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Matinas Suzuki: Boa noite. O Roda Viva desta noite recebe um dos mais importantes juristas brasileiros, o professor Miguel Reale. Natural de São Bento do Sapucaí, no interior de São Paulo, onde nasceu há 87 anos, o professor Reale foi professor de filosofia do direito, reitor da USP e secretário da Justiça do estado de São Paulo. Também é membro da Academia Paulista e da Academia Brasileira de Letras e tem mais de 60 obras publicadas sobre direito, filosofia, história, crítica literária, poesia e memórias. Para entrevistar, esta noite, o professor Miguel Reale, nós convidamos o jornalista Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa; o jornalista José Nêumanne, editorialista do Jornal da Tarde; a professora Odete Medauar, vice-diretora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; o advogado Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie; o advogado Manoel Alceu Affonso Ferreira, ex-secretário da Justiça do estado de São Paulo; o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, articulista da Folha de S. Paulo, e o jornalista Antonio Carlos Pereira, editorialista do jornal O Estado de S. Paulo. Boa noite, professor Miguel Reale.
Miguel Reale: Boa noite.
Matinas Suzuki: Muito obrigado pela sua presença, esta noite, aqui no Roda Viva.
Miguel Reale: Eu é que agradeço a gentileza do convite.
Matinas Suzuki: Imagina, é um prazer imenso para nós recebê-lo e gostaria de fazer uma pergunta bem simples, que é a seguinte: há uma sensação generalizada na sociedade brasileira de que o país está mudando em muitas coisas, mas não muda na área da Justiça, porque a Justiça é lenta, porque a Justiça não funciona, porque a Justiça é desigual. Enfim, não muda na velocidade ou não muda no ritmo das demais mudanças da sociedade brasileira, quer dizer, essa é uma questão complexa, mas há uma imagem no senso comum, que é essa. Como o senhor avalia essa opinião?
Miguel Reale: Começo por dizer que essa crise não é apenas brasileira. Se nós ouvirmos o que é dito na Europa ou na América do Norte e em todos os países da América Latina – eu não tenho conhecimento direto da Ásia, por isso eu não vou falar sobre a Ásia. Mas há uma queixa geral contra a Justiça, no sentido de que existe a convicção que [ela] não está correspondendo aos anseios e às aspirações do momento. Essa crítica demonstra, porém, um fato: nós estamos com uma velocidade muito grande, entrando para uma nova visão do direito, nova visão mesmo da Justiça e é claro que os organismos não estão adequados plenamente para responder às novas aspirações. Mas há muito exagero nisso, portanto nunca haverá um contentamento, uma satisfação plena no serviço de Justiça. A justiça é tão infinita, a sede de justiça é tão forte, que, quanto mais nos for dada a justiça, mais a reclamaremos, de maneira que há aspectos positivos e negativos próprios do problema que está sendo proposto e, muito bem, para início da nossa conversa esta noite.
José Nêumanne: Professor, hoje nós temos um caso exemplar: um juiz decretou que o prefeito de São Paulo tem que sair do seu cargo, tem que devolver, juntamente com 15 instituições financeiras, 32 milhões de reais e não tem mais direitos políticos ao longo de oito anos. Evidentemente essa sentença não será cumprida, ninguém acredita, acho que nem o juiz que é prolator [aquele que promulga a sentença] acredita que ela vai ser cumprida. Então, o senhor há de convir, aqui o descrédito é um pouco maior do que no resto do mundo.
Miguel Reale: É muito difícil pronunciar-me sobre uma sentença cujo teor eu desconheço. O primeiro dever do jurista é tomar conhecimento direto e pleno do fato e da norma jurídica que está sendo aplicada. Mas, de qualquer maneira, nunca será, nesse caso, uma decisão final, é uma decisão inicial. A Justiça tem a prudência, como sua sombra natural, de que nunca uma decisão deve ser feita em um grau só, mas há sempre recurso para um tribunal e muitas vezes recurso para uma terceira instância e às vezes mesmo surge uma quarta modalidade de expressão na vida jurídica e da norma jurídica. De maneira que há muito caminho a ser percorrido. Essa sentença não me preocupa, o que me preocupa é apenas a última decisão.
Odete Medauar: Professor Miguel Reale, de qualquer forma, embora possa existir um problema de crise do Judiciário em quase toda parte do mundo, existem alguns parâmetros e alguns padrões para um funcionamento, pelo menos razoável e bom, do Judiciário. O senhor teria algumas propostas para soluções mais rápidas em termos de crise do judiciário?
Miguel Reale: Essa pergunta é fácil de ser feita e para responder precisaríamos passar a noite toda aqui conversando. É claro que, ao longo da minha vida, 60 anos dedicados a problemas de direito, haveria sempre possibilidade de fazer sugestões. Porém, nunca pensaria em dar uma solução plena. Seriam sugestões até certo ponto marginais. Tenho uma certa humildade em fazer sugestões em matéria de organização judiciária, porque também sinto que há muito exagero na reclamação. Há estrutura a ser modificada que envolve até a formação do jurista. Em grande parte, a crise da Justiça resulta de uma queda, isso sim eu noto, no preparo do jurista. Nós temos muitas faculdades de direito, nós temos muitas pesquisas jurídicas pelo país afora, mas eu penso que há uma queda de qualidade.
Antônio Carlos Pereira: Professor Miguel Reale, de qualquer forma existe no Congresso, tramitando no Congresso, ou melhor dizendo, existe parado no Congresso um projeto de reforma do judiciário. Aquele projeto satisfaz o problema em linhas gerais ou não?
Miguel Reale: É inegavelmente um começo. Não creio nem mesmo que haja uma solução imediata, porque o problema da Justiça é um problema de organização, é um problema de formação do juiz, é um problema de seleção do poder judiciário e é também um problema de dar ao juiz as condições para ele se transformar efetivamente em um magistrado. Porque o juiz, mesmo depois que ele venceu um concurso e se tornou juiz, aí que começa a amadurecer. Nada é mais difícil do que exercer uma função de julgador. De maneira que esse... como estão vendo, quantos problemas existem de ordem administrativa, de ordem financeira, de ordem cultural e, sobretudo, de consciência histórica, que é uma exigência em toda parte e também nesse problema.
Antônio Carlos Pereira: E o senhor percebe a existência de vontade política por parte do governo, das autoridades, das organizações civis, de resolver esse problema, que é sério?
Miguel Reale: A Constituição atual estabeleceu determinadas diretrizes que diminuem, de certa maneira, o poder de interferência do poder executivo. Foi dada autonomia ao poder judiciário e, talvez, até certo ponto, demasiada, porque não creio que a dignidade de um poder esteja na [sua] extensão. De maneira que, hoje em dia, o poder judiciário reservou para si uma série de atribuições. Não sei se foi o poder judiciário, se ele convenceu a estrutura intelectual do país no sentido de ter essa comissão, de ter essa solução constitucional. De certa maneira, eu me sinto com uma certa responsabilidade, porque pertenci à Comissão Arinos [oficialmente denominada Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, ficou popularizada como Comissão Afonso Arinos, por ter Afonso Arinos de Melo Franco como seu presidente. Era formada por juristas e estudiosos das mais diversas áreas e tinha como objetivo elaborar o anteprojeto Constitucional para a Constituição brasileira de 1988], a comissão nomeada para estabelecer um projeto da futura Constituição. E o poder judiciário que está aí, de certa maneira, é o poder judiciário formado, em termos gerais, por essa comissão. E eu tive ocasião de fazer algumas propostas. Há muitos anos que se vinha reclamando a criação de um Superior Tribunal de Justiça; talvez um dos primeiros juristas a reclamá-lo, há mais de 40 anos, foi quem está falando neste instante. Porque era impossível dar ao Supremo Tribunal Federal tantas atribuições de natureza constitucional e subconstitucional. Então, essa estrutura nova que está aí, eu não nego a responsabilidade, porque dei meu voto favorável e foi aprovado pela Comissão Arinos. Nem tudo, infelizmente, aprovado pela Comissão Arinos, em matéria eleitoral – por exemplo, em matéria de estrutura política de partido e assim por diante – foi acolhido pela Constituição. Mas, no que se refere ao poder judiciário, não há dúvida nenhuma. Essa comissão foi presidida, aliás, por um, hoje, ministro do Supremo Tribunal, Sepúlveda Pertence e lá está um grande jurista do país. Essa comissão tem uma obra e virá um tempo em que se fará um confronto mais tranqüilo, mais sereno entre a proposição Arinos, de um lado, e a Constituição de 88 [do outro]. [Assim] como muita coisa foi aproveitada, infelizmente, muita coisa foi esquecida ou distorcida.
Ives Gandra Martins: Agora, professor, o senhor não acha o seguinte: nós tivemos a aprovação da Constituição de 1988. Na Constituição, com 315 artigos naquele momento, ela criou uma série de problemas que tinham que ser levados à Justiça. Basta dizer que o Supremo Tribunal Federal, hoje, tem 11 ministros e receberam 40 mil processos no ano de 97.
Miguel Reale: Exato.
Ives Gandra Martins: Vou dar um exemplo. Na corte de cassação italiana – porque lá existe a corte constitucional e a corte de cassação – , eles têm 352 juízes. Receberam, em 1995, 27 mil processos e todos reclamaram de excesso de trabalho.
Miguel Reale: Exato.
Ives Gandra Martins: 11 ministros receberam 40 mil processos.
Miguel Reale: Sim.
Ives Gandra Martins: Se nós analisarmos o Superior Tribunal de Justiça, professor, eles estão hoje sem condições de decisão. Pergunto ao senhor: não seria preferível termos duas simplificações? Primeiro, tornar o Supremo Tribunal Federal apenas uma corte constitucional. O Superior Tribunal de Justiça apenas para harmonizar a jurisprudência, nada mais do que isso e fazer com que, na redução da série de recursos processuais, tenhamos apenas um juiz de primeira instância e um tribunal colegiado para a administração de Justiça. Será que não teríamos, com isso, uma redução da série de recursos? Porque hoje, a rigor, o Brasil tem quatro instâncias judiciais; qualquer advogado que começa na primeira instância tem condições de levar o seu processo ao Supremo. O que o senhor acha?
Miguel Reale: Meu caro Ives, sendo um advogado militante há tanto tempo, já deve estar convencido de que ter duas decisões apenas de mérites [essência da causa; o motivo que deu origem ao processo], sobre o mérito da causa, é muito arriscado. Essa idéia de um juiz e um tribunal superior, extinguindo-se outras possibilidades de recurso, me parece um pouco arriscada. Eu penso que há outros caminhos a serem seguidos. Se nós analisarmos o número e a qualidade de feitos que estão em andamento nos tribunais, nós verificaremos que uma porcentagem das ações administrativas, das ações tributárias, das ações financeiras, das ações, em que há interesse de funcionários públicos e assim por diante, é imensa. Os dados ainda são incertos, mas eu tenho ouvido falar em 60%, em 50%, em 40%. Pois eu tenho batalhado há tantos e tantos anos pela criação de uma Justiça administrativa no Brasil. Existe na Itália, existe na França, existe em toda parte. E nós aqui queremos que a Justiça seja uma Justiça para todos, para o cidadão comum e para a estrutura do Estado. De maneira que eu sou...
Ives Gandra Martins [interrompendo]: Quer dizer, o senhor fala em um contencioso administrativo semelhante à francesa?
Miguel Reale: Não uso a expressão "contencioso administrativo"...
Ives Gandra Martins: Não é semelhante à francesa?
Miguel Reale: Porque o uso da palavra contencioso administrativo já significa por fora, na Justiça, aquilo que chamo de justiça administrativa, então, mas que seria uma justiça especializada, com juízes em grande número para atender...
Ives Gandra Martins [interrompendo]: Sim, é como na França. Eles chamam de contencioso administrativo, mas é um tribunal independente..
Miguel Reale: Sim, mas como no Brasil... Mas aqui fala um pouco da experiência vivida de um batalhador no sentido do contencioso administrativo que sempre... Mas um contencioso – e a Justiça? Então para evitar que venha logo essa oposição, essa objeção, eu digo: será uma Justiça tanto como a outra. O que precisa é saber que um juiz administrativo é um juiz. Há certos complexos no Brasil que poderiam superar e um deles é esse.
Manoel Alceu A. Ferreira: Professor, para a minha geração de advogados, o senhor sempre foi uma referência e um exemplo. Indiscutivelmente, isso aconteceu e acontece com a minha geração de advogados, que é anterior à do Ives e anterior à do Luiz Francisco...
Ives Gandra Martins [interrompendo]: Mas eu fui aluno do professor. Fui aluno e me honro de ter sido aluno.
Manoel Alceu A. Ferreira: Mas, de qualquer maneira, professor, o senhor certamente como advogado, não só como jurista, mas como advogado, o senhor está na mesma galeria em que estão San Tiago Dantas [(1911-1964) jurista importante nos anos que antecederam o golpe militar de 1964. Apesar de ter sido na juventude membro da Ação Integralista Brasileira, ocupou nos anos 1960 o Ministério da Fazenda e implementou o Plano Trienal], Sobral Pinto [(1893-1991) conhecido por atuar na defesa dos direitos humanos, especialmente durante a ditadura do Estado Novo e a ditadura militar instaurada em 1964], Seabra Fagundes [(1910-1993) conhecido por ter se tornado o mais jovem desembargador do Brasil. É autor do livro O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário, referência em direito administrativo] e tantos outros nomes que honraram a advocacia. Como o senhor vê hoje a advocacia? A advocacia de hoje é menos ou mais preparada do que a advocacia de 30 anos atrás?
Miguel Reale: É muito difícil formular um juízo tão universal como esse. Nós temos grandes advogados hoje em dia, ao mesmo tempo, temos muitos advogados que só sabem a questão que acabam de receber. O professor substituto [também]. Hoje, ele é aquele que só sabe a aula que vai dar amanhã. De maneira que isso tudo mostra uma crise do professorado, de um lado, e uma crise do juiz, de outro. Essa crise do juiz não será, antes, uma crise da docência jurídica? Não será antes uma crise da formação do advogado? Essa multiplicidade enorme de faculdades de direito pelo país? Nós temos mais faculdades de direito do que a Europa toda.
Manoel Alceu A. Ferreira: E o senhor acha que o distanciamento do advogado da vida pública, substituído pelo economista, isso de alguma maneira tem influência?
Miguel Reale: Isso tem uma conseqüência muito grave. Ainda agora, com o Código Civil no Senado, a grande dificuldade que nós encontramos, o grande empecilho que nós vimos e que nós vivemos, foi a falta de juristas no Senado. Se nós olharmos para o Senado do Império e, mais ainda, quando o Senado da Primeira República era um ninho de juristas. Onde está o Ruy Barbosa [(1849-1923) jurisconsultor conhecido pela inteligência e por engajar-se no movimento abolicionista no final do século XIX , atuou de forma relevante na República Velha, ganhando projeção internacional durante a Conferência da Paz em Haia (1907), defendendo com brilho a teoria brasileira de igualdade entre as nações] do Senado? Nós temos algumas grandes figuras isoladas, mas não temos mais aquelas figuras excepcionais, mesmo depois de 46, 46... a Constituição de 46 é uma Constituição rica de contribuições jurídicas...
Ives Gandra Martins: A do Telles, Goffredo [foi vice-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, entre 1966 e 1969, e integrante da Carta aos Brasileiros, escrita por juristas importantes que apelavam para a volta do estado de direito no país. Aposentou-se em 1985 e recebeu o título de professor emérito da Universidade de São Paulo ]...
Miguel Reale: Rica de saber jurídico. E, no entanto, nós... Atualmente, a Câmara dos Deputados tem juristas, sem dúvida alguma, alguns mestres de direito, professores de direito, mas, em proporção àquilo que estava no passado, há uma queda. Então, eu perguntaria...
José Nêumanne [interrompendo]: O senhor atribui isso a um excesso de...
Miguel Reale [interrompendo]: Eu perguntaria aqui, antes de falar na crise da Justiça, na crise da Faculdade de Direito, na crise disso e daquilo, se não há uma crise na imagem do direito mesmo. Não há um direito formalizado, parado, engessado, então vamos abrir um pouco essas comportas para fazer percorrer um pouco o ar que se respira na sociedade civil. É um direito que está desprendido da sociedade civil. Essa é a verdade. Aqui é faro de um filósofo do direito, pelo menos alguém que se julgou capaz de filosofar no direito, o que é um risco danado.
José Nêumanne: Quer dizer, há um excesso de advogados, há um excesso de faculdades de direito, um excesso de advogados e por isso mesmo há poucos juristas? O raciocínio seria esse?
Miguel Reale: Em proporção sim. Em proporção não há dúvidas. Se nós pensarmos...
José Nêumanne [interrompendo]: Devemos isso à pacificação...
Miguel Reale [interrompendo]: Ainda dizia isso a meu filho...
Ives Gandra Martins [interrompendo]: Mas o professor está dizendo algo mais...
Miguel Reale: ...e aos meus netos, ao virem para cá, o Miguel e o Eduardo, ambos professores de direito, porque felizmente a minha descendência tem vocação jurídica e para o professorado... dizia que, em 1835, entraram para a Faculdade de Direito dois gênios: Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente [(1803-1878) jurista e político, especialista em direito civil no século XIX, contribuiu na elaboração da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871], filho de pais ignorados – filhos de padre, naturalmente, e que eram de pais ignorados – e, ao mesmo tempo, Teixeira de Freitas, o Barão de Cachoeira [(1816-1883) jurista importante do século XIX. Ficou encarregado de compilar e organizar a legislação civil do país após a proclamação da Independência. Seu esboço, contudo, não foi convertido em lei devido às dificuldades em definir a condição civil do escravo], da aristocracia baiana. E esses dois gigantes fizeram o direito do Brasil. O direito privado e o direito público.
Ives Gandra Martins: O Teixeira de Freitas, o Código Civil argentino...
Miguel Reale: Então, é..
Ives Gandra Martins: E o Teixeira de Freitas no Código Civil argentino...
Miguel Reale: Aí, o Pimenta Bueno fez a unidade do direito privado, a unidade dos direitos das obrigações e Pimenta Bueno fez a nova Constituição do Império. Praticamente foi ele que o fez, porque o direito é a sua interpretação e ele interpretou e consolidou o texto, que era pobre, ele o tornou grande pela interpretação e pela construção.
Luís F. Carvalho Filho: Professor, o senhor já falou dos juízes, já falou dos advogados e eu queria colocar para o senhor a questão do Ministério Público. Como o senhor vê a atuação do Ministério Público hoje? Eles adquiriram um poder muito grande na Constituição e muitos se arvoram intérpretes da sociedade civil e representantes do povo. Eu gostaria de que o senhor falasse sobre isso.
Miguel Reale: Sim. Esse é um assunto muito delicado. Eu me sinto tranqüilo – deixe-me tomar um pouco de água – para falar sobre esse assunto. Eu me sinto tranqüilo, porquanto de certa maneira exerci certa influência para dar essa estrutura ao Ministério Público. Reconheço que o Ministério Público deve ter uma atuação autônoma, mas não se transformar em vedete, porque há uma certa limitação na condução do jurista. Acho que o Ministério Público não pode efetivamente deixar de ter uma grande autonomia e foi dada essa autonomia. Nós temos tido algumas rusgas em matéria de entendimento dos problemas, porque eles têm às vezes avançado um pouco, chamando assim poderes que são do juiz; e, ao contrário, eles têm que manter o seu poder fundamental, que é o de Ministério Público, que é tão importante como o do juiz. Porque é a nova dialética da Justiça: se o Ministério Público é pobre, a Justiça também é pobre. Mas isso não significa que o Ministério Público deva ser tudo. Ele tem que ter consciência das suas limitações, porque, quanto mais consciência tiver da sua missão, mais se sentirá limitado e nisso não haverá mal nenhum, porque um jurista que se sente limitado deve ter, antes de mais nada, consciência de que quem diz "direito" diz "prudência" e a prudência é o limite entre a consciência e o limite.
Ives Gandra Martins: Agora, uma manifestação particular. Um minutinho só para concluir o pensamento do professor. Nesse particular, de rigor, o poder judiciário é o terceiro poder. Na Constituição, os órgãos essenciais, mas auxiliares do poder judiciário, são, de um lado, o Ministério Púbico e de outro lado a advocacia. Eu aponto a advocacia, que está no mesmo nível constitucional.
Miguel Reale: Exato. É uma das inovações interessantes que funciona desde 1988: ter transformado a advocacia em um órgão da Justiça.
Ives Gandra Martins: Exatamente. Eu considero. Mas, no momento em que a advocacia é fundamental, até para pôr a máquina judiciária em funcionamento, em relação ao Ministério Público – embora [seja] um órgão essencial e importante de defesa da cidadania – às vezes não se tem a sensação de que se tem um quarto e superpoder. Porque é o único poder que se coloca acima do poder judiciário, do poder legislativo e do poder executivo. Porque, de certa forma, é um poder irresponsabilizável. Será que, quando o senhor falou em vedete, seria um poder irresponsabilizável, porque eles podem tentar responsabilizar a todos e não podem ser responsabilizados?
Miguel Reale: Não sou tão pessimista assim. Porque, na minha atividade...
Ives Gandra Martins: Estou perguntando, professor.
Miguel Reale: Como parecerista, sobretudo, mais que como advogado, tenho assistido, tenho acompanhado as decisões do poder judiciário cortando as asas de muitas pretensões do Ministério Público.
Ives Gandra Martins: Dos direitos públicos homogêneos, por exemplo?
Miguel Reale: Mas reconhecendo também, por outro lado, a competência que ele efetivamente tem, que é nova, é útil. De maneira que é uma questão de equilíbrio. O poder judiciário [sabe] preservar as suas prerrogativas, tanto aqui, como na Suprema Corte; tanto nos tribunais de São Paulo, como dos próprios juízes de primeira instância, como no Supremo Tribunal. E é até bom que haja um certo contraste, porque somente através do contraste é que existe uma centelha da verdade.
Alberto Dines: Professor, eu talvez seja o único que não seja bacharel aqui desta mesa e, preocupado como cidadão, ia levantar justamente a questão do Ministério Público. Como cidadão, tenho visto que o Ministério Público é realmente o poder que pode me atender e já me atendeu algumas vezes em grupos de ação civil, uma série de coisas assim. Acho, inclusive, que a designação de um "quarto poder" vem muito a calhar, porque a imprensa está perdendo esse poder de ser o quarto, porque ela hoje virou um negócio, pelo menos é a minha posição pessoal. Mas queria que o senhor elaborasse um pouco isso, quer dizer, vendo pelo lado da cidadania, do acesso do cidadão a uma série de discussões, de debates. O Ministério Público é uma abertura extraordinária, nova e que, a meu ver, justifica ser chamado, pelo menos até agora, como o novo quarto poder.
Miguel Reale: Que Deus nos livre do quarto poder. É que já temos poderes demais, os três que, na realidade, representam três atitudes e feições da sociedade civil e do Estado. Não há necessidade de que o Ministério Público se converta em um quarto poder...
Alberto Dines: Sim, seria uma formalidade?
Miguel Reale: ...Para que ele exerça a sua função. Função da maior responsabilidade, porque ele é o intérprete da sociedade civil, ele é um instrumento de ação da sociedade civil, não há dúvida nenhuma. Ele é um dos instrumentos, porque o outro é o advogado. Muitas vezes se põe de lado o advogado, mas o que há nesse país de iniciativa do advogado? Sem pensar em honorários, sem pensar em retribuição material, assumindo defesas de pessoas que não têm condições de pleitear algo, é impressionante. Não vamos transformar também o Ministério Público em salvador da pátria, o único salvador da pátria. Porque reivindico para a classe dos advogados, também, essa prerrogativa.
Alberto Dines: Mas é uma porta de acesso à cidadania. Sobretudo para causas... causas públicas.
Miguel Reale: Mas não há dúvida nenhuma. A Justiça no Brasil, a condição de pleitear em juízo no Brasil é concedida com muita facilidade. O que há é uma ignorância do povo em relação a essa possibilidade de obter a justiça gratuita. Porque na realidade ela é obtida com relativa facilidade e os advogados jamais têm se recusado a isso, ao contrário: há uma certa dedicação a esse trabalho. Então, vamos reconhecer que se o Ministério Público é necessário; o advogado, como coletividade, também é.
[...]: Exatamente.
Miguel Reale: E é por essa razão que eu louvo a Constituição quando diz que são instrumentos da Justiça os órgãos do poder judiciário, o Ministério Público e a advocacia.
José Nêumanne: Professor, como o Dines, eu também não sou bacharel, eu sou jornalista e essa pergunta dele me...
Miguel Reale: Mas é importante que não seja só bacharel, seria muito maçante se essa nossa reunião aqui fosse uma troca de idéias de bacharéis.
José Nêumanne: Então vou apelar para a sua condição de articulista – brilhante articulista na Página Dois [seção de opinião] do Estado [O Estado de S.Paulo] e às vezes no Jornal da Tarde também – para lhe fazer uma pergunta em cima, mais ou menos, do que o Dines falou, que eu acho que é uma questão crucial: os meios de comunicação, principalmente a imprensa, se transformaram em um negócio, e abriram mão da sua condição, quer dizer, tem-se transformado ao longo do tempo e tem aberto mão também de sua condição de trincheira de combate político para virar um negócio. Talvez por isso, nós estamos vendo essa substituição do quarto poder pelo Ministério Público. Gostaria de saber qual é a sua meditação de filósofo e de uma pessoa ligada aos anseios da sociedade a respeito dessa questão. O senhor tem sentido isso, essa transformação nos meios de comunicação no negócio, esse abandono da trincheira de combate pelos jornais, para se transformar em apenas um negócio de comunicação pelas emissoras de televisão que estão se transformando em um valhacouto de todo tipo de baixo instinto?
Miguel Reale: É, esse problema apontado pelo Nêumanne é muito importante e é um dos mais graves de nossa época. Porque nossa época é marcadamente uma época de comunicação. Diria, talvez, nas minhas meditações filosóficas, que o nosso tempo apresenta dois valores essenciais: um é a comunicação, o outro é a hermenêutica, é a interpretação daquilo que se comunica. De maneira que, nessa nossa época, a crise da comunicação existe e, por via de conseqüência, existe a crise da interpretação e, portanto, dos valores que se comunicam ou que se deixam de comunicar, de maneira que o problema é extremamente delicado. O impressionante é que, tendo todos os poderes mecânicos de engenho em matéria de comunicação, ela tenha servido tampouco em benefício da humanidade. Esse é o ponto, estou procurando responder. Porque as perguntas feitas aqui estão me surpreendendo por outro ângulo: é que se faz pergunta em um minuto e precisaria de dois anos para responder. Parece que o problema é esse, não é? A nossa época é uma época tremenda... Há uma crise do rádio, há uma crise da televisão, há uma crise de todos os meios de comunicação.
Luís F. Carvalho Filho: O senhor conhece a internet, professor?
Miguel Reale: Conheço a internet mais ou menos. Mas eu não tenho tido...
Luís F. Carvalho Filho: O senhor não gosta de...
Miguel Reale: Não. Eu confesso que ainda não encontrei nada de que não gostasse, o que não tenho é oportunidade para gostar de tudo como se deve. De maneira que essa é que é a grande dificuldade. Eu tenho medo de que a internet assuma o tempo que me resta.
Ives Gandra Martins: Agora, professor – rapidamente, Matinas – o Giscard d’Estaing [(1926-) presidente da França entre 1974 e 1981], em 1977, escreveu um livro chamado...
Miguel Reale: Quem?
Ives Gandra Martins: O Giscard d’Estaing, que foi presidente francês, escreveu um livro chamado A democracia francesa. E ele falava em quatro poderes e diz: “Uma democracia só existe quando há quatro poderes absolutamente independentes: o poder político, o poder sindical, o poder econômico e o poder da imprensa”. E ele concluía no livro: “Cada vez que esses quatro poderes se contaminam – o poder sindical deseja ter o poder político, o poder da imprensa deseja ter o poder econômico – nós temos uma falsa democracia”. O senhor, como filósofo, o que acha desse pensamento?
Miguel Reale: Bom, em primeiro lugar, eu não chamaria de poder. Eu acho que a palavra poder tem que ser conservada na estrutura institucional do Estado.
Ives Gandra Martins: Poder político.
Miguel Reale: O poder é uma expressão organizada da força política, que se traduz como força política judiciária, como força política governamental e como força política legislativa. O que se acrescenta a isso são sucedâneos do poder, não são? Vamos dizer que a imprensa é um poder, eu diria mais... é uma grande força, vamos usar a palavra força, é uma grande força, inegavelmente. E eu não vejo decadência na imprensa, isso que é um ponto mais importante, eu não vejo. Comparando a imprensa brasileira atual com a imprensa do passado, eu não tenho sentido essa decadência de que se fala tanto. O que há é uma falta de acesso da massa à imprensa. A massa é dominada pelo rádio, é dominada, sobretudo, pela televisão. Então, é este o grande problema: estará a televisão adequada à sociedade ou então nós teremos esse problema tremendo, descer a comunicação existente ou fazer com que a comunicação suba? Ests é o grande desafio. Eu tenho a impressão de que a televisão seria um instrumento extraordinário de informação e formação da sociedade civil para subir de nível e receber, através [dela], aquilo que pode lhe ser fornecido.
José Nêumanne: O Matinas está louco para lhe fazer uma pergunta, mas não vou perder a chance que o senhor está dando aí...
Matinas Suzuki: Não, não sou eu, não. Vocês não estão deixando os telespectadores perguntarem...
José Nêumanne: E é o seguinte: o senhor acha, então, que os jornais de hoje são tão fortes como eram antes, por exemplo, como o Estado, que fez a República? Os jornais hoje...
Miguel Reale [interrompendo]: Acho que sim.
José Nêumanne: São tão fortes como eram antes?
Miguel Reale: Porque, veja bem, podem me dizer que eu seja um elitista: não sou um elitista, cultivo a elite da cultura, isso sim. Acho que um país só se eleva quando ele transmite cultura para a sociedade civil. Infelizmente a sociedade civil brasileira não tem o grau de cultura que devia ter. Não gosto de fazer comparações, mas, mesmo na América Latina, a nossa posição não é excepcional em termos de preparo cultural.
Ives Gandra Martins: Isso é verdade.
Miguel Reale: Em termos de participação nos valores fundamentais da vida. Então, é natural que a televisão tenha sido levada a esse mal que foi apontado, a uma televisão que quer explorar o mais que pode uma situação periclitante e não aceitou o desafio de trazê-la para cima, de fazê-la subir consigo. Porque ninguém, meus amigos, é superior à sociedade em que vive. Quem se eleva, carrega a sociedade consigo mesmo. E nisso, portanto, está sempre no mesmo nível, em um nível de excelência..
Ives Gandra Martins: Certo.
Miguel Reale: É isso que nós devíamos procurar. E não existe.
Matinas Suzuki: Por favor. Por favor. Peço desculpas, mas tem vários telespectadores também que estão querendo fazer perguntas ao professor. Uma delas, do Rio de Janeiro, é a Ana Paula Leão, ela diz o seguinte: “Tenho 19 anos e sou estudante de direito. Gostaria de expressar a felicidade, o prazer e, sobretudo, a admiração de poder assistir a mais uma aula de Miguel Reale e também a satisfação de ter me iniciado no mundo jurídico através de Lições preliminares de direito, de Miguel Reale. Gostaria de fazer uma pergunta: o que você acha da proposta de reforma do Código Civil, quais seriam as vantagens e quais seriam as desvantagens?”
Miguel Reale: Bom, sou meio suspeito para falar dessa proposta, porquanto, em primeiro lugar, queria agradecer muito essa pergunta, porque os meus maiores amigos são os estudantes que lêem meus livros. Tenho a impressão de que tenho dezenas e, como professor, com 40 anos de exercício de magistério, formei mais ou menos 12 mil advogados pelos cálculos que já fiz, mas o número é muito maior se levo em conta aqueles que lêem os meus livros, sobretudo Lições preliminares de direito, aqui e na Espanha. É um livro que a mim me surpreendeu, foi um livro que surgiu por amizade do Teófilo Cavalcante, meu caríssimo Teófilo, que pegou minhas velhas preleções de direito e entregou para o editor. E o editor editou esse livro e eu disse: não, não pode ser, e tranquei-me em casa e em cerca de três meses elaborei o livro. E esse livro mantém o cheiro e o sabor da sebenta [da natureza do sebo], a flor e o sabor da preleção e está no bojo dos estudantes. Mas agradeço a essa amiga que me teve por essa pergunta. Quanto ao Código Civil, é claro que o Senado realizou uma grande obra e devo, sobretudo, a dois grandes baianos: Antônio Carlos Magalhães [(1927-2007) empresário e político baiano com grande influência em seu estado, figura de sustentação dos governos militares, manteve-se influente em nível nacional também após a redemocratização do país], presidente do Senado, e Josafá Marinho [deputado estadual e senador por Pernambuco, participou da Constituinte em 1946 e ainda do governo Jânio Quadros], como relator geral. Primeiro houve a decisão de Antônio Carlos Magalhães de pôr em movimento o Código que estava parado havia 14 anos no Senado e ele resolveu acordar o Senado para a problemática do Código Civil e entregou o relatório geral às mãos de Josafá Marinho, que, inegavelmente, é um grande jurista, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, e assumiu a responsabilidade de fazer o relatório e submetê-lo depois aos relatores parciais. E assim foi possível aprovar-se no Senado o projeto do Código Civil que agora deve ir à Câmara dos Deputados. Mas há uma certa demora, porque não basta aprovar o Código, o Código é um sistema com dois mil e tantos artigos, o que não é demais, porque envolve toda a atividade do homem comum e suas múltiplas manifestações.
Matinas Suzuki: E tenho aqui várias perguntas que também entendo que sejam de jovens. O Mauro Pereira, da Móoca, pergunta se o senhor concorda com o atual critério para seleção para juízes e promotores públicos. Se o senhor não concorda, qual seria o critério ideal? Vou fazer mais algumas que são mais ou menos sobre o mesmo tema. O Albert Catá, que é de Bauru, se o senhor concorda com o atual exame para a magistratura brasileira? O que o senhor espera...
Miguel Reale: Essa pergunta não entendi.
Matinas Suzuki: Concorda com o atual exame para a magistratura brasileira? O que espera de um candidato a juiz? E o Joselito de Souza, advogado de Alfenas, Minas Gerais: “Há uma grande procura hoje dos jovens pelo curso de direito, objetivando a magistratura ou o Ministério Público. Até que ponto o fato de eles serem muito jovens pode beneficiar ou prejudicar a Justiça?"
Miguel Reale: Bom, não vejo outro processo para a seleção, como selecionar a não ser através de provas, provas orais e provas escritas como tem sido.?Há uma variação: em certos momentos prevalece um critério, ora outro, mas em linhas gerais nós não podemos condenar. O que está havendo é um despreparo daqueles que se apresentam. Infelizmente é isso que tem acontecido. Os exames muitas vezes são feitos por advogados e os advogados, evidentemente, que querem se proteger, porque o advogado sabe que a sua causa depende de um bom juiz. E então opera um trabalho natural, que é o trabalho de selecionar, de maneira que por aí não vejo que possa haver algo que mereça crítica. Pode-se aperfeiçoar o sistema, mas pensar em mudá-lo, não. O importante é que os estudantes compareçam ao exame munidos de certa capacidade de conhecimento e de poderes expressional. E aqui perdoe se interrompo um pouco a parte jurídica para dizer uma coisa como professor: o que me tem impressionado muito, o que me tem impressionado demasiadamente é a falta de capacidade expressional das novas gerações. Esse é um ponto calamitoso. Há advogados que conhecem o Código, mas não sabem escrever. E há juízes que... Ainda há pouco tempo estava lendo uma sentença e fiquei impressionado, estava tudo certo e estava tudo errado – certo como conteúdo e errado como expressão, até do ponto de vista gramatical. Então nós estamos diante de uma crise que transcende o campo jurídico para atingir os valores da educação, os valores intelectuais. Então pergunto: não será uma crise do ensino e nós estamos vendo só o ângulo do problema? E perguntarei: será que os engenheiros estão contentes com o que se passa no setor da engenharia e assim por diante? Não será antes um problema muito mais amplo, muito mais desafiante e um desafio muito maior para nós todos?
José Nêumanne: Só para dar um argumento para o senhor: os engenheiros todos do Brasil que fizeram o provão agora, a média geral foi 1,8.
Miguel Reale: 1,8.
José Nêumanne: Em dez. Sobre dez. 1,8.
Miguel Reale: Então, nós estamos diante... Esses provões têm...
José Nêumanne: Os advogados pelo menos tiraram quatro.
Miguel Reale: Não acredito muito nessas expressões pacificadoras. Mas, de qualquer maneira, tem um mérito: é de apontar o problema. Ela não dá a cura, não dão o conserto, [mas] já é muita coisa.
Ives Gandra Martins: Agora, apenas um dado. Apenas confirmando esse dado...
Miguel Reale: Aqui me deram autorização...
Ives Gandra Martins: Sobre os critérios de que o professor falou...
Miguel Reale: Me deram a instrução para fazer um giro, um pouco para lá, um pouco para cá...
Matinas Suzuki: Dois para lá, dois para cá, como em um bolero.
Ives Gandra Martins: Sobre os critérios de exame. Tanto Manoel Alceu quanto eu já fizemos tanto para magistratura estadual quanto federal. São aprovados em torno de 3% dos candidatos, são reprovados nos exames para magistratura e para o Ministério Público 97% dos candidatos que se apresentam. Então esses que são aprovados, teoricamente, são os melhores, porque são quatro ou cinco ou seis meses de exames, exames pesados, não é Manoel?
Manoel Alceu A. Ferreira: É verdade.
Ives Gandra Martins: O senhor confirma?
Miguel Reale: É muito importante que, em uma reunião destinada à crise do direito, se tinha chegado... parece que é uniforme a conclusão, foi uma crise da inteligência e da cultura.
Luís F. Carvalho Filho: Voltando ao Código Civil, gostaria de fazer uma pergunta ao senhor a respeito de uma proposta que já está no Congresso, que é a do reconhecimento jurídico da união estável de homossexuais e todos os reflexos disso, que vai desde a adoção até questões sucessórias etc, enfim, qual é a sua opinião pessoal sobre essa proposta? O senhor tratou isso de alguma maneira no seu Código Civil?
Miguel Reale: Bom, a questão é muito oportuna. Naturalmente há um grande erro na proposta feita... É no Senado ou na Câmara dos Deputados?
Luís F. Carvalho Filho: Na Câmara.
Miguel Reale: Acho que é na Câmara dos Deputados...
Luís F. Carvalho Filho: Pela deputada Marta Suplicy.
Miguel Reale: Há um erro, porque o problema não é direito civil, o problema é direito constitucional.
[...]: Exatamente.
Miguel Reale: A Constituição é muito clara quando trata da união estável, quando diz: “A união estável é uma união entre pessoas de sexo diferentes".
Ives Gandra Martins: Artigo 226.
Miguel Reale: A Constituição é que diz isso. A união estável é uma união entre pessoas de sexos diferentes, que vivem em comunhão, como se casados fossem, compreendem? E que o Estado tudo fará para transformá-lo em casamento. Então, não há como encaixar na união estável o casamento de... De maneira que o problema não é esse. Por outro lado, é preciso ter consciência do que seja código. O código é uma sistematização da vida jurídica que realiza determinados pressupostos. O primeiro pressuposto tem uma certa durabilidade, uma certa estabilidade. O Código Civil, por exemplo, que fez a união das obrigações, não a união do direito privado, de maneira alguma. Nós nunca pensamos em fazer a unidade do direito privado, nós nos limitamos a fazer e a consolidar aquilo que já era uma realidade no Brasil, a unidade das obrigações em virtude de ser vetusto [antigo] o código comercial. Nenhum advogado advoga hoje citando o código comercial...
Luís F. Carvalho Filho: Claro.
Miguel Reale: ...e sim o Código Civil. Então há unidades e obrigações por força mesma das circunstâncias. Mas, veja bem, o Código Civil somente coloca no código... olha, o legislador só pode colocar em um código aquilo que tem uma certa estabilidade e uma certa perspectiva de duração e onde já se há um certo acordo na maneira de ver os problemas. É a razão pela qual, no Código Civil, não está a lei de sociedade por ações. A lei de sociedade por ações, que é uma realidade fundamental, não está no código, porque não se limita apenas ao direito civil, ela joga com o mercado de capitais, ela joga com problemas financeiros, ela joga com problemas tributários, então extrapola o Código Civil. A mesma coisa é querer colocar no código o bebê de proveta, é um absurdo. Porque o bebê de proveta pressupõe uma legislação especial que vai estudar problemas de genética, problemas técnicos que transcendem, que vão muito além da normatividade jurídica.
Luís F. Carvalho Filho: Mas gostaria de ouvir a sua opinião em torno dessa questão. O reconhecimento jurídico...
Miguel Reale: Tenho a impressão de que, assim como o concubinato andou, passou para lá, para cá, até chegar a união estável, depois de muitos e muitos anos, felizmente o Código Civil não confundiu união estável com concubinato. A união estável não é concubinato. O concubinato é uma união à margem do casamento. A união estável é uma união no sentido do casamento, tanto que a Constituição diz: “E o Estado tudo o fará para convertê-lo em matrimônio”. Vejam bem, a diferença é muito grande. O concubinato é uma aventura marital, não é? Porque é muito difícil hoje, diante da unidade absoluta do homem e da mulher. Às vezes, há certas dificuldades, porque nós estamos tão habituados a usar o masculino, que quando usamos sem nenhuma intenção as mulheres protestam. E têm razão para protestar, porque elas hoje representam até talvez a maioria, não apenas quantitativa, mas também do ponto de vista qualitativo, em muitos aspectos da inteligência e da cultura. E aqui estou prestando uma homenagem, não é por receio, não, é por admiração e amor...
Matinas Suzuki: Vamos então a uma pergunta de uma mulher, professor.
Miguel Reale: ...a todas as mulheres que estejam ouvindo esse programa. Mas, então, o que quero dizer é que essa precipitação de querer resolver o problema do bebê de proveta, a união dos rapazes ou das moças que vivem em união estável é, sem dúvida, talvez, uma estrutura familiar do futuro próximo. Mas, por enquanto, é muito cedo para colocar isso em um código.
Ives Gandra Martins: Espero que nunca aconteça.
Miguel Reale: Não tem cabimento, não tem sentido. Em primeiro lugar, que reforme a Constituição, reforme o artigo da Constituição, depois o civilista pode falar, porque ninguém pode legislar contra a disposição constitucional.
Odete Medauar: Professor Miguel Reale, nós estamos em período de vestibulares, que movimenta um número muito grande de jovens na busca de uma formação profissional. Estamos em uma época em que saem resultados do chamado provão, em que aponta então alguns desempenhos de universidades públicas e universidades privadas. O senhor foi reitor da Universidade de São Paulo em duas ocasiões, o que é algo raro aqui no Brasil. Como o senhor vê a questão da universidade pública e da universidade privada, há saída para essas duas universidades?
Miguel Reale: O problema apresentado pela professora Odete Medauar é dos mais amplos e dos mais difíceis para uma resposta em tão pouco tempo. Quero dizer que, efetivamente, o problema tem vários aspectos. Não há dúvida nenhuma de que não há outra solução senão essa. Nós optamos no Brasil, [de acordo] com exemplo americano, sobretudo na área do ensino público, por um número-limite de aulas. A Faculdade de Direito, por exemplo, não pode ter mais que 450 alunos, três turmas de 150, pelo menos era assim no meu tempo e penso que ainda é. São três turmas de 150, portanto eram 450 para uma grande estrutura docente, onde todos são professores mediante concurso e gradativamente passam de professor, inicialmente, de instrutor passa para doutor, depois de doutor para livre-docente e assim por diante, quer dizer, é uma estrutura hierárquica para 450. Se nós olharmos, por exemplo, para a Argentina – ainda conversava a semana passada com um grande mestre argentino –, a Argentina tem uma faculdade de direito com 26 mil alunos, e não 450. Portanto, em cinco anos são dois mil e pouco. São 26 mil estudantes, então nós estamos diante de uma situação como essa. Ou nós preservamos aquela faculdade de direito que representará, sem dúvida nenhuma, a reserva da cultura do país ou então abrimos as comportas e não haverá possibilidades de salvar nada. Essa é que é a realidade com a qual nos defrontamos. Então é natural que os institutos oficiais se fechem e se fechem com prudência, limitando o número para a engenharia, para a química, para a filosofia, para direito e assim por diante, é natural que pipoquem em institutos privados e alguns deles começaram mancando. Mas tenho visto e tenho assistido com certa alegria, até, que certos institutos, que antes eram negativos 100%, aos poucos estão se aperfeiçoando, aos poucos estão recebendo elementos de fora, há uma melhoria também no setor privado. O número de faculdades de direito que hoje olho com uma certa confiança, cresceu muito de 30 anos para cá, de maneira que, olhando as coisas com um certo senso de equilíbrio e uma certa prudência em emitir juízos, não sei se nós não vamos ter uma solução preferível, abrir as comportas. O que adiantará para o Brasil ter faculdade de direito de 30 mil alunos em direito, 40 mil em economia e assim por diante? Nós estaremos fabricando milhares de autodidatas, essa é que será a verdade, então o problema tem aspectos muito complexos.
Alberto Dines: Queria desviar um pouco a conversa. Insisto, não sou bacharel e tenho a impressão de que parte dos nossos ouvintes e os telespectadores também não o é, então queria puxar um pouquinho para uma área em que nós todos nos sentimos mais à vontade, que é a política. E aproveitar essa experiência, essa oportunidade única de ter uma figura da sua cultura e da sua experiência para falar um pouco sobre o Brasil de antigamente. Isso parece que não existe hoje na pauta dos debates, não é? E, veja, não estou aqui querendo insistir em um patrulhamento ideológico retrospectivo. Queria que o senhor falasse um pouquinho, é um assunto que me fascina – já escrevi um livro sobre o assunto e quero voltar a esse tema: o Brasil foi um dos países da América do Sul que mais estiveram perto do eixo nazifascista. O senhor militou por um período... Documentos agora que têm sido publicados... a participação do Filinto Miller [foi delegado especial de Segurança Pública do Rio, chefe de polícia interino e depois efetivo, de 1933 a 1942, no governo ditatorial de Vargas. É conhecido por ter dado a ordem de prisão a Olga Benário e ter executado de sua deportação para um campo de concentração nazista, na Alemanha de Hitler, onde morreu em 42 numa câmara de gás] em uma reunião da Gestapo; o único representante da América Latina, Gustavo Barroso [(1888-1959) juntamente com Plínio Salgado, foi fundador da Ação Integralista Brasileira (AIB)], que era muito mais próximo do Hitler [(1889-1945) dirigente da Alemanha entre 1933 e 1945 - quando se suicidou após ser derrotado pelos países Aliados ao final da Segunda Guerra Mundial - criador da ideologia que pregava a superioridade racial ariana e o anti-semitismo, o nazismo, responsável pelo Holocausto] do que era Plínio Salgado [(1895-1975) jornalista que fundou um movimento nacionalista brasileiro denominado integralismo, influenciado pelas novas idéias fascistas que vinham da Europa]. Eu queria que o senhor discorresse um pouquinho sobre esse momento em que o Brasil esteve tão próximo do fascismo e tão próximo de aderir ao Eixo [do Mal - como eram chamados os países derrotados na Segunda Guerra Mundial: a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão], que é um episódio muito esquecido, muito distante da história brasileira ou pelo menos da preocupação da opinião pública.
Miguel Reale: Bom, eu aí faria uma distinção. O senhor está procurando que eu retorne no passado, nada mais de meio século. Porquanto...
Alberto Dines: É uma rara oportunidade que tenho de fazer isso.
Miguel Reale: Pois é. Essa pergunta, de certa maneira, ela é inevitável. Mas é claro que olho os problemas com uma distância de meio século. Na época, não diria que havia assim tanta proximidade pelo fato do Filinto Miller fazer uma viagem à Alemanha. Havia naquela época uma situação muito fluida, uma situação muito estranha. Era a época em que o Churchill [(1874-19650 primeiro ministro do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e um dos principais articuladores da vitória dos países Aliados], o grande Churchill tinha uma admiração extraordinária por Mussolini [(1883-1945) ditador da Itália entre 1924-1943, cirador do fascismo] e isso também não precisa de nenhuma descoberta por documentos secretos para saber...
Alberto Dines [interrompendo]: Ele próprio...
Miguel Reale: Porque isso é público e notório. Mas há certas coisas que se procura esconder em um reduto de documentos secretos, mas que se procura esconder. De maneira que era uma época em que se tinha o culto da grande personalidade e assim por diante. Não era só de um lado direito, mas também do lado esquerdo, porque também há o problema do Stálin [(1897-1953) político soviético que governou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) por quase 30 anos, implantando um regime de terror para todos os opositores e população em geral, dando origem ao termo stalinismo], o problema do Lênin [(1870-1924) principal liderança da Revolução Russa de 1917 e cuja prática política deu origem ao chamado marxismo-leninismo]...
Alberto Dines: Que é igual.
Miguel Reale: Que eram iguais, de maneira que havia esse culto da grande personalidade. Então, havia esse problema, mas dizer que o Brasil estava próximo, não sei. Aí depende muito da maneira que você olha a figura de Getúlio Vargas. Getúlio Vargas nunca se deixou medir pelo Filinto Miller. Filinto Miller era um homem que atendia a certas aspirações dele, mas não se reduzia a isso. Ele manobrava tanto Filinto Miller como Osvaldo Aranha [(1894-1960) atuou nos bastidores da Revolução de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e conduziu ao cargo Getúlio Vargas], que navegava nas águas americanas. Então é preciso olhar as coisas com um pouco mais de amplitude.
Manoel Alceu A. Ferreira: Professor, perdão. Voltando um pouco ao Brasil de hoje, o senhor disse uma vez que sempre viveu presidido por duas valências, a jurídica e a política. O senhor sempre teve esses elementos presentes e o senhor sempre procurou sincronizá-los, o aspecto político e o aspecto jurídico. Como é que o senhor vê hoje no Brasil o uso da medida provisória? A medida provisória e o uso dela?
Miguel Reale: Eu só pediria licença...
Manoel Alceu A. Ferreira: Pois não.
Miguel Reale: Para terminar um outro raciocínio. Quero dizer apenas o seguinte: aquela época representou um momento muito importante na vida brasileira. Getúlio Vargas é uma figura pela qual tenho uma profunda admiração, porque não o reduzo a essa ou aquela ação praticada por ele. Acho que ele realizou muitas coisas positivas. O Estado Novo que se procura apresentar como um problema ideológico, o Estado Novo acima de tudo foi o Dasp [Departamento Administrativo do Serviço Público]. O Estado Novo ensinou o Brasil a administrar o país, essa é que foi a verdade. Como membro do conselho administrativo do Estado – e não me arrependo ter servido a São Paulo durante quatro anos, no seio do conselho –, nós ensinamos o município paulista a administrar, por quê? Porque era toda uma estrutura de serviço público. Nós tínhamos muito mais vivência no [...], com a teoria do serviço público, do que no corporativismo fascista.
José Nêumanne: O senhor diria que nós ainda temos essa herança do Estado Novo, ela ainda está presente na nossa cultura institucional?
Miguel Reale: Até certo ponto sim. A estrutura administrativa subsiste em grande parte devido a uma certa herança que vem daquela época.
Ives Gandra Martins: Agora, professor, acrescentando à pergunta do Manoel Alceu, daí o senhor pode responder as duas, porque estão muito interligadas... O senhor ultimamente escreveu, inclusive, contestando a percepção filosófica do que alguns filósofos do início do século apresentaram sobre o socialismo. E o senhor encontrou um termo novo para definir uma nova realidade política. Nós tínhamos a socialdemocracia, nós falamos em liberalismo [neoliberalismo] e o senhor, em uma síntese extraordinária nos últimos artigos, tem falado no social-liberalismo como uma nova vertente política. Então, para o Brasil de hoje, dentro da linha do pensamento do Manoel Alceu, o senhor poderia explicar qual é esse seu pensamento sobre essa realidade, que parece ser a realidade que conforma o perfil do mundo na atualidade, do social-liberalismo?
Miguel Reale: Essa proposta, feita pelo meu amigo Ives Gandra, é como todas as outras, exigiria uma resposta muito longa, mas quero apenas dizer, em síntese, que após toda essa crise de fim de milênio... É curioso, não sei se é coincidência: todo fim de milênio traz, efetivamente, uma conturbação tremenda, como essa do desemprego como uma categoria histórica. Então, o fato é que nós estamos vivendo problemas gravíssimos em matéria ideológica, mas estamos percebendo, pelo menos é a minha autuação, que há uma certa convergência de posições ideológicas. Quando nós vemos os socialistas franceses – e quero dizer aqui que quando caiu o Muro de Berlim houve quem dissesse: “acabou-se o socialismo”... Escrevi no dia seguinte um artigo na Folha [de S.Paulo] dizendo: “Não acabou nada, porquanto o socialismo representa uma exigência espiritual, uma exigência social e existirá pelo menos uma expectativa como esperança.” E, efetivamente, nunca morreu; o socialismo hoje é poder na Inglaterra sob forma trabalhista, é poder na França, mas não é um socialismo antigo, é um socialismo que fez a autocrítica, que recebeu a lição do liberalismo e reconhece a livre-iniciativa [como] ponto de partida de toda estrutura econômica e de toda estrutura política. Porque livre-iniciativa não é só economia, é também atividade política, é o outro lado econômico da liberdade política e, felizmente, nós estamos começando falar outra vez em economia política e não apenas em economia. No dia em que se separou a política da economia, nós praticamos um erro tremendo. Então, nós estamos vendo, assistindo hoje, no mundo, ao encontro liberal com o socialismo através do social-liberalismo e, ao mesmo tempo, do socialismo com o liberalismo através do socialismo liberal defendido, por exemplo, por Norberto Bobbio [(1909-2004) filósofo político, historiador, foi também senador vitalício italiano. Grande referência nos estudos de sociologia, sua obra mais importante é o Dicionário de política, escrito juntamente com Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino]. Então, são duas coisas distintas. Porque um põe a tônica na livre-iniciativa, que se chama social-liberalismo...
Miguel Reale: E a outra põe a tônica da justiça social e da intervenção do Estado, que se chama socialismo liberal. São duas posições mistas, mas que se distinguem e que podem, talvez, marchar para uma compreensão complementar, para uma linha de complementaridade. Porque complementaridade é outra diretriz de nosso tempo, a lei de complementaridade. Então, não só na física, mas em todas as expressões do pensamento e no direito também. De maneira que, diante dessa situação, é o máximo que eu poderia dizer em síntese. Mas acho que há um assunto para ser estudado.
Manoel Alceu A. Ferreira: A medida provisória.
Miguel Reale: A medida provisória. Olha, que essa questão da medida provisória é uma questão muito curiosa. Quando se acabou com o decreto-lei e cantaram o hino “já acabamos com o decreto-lei” e legislaram sobre o poder do legislativo, na última hora o governo diz: “E depois, como é que vai ser?” Porque há certos problemas que não podem esperar a solução do legislativo. Há certas questões tão prementes, tão violentamente necessárias, que é impossível a burocratização do problema através do processo legislativo. Então, arranjaram uma expressão que foi tirada da constituição italiana, a medida provisória. A medida provisória é uma expressão tirada da Constituição italiana, que também substituiu o decreto lei do tempo do fascismo. É sempre a mesma coisa, os problemas giram e sempre estão girando em torno de certas questões que põem as mesmas perguntas e levam a diferentes respostas. É a vida política, é a vida cultural, é a vida jurídica. Então, a medida provisória surgiu como uma necessidade. Então até a colocação da medida provisória na constituição é de um apêndice, porque não está entre as competências do legislativo e do executivo, mas está assim uma coisa pendurada...
[...]: Um processo legislativo.
Miguel Reale: Sem posição certa. Mas a medida provisória... se tivesse havido menos, digamos assim, prevenção contra a Constituição de 69, talvez lá tivesse sido encontrado um caminho. O que dizia a Constituição de 69? A Constituição de 69 dizia: “Diante de uma necessidade imperiosa e de uma evidência manifesta ou coisa que o valha, deve-se recorrer ao decreto-lei".
Ives Gandra Martins: Urgência e relevância.
Miguel Reale: O quê?
Ives Gandra Martins: Urgência e relevância.
Miguel Reale: Urgência e máxima relevância ou vira um adjetivo qualquer. Então se estabelecia o decreto-lei, mas depois diziam quais eram os casos em que cabiam isso e dizia: “Caso de segurança nacional, questões tributárias e questões monetárias.”
Manoel Alceu A. Ferreira: Econômicas.
Miguel Reale: Tributo e finanças.
José Nêumanne: Vou lhe aduzir uma informação...
Miguel Reale: E viria uma terceira parte, uma terceira parte. Criar cargo, aí já era... Aí já era cortiço, aí já era malandragem. Mas as duas primeiras eram legítimas.
Ives Gandra Martins: É o artigo 55.
Miguel Reale: É o artigo 55 da Constituição de 1969. As duas primeiras eram legítimas, a terceira era um contrabando. Então o que a Constituição devia ter feito é dizer: “Caberá à medida provisória, em caso de extrema urgência e relevância e em se tratando de ordem pública, no caso de segurança nacional – que é um termo muito comprometido– em se tratando de ordem pública e em matéria financeira e tributária”. Teriam evitado uma porção de coisas. Porque, vejam bem, olhando as coisas com espírito prático, se não tivesse essa medida provisória bem aberta como foi, nós não teríamos tido o Plano Real, que foi baseado em uma medida provisória que viveu não sei quanto tempo – o Ives, que tem boa memória, pode dizer.
Ives Gandra Martins: Foram reprovadas umas 20 vezes.
Miguel Reale: Acho que foram renovadas umas sete, oito vezes.
Odete Medauar: Foi.
Ives Gandra Martins: Agora, professor, coloco o seguinte: há dois termos que continuam na Constituição atual, que diz que medida provisória só pode ser veiculada em casos de urgência e relevância.
Miguel Reale: Bom, aí é uma questão muito fluida.
Ives Gandra Martins: Como o senhor vê...
Miguel Reale: O que é relevância?
Ives Gandra Martins: Mas aí é que está. O Supremo Tribunal Federal tem colocado o seguinte, que questões de relevância e urgência são questões de oportunidade política, e não questões jurídicas. E o Supremo se nega e, à luz disso, o governo tem decidido inúmeras questões, veiculado inúmeras questões por medida provisória, que não são nem urgentes e nem relevantes. Como é que o senhor vê isso, professor?
Miguel Reale: No seu modo de ver, porque no modo de ver do Supremo está certo. Se ela se trata de uma questão de competência privativa do Senado, cabe ao Senado verificar...
Ives Gandra Martins: O poder executivo.
Miguel Reale: O Congresso Nacional. Se cabe ao Congresso Nacional verificar...
José Nêumanne: Isso é relativo, professor.
Miguel Reale: E eles estão aí, no jogo político, conforme as circunstâncias, não é verdade? O que nós devíamos era delimitar o campo de aplicação da medida provisória, sem o que nós não temos democracia, e por outro lado estabelecer que ela só poderia ser renovada uma vez, porque, se não for renovada uma vez, será que não há outro jeito?
José Nêumanne: Segundo o Octaciano Nogueira [funcionário do Senado, bacharel em direito e história, especialista em estudos políticos], hoje, professor...
Miguel Reale: Não havia um jeito anunciado, porque está sendo renovada toda hora.
José Neumanne: Professor, segundo o professor Octaciano Nogueira, no jornal hoje, tem 1.900 medidas provisórias esperando que o Congresso decida sobre elas.
Miguel Reale: É claro, porque "relevância" e "urgência" cada um toma como quer.
Ives Gandra Martins: Agora, professor, a Constituição declara o seguinte, que quando o governo quiser que uma lei seja aprovada em regime de urgência, o Congresso tem que aprovar Câmara dos Deputados e Senado em 45 dias. Por essa razão é que o senhor diz que a reedição poderia ser dar uma única vez, porque dariam 60 dias? Por isso é que o senhor advoga que seria uma reedição de uma única vez?
Miguel Reale: Por essa razão e por estabelecer um certo limite razoável.
Ives Gandra Martins: Como existem os 45 dias para o regime de urgência?
Miguel Reale: Porque, afinal de contas, a vida jurídica no plano financeiro, no plano tributário compreendo a necessidade de medidas provisórias, de medidas urgentes, porque de uma forma ou de outra isso acontece em toda parte do mundo. Ou por debaixo do pano ou não, há sempre um jeito de salvar aquilo que tem que ser salvo por motivo de força maior ou coisa que o valha. De maneira que é preciso olhar as coisas com uma certa elasticidade e querer que tudo seja feito segundo a lei, mas não dizer: a lei, ora a lei, mas também não submeter tudo inexoravelmente a uma solução de processo legislativo que é demorado, quando há casos que são fundamentais para a existência do país, pela ordem civil, na sociedade civil, como ordem pública e para a estrutura monetária e tributária do país.
Ives Gandra Martins: Professor, eu queria dar um dado. Em 1993, na Espanha, foram editadas 40 medidas provisórias e o Parlamento espanhol reclamou, dizendo que não poderia mais admitir essa ditadura do poder executivo espanhol.
Miguel Reale: A verdade é a seguinte: nós estamos vivendo aceleradamente, aos trancos e barrancos, uma série de problemas que os outros povos mais felizes têm vivido mais tranqüilamente. É uma época em que tem havido uma certa capacidade criadora da gente brasileira. Eu, que estou na iminência de me despedir do país, porque não tenho sentido de imortalidade.
Alberto Dines: O senhor vai morar fora, é isso?
[risos]
Miguel Reale: Contemplo as coisas com muita tranqüilidade. De maneira que olho o país – o Brasil tem revelado muita capacidade criadora e tem demonstrado muita capacidade de superar a sua dificuldade – olho com muita confiança. Se tem alguma coisa que posso dizer ao país é que confio nele. Não é por patriotismo, e sim por vivência, é por ter acompanhado tudo aquilo que está acontecendo no país e verificar que, apesar de tudo, nós acreditamos em nós mesmos. É isso que é importante. E se nós tivermos essa consciência, nós vamos superar todos esses problemas: o problema econômico, o problema educacional, o problema cultural. Voltaríamos àquela época mais tranqüila. Quando entrei para a faculdade de direito, não levei um código debaixo do braço, levava as poesias de Castro Alves [(1847-1871) poeta brasileiro e abolicionista. Autor de obras famosas e importantes, tais como Navio negreiro (1869), Espumas flutuantes (1870) e Os escravos (1883), entre outros], de maneira que era a época em que os estudantes conversavam sobre literatura, conversavam sobre poesia, sobre poesia francesa, sobre poesia inglesa e alguns sabiam até poesia alemã, de maneira que é disto que nós estamos precisando: que os estudantes de direito não fiquem presos somente ao código e nem às minhas lições preliminares de direito, mas que abram o espírito para os valores fundamentais da cultura.
José Nêumanne: Qual é o lugar da poesia na sua vida, professor?
Matinas Suzuki: Nêumanne, por favor.
José Nêumanne: Ele está falando de poesia, pelo amor de Deus.
Matinas Suzuki: Eu sei, mas o Luís Francisco está pedindo há muito tempo a palavra. Por favor, Luís Francisco.
Luís F. Carvalho Filho: Professor, tem uma frase sua, na sua autobiografia, referente ao suicídio do Getúlio. O senhor, no seu livro, na sua autobiografia, nas suas memórias...
Miguel Reale: Sim.
Luís F. Carvalho Filho: ...ao falar sobre o suicídio do Getúlio, o senhor utiliza uma frase que me impressionou muito, que é: “No Brasil nada acontece de duradouramente dramático ou trágico.” O senhor ainda acredita nisso? O senhor acredita, por exemplo, que a nossa memória política é muito tênue? O senhor acredita, por exemplo, na volta do Collor [primeiro presidente da República eleito pelo voto direto após o regime militar, em 1989. Renunciou ao cargo em razão de um processo de impeachment fundamentado em acusações de corrupção]?
Miguel Reale: Não. Evidentemente que, no Brasil, há muitas prevenções e eu mesmo tenho sofrido muito ao longo da minha vida e, a meu respeito, o Tristão de Ataíde, o meu caríssimo amigo Tristão de Ataíde, [pseudônimo de] Alceu de Amoroso Lima, disse: “Coitado daquele que no Brasil tenha um cartaz pregado às costas”. E foi esse cartaz que me pregaram às costas, que me fez afrontar situações muito duras.
Manoel Alceu A. Ferreira: Quando o senhor foi discriminado na Faculdade de Filosofia em uma tese, foi isso?
Miguel Reale: Como?
Manoel Alceu A. Ferreira: Uma tese que o senhor apresentou na Faculdade de Direito, na Faculdade de Filosofia?
Miguel Reale: Exato.
Manoel Alceu A. Ferreira: Eu lembro.
Miguel Reale: Exatamente. De maneira que não há dúvida nenhuma, tenho confiança também nisso. No Brasil fala-se muito no jeitinho e sou um admirador do jeitinho, porque o jeitinho é uma capacidade de composição, é uma capacidade de harmonizar, é uma capacidade de síntese. E, com um espírito dialético como é o meu – e eu sou um adepto da dialética de complementaridade –, não vejo as coisas a não ser por meio de contrastes, afirmações e negações que têm que se compor de qualquer maneira, porque a existência humana não pode se resolver em um sim ou em um não.
José Nêumanne: Foi isso que o aproximou da poesia, professor?
Miguel Reale: Como?
José Nêumanne: Qual é o lugar da poesia na sua vida? Foi essa sua paixão pelo contraste que o levou à poesia? E qual é o lugar da poesia na sua vida?
Miguel Reale: Acho que sim. A poesia, no meu caso, não foi um enfeite, foi uma necessidade existencial. Fazer poesia e compor poesia para mim foi um momento na minha própria existência, é aquele momento em que tudo que é inteligência pode atingir no plano da certeza, abre um campo que é o da expectativa e da esperança. E é por aí que entra a poesia e é por aí que age o espírito humano em uma outra área, que é uma área da intuição.
Ives Gandra Martins: Mas já havia uma inspiradora, não é?
José Nêumanne: Foi o senhor que escolheu a poesia ou a poesia que o escolheu?
Miguel Reale: E da imagem absoluta.
Ives Gandra Martins: Mas havia uma inspiradora, não é?
Miguel Reale: Sim.
José Nêumanne: Professor, foi o senhor que escolheu a poesia ou a poesia que o escolheu?
Ives Gandra Martins: Professor, qual é a grande inspiradora?
Matinas Suzuki: Calma, gente, um de cada vez.
Miguel Reale: Se não há uma mulher inspiradora, nós não somos nada.
Matinas Suzuki: Professor, o doutor Paulo Magano, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, pergunta, já que falamos de poesia: “Como o professor concilia o seu humanismo com a teologia de Dante Alighieri [(1265-1321) autor de A divina comédia, obra que narra a odisséia de Dante por Inferno, Purgatório e Paraíso], que o mestre tanto admira?”
Miguel Reale: Bom, Dante é... cada um de nós tem sempre uma imagem... ou uma ou duas ou três imagens diretoras. Sou um dantista nesse sentido, nesse sentido da atração pela figura do Dante. Porque ele foi, acima de tudo, um político no sentido pleno dessa palavra, quer dizer, um humanista. E,através dessa política e desse humanismo é que ele foi poeta e ele foi teólogo a seu modo, porque ele nunca fez teologia pura, ele sempre trouxe a teologia para o mundo terreno. A teologia dele chamava-se Beatriz. De maneira que essa identidade entre o valor metafísico e o valor poético é a grande força expressiva de Dante, de maneira que aí há toda uma concepção humanística e há toda uma concepção de justiça diferente, ninguém ensinou mais justiça do que Dante. A mais bela definição de direito foi a definição dada por Dante, é ou não é? De todas as definições, como filósofo, que eu andei procurando por aí, a mais perfeita de todas foi, sem dúvida nenhuma, aquela dada por Dante quando ele nos ensinou que o direito é uma sabedoria que está imanente nas coisas e nos homens e que identifica os homens entre si e os homens e as coisas.
Odete Medauar: Professor, o senhor trouxe aqui agora há pouco uma visão bastante esperançosa a respeito dos caminhos do Brasil, diferentemente do contexto atual em que se procura passar pelos diversos mecanismos de comunicação, uma idéia de muito problema e uma idéia mais pessimista a respeito dos caminhos do Brasil. O que o senhor diria hoje aos jovens que buscam a universidade ou que estão saindo da universidade para começar o seu caminho? O que o senhor diria em termos de diretrizes para essa juventude?
Miguel Reale: Tenho a impressão de que o essencial ao homem é ser fiel a si mesmo. Cada um de nós nasce com uma certa vocação. Se nasci com vocação para o direito, devo viver a vida de jurista. Mas, se nasci com a vocação para a santidade, devo viver a vida do sacerdote e, se eu vivi para os valores da comunicação, não tenho outro caminho a não ser jornalista, radialista, homem de televisão. Cada um traz no âmbito, no fundo da sua consciência, a inspiração do seu caminho. Cada um de nós vai procurar o seu próprio destino nessa expressão introspectiva de descobrir em si mesmo aquilo que está procurando fora de si. Esse é o caminho fundamental. Essa tomada de consciência de si mesmo é que poderá, na realidade, ter uma força de expressão maior. O segundo conselho que poderia dar ou sugestão – prefiro falar em sugestão, dar conselho é uma coisa que é muito arriscada... a segunda sugestão é não ter pressa nos resultados, este sim é um defeito do brasileiro. O brasileiro quer improvisar tudo, quer alcançar tudo de repente, não tem confiança no tempo. De maneira que, quando era professor, a coisa que mais me revoltava era o estudante que toda hora olhava o relógio. Eu dizia "não se preocupe com o tempo, o tempo passa, o senhor é que não tem consciência em passar".
Matinas Suzuki: Professor, o Wagner Gomes, que é estudante de direito de Santos; a Patrícia Pires, que é aluna de direito em São João da Boa Vista; o Fábio Luiz, de Santana, do bairro de Santana aqui em São Paulo; Leonardo Mattos de Carvalho, que é estudante de direito em Salvador, na Bahia; Fernando Sampaio, de Olinda, em Pernambuco; Eudoro Borges, de Belo Horizonte, Minas Gerais; Roberto de Andrade, de São Bernardo do Campo, aqui do Estado de São Paulo; Paulo Roberto Zinam, da Aclimação, aqui em São Paulo, e a Patrícia Pires, aluna da Faculdade de Direito em São João da Boa Vista, também, aqui, todos eles perguntam o que o senhor acha da súmula vinculante [mecanismo pelo qual os juízes são obrigados a seguir o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelos tribunais superiores sobre temas que já tenham jurisprudência consolidada. Foi proposta pela primeira vez em 1963, mas até hoje não foi aprovada devido a inúmeras controvérsias e à divisão das autoridades competentes para a implantação de uma nova ordem jurídica no país]?
Miguel Reale: O problema da súmula vinculante é um problema que foi lembrado como um dos processos através dos quais se poderia agilizar a Justiça e, pelo menos, no sentido de não repetir-se aquilo que está acontecendo. Dizia-me um ministro do Supremo Tribunal, que o número de casos repetidos é assombroso. De maneira que essas estatísticas de que há no tribunal 40 mil processos...
[...]: 60% são repetidos.
Miguel Reale: Os nossos ministros diplomados deviam dizer quantos repetidos.
[...]: 60% do giro de ministros e [de] ação.
Miguel Reale: Quantos são do mesmo assunto? De maneira que o ministro resolve um caso e passa para o seu assistente um acórdão [julgamento] que ele assinará depois, porque a questão já está resolvida de antemão. Então, por quê? Porque nós queremos improvisar sempre, nós não nos satisfazemos jamais com uma decisão judicial. Não irei até o ponto do Ives Gandra, de querer acabar tudo na segunda instância.
Ives Gandra Martins: Não, eu estava querendo só para harmonização de jurisprudência [do direito] no STJ e o corte constitucional ao Supremo.
Miguel Reale: Mas a harmonização de jurisprudência não basta. Nós teremos que levar a instância até onde for possível, mas há um certo momento em que pára e o Supremo Tribunal tem razão de falar em súmula vinculante, porque a súmula vinculante, que nos aterroriza tanto, é o que existe no common law [direito comum]. Os americanos não têm código civil, a não ser no estado da Carolina, que é francês e tem a tradução do French Civil Code, mas de resto é um direito experiencial. É um direito que brota da vida civil, brota na sociedade civil, é um direito feito pela repetição, pelos usos e costumes que depois o juiz vem e ratifica e consolida. Então, é um direito consuetudinário jurisprudencial. E o que o tribunal estabelece é a resposta, é stare decisis [expressão latina para "apoiar-se nas coisas decididas", em direito refere-se à doutrina do precedente, segundo a qual a decisão dos juízes deve se basear no que foi previamente decidido em questões do mesmo tipo]. O common law é o da súmula vinculante, só que não é um supremo tribunal que determina, mas é a consciência jurídica nacional através do common law e dos seus intérpretes juízes. De maneira que, por que nós estamos com tanto medo da súmula vinculante? O que é importante, porém, é isto: a súmula é o horizonte da juridicidade, não é uma coisa enrijecida, não é uma coisa fixa e perene para todo o sempre. A súmula vinculante vai exigir dos ministros do Supremo Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça uma consciência jurídica nova, que é a atualização da súmula, para que fique perenemente em atividade de interpretação e de comunicação. Hoje em dia, nós temos súmulas que existem há anos e anos e que estão até esquecidas. Então, é preciso, portanto, de um lado tornar a súmula vinculante e, do outro lado, fazer da súmula uma expressão da atualização do direito do país.
Matinas Suzuki: Professor, vou fazer uma pergunta... Na verdade, a mesa tem pessoas que entendem muito mais do que eu, mas o que o senhor acha da atual proposta de mudança na Lei de Imprensa?
Miguel Reale: Bom, tenho acompanhado um pouco a Lei de Imprensa. Efetivamente, a lei atual é uma lei meio insuficiente, mas ela contém alguns valores que têm que ser preservados, porque a Lei de Imprensa – o que tenho lido, tenho acompanhado de uma lei... E, como jurista confesso que, dadas as minhas ocupações perenes, contínuas, não tive oportunidade de acompanhar como devia ter feito– a Lei de Imprensa, para poder falar com conhecimento pleno de causa... Mas, por aquilo que li, pelos artigos de Manoel Afonso Ferreira e de outros e do Nêumanne e assim por diante, manifestações também suas...
[...]: A favor de uma Lei de Imprensa.
Miguel Reale: A favor de uma Lei de Imprensa, é claro, mas a favor de uma Lei de Imprensa...
[...]: Não necessariamente dessa.
Miguel Reale: Que não redunde, não redunde, porém, em uma situação que seja comprometedora da capacidade de iniciativa e da capacidade de crítica, porque a função fundamental da imprensa é a de criticar. Ainda que possa exagerar na crítica, até às vezes pondo em risco certos problemas, sem uma crítica livre na imprensa não há imprensa, essa que é a verdade. De maneira que o problema todo está na medida da lei e não da lei como medida.
Matinas Suzuki: Infelizmente, professor, nós estamos indo para os últimos minutos do nosso programa. Tenho uma pergunta aqui do Daniel Taubkin, ele diz o seguinte: "Sou filho de Adolfo Taubkin..."
Miguel Reale [interrompendo]: Meu grande amigo.
Matinas Suzuki: "...e gostaria de saber qual o segredo dessa forma extraordinária para se expressar com rapidez de raciocínio e saúde. E, eu gostaria de acrescentar, espero que seja o dia de nascimento do senhor, porque é o meu também".
Odete Medauar: Seis de novembro.
Miguel Reale: Bom, eu não poderia dar essa receita, porque até agora ando procurando para mim mesmo e não a encontrei.
Matinas Suzuki: Professor Miguel, muito obrigado pela presença do senhor no Roda Viva hoje. Acredito que o senhor deu uma grande aula para nós todos e agradeço imensamente a sua presença aqui.
Miguel Reale: Eu é que agradeço a oportunidade não apenas de rever grandes amigos, mas de formar novos amigos.
[aplausos]
Matinas Suzuki: Está certo. Agradeço muito a nossa bancada de entrevistadores, de altíssimo nível esta noite, como vocês viram. Agradeço muito a sua atenção e a sua participação, gostaria de lembrar a você que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, entrevistando a atriz Sônia Braga, às dez e meia da noite. Até lá, uma boa semana para todos e um ótimo Natal para vocês.
[O jurista Miguel Reale morreu na madrugada de 14 de abril de 2006, aos 95 anos, em sua residência, em São Paulo, após sofrer um enfarte]