que as pessoas, especialmente nos países ricos, deveriam ter apenas um filho?

Lester Brown: Sou amigo de Bill Mckibben e conheço sua obra. A idéia da família com um filho nos EUA é interessante. Sua questão central é a mesma que levantei várias vezes, ele escreveu um livro sobre isso, é que a decisão ambiental mais importante para um americano é quantos filhos ele terá. Por causa dos altos níveis de consumo. E ele diz que, por enquanto, devemos tentar fazer o que os chineses fazem que é limitar o número de filhos a um, até estabilizarmos o consumo e a relação entre nós e o ambiente. Pensando no crescimento populacional, eu acho que, para muitas sociedades, voltando à questão da água, muitas sociedades antecipam futuras opções para melhorar a qualidade de vida porque a população está ultrapassando o suprimento de água. Nós supomos, nas nossas sociedades, no Brasil e nos EUA, que um dia todos terão água encanada e poderão tomar banho. Na China e na Índia não será possível. Não há água suficiente para todos tomarem banhos diários. E eles estão começando a perceber isso. É um dos motivos para os chineses decidirem reduzir o crescimento populacional, pois a população ultrapassa a disponibilidade de recursos básicos.

Paulo Markun: Lia.

Lia de Souza: Eu gostaria de fazer uma pergunta um pouco filosófica. Eu gostaria de saber se o senhor acha que parte da solução para os problemas do planeta, não estaria no homem se sentir novamente parte da natureza?

Lester Brown: Esta é uma questão filosófica básica, um ponto filosófico básico. Com os avanços tecnológicos e a urbanização, nós nos separamos da natureza e pensamos que existimos, independentes da natureza. Mas somos tão dependentes dela quanto nossos ancestrais. Não podemos existir sem os sistemas naturais da Terra. E nós estamos com problemas, porque esquecemos como dependemos desses sistemas e como é importante proteger esses sistemas.

Paulo Markun: Walter...

Lester Brown: Nossa sobrevivência futura depende de nos vermos, não separados da natureza, mas como parte dela.

Walter Belik: Doutor Brown, todo ano as Nações Unidas, o departamento econômico das Nações Unidas, preparam um panorama da economia mundial. E, neste ano, o tema do panorama da economia mundial, foi à concessão de microcréditos. São créditos de 100 dólares, 200 dólares para pequenos empresários, pessoas da sociedade que precisam começar um negócio. No Brasil, nós também estamos iniciando algumas experiências com microcrédito. Existem algumas experiências de "banco do povo", como se chama aqui no Brasil. E o balanço que se pode fazer é que, quando esse "banco do povo" é patrocinado por organismos financeiros oficiais, não tem funcionário. No entanto, quando a sociedade de reúne, quando as organizações não governamentais  [ONGs] se organizam e consegue obter recursos, o crédito funciona com uma facilidade enorme. O senhor vê isso daí como uma saída, como uma ação que faz diferença na construção de uma sociedade sustentável?

Lester Brown: A maioria das instituições financeiras do mundo está acostumada a fazer grandes empréstimos, especialmente no plano do desenvolvimento internacional. E a idéia de alguém fazer um empréstimo de US$100, em vez de US$100 milhões, não faz sentido. Eles estão certos nesse sentido. Significa que precisamos de instituições locais. Em muitos casos, ONGs. E essa história de sucesso, que originou a idéia dos empréstimos de US$50, US$100 para habitantes de áreas rurais, originou-se em Bangladesh, com o banco Grameen, foi uma ONG, não foi iniciativa de um banco financiado pelo governo, que teve sucesso. Essas coisas tendem a funcionar melhor quando crescem localmente e envolvem habitantes locais, fora do governo e fora das maiores instituições financeiras internacionais. É possível que o Banco Mundial financie sementes para uma ONG que esteja organizada para fazer isso. Eu não excluo essa participação, mas a administração funciona melhor se for local e fora dos canais governamentais oficiais.

J. W. Bautista Vidal: Na questão tecnológica, eu gostaria de fazer um comentário, porque há uma idéia que tudo é resolvido pela tecnologia. E a tecnologia é um meio, se a tecnologia não se aplica sobre um bem natural, ele não vale nada. Acabou o petróleo, não adianta tecnologia no petróleo. Quer dizer, se nós não temos substituto para o petróleo, não é tendo tecnologia que nós vamos "aplicar cuspe" para resolver a questão energética mundial.

[risos]

J. W. Bautista Vidal: A questão da biomassa e do petróleo é muito clara, ambos tem a mesma origem, que é a energia do Sol. Só que o petróleo leva 800 milhões de anos, e o Sol pode produzir em 13 meses com óleo de girassol, energia melhor do que o óleo diesel do petróleo. Então, essa questão, primeiro, que a tecnologia não é a solução. Então, dentro desse contexto era importante ouvi-lo nas questões de fundo: porque um país como o Brasil, que já produz alimentos para 800 milhões de pessoas com apenas 13% do seu território, tem metade da população passando fome. A pergunta, por quê? Se já produz alimentos para 800 milhões de habitantes, com apenas 13% do seu território. De uma certa maneira, a resposta foi dada pelo senhor mesmo, no documento do World Watch, quando o senhor diz: “Os indicadores econômicos são falhos em um aspecto fundamental, não fazem distinção entre o uso de recursos que sustentam o progresso e o desenvolvimento e os recursos que minam o progresso e a vida”.  A resposta está aqui. Esse sistema da tirania financeira, do dinheiro falso, está destruindo o Brasil, quer dizer, nós estamos com uma das mais baixas rendas per capita do mundo, se considerarmos o produto nacional bruto, não o produto interno, que vai em grande parte para fora.  Então, eu gostaria [de escutar] seus comentários sobre essas razões de fundo, que são a causa desses destemperos e dessas esquizofrenias, de ignorar a base da natureza da vida. E o segundo, eu gostaria de ouvi-lo sobre a idéia do E-8, do... Qual é a idéia da concepção do E-8 ante o G-8?

Lester Brown: Há duas ou três perguntas aqui. Uma é sobre tecnologia. A tecnologia não é solução para todos os problemas. Um problema que ela não soluciona é a distribuição da renda. Publicaremos no novo Estado do mundo dados sobre a fatia da população que está supernutrida e com excesso de peso e a fatia que está subnutrida e com pouco peso. Pela primeira vez, a quantia de pessoas com excesso de peso equivale à quantia de pessoas com pouco peso. Isso é uma evidência da má distribuição de recursos. O Brasil, é verdade, tem uma das piores distribuições de renda do mundo. A tecnologia não resolverá esse problema. É um desafio político. Não há substituto para isso. Na questão do E-8, o que fizemos no Estado do mundo, há alguns anos, foi olhar para o G-7, o grupo econômico formado há 20 anos, quando havia instabilidade no sistema monetário, e esse grupo representaria as principais economias, que se reuniriam uma vez por ano para avaliar desenvolvimentos, ver o que precisava ser feito no campo econômico. Mas, de muitas formas, os maiores problemas do mundo, hoje, não são econômicos. Há problemas econômicos, mas os verdadeiros desafios são ambientais. Estabilizar o clima, estabilizar a população, proteger a diversidade biológica da Terra. Posso continuar com a lista, todos conhecem. Mas não há um grupo comparativo, então olhamos para: consumo e produção, terras, espécies vegetais e animais, diversidade biológica e identificamos oito países responsáveis por mais da metade da emissão de carbono, mais da metade da diversidade biológica da Terra. O Brasil é um desses oito países. O Brasil não é membro do G-7, mas é membro do E-8. Os outros membros são: na Ásia, China, Índia, Indonésia e Japão. Na Europa, Rússia e Alemanha. No Hemisfério Ocidental, Brasil e Estados Unidos. São países que devem se reunir periodicamente para avaliar os indicadores ambientais, ver como estão progredindo, se estão na direção correta; se não, o que deve ser feito. Esses oito países têm a capacidade de tomar decisões que afetarão o futuro do mundo, assim como o G-7 pode tomar decisões econômicas. Achamos importante fazer essa distinção.

Paulo Markun: João.

João Paulo Capobianco: Doutor Brown, todos nós sabemos que um dos maiores problemas hoje são os impactos ambientais globais. A questão da mudança climática já foi dita, o senhor reafirmou, inclusive, lembrou dos fósseis que estão saindo do degelo para nos mostrar que o problema é grave. Então, eu queria fazer duas perguntas; uma pessoal. Como o senhor, um ambientalista norte-americano se sente diante do fato do seu governo e dos congressistas norte-americanos não terem ratificado a convenção que busca dar uma solução global para o problema. E segundo, o que o seu instituto está fazendo para mudar e influenciar o governo norte-americano e o congresso norte-americano para que os Estados Unidos [a] ratifique na convenção?

Lester Brown: O fato de o governo americano não ratificar o Protocolo de Quioto é constrangedor para mim. Temos a mais sofisticada pesquisa climática nos EUA. A maioria dos modelos de computadores que simulam os efeitos do gás carbônico no clima são americanos. Temos as informações, temos os maiores cientistas. Mas nossos políticos, em especial os congressistas, estão muito atrás do povo. E, algum dia, as pessoas nas ruas notarão que algo aconteceu. Todos saberão que o clima mudou. E o congresso continuará agindo como se nada tivesse acontecido. Isso pode mudar rapidamente, e o governo pode ter um papel importante. Pouco antes da Conferência de Quioto, há dois anos, a Casa Branca notou que o povo não embarcou na questão, não daria o apoio de que necessitávamos. Então, eles fizeram algumas coletivas, cientistas falaram das mudanças climáticas para a imprensa. O que sabemos, o que não sabemos, quais os riscos, o que devemos fazer. Foi um passo importante para elevar a compreensão popular. Depois, fizeram outra sessão para os programas de TV que dão a previsão do tempo para os dias seguintes. Falaram com eles sobre isso. Para que, quando falassem de uma onda de calor, eles a colocassem no contexto do aquecimento global. Não seria apenas uma aberração. Em um mundo que muda tão rápido, o governo é responsável por educar o povo pelos meios de comunicação, algo que não acontecia antes.

Paulo Markun: Nosso tempo está acabando, eu vou fazer uma última pergunta, mas antes eu gostaria de lembrar aos telespectadores que as publicações do World Watch Institute, O estado do mundo, a revista e outras publicações, podem ser acessadas pelo endereço na internet que está aí no vídeo: www.worldwatch.org.br e também pelo telefone da organização aqui no Brasil. A minha questão final é a seguinte: no mais recente livro diversos capítulos começam com previsões mal sucedidas do final do século passado. Previsões que falavam, por exemplo, sobre as perspectivas do automóvel, outras sobre quais seriam o uso do petróleo, etc. De todo modo, como nós estamos chegando no final de um século e no começo de um novo milênio, eu queria lhe pedir, na certeza de que o senhor é um homem que acredita na força das idéias e das teses, senão não estaria aqui defendendo essa bandeira; que pudesse traçar qual é o horizonte que o senhor imagina para o mundo neste novo milênio? Sabendo que estará certamente correndo o risco de fazer uma previsão que o futuro pode demonstrar que não será correta, mas, enfim, acho que o risco vale a pena.

Lester Brown: Uma das coisas que fizemos no Estado do mundo, 1999, foi olhar o século passado como base para o futuro. Não projetar para o próximo século, mas para ter uma noção do caminho adiante. O que vemos é o que descrevo como a aceleração da história. As coisas estão muito rápidas agora. Em sociedades tradicionais, os membros mais velhos da tribo ou da vila eram os que detinham a sabedoria. Porque eles estavam lá havia mais tempo e passavam a sabedoria para as gerações seguintes, para os mais jovens. Hoje, tudo muda tão rápido, que, em pouco tempo, muitas vezes, nas informações econômicas, por exemplo, são os jovens que têm o conhecimento e eles o passam para os mais velhos. Contratamos uma mulher para ser nossa webmaster”que tem 23 anos. Ela é recém-saída da faculdade. Mas sabe mais sobre aquilo que qualquer membro da equipe. Temos que procurar os jovens. Falo isso porque a aceleração das mudanças é tão grande, quer seja no clima, ou na composição da vida vegetal ou animal na Terra, ou nos lençóis freáticos, com novas doenças, como o vírus HIV. Tudo acontece tão rápido, que temos dificuldade de responder rapidamente. É essa noção de mudanças aceleradas que nos preocupa. Há 40 anos, os cientistas diziam que a possibilidade de novas doenças infecciosas, dizimando populações, era muito real. Eles não sabiam quando, mas sentiam vindo. Agora nós vemos uma doença infecciosa dizimar populações ao sul do Saara. Quando fundamos o Worldwatch Institute, há 25 anos, o aquecimento global era uma hipótese científica. Agora, temos evidências do aquecimento global. Os 15 anos mais quentes do século vêm depois de 1980, a tendência é muito clara. É essa aceleração da história e a nossa capacidade, como indivíduos, e das instituições políticas se ajustarem a ela que mais me preocupa. Nesse processo, a informação se torna... A informação atualizada é fundamental para guiar o processo de mudança e direcionar a resposta às ameaças como o aquecimento global, ou a epidemia de HIV, ou o abaixamento dos lençóis freáticos. O papel dos meios de comunicação, agora, é muito mais importante do que jamais foi, porque, historicamente, o papel deles tem sido noticiar. Mas, agora, com tudo acontecendo tão rápido, temos de educar uma geração de adultos sobre o aquecimento global. Quando eu estudava, isso nem foi citado, ninguém pensava nisso. Temos de nos educar e os meios de comunicação são a única instituição que as sociedades têm para elevar rapidamente a compreensão pública a ponto de a população apoiar respostas políticas efetivas. No caso do aquecimento global, por exemplo. Só posso elogiar você e seus colegas no programa por discutirem essas questões. Eu acho que são questões que moldarão o futuro da civilização humana. Muito obrigado.

Paulo Markun: Nós é que agradecemos a oportunidade deste debate aqui e destes esclarecimentos da sua parte, eu agradeço muito a presença de todos os entrevistadores, a você que está em casa; e na próxima segunda-feira sempre às dez e meia da noite, mais um Roda Viva. Uma boa noite, uma boa semana e até lá.

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco