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Memória Roda Viva

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Drauzio Varella

30/8/2004

O médico, autor de Carandiru, comenta seu novo livro e diz que o programa brasileiro para aids é motivo de orgulho nacional

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Paulo Markun: Boa noite. Ele tornou-se conhecido em todo o Brasil por suas campanhas públicas de prevenção e de combate ao câncer e especialmente à aids. Envolvido com o universo dos doentes terminais, acaba de lançar um novo livro, em que mostra como a dor e a perspectiva da morte transformam o comportamento de pacientes e familiares. O médico e escritor Drauzio Varella é o entrevistado desta noite do programa Roda Viva.

[Comentarista]: Drauzio Varella é paulistano do Brás, médico cancerologista formado pela Universidade de São Paulo, começou a trabalhar na área de moléstias infecciosas no início dos anos 1970. Por mais de 20 anos dirigiu o serviço de imunologia do Hospital do Câncer e depois o serviço de câncer do Hospital Ipiranga em São Paulo. Professor em várias faculdades no Brasil e no exterior, pesquisador de espécies de plantas que possam contribuir no combate às doenças, Drauzio Varella foi um dos pioneiros no estudo e no tratamento da aids no Brasil e tornou-se conhecido do público por suas entrevistas e campanhas no rádio e na TV sobre a prevenção dessa doença, primeiros socorros e combate ao tabagismo. Em 1989, iniciou um trabalho de pesquisa e prevenção de aids junto aos presos da Casa de Detenção de São Paulo. A experiência resultou no mais conhecido livro de sua carreira de escritor, Estação Carandiru, prêmio Jabuti de 2000. É um livro de histórias vividas no maior e talvez mais caótico presídio do país, desativado e implodido em 2002. Convivendo por mais de dez anos com os presos, Drauzio organizou palestras, vídeos, atendeu doentes e editou a Vira-lata, revista em quadrinhos que fez parte do programa educativo e preventivo da aids na penitenciária. De um total de oito livros publicados, Drauzio Varella dedicou dois à literatura infantil: De braços para o alto, a experiência do menino da cidade grande na fazenda dos tios, e Nas ruas do Brás, memórias da infância de Drauzio, vivida no bairro paulistano que reuniu imigrantes como os avós do médico e escritor. É a história pessoal marcada pelas alegrias de menino, mas também por precoces sentimentos de perda: a morte da mãe, Lídia, aos 32 anos de idade, vencida por uma doença degenerativa, e mais tarde a perda do irmão Fernando, vencido pelo câncer. É dessa convivência com a morte e depois, como médico, da convivência com doentes terminais que vem o tema do último livro do médico e escritor, Por um fio. Contando histórias de doentes e de seus conflitos familiares, Drauzio Varella analisa as mudanças de atitudes em pessoas que são tomadas pela dor e pela perspectiva da morte. A tese central é de que a notícia da morte iminente provoca transformações inesperadas: pode aumentar a solidariedade familiar, pode, em contrapartida, jogar o doente em situação de abandono, mas pode também levar alguns pacientes a novas percepções, a adquirir serenidade e a viver melhor a vida que está por um fio.

Paulo Markun: Para entrevistar o médico cancerologista Drauzio Varella, nós convidamos Roseli Tardelli, criadora e editora-executiva da Agência de Notícias da Aids; Roldão Arruda, repórter da editoria de política do Jornal Estado de S. Paulo; Mônica Teixeira, editora especial de saúde, ciência e tecnologia da TV Cultura; Cristiane Segatto, editora de saúde, ciência e tecnologia da revista Época; Michael Laub, editor de literatura da revista Bravo e Maria Helena Pereira Franco, professora titular de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre o Luto da PUC, é também integrante do Instituto de Psicologia Quatro Estações. O Roda Viva, você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e para Brasília também pela rede pública de televisão. Boa noite, Drauzio.

Drauzio Varella: Boa noite, Paulo.

Paulo Markun: Esse seu livro aborda um tema que é tabu na televisão, a morte. A morte aparece na televisão, aparece no cinema, aparece no entretenimento, de modo geral, sempre pelo lado glorioso ou pelo lado heróico, trágico no sentido grego. E a morte que aparece no seu livro não é essa morte heróica, na maioria das vezes é trágica, mas não com essa dimensão de tragédia. E o que me chamou a atenção no livro é o fato de que, desse grande painel que você desenha, surge uma coisa aleatória, imprevisível e absoluta, uma loteria. É assim que você enxerga a morte?

Drauzio Varella: Exatamente assim. Você, quando nasce, sabe que vai morrer, não é? É a única certeza que nós temos na vida. Mas você acha que isso vai acontecer em um dia que está distante. Mas esse dia chega para todo mundo. E chega aleatoriamente. Nós ficamos procurando uma lógica para isso, para explicar, não é? Eu cansei de ouvir gente: “Mas, puxa, aconteceu isso com fulano! Fulano não merecia isso, era uma boa pessoa, bom pai de família, uma pessoa exemplar...” Como se a morte tivesse algum interesse nas qualidades de vida. Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, disse... ele fala sobre o câncer, ele diz: “O câncer não respeita as virtudes do sujeito”.  É verdade, a morte não respeita as virtudes de ninguém. Pode acontecer aleatoriamente, mas, como acontece todos os dias, nós é que fingimos que isso não é possível, porque para a gente fica muito difícil lidar com a vida diante da perspectiva da morte aleatória.

Paulo Markun: E ela é pior se é uma perspectiva de uma doença incurável, como se diz, quer dizer, uma doença em que o sujeito sabe que não tem saída e que é uma ladeira? 

Drauzio Varella: Eu não sei se é pior. Sabe, eu acho que a morte violenta, essa morte inesperada, eu acho muito mais brutal, porque te colhe num momento da vida em que isso não podia acontecer, não estava previsto que isso acontecesse. A morte que vem... que acompanha uma doença grave, que tem uma evolução mais ou menos longa, ao mesmo tempo em que ela começa a se armar por trás da doença, vai havendo uma preparação, você vai aprendendo a lidar com essa possibilidade. Um acontecimento que era uma hipótese altamente improvável, como é a morte de cada um de nós pessoalmente, quando começa a se tornar mais próximo, você vai tendo um entendimento diferente daquele que você tinha quando isso era uma coisa distante de você. O que eu quero dizer é o seguinte: é que a própria doença vai te preparando para aceitar a evolução desfavorável que ela possa ter.

Paulo Markun: E por que surge...

Roseli Tardelli [interrompendo]: Será, doutor Drauzio? Será?  Eu acho que, às vezes, é tão difícil ainda a gente lidar com perda, a gente lidar com morte, quer dizer, uma situação onde a impotência da gente fica tão grande, tão maior e... Não sei. O senhor viveu isso também com o seu irmão, o senhor sabe do que eu estou falando.

Drauzio Varella: Mas você está colocando a vivência da pessoa.

Paulo Markun: Do outro.

Drauzio Varella: Do outro.

Roseli Tardelli: Isso. Do outro.

Drauzio Varella: Que perdeu alguém.

Roseli Tardelli: Isso.

Drauzio Varella: Sem dúvida nenhuma. É complemente diferente a perspectiva daquele que está enfrentando esses momentos definitivos do que a daqueles que o cercam. Perder uma pessoa amada é uma tristeza irreparável. Você sente que a vida deu um rebaixamento de felicidade e depois, com o passar do tempo, as coisas vão voltando aos seus lugares etc. Esse teto da infelicidade vai aumentando, mas parece que ele não atinge o nível anterior, parece que fica faltando uma coisa sempre na tua vida. Daí em diante... é uma perda irreparável, mas isso para o que fica. O que nós estávamos discutindo é...

Paulo Markun: É para quem vai.

Drauzio Varella: É que a pessoa sente que a doença é mais forte do que ela, então chega o momento em que ele fala “eu acho que não vai dar.”

Roseli Tardelli: Tem um momento em que a pessoa entrega os pontos?

Drauzio Varella: Acho que tem, acho que tem.

Roldão Arruda: Doutor, o senhor acha que os médicos hoje estão mais ou menos preparados para lidar com a morte? Eu estou lhe perguntado, porque, se eu olhar a quantidade de notícias que saem todos os dias em revistas, jornais, programa de televisão sobre novos avanços da medicina, sobre novos antibióticos, novas cirurgias, novos aparelhos que entram dentro da gente, parece que nós estamos próximos do Nirvana, parece que nós estamos próximos de conquistar a imortalidade. Eu tenho a impressão de que tem um bombardeio e fico pensando se os médicos... como é que os médicos lidam com isso: se eles também não vêem a morte como uma doença, uma coisa que eles têm que vencer a qualquer preço, e não uma coisa com a qual eles têm que lidar como o senhor dá a impressão de que o senhor faz, aqui, pelas suas memórias nesse livro aqui. O senhor acha que os médicos hoje estão menos ou mais preparados para lidar com a morte?  

Drauzio Varella: Mais preparados, eu acho.

Roldão Arruda: O senhor acha? 

Drauzio Varella: Acho, mais preparados. Acho que existe um grande problema de formação aí, Roldão. Nós ensinamos para os alunos, nas faculdades de medicina, que a medicina é uma profissão que surgiu para salvar a vida das pessoas.  E essa idéia de entrar na profissão para salvar a vida das pessoas é uma idéia que comove muito os adolescentes. Você decide ser médico com 15, 16 anos de idade e essa idéia de você ter uma profissão que te permite salvar a vida dos outros é muito forte nessa fase da vida. E as faculdades de medicina reforçam isso e reforçam às vezes até sem dizer, mas reforçam. Porque, quando você vê um professor que se desinteressa por um doente que evolui mal, quando você vê que a visita vai caminhado pela enfermaria, de leito em leito, quando chega à beira do leito daquele que tem um prognóstico desfavorável e você nota que a visita é mais curta, que a discussão teórica que se arma ao redor dele é uma discussão mais superficial, você não precisa explicar para o menino, que não tem  interesse, que aquele é o momento em que a medicina desiste do doente, não é? Eu acho que esse é um defeito grave na formação. E eu acho que todas as faculdades de medicina dão esse tipo de formação, essa coisa de pegar o lado heróico da medicina: o médico que vai, luta e salva a vida do outro. Mas eu acho que, depois, no decorrer da vida, existe, hoje, um entendimento melhor do que existia no passado. Eu vejo na cancerologia, hoje... Eu vejo os meninos hoje lidando com a morte de um jeito muito mais... muito mais saudável, do ponto de vista filosófico, do que eu via os médicos quando eu comecei a fazer oncologia.

Roldão Arruda: Será?

Drauzio Varella: Eu acho isso.

Roldão Arruda: Por exemplo, no seu livro, o senhor dá a impressão de um relacionamento muito forte, de criar até empatia com os seus pacientes, alguma coisa assim. Hoje a gente vai ao médico, o médico, muitas vezes, não levanta a cabeça para olhar você, ele preenche uma série de exames que te manda fazer, não cria essa relação de empatia. Muito médico, após a cirurgia, ele não volta nem para fazer a visita, se ele for um médico famoso, ele manda um assistente acompanhar o sujeito lá no quarto. O senhor acha que... Como esse médico está lidando com esse paciente? O senhor acha que está evoluindo? Eu sinto que está regredindo.

Drauzio Varella: Não, Roldão. Apesar de tudo isso que você falou ser verdade, eu ainda acho que é melhor do que era no passado.

Roldão Arruda: É mesmo?

Drauzio Varella: Eu acho que no passado era muito pior nesse sentido.

Michel Laub: Isso em todos os países? Porque tem até um caso, nos Estados Unidos, que até você relata no livro: que hoje os médicos têm até, muitas vezes, receio de tratar por causa da questão do seguro e tal. Isso não cria um distanciamento muito maior hoje entre o médico e o paciente do que no passado?

Drauzio Varella: Cria lá e aqui também, não é? Aqui não há dúvida de que a organização do sistema de saúde afasta o médico dos doentes. Isso afasta no SUS [Sistema Único de Saúde, foi criado pela Constituição de 1988 com o objetivo de oferecer saúde pública à população brasileira. Fazem parte do SUS os centros e postos de saúde, hospitais universitários, laboratórios, hemocentros (bancos de sangue), além de fundações e institutos de pesquisa, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Vital Brasil], os médicos que atendem o SUS são obrigados a atender um número absurdo de doentes em condições muito precárias. Você pega um garoto ou uma menina – a maioria dos estudantes de medicina, hoje, dos residentes são mulheres, não é? – você coloca no pronto socorro da periferia de São Paulo e ficam ali atendendo aquele bando de gente que chega... As pessoas se embrutecem nessa quantidade de trabalho absurda em condições muito precárias. Ou você pega os médicos que já estão em uma graduação superior a essa e que atendem as consultas médicas pelos planos de convênio de saúde aí, o que é um absurdo. Hoje, os planos de saúde pagam de oito reais a 32 reais as consultas médicas – eu chequei esse dado há pouquíssimo tempo. Já pensou pagar oito reais para uma pessoa atender outra, para fazer medicina, você espera o que dele, não é? Como você pode pagar secretária, conta de telefone, água, condomínio do prédio onde você tem o consultório recebendo em média 20 reais por consulta? Quer dizer, você cria um sistema perverso e aí joga essa meninada no meio desse sistema e diz: “agora vocês se viram, sobrevivam aí!”, não é isso? Quer dizer, isso realmente cria uma situação muito complicada mesmo, muito difícil para fazer medicina dessa forma.

Roldão Arruda: O senhor vê alguma perspectiva de mudança? Por exemplo, a medicina caminha em um esquema igual caminha um monopólio de uma indústria. Por exemplo, nos Estados Unidos a medicina é uma das maiores indústrias. E a tendência é se transformar em grupos fortes. Por exemplo, no Brasil, grupos internacionais já estão comprando laboratórios de análises clínicas, se expandindo para outros países, hospitais são controlados em conglomerados junto com os laboratórios e o médico tende a ser cada vez mais um assalariado nesse conjunto. O senhor vê alguma perspectiva de melhora nesse conjunto?    

Drauzio Varella: Olha, eu acho que isso é uma fase inicial, selvagem ainda, que nós estamos vivendo neste momento. Essa organização à qual você está se referindo é uma fase selvagem da medicina brasileira. Nós passamos de uma fase, em que a medicina tinha os doentes eram atendidos por um sistema público e os doentes que eram atendidos particularmente. E esses doentes que eram atendidos particularmente... você tinha toda a gama de variações: você tinha médicos que atendiam à alta-sociedade e cobravam caríssimo e outros médicos que atendiam nos consultórios populares, a preços acessíveis, a grande número de pessoas. Nós estamos passando agora para um sistema organizado da medicina – vou por essa organização entre aspas, aí – que é esse ao qual você se referiu. E plano de saúde, você paga o plano de saúde, você movimenta uma quantidade absurda de dinheiro nesse sistema todo e aí eles partem do princípio de que nós temos muitos médicos e de que os médicos, se são muitos... existe concorrência e você pode pagar pouco, o que é uma estupidez dessa gente! Eles não enxergam que o médico que ganha pouco pede muito exame, é uma coisa tão elementar! Isso que você está dizendo, descrevendo, esse tipo de médico que você fica falando e ele fica preenchendo o papel, é porque ele, te pedindo exame, ele não precisa conversar com você. Então, você vai lá:  “Estou com uma dor no abdômen e tal, que me incomoda, eu como, ela passa”. Eu olho lá, vou pedir um ultra-som de abdômen e te entrego: “Faz esse ultra-som e volta”. Eu gastei 30 segundos na consulta que me dá 20 reais, entende? Essa é a realidade, não adianta a gente ser romântico, não é?

Roldão Arruda: Às vezes...

Drauzio Varella [interrompendo]: Ao passo que, se eu fosse lá, te examinasse, podia explicar para você que você está se alimentando de uma forma inadequada ou que você pode fazer um tratamento para a gente ver se funciona em dez, 15 dias se isso passa ou não, você volta para eu checar, ver se está melhor ou pior. Quer dizer, esse tipo de medicina desestimula a relação médico e paciente e estimula a relação médico e laboratório. Então, esse dinheiro que eles economizam na consulta médica – economizam dez, 20 ou 30 reais– , eles podiam pagar mais e dar uma condição do médico sobreviver um pouquinho melhor – [porque] eles vão gastar dez vezes mais no laboratório. Essa é a burrice que esse pessoal não consegue enxergar, porque eles são business men [homens de negócio]. Eles olham para esse sistema como se fosse um mercado onde você tivesse o consumo e, do outro lado, o prestador de serviços, não é?

Cristiane Segatto: Agora, doutor Drauzio, o médico deve sempre dizer a verdade para o paciente terminal, dizer que ele vai morrer? O senhor se arrepende de ter mentido para algum paciente alguma vez?

Drauzio Varella: Eu me arrependo das duas coisas. Eu já me arrependi de ter dito para um doente que ele não tinha chance de cura. Já me arrependi várias vezes de ter falado.

Paulo Markun: Se arrependeu por quê?

Drauzio Varella: Me arrependi, porque os fatos mostraram que não foi a melhor conduta, que eu não fiz bem para essa pessoa dizendo isso. E não foi uma pessoa só, já errei várias vezes nesse sentido. E já me arrependi do contrário também, de não ter dito a verdade logo de cara, porque, às vezes, se cria uma pressão em volta de você para não dizer a verdade. Você não conhece a pessoa, aliás, você nem viu a pessoa, vem antes a família conversar com você e diz:  “Olha, a situação é a seguinte: o meu pai é um homem muito sensível, sempre foi apavorado, assustado com essas questões de saúde. Quando tinha alguém doente em casa, ele ficava desesperado, ele não podia nem ver e, agora, ele está nessa situação, ele não tem condições de lidar com isso. Então, nós queríamos que o senhor não dissesse para ele que ele sofre de câncer. Nós já dissemos que é uma doença grave, que vai precisar de um tratamento, mas se o senhor falar essa palavra para ele, ele vai ficar desesperado.” Você não tem condições de analisar isso, sabe, de dizer “não vai ficar desesperado, isso é opinião de vocês, ele é um homem...”. Você nem conhece a pessoa, você nem viu! Aí depois vem o doente, você fica [convencido]: “realmente é uma pessoa sensível”. Não é fácil, não é fácil saber qual é a melhor situação, qual é a melhor atitude que você tem que tomar nessa hora. Você tem que tomar alguma! Ou você diz ou você não diz, você não pode ficar em cima do muro. E, por mais que você tente não chegar exatamente na verdade, mas se aproximar... isso [é] um jogo muito atrapalhado. Para nós, o ideal é lidar com pessoas racionais, não tem nada melhor para um médico do que isso, pessoas racionais a que você diga: “Olha, situação é essa!” com clareza, assim. E que a pessoa não se desespere, que ela possa discutir com você, que ela possa discutir detalhes e ajudar você a escolher a melhor situação para ela ou ao contrário, você ajudá-la a escolher a melhor solução para ela.

Cristiane Segatto: Essa questão do erro médico – seja o erro de avaliação, seja mesmo o erro técnico– é uma coisa muito forte no livro. Ao assumir esses erros, quer dizer, isso teve um efeito terapêutico para o senhor? Foi uma forma de exorcizar alguns fantasmas ao longo da carreira?

Drauzio Varella: Eu acho que nós temos que falar com franqueza a respeito do erro médico. O que é um erro médico, em primeiro lugar? É um erro, um erro de avaliação, um erro de não escolher uma melhor solução para aquela situação. [Você] não percebeu, na hora em que estava escolhendo, achou que estava escolhendo a melhor, mas depois a evolução te mostrou que [aquilo] não era a melhor solução. Agora, isso acontece? É lógico que acontece. Imagina, nós temos que tomar... em uma sociedade, todas as pessoas erram, só os médicos é que são infalíveis? Isso é o que os médicos antigos diziam ou o que o Papa dizia também, que era infalível, não é? Mas a verdade é que nós erramos, todos os dias nós erramos. Eu não acho grave errar, porque errar faz parte da vida. Só não erra quem não faz. Se você está tomando decisões e, às vezes, decisões que você tem que tomar muito depressa, muitas vezes sem dormir, que é o que acontece muito com os médicos... Você pega aí uma quantidade enorme de médicos que trabalham a noite inteira e emendam o dia seguinte inteiro, coisa que é proibida pela legislação do trabalho para todas as profissões e na medicina é uma tradição. O médico trabalha o dia inteiro, vai para o plantão à noite, às vezes, passa a noite inteira acordado, emenda o dia seguinte, e vai para casa oito horas da noite do outro dia, quer dizer, é um absurdo isso! Como você quer que uma pessoa dessa, numa hora, não se atrapalhe ou não faça um mau julgamento, não tenha uma observação equivocada? O grave não é isso, o grave não é você errar, o grave é você não perceber que errou. Sabe, se você vem com uma pneumonia, eu lhe dou um antibiótico e esse antibiótico não é o mais adequado para aquela situação, eu te mando embora e nunca mais vou te ver. E você, como estava sendo medicada, você fica tomando remédio uma semana, dez dias, 15 dias e vai ficando cada vez pior, mas acha que é assim mesmo, porque você esta tomando remédio que o médico mandou, isso é muito grave. Agora, se eu te digo “olha, você vai tomar tal antibiótico, me telefona daqui a 48 horas para me contar o que aconteceu com a sua febre” e você me liga e me diz: “olha, a febre aumentou”, [e eu digo] “se aumentou volta aqui que eu quero te ver de novo”... Sabe, você corrige o erro e esse erro às vezes nem é um erro propriamente; você dá um antibiótico que age em 80% daqueles casos, mas a cada dez [para] que você receita, dois não respondem. Mas você precisa reconhecer esses dois; isso é o importante, isso diferencia o bom médico do médico incompetente.

Paulo Markun: Doutor Drauzio, nós vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o programa Roda Viva, nesta noite, entrevistando o médico e escritor Drauzio Varella. Por falar em erro, Drauzio, queria falar da campanha do programa de incentivo à adaptação de contratos de planos de saúde privados, da Agência Nacional da Saúde, que teve você como garoto propaganda?

Drauzio Varella: Infelizmente!

Paulo Markun: Você já declarou publicamente para o Estadão, dia dois de julho, que se arrependia de ter participado dessa confusão. Eu gostaria de que o senhor explicasse por que chegou a essa conclusão e por que, antes de mais nada, decidiu participar? 

Drauzio Varella: Olha, eu, no governo passado, fiz uma série de vídeos para o Ministério da Saúde. Eram vinhetas sobre várias doenças, que foram apresentadas nos programas populares – diabetes, hipertensão, febre reumática, exercícios físicos. Fizemos 42 vídeos. Eram vídeos de dois a três minutos que foram apresentados e foi uma coisa muito interessante mesmo, com uma receptividade maravilhosa por parte dos telespectadores. E agora, em uma sexta-feira, eu recebo esse pedido do Ministério da Saúde, com a seguinte justificativa: dizendo que os planos de saúde mais antigos – se eu não me engano, anteriores a novembro de 99 ou 98, não tenho certeza – eram planos de saúde que, às vezes, não davam direito a muitos procedimentos, então o doente chega[va] no hospital e não [tinha] direito à cirurgia cardíaca, ao tratamento de câncer, aids etc. E eles queriam moralizar esse mercado, queriam colocar esse mercado todo dentro da lei, que é a lei que rege os planos de saúde a partir dessa data, novembro de 99 ou 98, não tenho certeza, não lembro mais. Bom, enfim, eles queriam acertar isso direitinho e, para isso, as companhias seguradoras iam mandar para os segurados uma proposta de readaptação aos planos. E essa proposta teria pequenas diferenças de acerto nas mensalidades e passariam a cobrir os procedimentos que não eram cobertos anteriormente. Olha, para nós médicos, isso é tudo que a gente quer, porque a coisa mais triste é você, na hora que tem um doente grave na sua frente, você diz: “então, corre, interna em tal hospital, que nós vamos fazer tal coisa”, chega lá, o hospital fala: “Olha, não dá direito, o plano não dá direito”. Quer dizer, para o plano tudo bem, é um burocrata que está ali atrás da escrivaninha, ele fala: “não dá direito”. Mas para você, que está com o doente ali, o que você faz na hora? Pega aquela pessoa e diz “não dá direito, pega o ônibus e vai para casa”? É terrível para a gente isso. Na hora, eu ainda disse: “Isso aqui está bem estudado, quer dizer, vai ser uma coisa útil para população?”. “Não, nós vamos resolver esse problema, vai acabar com esse negócio de chegar na hora da doença e você não ter cobertura” Eu disse: “Lógico, se é uma propaganda do Ministério da Saúde”, falei, “vai vir com a...” Como chama aquilo?

Paulo Markun: Tarja, marca.

Drauzio Varella: Tarja, marca do ministério? É lógico. “Ministério da Saúde. Brasil um país de todos”. Tudo bem! Isso foi em uma sexta-feira, isso foi para segunda–feira, já era a gravação, porque é tudo com muita pressa. Eu entrei ingenuamente nisso, disseram que tinham estudado, que há meses que vinham estudando essa situação toda e que realmente isso vinha para resolver o problema. Então quem sou eu para dizer que não vou colaborar, não é? Lógico. Aí fui, fiz essas gravações. Eu estava na véspera de uma viagem para um congresso no exterior. Eu fui. Quando eu voltei, em um domingo em casa me liga uma amiga. Aliás, me liga, não, me passa um e-mail dizendo: “Tem uma fotografia sua em uma revista semanal, uma fotografia de página inteira. Mas eu li o texto e não entendi o que eles querem exatamente”.  Aí eu comprei a revista, olhei, realmente tinha uma fotografia minha na página inteira da revista e do outro lado tinha uma espécie de um teste dizendo “se o seu plano é anterior a essa data, se é não sei o quê, você tem que fazer readaptação”. Eu já achei aquilo muito esquisito. Eu falei “olha, essa minha amiga é professora da Universidade de São Paulo, quer dizer, ela leu isso e não entendeu o que está escrito lá? Para que gastaram esse espaço com a minha fotografia, uma página inteira com a minha fotografia, eles queriam usar a minha imagem? Por que não usaram o cantinho e gastaram aquele espaço que custa uma fábula para poder explicar isso direito?”. Passam uns dias, eu recebo um e-mail de um senhor dizendo que estranhava como eu tinha cedido a minha imagem, que me considerava uma pessoa respeitável e como eu tinha cedido a minha imagem para uma coisa dessas, quando o plano dele era de trezentos e poucos reais e estava sendo aumentando para oitocentos e tanto ou novecentos e tanto. Eu comecei a ficar confuso, eu falei “será que essa gente estudou isso direito, será que eles viram que podia acontecer essa confusão toda?”. Eu comecei a achar que eu tinha entrado num barco furado, com pessoas talvez até bem intencionadas, mas que eram incompetentes, porque não podia acontecer uma confusão daquelas todas e com a minha imagem. Nessa hora, Markun, todos os lugares em que aparecia, aparecia a minha fotografia! Como se aquela propaganda... como se eu tivesse feito a propaganda! Foi o Ministério da Saúde do Brasil, estava escrito que era o Ministério da Saúde do Brasil, que em nenhum momento apareceu para dizer: “Olha, esse senhor aqui não tem nada a ver com essa história, a responsabilidade é nossa”. Aí aconteceu essa confusão toda que nós vimos e eu cheguei à conclusão final de que eu realmente errei sumariamente E peço desculpas a todas as pessoas que se equivocaram por causa desse meu engano. Eu devia ter dito, quando me perguntaram, “nós gostaríamos de que o senhor fizesse”... Eu deveria dizer: “Eu não faço. Não faço, porque eu não sei se vocês estudaram isso adequadamente” e realmente o que aconteceu, na prática, é que eu jamais na minha vida fiz uma publicidade. Essa que eu fiz, o dinheiro que o Ministério da Saúde pagou, eu doei para as freiras do Hospital Santa Marcelina, que prestam um serviço inestimável para população atendida pelo SUS da zona Leste, não tive nenhum tipo de interesse, jamais fiz publicidade na minha vida. Você entra para fazer uma convocação a pedido do Ministério da Saúde e se vê envolvido nessa bagunça, tenha dó! Eu não merecia isso.

Michel Laub: Doutor Drauzio, você já pensou algum dia em se envolver diretamente em gestão pública de saúde como outros médicos já fizeram no passado? 

Drauzio Varella: Não, não, Michel, jamais. Jamais faria isso, eu não tenho competência nessa área.

Paulo Markun: Nem de políticas públicas, que é a pergunta da Nilza Ludovico, de Santa Cecília, aposentada: “Por que você não participa do governo?”

Drauzio Varella: Não, não. Porque eu não tenho, eu sou um péssimo administrador, péssimo administrador. Eu não consigo administrar as contas da minha casa. Se não fosse a minha mulher, eu estava perdido. Eu não sirvo para isso, eu acho que isso é um engano que muitos médicos cometem. Sabe, você é competente em uma determinada área. Aí, porque você é competente naquela área, eles te chamam para você organizar o Sistema de Saúde, organizar uma determinada política de saúde. São habilidades diferentes. O maior ministro da saúde que nós tivemos no Brasil – eu não vou dizer, porque é época de eleição– não era médico. Não era médico, porque não precisa realmente ser médico para você ser bom ministro da Saúde. E nós tivemos excelentes médicos que foram maus ministros da saúde.

Roseli Tardelli: Mas o senhor não acha que o senhor tem uma contribuição, pela experiência que você tem, pela história que o senhor tem, pela credibilidade que o senhor tem?   

Drauzio Varella: Eu acho que eu posso dar essa contribuição, quer dizer, na parte educativa, que é o que eu sei fazer, e o que eu gosto de fazer. Sabe, eu acho que se eu aproveitar esses conhecimentos todos que eu adquiri na medicina no decorrer desses anos, e se eu souber transmitir esses conhecimentos através dos meios de comunicação de massa para a população, eu acho que eu estou fazendo o papel mais importante, porque se eu me meter nessa outra área, que eu não conheço, vai acontecer uma confusão, certamente, ou várias confusões como essa dos planos de saúde.

Mônica Teixeira: Doutor Drauzio, faz tempo que lhe queria fazer essa pergunta, que é a seguinte: o senhor é um clínico...

Drauzio Varella [interrompendo]: Eu sou oncologista clínico.

Mônica Teixeira: O senhor sempre quis ser um médico clínico e, de talvez dez anos para cá, desde do começo da epidemia de aids, mais tempo então, mais ou menos na década de 80, o senhor foi se tornando progressivamente um homem da mídia, não é? O que é visto na mídia, tem uma trajetória na mídia. De que maneira o senhor acha que estar na mídia, aparecer na televisão com esse grau de exposição que o senhor teve, por exemplo, na época do Ministério da Saúde, que influência isso tem na prática clínica do seu ponto de vista? Eu também queria saber o que o senhor sente do ponto de vista de quem o procura.

Drauzio Varella: Olha, essa exposição na mídia, nessa área que eu faço, que é a educação à saúde etc., foi uma armadilha que eu criei para mim mesmo. Porque eu comecei a fazer isso em 1985 na Rádio Jovem Pan, aqui em São Paulo.

Mônica Teixeira: Com aquele [programa] Viva a vida, não é isso?

Drauzio Varella: É. Por influência do jornalista, que era uma pessoa admirável, eu tinha uma grande amizade com ele, era como irmão para mim, um irmão mais velho, que era o Fernando Vieira de Melo. E o Fernando Vieira de Melo... Eu tinha voltado de um congresso em Estocolmo, congresso de aids... Em 85 era uma epidemia que corria solta no mundo inteiro. Ele me chamou na rádio: “Vem cá! Você voltou do congresso, grava uma entrevista com a gente”. Eu gravei uma entrevista com eles e, depois, durante semanas eu encontrava pessoas que diziam “eu ouvi você falando na Jovem Pan”. Eu liguei para ele: “Fernando, essa entrevista, vocês estão passando quantas vezes?” Ele falou: “Não, eu dividi a entrevista em vários fragmentos e nós estamos repetindo isso na programação, porque é uma coisa educativa, é importante e tal”. Eu falei “Mas fica ruim para mim”. Naquela época, médico sério não aparecia em rede de comunicação nenhuma, só médico picareta é que aparecia na televisão, no rádio etc. E eu falei “mas fica ruim para mim”. Aí eu fui lá, conversei com ele e ele falou “eu acho o contrário, eu acho que você deveria aparecer aqui. Isso aqui é uma epidemia e você tinha que dizer: olha, aqui é o doutor Drauzio Varella falando com você, toma cuidado, usa camisinha. Tem que ser claro, nós estamos em uma cidade muito grande; se você aparece e fala e não dá o seu nome, quem é que vai saber quem é você? Quem é que vai saber quem está dando esse conselho? É um repórter, um jornalista, é o bêbado da esquina?” Eu na hora fiquei chocado. Eu falei “não, em hipótese alguma, imagina se eu vou sair aí. Eu sou médico, imagina! Eu tenho pretensões acadêmicas.” Mas ele... eu fiquei com aquilo na cabeça, sabe? Aí voltei lá: “Vou fazer! Vou experimentar! Vamos ver.” Eu tinha visto nessa palestra, nessa conferência em Estocolmo, um pesquisador da Organização Mundial de Saúde que, quando ele começou a palestra, ele colocou um slide que era um slide com um texto da Divina comédia [poema italiano de Dante Alighieri (1265-1321), iniciado aproximadamente em 1307 e concluído pouco antes de sua morte, a obra narra a odisséia de Dante pelo Inferno, Purgatório e Paraíso], de Dante, que dizia: “O pior dos infernos está reservado àqueles que, nos momentos de crise, se abstêm.” Eu fiquei com essa frase na cabeça. Nós estamos vivendo em um momento de crise aqui, eu não quero que amanhã um neto meu chegue para mim: “Vô, mas vocês sabiam do que estava acontecendo e vocês não falavam nada para as pessoas?” Aí eu comecei a fazer essas vinhetas da rádio Jovem Pan. E, a partir daí, não houve mais como segurar esse processo, você sabe como funciona a mídia. Porque aí me chamavam para falar aqui, para falar lá e você fica um pouco perdido também.

Paulo Markun: Mas você pilota extremamente bem – é palpite, não é pergunta. Eu acho o seguinte: uma pessoa que começou como professor de cursinho a sua carreira profissional e foi tão competente como professor de cursinho, que tornou-se sócio do maior dono de cursinho do Brasil, que é o [João Carlos] Di Genio, e cria o nome do cursinho dele, o Objetivo, é um comunicador nato... Quer dizer, não é pergunta, é palpite. Eu digo o seguinte: essa vocação da comunicação, não sei se é anterior à da medicina.

Mônica Teixeira: Mas e a clínica, doutor Drauzio? Você não me respondeu.

Drauzio Varella: Mas não muda. Não, não muda esse tipo... Dois terços do meu tempo eu passo com os meus doentes. Esse é um terço de tempo que sobra que as pessoas vão para o clube, vão para não sei o quê...

[risos]

Mônica Teixeira: Não, eu sei. Mas as pessoas que o procuram, o senhor acha que faz diferença para elas o senhor ser uma celebridade?

Drauzio Varella: Eu acho que não, no tipo de doença que eu trato, as coisas se colocam no lugar por conta própria, sabe? Você não precisa explicar nada.

Mônica Teixeira: Então, a última coisa. Do que se trata ser um médico clínico, ser um médico clínico, alguém que se inclina sobre a pessoa, o que o levou [a esse caminho]?

Drauzio Varella: Eu acho que a base da clínica é primeiro a curiosidade, sabe, você ficar atento, querendo saber o que acontece com as pessoas, ficar atento às reações dos outros. E você gostar de estudar, não dá para você ser clínico sem estudar. A clínica é muito dinâmica, caminha muito rapidamente e, para você ter prazer em fazer clínica, tem que ter prazer de estudar. Se não gostar de estudar, não é possível.

Michel Laub: A Mônica perguntou sobre a sua experiência na mídia, não é? E, como escritor, o que isso mudou na sua percepção em relação aos pacientes na clínica?

Drauzio Varella: Isso, sim, mudou muito. Porque você, quando começa a escrever, começa a enxergar o mundo com outros olhos, com os olhos do escritor, daquele que observa, fica procurando encontrar uma palavra, um tipo, escrever um detalhe do comportamento de uma pessoa, um gesto às vezes, tudo adquire uma força maior.

Roldão Arruda: Mas você sempre foi um bom observador de comportamento.

Mônica Teixeira: [Ele] Já falou aí que a clínica...

Roldão Arruda: Não foi, não? Tem detalhes, a gente percebe que o senhor é um bom observador. O senhor sempre foi assim?

Roseli Tardelli: O senhor ficou mais humano escrevendo, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: Muito mais! Muito mais. Você parar, fazer um livro como esse que eu fiz é um privilégio para qualquer profissional. Por exemplo: você, como jornalista, imagina você ter o privilégio de, um momento, parar, “agora eu vou fazer uma reflexão sobre o que eu vivi nesses anos todos”. A gente vai trabalhando, vai fazendo as coisas, mas você não pára para refletir profundamente, entrar mesmo no fundo das emoções que o teu trabalho te trouxe. Isso é um privilégio, isso muda muito, muda a tua visão, muda tua compreensão.

Maria Helena Pereira Franco: Privilégio para nós, que podemos ler também, não é? Porque é uma exposição pessoal e profissional e que muito enriquece. Trabalhando também nessa área, com pacientes que estão próximos da morte, com suas famílias, eu me senti muito tocada pelos seus relatos e pelas suas reflexões. Mas eu quero voltar um pouquinho ao comunicólogo, pensando na possibilidade de atingir pessoas, de informar pessoas, educar, mudar atitudes no Brasil, ir para a televisão, ir para mídia e ter enorme alcance como as suas informações. Não está na sua preocupação saber como realmente as pessoas vão entender a suas informações? Porque a gente vive em um país em que falamos português e falamos vários dialetos e as questões culturais são tão fortes, tão presentes... Será que não fica uma coisa... Será que eles estão entendendo? Será que vai ser benéfico isso o que eu estou falando? Porque eu acho que é preocupante, não é? Quando a gente quer passar realmente uma informação, quer obter uma mudança de comportamento das pessoas. Como é que é isso?   

Drauzio Varella: Isso que é o desafio, não é?

Maria Helena Pereira Franco: É.

Drauzio Varella: Lógico, você chegar, como aqui... todos nós temos um nível universitário, conversamos de temas que todos conhecemos e tal, é fácil fazer isso. O difícil é você pegar um conhecimento científico às vezes árido e, primeiro, selecionar o que interessa para as pessoas no dia-a-dia, porque o que interessa para as pessoas hoje em dia é muito simples e muito importante: a grande maioria das doenças surge por um mau uso do corpo. E, às vezes, é um pequeno desvio de uso ideal diário e esse desvio vai se acumulando, acumulando e acaba gerando problemas horríveis, não é? Você não anda, não faz exercícios, não se movimenta, tem uma vida sedentária, no dia-a-dia não acontece nada; ao contrário, você acorda, senta em uma cadeira, muda para outra cadeira e passa o dia assim. De repente, você tem um enfarto e cai morto. Aí, quando tem: “Nossa, coitado, como foi acontecer isso com ele?” Mas é um processo que vem [se dando] há muito tempo. Eu acho que, no país que nós vivemos, com tanta gente que não tem acesso a nada, esse tipo de conhecimento é absolutamente fundamental. Nós temos que achar uma linguagem, como explicar essas coisas. Vou dar um exemplo básico: nós fizemos uma série no Fantástico com mulheres grávidas; eu acompanhei cinco mulheres grávidas durante toda a gravidez, do início até o parto. Uma em Guarulhos, uma em São Paulo, uma no Rio, uma em Recife e outra em Manaus. Cada fim de semana eu passava em uma cidade – porque eu não podia ir durante a semana, por causa da medicina–, acompanhando essas mulheres durante os nove meses. Não sei como a minha mulher não me pôs para fora de casa! Mas você, quando acompanha... Eu sou médico, eu sei, eu estudo as coisas, mas uma coisa é você ler, a outra coisa é você ir à casa da pessoa. Então eu vi essa moça em Manaus, que morava em uma casa que eu conheço. Manaus, não, Iranduba, é do outro lado do rio Negro, na periferia de Iranduba, são aqueles casebres típicos do Amazonas mesmo: telhado de zinco ali, casa de madeira e aquela escadinha para você descer. Aí a irmã dessa moça que estava grávida, Alcineide, estava grávida também, a menina tinha 17 anos, segundo filho, porque aqui no Brasil, planejamento familiar é privilégio nosso, classe média para cima. Os pobres que tenham o número de filhos que quiserem ter, não são responsabilidade nossa. Só é responsabilidade nossa quando eles começam assaltar a gente no meio da rua, não é? Mas, aí, eu estou ali, naquela escadinha, e a menina, essa irmã da Alcineide, grávida também aos 17 anos, sofreu uma queda da escada e perdeu a criança no sétimo mês. Aí eu vou olhar a escada. A escada é uma coisa tosca, sabe! Uns paus grudados ali. Mulher grávida tem vontade de fazer xixi de noite, várias vezes, por noite. E aí essas coitadas dessas moças tinham que descer aquela escada tosca, que eu, para descer, eu tinha que me equilibrar naquilo. Com uma barriga enorme, à noite, no escuro total para chegar no banheiro. Quer dizer, coisas que a gente não imagina que são dessa simplicidade. Acho que essas coisas tem que ensinar. Peguei o marido dela: “escuta, você passa o tempo inteiro, faz... Madeira é o que não falta! Faz uma escada decente.” Ele foi lá e fez a escada; provavelmente não tinha passado pela cabeça dele também que era importante ter feito a escada.  E, se você chega na televisão e diz: “Olha, você vai pegar no bebê, lava a mão com água e sabão; qualquer sabão, não precisa ser um sabonete especial, qualquer um serve. Vai lavar... Vai pegar no seio antes de dar de mamar para a criança, lava as mãos”. Você reduz o número de diarréias nas crianças estupidamente, porque a grande maioria dos germes você leva com a mão e ninguém explica isso, ninguém diz isso. E nós ficamos em um ambiente universitário com discussões filosóficas e tal; isso é muito útil para nós, mas não chega à população. O desafio eu acho que é o contrário. Qual é a linguagem que nós vamos usar para que as pessoas nos entendam? Para que a gente possa ensinar para eles o mínimo de noções básicas, para eles poderem se defender. Eu acho que isso é o que me fascina nesse tipo de comunicação.

Maria Helena Pereira Franco: Isso é o que me faz pensar: será que nós estamos formando profissionais para uma realidade que não é a que eles vão encontrar?

Drauzio Varella: Totalmente. Eu acho que as faculdades de medicina, eu não posso julgar as outras, mas as faculdades de medicina preparam os profissionais para outro tipo de país, não o país em que nós vivemos.

Paulo Markun: Doutor Drauzio, nós vamos fazer mais um rápido intervalo e a gente volta daqui a instantes.

[intervalo]

 Paulo Markun: Estamos de volta com o programa Roda Viva, esta noite entrevistando o médico e escritor Drauzio Varella. Moacyr Scliar [escreveu mais de 67 livros, abrangendo romances, crônicas, contos, literatura infantil e ensaios, pelos quais recebeu inúmeros prêmios literários], que é escritor e médico em Porto Alegre e também membro da Academia Brasileira de Letras, saúda você como um exemplo da linhagem de médicos e escritores, da qual ele relaciona entre os representantes ilustres Guimarães Rosa [(1908-1967) considerado um dos maiores escritores brasileiros do século XX, autor de romances, contos, poesias e novelas em histórias que emocionam pela beleza da escrita e das descrições das personagens, paisagens e sentimentos. Autor do clássico Grande sertão: veredas, sua obra-prima, entre outros], Pedro Nava [(1903-1984) fez parte do movimento modernista juntamente com Carlos Drummond de Andrade e  Manuel Bandeira, com o qual trocava inúmeras cartas. Considerado um dos melhores memorialistas do Brasil, escreveu vários poemas, entre esses “Baú de ossos” (1972), “Balão cativo”, “Chão de ferro”, “Beira-mar”, “Galo-das-trevas” e “O círio perfeito”], Jorge de Lima [(1893-1953) grande poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor] e eu incluiria o próprio Moacyr Scliar.

Drauzio Varella: O próprio Moacyr Scliar, com todo merecimento.

Paulo Markun: Ele diz que hoje em dia fala-se muito “da necessidade de humanizar a prática médica”. E pergunta se você acredita que a medicina perdeu a sua dimensão humanística. E vai além, diz que "nos EUA e na Europa e também aqui no Brasil, faculdades de medicina estão introduzindo no currículo uma disciplina chamada humanidades médicas, que inclui áreas como a história da medicina, ética médica, antropologia médica e, detalhe interessante, literatura e medicina”. E finaliza: “o que você acha da literatura no currículo médico?"

Drauzio Varella: Eu acho fundamental. Eu acho um absurdo você pegar essas crianças que entram na faculdade de medicina, esses garotos e meninas, e colocar as pessoas em uma pressão para aprender conhecimentos técnicos, sem ter nenhuma preocupação em mostrar para eles um pouco do mundo que eles vão encontrar aí fora, não é? O médico lida basicamente com as pessoas, o objeto da medicina é o doente, a pessoa doente ou impedir que a doença apareça, mas o objeto é o ser humano basicamente. Você tem que conhecer o mínimo de quem está do outro lado. Eu acho que grande parte dessas distorções que acontecem são por essa falta de conhecimento, por esse despreparo dos médicos em relação aos outros. Você trata uma pessoa como se fosse um conjunto de aparelhos e sistemas. Isso não pode dar certo.

Paulo Markun: Eu queria juntar cinco perguntas aqui, que aparentemente não são a mesma pergunta, mas eu vejo um nexo entre elas. Paulo César de Nascimento, de Viçosa, Minas Gerais, aposentado, pergunta o seguinte: “Quando o paciente é religioso, é mais fácil aceitação da doença?” Eu vou fazer todas. Nélio Alves Gomes, de Uberaba, de Minas Gerais, pergunta se você acredita na vida após a morte e se já teve algum fato que pudesse comprovar a vida após a morte. Também nessa mesma linha, Fernando Costa, de Salvador, Bahia, pergunta: “Você acredita em vida após a morte? Está preparado para morrer?”. E, finalmente, Odete de Souza Oliveira, de Vila das Mercês, aqui em São Paulo, pergunta: “Como você superou a perda de sua mãe e do seu irmão?”

Drauzio Varella: Olha, essa questão religiosa, essa postura religiosa ou não religiosa diante da morte é muito curiosa, porque eu já vi de tudo nessas áreas também. Eu já vi religiosos, pessoas religiosas, que têm um entendimento parece que mais fácil da morte, achando que a morte faz parte mesmo de um processo e que depois da morte existe vida e que essa vida será uma vida de outra qualidade. Isso eu vi ajudar algumas pessoas. Foram raras, porque a maioria das pessoas religiosas que eu vi tiveram uma reação muito pouco previsível, alguns inclusive de revolta mesmo: “Como isso está acontecendo comigo? Eu sempre acreditei em Deus, tive fé e como isso acontece comigo?” Eu me lembro de um padre que eu tratei muitos anos atrás, esse homem morreu num desespero brutal, porque ele não se conformava: como ele, tendo entregado a vida nas mãos de Deus... [como] estava acontecendo aquilo com ele naquele momento? Você vê pessoas que não são religiosas, às vezes, com um entendimento muito claro, com uma postura bastante equilibrada diante desse processo. Eu não acho que é a falta de religião; a morte, na verdade, é a contradição maior do ser humano, não existe contradição maior do que essa, entre a vida e a morte. Eu acho que é a maior de todas e a sua reação diante dessa contradição é absolutamente imprevisível. Então, as perguntas: “o senhor tem medo de morrer?”... Eu não sei como eu vou reagir nesse tipo de situação.

Paulo Markun: Isso lhe incomoda?   

Drauzio Varella: Não tenho a menor idéia, Markun.

Paulo Markun: O fato de não saber o incomoda? 

Drauzio Varella: Me incomoda o fato de eu não saber como eu vou reagir, sabe, me incomoda muito. Eu gostaria de, sei lá, de reagir como tantos doentes que eu vi, que tiveram uma tranqüilidade e aceitaram aquilo como um fato da vida.

Paulo Markun: Não querendo fazer psicologismo, no que a morte prematura da sua mãe, quer dizer, e a perda do seu irmão o senhor acha que pesam nessa balança? Porque, eu explico, acho o seguinte: o livro que você escreveu, em que pesa – eu acho que tem um trabalho intelectual etc. e tal –... ele tem por trás uma moral da história que não é fácil de assumir, que é essa: é a loteria e ponto final. No que essas perdas pesaram nessa balança?

Drauzio Varella: Olha, a minha mãe morreu, eu tinha quatro anos. Eu nunca comentei isso, nunca fiz comentários a respeito da morte da minha mãe, não falava nesse assunto simplesmente. Eu escrevi a primeira vez... Eu fiz um livro Nas ruas do Brás (2000) [aí] chegou um momento em que eu tinha que contar que a minha mãe morreu. Eu disse: “como eu conto isso?”. Aí eu resolvi contar a cena como eu vi, é essa cena que eu coloco nesse livro.

Paulo Markun: Que é da aliança.

Drauzio Varella: Eu era muito pequenininho, Markun, tinha quatro anos de idade, quer dizer, eu não sabia o que isso era.  Mas foi o momento em que eu percebi que morte era ausência definitiva, que é a frase que começa nesse livro. Ali, eu senti o que significava a morte. Depois de alguns meses da [sua morte], eu entendi que eu nunca mais veria minha mãe, que não havia mais essa possibilidade. Então, eu tomei consciência desse fato muito precocemente. O meu irmão morreu quando eu tinha 47 anos, ele tinha 45 anos. E eu conto a história dele no livro pelo fato de que o meu irmão era médico – teve um câncer de pulmão, meu irmão era fumante – e, quando teve esse tumor, ele mesmo diagnosticou o tumor e sentou comigo e com o Narciso, que era o colega de clínica, e falou: “Eu quero que vocês tratem de mim. Não quero me tratar com outros médicos”. Então, pela primeira vez eu experimentei a situação de ser médico e ao mesmo tempo...

Paulo Markun: Familiar.

Drauzio Varella: Familiar, de uma pessoa muito querida que eu tinha que tratar. E muda muito as coisas! E muda a sua visão da medicina inclusive. Eu, hoje, quando vejo um doente que chega e senta do meu lado e percebo que ele está angustiado e que a família está angustiada, penso nos momentos que passei na posição do familiar angustiado, da mesma forma. Eu sei que sensação é essa. E eu acho que isso seria muito importante, que os médicos tivessem esse tipo de vivência – é lógico que eu não desejo isso para ninguém – mas é uma coisa muito útil mesmo você ter passado pelo outro lado. Porque é fácil, quando você está ali, você é o que dá o remédio, você é o que manda, você é o que desinterna, você é o que faz e você que assina o atestado de óbito. O difícil é quando aquilo está acontecendo com uma pessoa querida e, quando aí você pára em um momento em que você vê que as coisas estão dando errado, que você sabe que vão evoluindo mal, e você fala será que eu errei em algum lugar? Será que em algum momento eu não tomei a decisão mais adequada?”.

Roldão Arruda: Doutor Drauzio, o senhor falou agora há pouco em mau uso do corpo, eu me lembrei daquele livro da Susan Sontag, A doença como metáfora (1984) [livro no qual a autora mostrou como foram criadas representações sobre o câncer e a tuberculose pela literatura ficcional, pelos discursos médicos, psiquiátricos e militares, que acabaram reforçando falsas crenças sobre os processos de adoecimento, associando a eles um processo fatal de desenlace, de vestíbulo da morte], em que os doentes de câncer eram sempre culpabilizados, era assim: “O que eu fiz de errado? Eu sou recalcado, eu não tive uma vida sexual boa, por isso que eu desenvolvi um câncer.” Ainda existe isso? Pessoas chegam lá doentes e com culpa?

Drauzio Varella: Ô! É uma herança da psicanálise barata, não da verdadeira psicanálise; a psicanálise “porta-de-botequim”, é essa que diz que a doença é sempre resultado de um processo que você desenvolveu psicologicamente, não é? E o câncer tem esse tipo de explicação também: você, por razões psicológicas, por ser neurótico, por, enfim, não ser uma pessoa equilibrada, acabou fazendo um câncer.

Paulo Markun: Não tem base científica nenhuma?

Drauzio Varella: Zero de base! Nunca existiu um estudo digno desse nome, que tenha sido publicado sobre esse tema. E fica muita gente, aparentemente séria, repetindo essa “asneirice”. Seria até engraçado, se não fosse trágico, porque na hora que a pessoa tem a doença, ela fica se achando culpada de ter a doença. E se você pegar na história da medicina, sempre foi feito isso - os que tinham lepra eram considerados ímpios; tinham lepra porque não eram tementes a Deus, porque não eram homens e mulheres que tinham uma vida religiosa. Os tuberculosos, no início do século, na epidemia de tuberculose na Europa inteira, aqui em São Paulo, no Brasil todo, eram pessoas devassas, jovens devassos. Imagina que um jovem podia ser devasso em uma cidade como São Paulo em 1900. E foi assim. Com a aids nós vimos a mesma coisa. Quem tinha aids, quem eram? Eram os promíscuos e os viciados em drogas, não é?

Roseli Tardelli: Mas não foram os médicos que ajudaram a construir essa imagem, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: Os médicos também! A sociedade inteira e os médicos também, lógico! Agora, você, no fim, pega hoje uma moça que vem com um tumor de mama aos 40 anos de idade e vem triste porque: “Olha, eu sei que eu sou um pouco ansiosa, eu vivo de um jeito um pouco atrapalhado, olha o que me aconteceu!” Minha filha, esquece se você é ansiosa, é outro problema. Se toda mulher ansiosa tivesse câncer de mama, nós estávamos perdidos!

Roseli Tardelli: Falando um pouquinho de linguagem, o que o senhor acha que tem que acontecer, quer dizer, qual é a linguagem que a gente tem que usar para que menos pessoas contraiam o vírus da aids? O senhor, no documentário que o Markun fez, diz que era uma doença muito interessante. E as pessoas que vivem e tem um envolvimento com a aids acabam concordando com o senhor. Mas o que precisa acontecer? A gente está vendo, aí, o Brasil...

Roldão Arruda: Eu quero fazer um acréscimo em cima disso aí.

Roseli Tardelli: No Brasil, a gente está vendo a situação um pouco menos complexa em função da medicação, o que não significa que a gente tenha campanhas contundentes e que a moçada aí não esteja transando com camisinha como deveria acontecer. A gente tem a postura da Igreja que vem  contribuir para o senhor sabe bem o quê. Então, em termos de linguagem, o que precisa acontecer?

Drauzio Varella: Você queria acrescentar alguma coisa?

Roldão Arruda: Em cima disso. Nós somos reconhecidos mundialmente por um bom programa de aids. Gastamos milhões de dólares com essas distribuições de remédios – não estou dizendo que não se deve fazer isso, acho que se deve fazer – mas por que não conseguimos estabilizar o número de infecções? Não conseguimos fazer declinar, ou seja, todo ano milhares de pessoas entram nesse sistema do programa de distribuição de remédios. Fomos ótimos para desenvolver o programa, mas não conseguimos fazer uma política eficaz de prevenção da aids, por quê? O que falta? Não é muito amadorismo nessa...

Drauzio Varella: Olha, eu acho que realmente o programa brasileiro de aids é motivo de orgulho para os brasileiros hoje. Quando você vai a uma conferência internacional, vê as pessoas falando do programa brasileiro que não só foi importante para o Brasil, como importante para o mundo inteiro. Porque até há pouco tempo se dizia que não adiantava dar remédio de graça em países pobres, porque os doentes não tomariam essa medicação para aids, que é a medicação que exige um pouco de cuidado na administração. O Brasil demonstrou que isso é uma besteira: é possível, sim, você distribuir medicação e as pessoas, quando estão doentes, tomam os remédios. Esse é um ponto. Isso é realmente... foi uma revolução mundial, teve repercussões na África e no mundo inteiro. Agora, que nós estamos fazendo muito pouco no sentido da prevenção [é verdade]: nós estamos fazendo pouquíssimo, pouquíssimo. Nós somos muito avançados, conseguimos montar uma estrutura para distribuir os remédios e tal, ótimo, maravilhoso! Mas, em termos de prevenção, é ridículo o que nós fazemos. Praticamente se limita a quê? As campanhas governamentais se limitam ao quê, no caso da aids?

Mônica Teixeira: Ao carnaval.

Drauzio Varella: Na época do carnaval, porque eles cismam que na época do carnaval todo mundo transa. Eu acho até que é ao contrário. Faz um baile de carnaval cinco horas da manhã, todo mundo bebe [risos] e quer dormir, mais nada além disso! Eu acho que prevenção da aids é você fazer o preservativo chegar no bolso das pessoas. Se não tiver o acesso... à mão o preservativo, esquece! Não vai haver prevenção nenhuma. Você tem que ter o preservativo na mão: o menino tem que andar com o preservativo na carteira, a menina tem que andar com o preservativo na bolsa. Estando com preservativo ao alcance da mão, pode ser que eles usem ou não, mas sem estar com o preservativo ao alcance da mão não usarão de forma nenhuma. E, nesse sentido, eu acho que o que a Igreja  [Católica] faz é um crime, um crime que devia ser punido.

Roseli Tardelli: Sem dúvidas.  

Drauzio Varella: Insistir que eles são contra a camisinha, num país como o Brasil, isso é um crime. É um crime por quê? Porque as pessoas dizem: “Mas você acha que o adolescente vai dizer: “eu não uso camisinha porque a igreja não quer que eu use”? Não,  não é aí que pega, não. Pega onde? Eu já vi... Eu viajo muito, eu ando muito pelo Brasil. Eu já vi isso em inúmeras prefeituras de cidades pequenas. Você chega num posto de saúde e fala: “Tem preservativo?” “Tem.” O Ministério da Saúde manda o preservativo para o posto de saúde: “ah, tem, quem quiser vem aqui e pega”. Quem quiser vem e pega! Quer dizer, se você é casada, com o marido que está interessado em um planejamento familiar e tal, quer dizer, se você já é uma pessoa bem organizada na vida, você vai ao posto de saúde, pega o seu preservativo e tudo bem, você tem direito de pegar. Agora, não é esse problema, nós temos que levar o preservativo e convencer as pessoas a usarem e é aí que pega a posição da igreja. O prefeito vai querer fazer isso na cidade?

Roseli Tardelli: Nunca, né?

Drauzio Varella: Sabendo que o padre vai ficar contra ele? Político nenhum no Brasil enfrenta a Igreja. Eles fogem da Igreja como o diabo foge da cruz.

Roseli Tardelli: Mas os médicos têm enfrentado? Eu vejo o senhor falar, tem uma posição mais clara, mas....

Drauzio Varella: Mas eu acho que os médicos entram na mesma, acho que entram na mesma, a grande maioria.

Paulo Markun: Agora, quando o senhor esteve aqui... você esteve aqui em 1994 e 1995, falando em dois programas Roda Viva sobre a aids. E é interessantíssimo – eu assisti nesse final de semana para preparar essa entrevista – o salto que houve, justamente de 1994 para 1995. Foi quando estava para começar o uso das drogas associadas, o tal coquetel, que fez a diferença para muita gente que morreu e muita gente que está viva. A pergunta é: dez anos depois, 2004, em que pé nós estamos em duas questões que eram discutidas aqui, de um lado, medicamentos capazes de controlar a progressão do vírus e, segundo, a tal descoberta ou identificação de uma vacina capaz de resolver esse problema. Em que pé nós estamos hoje para gente... Porque esse programa vai ficar e, daqui a dez anos, nós vamos assistir e vamos ver que estávamos naquele ponto, não é?

Drauzio Varella: Um outro coitado como você vai ter que assistir aos três aí. [risos] Olha, Markun, em relação ao tratamento antiviral nós avançamos muitíssimo mesmo. Nenhum de nós era capaz de imaginar que isso seria possível em 1994, que isso vinha em remédios capazes de controlar a doença por tanto tempo. Eu tenho doentes que estavam virtualmente morrendo em 1995, quando surgiram as drogas antivirais, e estão aí hoje como você e eu. Será que daqui a dez anos estarão vivos? Bom, daqui a dez anos, eu não sei se eu vou estar vivo, não é? Quer dizer, nós sabemos que essas drogas são capazes de manter as pessoas vivas por muito tempo. Curiosamente, às vezes, com alta concentração de vírus no sangue, porque o vírus vai se tornado resistente, resistente e resistente, você vai mudando o tratamento de acordo com a resistência. E, às vezes, você pega uma fase em que o vírus explode na corrente sangüínea, milhões de cópias por ml de sangue. E você está dando um remédio que, teoricamente, não está segurando o vírus, mas você olha o doente e ele está forte, não aconteceu nada com ele, quer dizer, é possível que os medicamentos criem uma pressão ecológica em cima do vírus, de modo que ele seja obrigado a sofrer tantas mutações, que ele perca a virulência. Olha, no Carandiru eu fazia assim: você tem medicamentos para aids, você tem que tomar com o estômago vazio. Estômago vazio significa o seguinte: você comeu, tem que esperar duas horas para tomar o remédio e, depois tem que passar uma hora sem tomar o remédio também, porque não adianta tomar com estômago vazio.

Roseli Tardelli: Sem comer.

Drauzio Varella: Em seguida. Aí você tem que fazer isso três vezes por dia, é um inferno! Você pega uma pessoa organizadíssima, equilibrada, ela não consegue fazer. Então, no Carandiru, como eu ia dar esse tipo de tratamento para aqueles meninos que fumam crack? É impossível! Eu peguei um esquema de tratamento que envolvia três drogas, duas que vinham num comprimidinho só, que eram o biovir [combinação] de AZT [acrônimo de azidotimidina, composto químico que  interfere na multiplicação do vírus e ajuda na imonulogia do paciente. Surgiu em 1965 como substância para tratamento de câncer, sendo usado nos anos 1980 como um dos primeiros medicamentos no tratamento da aids. Ainda hoje é um dos principais componentes do coquetel – mistura das drogas AZT e 3TC – usado no combate à doença. Possui, no entanto, alguns efeitos colaterais, entre esses a anemia e leucopenia] com 3TC [droga antiretroviral similar ao AZT, que age inibindo uma importante enzima que o vírus HIV usa para se reproduzir. Dessa forma, consegue prevenir a criação de novos vírus. Geralmente é usado em combinação com o AZT, formando o coquetel. Estudos indicam que não há efeitos colaterais graves nos pacientes que usam o medicamento, sendo os mais comuns dores de cabeça, enjôos e vômito], e uma outra que envolve uma outra droga que se chamava nevirapina, que a gente tinha de monte lá. E essa permitia tomar um comprimido de cada um no café, um comprimido de cada um no jantar. Não tinha exame de laboratório, não tinha jeito de contar as células CD4 [primeiras células de defesa do organismo a serem destruídas pelo HIV [acrônimo em inglês para o vírus da imunodeficiência humana]. Geralmente, é feito um teste laboratorial de contagem dos linfócitos CD4 para saber como anda o sistema imunológico da pessoa HIV positiva. A contagem CD4 e o teste de carga viral são os critérios mais comuns para decidir quando começar o tratamento com as drogas antivirais], não tinha como medir carga viral, não tinha nada. É dar o remédio e acabou. Um dia ,no final do ano, falei para o pessoal “junta todo mundo que está tomando os agentes antivirais aí, o pessoal com aids, eu quero passar uma revisão em todos”. Eu cheguei, tinha uma fila de uns 50 ou talvez mais na porta do ambulatório. Eu vim passando, eu olho, era cada homem, um mais forte do que o outro. Eu fiquei pensando, falei: “Isso aqui, se fosse um ano atrás, era maca, cadeira de rodas, carrinhos de levar comida onde eles transportavam doentes e o diabo”. Eu pego aqui esses trogloditas, um mais forte do que o outro, todos tomando a mesma medicação e não acontecia nada para eles. Quer dizer, eu não sei o que aconteceu depois, porque cada um foi para um lado na hora em que a cadeia foi implodida, acho que, nessa área, nós realmente tivemos um impacto enorme mesmo. Hoje não é fácil morrer de aids para quem se trata. Você tem muita gente que morre, porque nem sabe que tinha Aids nem fazem o teste etc. Aliás, fazer o teste é uma coisa que tinha que ser... Sei lá! Tinha que [ser possível] testar a população inteira. Um terço das pessoas que têm HIV positivo...

Paulo Markun: Não sabem.

Drauzio Varella: Não sabem que têm, que são portadoras do vírus. Dois terços nem sabem que são portadoras, estão aí espalhando o vírus. Bom, isso em relação... Acho que nós avançamos muito e vamos continuar avançando. Nós não temos ainda uma droga que esterilize, que acabe com o vírus, mas nós temos drogas que controlam o vírus com bastante eficiência. Em relação à vacina, eu acho que a vacina não está em um universo previsível, ainda. Eu acho que nós temos algumas preparações vacinais com chance.

Paulo Markun: Por falta de investimentos, por desinteresse dos laboratórios?

Drauzio Varella: Eu acho que não, acho que existe um interesse grande. Eu acho que o interesse dos laboratórios está mais focalizado nos agentes antivirais, porque remédio sempre dá mais lucro do que vacina. Mas, independentemente disso, é complicado, Markun. porque você tem uma vacina... Imagina se eu descobrisse hoje essa vacina, uma vacina maravilhosa que imunizasse 100% das pessoas,  o que provavelmente não vai acontecer nunca com a aids. Mas imagina que eu tivesse essa vacina. Eu tenho que provar que ela funciona e que ela é segura. Então, para isso, o que eu teria que fazer? Eu teria que imunizar uma parte da população, eu teria que juntar milhares de pessoas, dar vacina para uma parte e não dar para outra. Agora, não adianta eu imunizar celibatários, porque eles não iam pegar Aads mesmo de outra forma. O ideal é que eu pegasse pessoas que têm práticas sexuais arriscadas. Agora, do ponto de vista ético, eu não posso chegar e dizer: “Olha, eu vacinei metade e outra metade não. Então, agora caiam no mundo aí, quanto mais atividade sexual melhor”. É antiético isso. Em todos esses estudos de vacina, você tem que, ao mesmo tempo, ensinar práticas de sexo seguro, fornecer preservativo etc., quer dizer, é muito tempo, são muitos e muitos anos para, em um trabalho como esse, você ter certeza, primeiro, de que a vacina é eficiente e, segundo, de que ela não provoca efeitos indesejáveis graves. E, para isso, você precisa de um tempo de observação, quer dizer, uma vacina como essa, que tivesse sido obtida hoje, eu acho que não entraria no mercado em menos de dez anos.

 Mônica Teixeira: Doutor Drauzio.

Paulo Markun: Vamos para um rápido intervalo e voltamos já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando Drauzio Varella, médico e escritor. Drauzio, Alexandre Cabreira, de Criciúma, Santa Catarina, diz o seguinte: “O livro, ao contrário do que muita gente está pensando, o seu livro Por um fio, é uma apologia à vida ou à sobrevida”. Eu queria entender o seguinte: o que o motivou a fazer esse livro? Que mensagem você pretendeu passar?

Drauzio Varella: Eu, na verdade, acho que não pretendi passar mensagem nenhuma. Eu acho que essa vivência que eu tive, esses anos todos com doentes graves, esse grande número de doentes que morreram sob os meus cuidados e tudo., é uma experiência que pouca gente tem. Achei que se eu conseguisse contar como as pessoas reagem diante da possibilidade da morte  – se vão morrer ou não, é outra história–, mas como elas reagem diante da possibilidade da morte, podia ser...

Paulo Markun [interrompendo]: Mas você acha que sente reações boas e ruins.

Drauzio Varella: Lógico.

Paulo Markun: Quer dizer, você julga, vamos dizer assim, por mais que não critique, quer dizer, você ressalta as boas e as ruins. O sujeito que é capaz de deixar a mãe sozinha no hospital ou o outro que junta toda a família em torno do doente, quer dizer, há uma moral da história.

Drauzio Varella: É porque a vida é assim, não é, Markun? Essas coisas acontecem no dia-a-dia, não é? Eu acho que, justamente, o que pode ter interesse em um livro assim é você fazer um painel mesmo, montar um caleidoscópio dessas histórias todas.

Roldão Arruda: Todos nós desejamos a boa morte do Altafini [médico-chefe de um dos plantões na Cruzada Pró-infância, maternidade no centro de São Paulo onde Drauzio Varella estagiou nos últimos anos de faculdade. Faleceu no hospital anos mais tarde, já na velhice, em decorrência do pós-operatório provocado por um câncer de reto], que quer que a vida termine com uma chama de uma vela. O senhor acha que, no fundo, todos nós queremos a boa morte?

Drauzio Varella: Eu não sei, a maior parte das pessoas diz que prefer morrer de repente. Eles falam: “Eu queria deitar...”

Roldão Arruda: Dormir.

Drauzio Varella: E acordar morto.

[risos]

Michel Laub: Qual a sua opinião sobre a eutanásia?

Mônica Teixeira: É exatamente isso que eu ia perguntar.

Paulo Markun: Aliás, é a pergunta de vários telespectadores como, por exemplo, o Fernando Fernandes. E queria registrar outra coisa. Eu queria pedir a você que fosse menos mineiro do que nos dois últimos [programas do] Roda Viva, em que essa questão foi abordada e a sua posição... Depois desse livro não dá para escapar dessa pergunta.

[risos]

 Drauzio Varella: Eu acho que não fui mineiro. Eutanásia, quando se fala em eutanásia, a imagem que vem na cabeça de todos nós, qual é? É o doente ligado ao aparelho, já semimorto e aí fica aquela discussão: tira o tubo, desliga o aparelho ou não desliga o aparelho? Eu, honestamente, acho isso uma discussão menor. Eu acho que o problema da eutanásia vem muito antes disso, não é? Vem quando você pega um doente que chega ao hospital público e tem o acesso negado. Eu cansei de ver isso, muitas vezes, muitas vezes e vejo até agora. Você pega um doente que vem com um tumor na língua, perfeitamente operável, e fica aí aguardando dois meses para ser consultado, mais três meses fazendo exame e, quando vão operar, não tem mais condição de fazer a cirurgia. Isso é eutanásia, eutanásia pacífica, feita sob a égide do Estado. Agora, quando você pega essas situações individuais, eu acho... Olha, muito difícil você chegar nesse tipo de situação, porque a eutanásia que nós imaginamos, o que é? É essa que os holandeses fazem, da pessoa que chega e [diz] “não quero mais viver” e tal. Eu sempre tenho um problema com isso. Aí, você chama o teu médico e você diz: “Olha, eu não quero mais viver, estou cansado de viver.” Aí o médico diz: “Então, está bom, vamos ligar o soro”, faz uma junta médica, decidem que aquilo vai ser feito. Eu fico sempre pensando: “mas será que conversaram direito com essa pessoa?”. Eu tenho trinta e tantos anos de profissão, eu posso contar nos dedos, eu cito no livro, dois ou três casos, em trinta e tantos anos, de pessoas que chegaram para mim: “chega! Não quero mais viver!” A vida é uma coisa tão forte, um instinto de sobrevivência tão poderoso, que você vê as pessoas discutindo a eutanásia teoricamente; “eu, se chegar nessa situação, eu prefiro morrer. Ah, não! Eu não quero ficar sofrendo na cama, eu prefiro morrer.” Você vai pra cama, fica sofrendo, você fica pelo amor de Deus, pedindo para continuar vivo!

Michel Laub: Nesse sentindo, assim, a reação dos doentes terminais que estão no Carandiru, que é uma situação muito mais grave, muito pior que a de quem está fora... [eles] tinham o mesmo tipo de reação de qualquer...

Drauzio Varella: Olha, o Carandiru era uma coisa, a situação mais triste em que um ser humano pode ficar. Você morrendo trancado em uma cadeia, tem alguma coisa pior do que isso? Você morrer sozinho, sentir que você está morrendo  – porque não havia discussão, um homem de 80 quilos chegava a pesar 35, não era capaz de se movimentar– e chegavam sete horas da noite, passava o guarda e pá-pá, trancava a porta e ficava o cara naquela situação a noite inteira sozinho, sem poder se movimentar, às vezes, e preso naquela situação. Nunca vi um falar para mim: “Doutor, acaba com isso!” Nunca vi um! E foram centenas que eu acompanhei lá durante esse tempo.

Roldão Arruda: Doutor Drauzio, é possível ajudar a pessoa morrer, não é?

Drauzio Varella: Lógico! Isso eu acho que é a função da medicina.

Roldão Arruda: De morrer mais tranqüilamente, o paciente chegar e dizer: “Doutor, este medicamento me faz muito mal, eu não agüento mais, eu quero que o senhor suspenda, me dê alguma coisa que eu possa ficar tranqüilo e morrer tranqüilo”. É possível?

Drauzio Varella: É possível.

Roldão Arruda: Isso não é eutanásia?

Drauzio Varella: Eu acho que não é eutanásia isso.

Mônica Teixeira: E isso o senhor faz, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: Todo médico faz isso.

Michel Laub: Você já teve alguma complicação legal por causa disso, algum processo?

Drauzio Varella: Jamais. Olha, eu vou pegar uma situação que... acho que todos nós podemos concordar com ela. Você pega um doente com dor, você tem um certo nível de dor que exige doses muito altas de medicamentos, para você administrar... Todo mundo concorda que dor tem que tirar, não é? Você não pode deixar uma pessoa que está à beira da morte ainda passar por dores horríveis, gritando de dor, é uma coisa mais desumana. Então, todo mundo está de acordo que você tem que medicar e tem que tirar a dor. Mas as pessoas têm uma idéia mágica dos remédios, olha, você dá um remedinho que tira a dor. Você dá o remédio que tira a dor, sim, mas, às vezes, precisam ser doses muito altas e você, juntamente com a dor, tira a consciência. É eutanásia isso?

Mônica Teixeira: Não, eu acho que não.

Drauzio Varella: Não sei.

Mônica Teixeira: O senhor acha que é?

Drauzio Varella: Você tira a consciência da pessoa, você sabe que está tirando a consciência definitivamente. Aquela dose para tirar a dor, você vai ter que manter. E, às vezes, até aumentar, porque os medicamentos induzem tolerância [a medicamentos]. Então, você vai ter que até aumentar a dose e aquela pessoa vai ficar completamente inconsciente.

Mônica Teixeira: Mas o senhor, como médico, está protegido eticamente, não está?  

Drauzio Varella: Sim, lógico. Todos nós estamos protegidos em um tipo de situação como essa. Mas eu pergunto, isso é eutanásia?

Mônica Teixeira: Então, o senhor acha que é, parece!

[risos]

Drauzio Varella: Não sei. Às vezes, acho que fico em cima do muro, mas eu não sei se isso é ou não é eutanásia!

Paulo Markun: Doutor Drauzio, onde você acha que há tanta resistência à utilização da morfina?

Drauzio Varella: Por ignorância; acho que por ignorância. Por ignorância e por restrições legais. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, contra-indica, você não precisa de receituário especial, eles contra-indicam receituários especiais para morfina. Acho que isso é uma das barreiras, porque, precisando de receituário especial, o médico tende a receitar menos. É uma das barreiras para prescrever morfina. Os médicos brasileiros conhecem mal a morfina, não aprendem na faculdade de medicina as vantagens dessa droga, é o maior analgésico, o melhor analgésico de todos para dores fortes.

Paulo Markun: É bom lembrar que não é que o sujeito vai lá e tem um pacotinho de morfina. Têm medicamentos, já fabricados por laboratórios, que contém.

Drauzio Varella: É lógico! Tem a dose exata que você pode...

Paulo Markun: Não é cocaína.

Drauzio Varella: Tem morfina de liberação prolongada, de liberação mais lenta. Não há risco do doente se viciar em morfina, imagina! Há milhares de estudos. Você sai em uma cidade como de São Paulo, vai comprar, dá uma receita de uma caixa de comprimidos de morfina, e manda o doente comprar! Vê o sufoco que ele passa! Primeiro que se for do lado da periferia, esquece, não vai comprar nunca! São algumas farmácias em pontos especiais da cidade, isso é uma vergonha, aqui no Brasil, o que se faz com a morfina! Você vê gente sofrendo de dor porque o médico não receita, não receita porque é complicado, precisa de receituário especial. O receituário, você tem que buscar no centro da cidade. É uma coisa que você diz: “Meu Deus do céu, tem resoluções da Organização Mundial da Saúde e, como o Brasil não obedece a isso e fica esse monte de gente passando dor, quando não havia nenhuma necessidade!”

Roldão Arruda: Doutor Drauzio, no Carandiru, o senhor nos mostrou um mundo que a gente não conhecia e tinha muita curiosidade, do lado de dentro. Nesse livro, o senhor mostra também um outro lado, que é o médico que está olhando para a face do paciente que vai morrer; tem que lidar com isso, tem que trabalhar com isso. Também é uma surpresa para a gente. Tem alguma outra preparação? [risos] Você já está pensando no próximo projeto?

Drauzio Varella: Não, as duas histórias que eu tinha para contar, eu já contei.

Paulo Markun: Mas há uma evolução nítida aí também. Não é pergunta, é palpite também – eu estou hoje irreverente – que é o seguinte: o Carandiru, a impressão que dá, para quem lê, é que era uma coleção de histórias onde, digamos assim, as histórias estavam lá muito claramente definidas e só alguém com a isenção, a credibilidade e a freqüência que um médico teria, poderia ir lá e contar essas histórias. Então, quem gosta de escrever, ou quer ser jornalista, ou é jornalista diz: “Pô! Está bom! Mas o Drauzio poderia fazer isso, mas nós não poderíamos, porque...”.

Drauzio Varella: Não tiveram acesso.

Paulo Markun: Agora, nesse outro aqui, a impressão que dá, é que as histórias foram fundidas e misturadas e que não tem o senhor João ou a dona... Quer dizer, algumas são pessoas de carne e osso e, realmente uma pessoa que existiu, e outras são fusão de personagens. É uma coisa que já tem uma fronteira entre a ficção, ou não? Ou eu estou errado?

Drauzio Varella: Acho que sim, é exatamente isso.

Paulo Markun: Então, dá para pensar que o próximo passo é a ficção pura e simples.

Drauzio Varella: Não sei se eu tenho talento para isso! Eu comecei a escrever um livro uma vez, sobre um bicheiro que esteve preso na detenção. Eu comecei a escrever esse livro e, quando estava lá pelas 40, 50 páginas – antes de me meter nessa história Por um fio– eu encaminhei para a Companhia das Letras, para a minha editora, que é Maria Emília Bender, e ela leu essas primeiras páginas e depois de uns dois dias me telefonou e falou: “Drauzio, você tem certeza que você quer escrever sobre ficção?”

[risos]

 Roseli Tardelli: Doutor Drauzio, o senhor falou tanto de limite, de vida, de morte, nesse seu último livro. Se o senhor tivesse que escolher, como o senhor gostaria de morrer?

Drauzio Varella: Olha... bom, não adianta nada! [risos] Mas, se eu tivesse que escolher, eu não queria ter uma morte súbita. Eu acho a morte súbita muito brutal, muito violenta. Eu acho que você ser pego no meio do teu dia-a-dia é muito ridículo.

Roseli Tardelli: O senhor já viu muita gente definhando. Não é pior definhar?

Drauzio Varella: Olha, eu acho que é difícil você comparar duas coisas ruins. A gente quer viver, quer viver o máximo. Mas, na morte súbita, você acaba ali. E na outra você tem um tempo ainda de vida. E eu acho que não existe nada melhor do que viver, sabe, eu acho que não existe. Mas ninguém até hoje mostrou qual é a alternativa. Se tem uma vida depois da morte, ótimo. Mas eu não tenho certeza de que ela existe, dessa aqui eu tenho certeza absoluta, eu sei como é. Quanto mais puder retardar melhor.

Roldão Arruda: Doutor Drauzio, o senhor disse que os estudantes de medicina deveriam ler literatura. O senhor leu muita literatura? Tem algum autor que o senhor considera... ou alguns autores que mais o influenciaram?

Drauzio Varella: Eu li pouco, porque estudantes de medicina lêem pouco. Eles têm faculdade o dia inteiro, plantão à noite. Eu li muito na adolescência, depois durante a época da faculdade eu parei muito de ler. Eu tenho paixão por Machado de Assis.

Roldão Arruda: Machado de Assis?

Drauzio Varella: Machado de Assis é um... Se me perguntassem quem é que você gostaria de ser... [risos] Mas eu gosto muito dos russos também, gosto muito mesmo! Sabe, a literatura russa; especialmente do Gogol [(1809- 1852) grande escritor russo, cujo contato com Alexander Pushkin, outro grande escritor, logo no início da sua carreira, deixariam marcas profundas nos seus escritos, em especial no seu principal romance, Almas mortas. Além desse, também escreveu O capote, O retrato e outros], que é o meu favorito de todos eles mesmo. Essa capacidade de ir fundo mesmo, de não fazer concessão, de tentar desvendar os recônditos mais escondidos da alma humana, eles fazem isso maravilhosamente bem. A maravilha da literatura é que você é capaz de, através da literatura, criar imagens, não é? E essas imagens não são iguais para qualquer leitor. O [James] Joyce [(1882-1941) escritor irlandês considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Entre suas obras mais conhecidas figura o volume de contos Dublinenses (1914)], no Retrato do artista quando jovem, conta uma história de um menino que está no colégio, no centro de Dublin, e ele pára e chega na janela, está entristecido e começa... E está chovendo. Então ele diz assim: “A chuva caía sobre a torre, sobre a igreja, sobre o colégio.” E você monta a cidade na sua cabeça, não é? Ele faz isso em um parágrafo. Eu levaria uma página e meia para descrever.

Roldão Arruda: Nelson Rodrigues não está no seu universo de leitura?

Drauzio Varella: Muito! Porque aí é uma outra história, história brasileira mesmo.

Roldão Arruda: Porque o Carandiru me lembrava alguma coisa assim “nelson-rodriguiana”.

 Drauzio Varella: Porque ele tem essa coisa de escarafunchar a alma da classe média, não é?

[risos]

Cristiane Segatto: Aquela coisa da malandragem, não é?

Mônica Teixeira: Doutor Drauzio, a gente está no finzinho do programa, então eu vou tomar a liberdade de pedir para você não demorar muito para responder. Mas o que eu queria saber é o seguinte: o médico, o oncologista, no caso, sempre sabe se o doente vai mesmo morrer? O senhor sempre sabe qual vai ser a evolução do doente?

Drauzio Varella: Não. A gente se engana toda hora, se surpreende também muitíssimo, por isso que você não pode dar prognóstico.

Mônica Teixeira: Pois é! O senhor falou sobre isso: dizer para o doente se ele vai morrer ou não, se é grave ou não é. Mas não há reviravoltas?

Drauzio Varella: Muitas vezes. O que acontece é que, às vezes, você percebe, por um exame, que a doença escapou do controle, que você sabe que não há mais volta para aquilo, isso é possível prever.  Agora, quanto tempo vai durar daquele momento que você sente que escapou do controle até a morte, nós não sabemos.

Paulo Markun: Agora, existe também... Você já falou sobre isso em outro programa e recusou peremptoriamente a possibilidade de que o estado psicológico da pessoa tenha influência efetiva, por exemplo, na formação de uma doença ou mesmo no avanço. A minha pergunta é a seguinte: tem gente que desiste e a partir desse momento isso provoca uma queda na duração dessa vida? 

Drauzio Varella: É difícil você caracterizar direito, porque, se eu estou me tratando com você e eu desisto e eu começo a sentir que eu não tenho mais força para enfrentar o que eu preciso enfrentar, você também começa a desistir, não é verdade? Se eu estou desistindo, você não se anima a lutar também. Então, essas coisas têm uma ligação. Agora, o que muitas vezes você vê é a pessoa doente que começa ficar deprimida, porque está fraca, vai ficando entristecida, caladona. E fica a família: “Reage! Ele não reage! Está vendo! Olha aí, não sei o quê! Nós convidamos ele para ir ao aniversário de não sei quem e ele não quis ir.” E faz um inferno da vida do doente. [risos] A comida também: “Come, você não come! Como você quer ficar bom?” E o coitado olha para comida enjoado, quer vomitar quando olha para a comida, e fica a mulher em cima o tempo inteiro, e a família às vezes briga, transforma a vida do doente num inferno.

Paulo Markun: Aliás, em uma palavra daria para mexer na maneira de a família reagir? Isso é possível acontecer?

Drauzio Varella: É possível.

Paulo Markun: Isso pode melhorar a vida do paciente?

Drauzio Varella: E, às vezes, você precisa chegar e dizer: “Olha, pára de insistir, ele não come porque ele não consegue comer, respeita isso”.

Mônica Teixeira: E a medicina, Doutor Drauzio, é arte ou é ciência?

Drauzio Varella: É ciência. A ciência é fundamental, mas só com a ciência você não faz a medicina. Eu acho que a arte da medicina é você entender como você tem que aplicar a ciência para aquela pessoa que está diante de você.

Mônica Teixeira: Para a singularidade.

Drauzio Varella: É, a singularidade.

Michel Laub: Seu envolvimento emocional com os pacientes mudou do início da sua carreira até hoje?

Drauzio Varella: Mudou.

Michel Laub: Para mais, para menos?

Drauzio Varella: Hoje, mais profundo.

Roseli Tardelli: Só para não perder o gancho, o que este livro...

Drauzio Varella: Sofrido, mas profundo.

Roseli Tardelli: Só para não perder o gancho, o que esse livro mudou na sua vida, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: Mudou que foi um momento de fazer um balanço mesmo, fazer um balanço, de me convencer, fiquei absolutamente convencido de que, se eu tivesse que começar outra vez, eu ia querer trilhar esse caminho. E, até este momento aqui, do jeito que eu estou pensando agora, eu quero acabar a minha vida sendo médico mesmo. Não me interessa ser outra coisa na vida, não. Eu acho, que eu acertei. Tive sorte!

Paulo Markun: Doutor Drauzio, muito obrigado pela sua entrevista, boa sorte na sua empreitada, não só como médico, porque eu tenho certeza de que o papel do comunicador e, principalmente, como escritor ajuda as pessoas. Obrigado a você que está em casa e aos nossos entrevistadores. E nós estaremos de volta na próxima segunda-feira com mais um Roda Viva.
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