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Memória Roda Viva

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Ayaan Hirsi Ali

18/8/2008

Ameaçada de morte por fundamentalistas por denunciar as violações dos direitos das mulheres muçulmanas africanas, a escritora, nascida na Somália e que foi deputada na Holanda, analisa também as relações entre o Ocidente e o mundo islâmico

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Lilian Witte Fibe: Boa noite. Ela contou sua história num livro e ajudou a produzir um documentário sobre as condições das mulheres muçulmanas. Por conta disso foi ameaçada de morte por fundamentalistas. Precisou deixar a Holanda, onde estava refugiada, e chegou a se eleger deputada para depois se exilar nos Estados Unidos, onde vive sob forte esquema de segurança. Nossa convidada de hoje é a polêmica escritora Ayaan Hirsi Ali, que se tornou conhecida no mundo por denunciar maus tratos e defender os direitos das mulheres muçulmanas. A nossa entrevista começa já, já.


Lilian Witte Fibe: Ayaan Hirsi Ali é reconhecida como uma das maiores críticas do islamismo. Recentemente lançou seu mais novo livro, no qual, além de denunciar a repressão sofrida pelas mulheres muçulmanas, critica o multiculturalismo e cobra mais rigor do Ocidente com relação ao islã.

[Comentarista]: Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália, mas por causa da militância política do pai foi obrigada a deixar o país. Aos cinco anos, por uma tradição local, foi submetida a uma cliterectomia, a extirpação do clitóris. Criada numa família islâmica, de acordo com as tradições da religião, se viu forçada pela família a um casamento com um primo distante, que morava no Canadá. A caminho de encontrar o marido, fugiu e seguiu para a Holanda, onde pediu asilo. Estudou ciências políticas e se elegeu deputada da Câmara Baixa do Parlamento holandês, onde ficou de janeiro de 2003 a maio de 2006. Deixou o país no final de 2006, após perder o cargo e a cidadania holandesa, acusada de mentir ao solicitar asilo. Ayaan Hirsi Ali escreveu o argumento para o filme Submission [Submissão, filme realizado em 2004 e exibido na televisão holandesa, é um curta-metragem de dez minutos sobre a violência exercida contra as mulheres muçulmanas, especialmente a circuncisão feminina, e alertando para outros abusos, como incestos, estupros consentidos, casamentos forçados e o suicídio forçados de jovens mulheres muçulmanas migrantes], do holandês Theo Van Gogh. Nele, apresenta o seu ponto de vista sobre a submissão das mulheres muçulmanas. Após a exibição, viu o seu parceiro na produção ser assassinado. Um bilhete fincado em seu peito dizia que ela seria a próxima. Desde então, passou a andar com seguranças. Em 2007, Ayaan lançou um livro autobiográfico onde conta a sua trajetória: Infiel retrata o percurso da garota que nasceu na Somália, um dos países mais pobres da África, viveu exilada na Arábia Saudita, Etiópia e Quênia, e que depois se transformou em deputada e escritora, na Holanda. Neste ano [2008], Ayaan Hirsi Ali lançou A virgem na jaula: um apelo à razão. O livro é uma coleção de escritos que elaborou graças ao trabalho de tradutora que teve nos primeiros anos na Holanda. A experiência possibilitou que ela tivesse contato com histórias de outras famílias muçulmanas que, mesmo no Ocidente, mantêm os costumes de seus países de origem. Em 2005, a revista Time a incluiu na lista das cem pessoas mais influentes do mundo. Ayaan Hirsi Ali esteve no Brasil para participar da conferência Fronteiras do Pensamento Copesul-Braskem, realizada em Porto Alegre e Salvador, no final do mês de junho [de 2008]. Atualmente, vive em Washington, nos Estados Unidos, onde trabalha no American Enterprise Institute [for Public Policy Research – Instituto Americano de Empreendimento para a Pesquisa de Política Pública] na defesa dos direitos das mulheres muçulmanas.

Lilian Witte Fibe: Para entrevistar a escritora Ayaan Hirsi Ali, convidamos: Daniel Piza, editor executivo e colunista do jornal O Estado de S. Paulo; Norma Couri, correspondente da revista portuguesa Visão; Marta Góes, jornalista e dramaturga; Demétrio Magnoli, editor do jornal Mundo – Geografia e Política Internacional. A Luiza Moraes, repórter do núcleo de jornalismo da TV Cultura que traz para a entrevista as perguntas enviadas por telespectadores e internautas. Temos também a participação de Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa.

Lilian Witte Fibe: Boa noite senhora Ayaan, obrigada pela sua presença. Eu queria começar lhe perguntando o que a senhora tem achado... Como a senhora tem visto as recentes decisões do presidente francês Nicolas Sarkozy que quer restringir... acaba de assumir a presidência da Comunidade Européia e quer restringir muito a presença dos imigrantes, que está propondo deportar os imigrantes ilegais, isso na Europa. Nos Estados Unidos eu queria saber como que a senhora está vendo a possível eleição do candidato democrata Obama [Barak Hussein Obama elegeu-se presidente dos Estados Unidos, em 2009, tornando-se o primeiro negro a alcançar esse posto, com mandato previsto até 2012], cuja avó mora no Quênia, nasceu lá.

Ayaan Hirsi Ali: Vou começar pela decisão do presidente Sarkozy, na França. Sei que, quando foi ministro do Interior e líder de seu partido [UMP – Union pour un mouvement populaire – de tendência de centro-direita], ele insistiu em um plano comum europeu para a imigração, assim como eles têm um plano comum para a agricultura. E parte daquele plano seria não apenas estabelecer onde são as fronteiras da União Européia, mas também “quem permitimos entrar na União Européia e quem rejeitamos” – e o que fazer a respeito de imigrantes ilegais. No momento, na Europa, se você é um imigrante ilegal... na Holanda, por exemplo, você poderia passar pelas fronteiras não controladas e morar ilegalmente na Alemanha ou na Bélgica, ou mesmo mudar-se para a França ou outros lugares. Por isso, no momento, acho boa essa iniciativa dele de centralizar a questão da imigração na Europa. Como isso vai funcionar, eu não sei. A respeito de Barack Obama como possível presidente democrata, creio, assim como muitas pessoas dentro e fora dos Estados Unidos, que Barack Obama é um candidato com muitas qualidades. Acho que ele conseguiu muito, fez uma campanha bastante eficaz. Acho também que ele divulgou sua mensagem de mudança como uma mensagem de proselitismo que está pegando fogo. Se for eleito, será com base nisso, e se ele governar o país como está dirigindo essa campanha e como tem levado sua vida, creio que não temos nada a temer. Mas, novamente, não posso prever o futuro.

Lillian Witte Fibe: A senhora tem a expectativa de que a relação americana com o mundo islâmico melhore caso ele seja eleito?

Ayaan Hirsi Ali: Creio que isso seja um mito. Não importa quem seja o presidente dos Estados Unidos. Qualquer presidente terá de promover os interesses americanos. E não é do interesse dos Estados Unidos hoje, por exemplo, manter... como muitos muçulmanos no mundo muçulmano sentem, dar apoio a ditaduras que oprimem seu próprio povo. Em nome do islamismo, a Jihad, ou Guerra Santa, foi iniciada contra os infiéis, e contra o Grande Satã, ou seja, os Estados Unidos [e] contra Israel. Como presidente, Barack Obama herdará, antes de mais nada, tudo que a administração Bush deixou para trás. [George Walker Bush, presidente dos Estados Unidos de forte tendência conservadora. Sua administração (2001-2009) representou um endurecimento dos Estados Unidos para com os países que se opunham à política externa estadunidense intervencionista] Mas ele também precisa estabelecer suas próprias idéias sobre como lidar com o Irã, sua relação com Israel. E tenho certeza que isso não será muito agradável para muitas pessoas que rejeitam os Estados Unidos e Israel. Mas ele é o presidente dos Estados Unidos – e não o presidente do mundo muçulmano. E é uma ilusão vê-lo de outra forma.

Norma Couri: Você acha que se a Hillary tivesse ganho [a convenção para escolher o candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos, e assim, caso fosse eleita], se fosse uma mulher presidente, seria melhor para as mulheres muçulmanas?

Ayaan Hirsi Ali: No momento, essa é uma pergunta hipotética, ela não venceu. Por isso, não tenho uma resposta a essa pergunta. Mas minha experiência me diz que não basta ter uma mulher como líder. Depende do programa desse candidato à presidência, ou desse presidente. E, de modo geral, fiquei bastante decepcionada com os três candidatos – Barack Obama, Hillary Clinton [primeira-dama (1993 – 2001), senadora (2001 – 2009) e secretária de Estado da administração Obama (2009 – )] e o senador McCain [candidato do Partido Republicano às eleições presidenciais de 2008]. Eu não ouvi e posso ter perdido alguma coisa, mas não ouvi de nenhum deles em suas campanhas a idéia de tratar da situação da mulher muçulmana como uma prioridade.

Norma Couri: Quem seria o seu presidente americano ideal?

Ayaan Hirsi Ali: [hesitante] Entre os três candidatos?

Norma Couri: Não. Todo mundo.

Ayaan Hirsi Ali: [suspira e sorri] Em geral… meu presidente ideal dos Estados Unidos seria alguém que reconhecesse pelo menos três prioridades, uma delas a paz mundial. Creio que o próximo passo na guerra contra o terror é como lidar com o Irã e seu desenvolvimento de armas nucleares; a estabilização da economia americana – pois isso afeta o mundo todo; e – sim, a posição da mulher em geral, e não apenas das mulheres muçulmanas. Se vocês olharem para as mulheres na China, na Ásia, onde há o aborto seletivo... e também o seu comportamento com o mundo muçulmano. Alguém que use esse poder dos Estados Unidos, de outros países ocidentais.

Norma Couri: Essa pessoa existe? Esse candidato [existe]?

Ayaan Hirsi Ali: Não. Creio que todos os candidatos tenham pontos fortes e fracos. E, idealmente, sem dúvida, gostaríamos que os candidatos tivessem apenas pontos fortes. E você pode ver nas análises nos editoriais de jornais estadunidenses que o senador McCain deve tratar com firmeza a questão da segurança nacional. O senador Barack Obama tem a idéia... toda a idéia de proselitismo, ele consegue mobilizar – e tem mobilizado e inspirado muitos americanos a se congregarem contra uma idéia de bipartidarismo. E, então, bem, havia Hillary Clinton, mas ela não é mais candidata.

Demétrio Magnoli: Ayaan, em primeiro lugar eu queria cumprimentar você pela trajetória. Você tem uma trajetória heróica de defesa não apenas da liberdade, mas da dignidade das mulheres e, portanto, dos homens também, nas sociedades muçulmanas. E é justamente como homenagem a essa sua trajetória que eu quero me concentrar, não naquilo que eu concordo com você, que é muita coisa, mas naquilo que eu discordo de você, que eu acho que também é bastante coisa. Eu li com atenção o seu livro – que é muito legal –, e você nesse livro trata o Ocidente e o islã como duas entidades essencialmente distintas – e distintas por essências opostas. Por algum motivo o Ocidente é uma fonte de virtude – e praticamente só de virtude – e o islã é uma fonte do mau e praticamente só do mau, de perversidade, no seu livro. Eu acho que, na forma como você põe o Ocidente e o islã, essas duas “entidades” [balança as mãos e fala num tom questionador], no teu livro, a história e a política ficam de fora. Você trata de uma cultura imemorial que explicaria tudo o que o Ocidente e o islã fazem, ou tudo que os Estados e os líderes que podem se apresentar como ocidentais ou como islâmicos fazem. Num certo ponto do livro você faz um contraste entre o John Stuart Mill [filósofo e economista] – um texto do John Stuart Mill, que é um autor do século XIX –, o que ele pensava a respeito das mulheres e o que Maomé [profeta e fundador do islamismo] no século VII dizia sobre as mulheres. Eu acho uma comparação estranha. Se comparar o Maomé com os papas medievais da Igreja Católica, nós vamos tirar conclusões diferentes. Eles estão separados por 12 séculos: pelo iluminismo, pela reforma protestante, por muita coisa. Veja, o Ocidente não são só os valores da liberdade que surgem do iluminismo e da reforma protestante. O Ocidente foi o nazismo. O nazismo é ocidental. O Ocidente foi a União Soviética [(1922 – 1991) conjunto de 15 repúblicas lideradas pela Rússia e de inspiração comunista] de Stalin [revolucionário e líder da União Soviética (1922 – 1953), conhecido por sua ferocidade para com os opositores do regime, resultando na execução, escravização e deportação de milhões de soviéticos]. E o Ocidente foi a China de Mao Tsé Tung [revolucionário e líder da China (1943 – 1976), promoveu uma fracassada política de desenvolvimento denominada Grande Salto (1957 – 1958) que gerou milhões de mortes pela fome]. Eu vou repetir: a China de Mao Tsé Tung foi Ocidente, porque a idéia do comunismo como salvação é uma idéia ocidental, foi importada pelos chineses. Eu quero saber se você de fato acha que a gente pode e deve politicamente opor o Ocidente e o islã como duas entidades fora do tempo e da história.

Ayaan Hirsi Ali: Eu o agradeço por seus elogios. Mas acho que o que eu queria dizer em meu livro não foi apreendido por você. E digo isso porque, basicamente, o livro é a história de apenas uma pessoa – eu – fazendo a transição de uma sociedade muçulmana tribal para o Ocidente moderno. Tendo chegado ao Ocidente, eu deixo muito claro no livro que eu não o idealizo e não o considero apenas como uma fonte de virtudes. Eu relaciono todas as perversidades do Ocidente: as Inquisições [tribunal religioso para julgamento de pessoas entendidas como hereges pela Igreja Católica durante a baixa Idade Média e início do Renascimento. Os processados eram precariamente defendidos, a tortura era permitida para fins de instrução processual e as penas de morte na fogueira eram comuns]; as Cruzadas [guerras religiosas promovidas pela Igreja Católica durante a Idade Média afim de retirar a cidade hebraica de Jerusalém do domínio muçulmano]; não apenas o nazismo e o comunismo, mas também o comércio de escravos; o apartheid na África do Sul [regime segregacionista racial (1948 – 1990)]; a exterminação dos índios nos Estados Unidos; os maus-tratos a suas próprias mulheres e a misoginia, que tem raízes no Ocidente. Até hoje… na verdade, o feminismo ocidental vem dizendo que qualquer forma de dominação masculina só pode ser errada. O que eu admiro no Ocidente – e creio que isso, provavelmente, a partir do século XI, XII, ou muito depois – o que eu admiro no Ocidente é que indivíduos se posicionaram e têm sido capazes de por em prática sua faculdade de raciocinar, têm sido capazes de questionar. E eles não fizeram todas essas perguntas de forma pacífica. A maior parte deles teve seus trabalhos colocados em um índex, por exemplo, pela Igreja Católica, para serem enforcados ou punidos [durante o período da Inquisição]. Alguns foram, de fato, punidos, como Galileu [sofreu a pena de reclusão domiciliar perpétua]. Nesse sentido o Ocidente não é realmente muito diferente da civilização islâmica ou do mundo islâmico. A única diferença é que aquele exercício de auto-reflexão e crítica continuou – de forma que dentro do próprio Ocidente surgiram movimentos que denunciaram o fanatismo religioso, que promoveram o exercício da investigação científica, que denunciaram a escravidão e a aboliram, que denunciaram o apartheid e o aboliram. Hoje, nos Estados Unidos, as críticas à administração Bush vêm de outros estadunidenses, todos dizendo: “não vamos fazer isso”. E é nesse aspecto que a civilização islâmica e, digamos, a civilização judaico-cristã-ocidental são diferentes. Eu explico em meu livro que fui apresentada a tudo isso quando estudei ciências políticas na Universidade de Leiden [situada na Holanda]. E achei que, em vez de simplesmente condenarmos o Ocidente como um todo e dizermos que o islamismo é bom e perfeito, isso é o que podemos aprender com o Ocidente – essa idéia da auto-reflexão. Essa análise de nossa própria religião, de nosso próprio dogma, de nossos próprios costumes e então mudá-los. Nós dirigimos carros inventados no Ocidente, trabalhamos com computadores, inventados no Ocidente, adoramos voar em aviões, todos fabricados no Ocidente. Nós copiamos o Ocidente. Por isso, não há razão de nos identificarmos apenas contra eles, [apenas] consumindo o material, a tecnologia aqui inventada. Mas também deveríamos dizer: “ei, eles também têm qualidades, e principalmente a de argumentar – e podemos adotá-las”. Será que fui clara para você desta vez?

Demétrio Magnoli: [sorrindo] Yes. [sim]

Lillian Witte Fibe: A Luiza Moraes, nossa porta-voz dos telespectadores, tem muitas perguntas.

Luiza Moraes: Eu tenho uma pergunta da Maria Eugênia Ribeiro Pereira, de São Paulo, na qual ela faz uma divisão: ao invés de Ocidente e Oriente, ela coloca que existem países pobres e países ricos. E ela pergunta como resolver a contradição: “Os países ricos têm garantia dos direitos individuais graças ao desrespeito desses direitos nos países pobres. Como resolver isto?”

Ayaan Hirsi Ali: Li literatura e pensadores diferentes na tentativa de descobrir por que alguns povos são pobres e outros ricos, por que alguns são fracos e outros fortes, por que existe prosperidade em um país, entre determinadas classes, e por que ela inexiste entre outras. Não tenho tempo para abordar tudo o que eu já li. Mas o que posso concluir é que, de modo geral, há duas escolas de pensamento. Uma que diz: “veja por que alguém é pobre: os indivíduos são livres? Suas habilidades de aprendizado são desenvolvidas? Eles são capazes de se adaptar a novas mudanças e a novos ambientes? Qual a relação entre o indivíduo e o grupo?”. Outra escola de pensamento diz que, se você é pobre e nasceu em uma comunidade fraca, ou em uma nação fraca, você pode ser vítima dos mais fortes e de outros grupos e sociedades. Assim, por exemplo, o Ocidente rico tem explorado, saqueado e roubado os pobres dos países em desenvolvimento. E somente se o Ocidente mudar sua maneira de ser os países pobres poderão ser resgatados da pobreza. Considero a primeira teoria mais consistente. A que diz que onde a liberdade individual, se não é garantida, é pelo menos concedida. Onde os indivíduos são capazes de pensar livremente, onde possam mudar as circunstâncias em que vivem. Onde eles sejam capazes de se adaptar e sejam preparados para se adaptar a novas situações, eles, em geral, não costumam ser aprisionados na pobreza para sempre. E você pode ver essa tendência. É possível até mesmo ver isso na China hoje. Em partes da Ásia. E até mesmo em partes do mundo árabe muçulmano, onde se está tentando uma pequena abertura, como nos Emirados Árabes Unidos. Por isso, sou levada a concordar com a escola de pensamento que diz que cultura, hábitos, opressão, dogmas levam à pobreza e a preservam. E que é a liberdade, a inovação, os direitos da mulher, a garantia disso tudo que leva à prosperidade. E, mais uma vez, estou dizendo isso sem idealizar ou [faz um gesto de aspas] romantizar o Ocidente. E também sem encobrir a exploração e a dominação de alguns países sobre outros.

Lilian Witte Fibe: Bem, a gente precisa fazer agora um intervalo, lembrando que, por se tratar de um programa gravado, e portanto as perguntas de telespectadores apresentadas aqui chegaram antecipadamente pela internet, no nosso site: www.tvcultura.com.br/rodaviva. Nesse site você também pode se informar sobre os próximos programas e enviar por e-mail perguntas, críticas e sugestões. A gente volta já, já.

[intervalo]

Lilian Witte Fibe: Voltamos com o Roda Viva, que hoje entrevista a escritora Ayaan Hirsi Ali. Conhecida por denunciar maus tratos e defender os direitos das mulheres muçulmanas, ela já buscou refúgio em vários países, e hoje vive nos Estados Unidos sob forte esquema de segurança. Senhora Ayaan, eu partindo, supondo... partindo de um cenário mais positivo e considerando que a sua luta feroz pelos direitos dos muçulmanos e das mulheres produzirá resultados, eu lhe pergunto: a senhora acha que o mundo está mais maduro para [o] quê? O que viria antes? Uma melhora da situação da mulher no mundo muçulmano, especialmente na África? Ou uma virada no mundo do islã, com o abandono da prescrição de ondas de violência e raiva?

Ayaan Hirsi Ali: Uma coisa não exclui a outra. E, na verdade, acho que o mundo islâmico irá melhorar se libertar o intelecto e a capacidade de raciocínio de metade de sua população. Se permitir que a menina muçulmana vá à escola e termine a escola, dando a ela a liberdade e o direito à sua própria sexualidade. Ou seja, a possibilidade de escolher quando se casar, com quem se casar, quantos filhos ter e com quem fazer tudo isso ou não fazer. Permitir que ela trabalhe fora de casa e fique com seus ganhos. Isso irá melhorar o mundo islâmico. A melhoria da posição da mulher muçulmana é, em si mesma, uma das maiores transformações do islamismo. Creio que seja a maior transformação do islamismo e de qualquer outra sociedade que subjugue suas mulheres. Mas, uma vez tendo dito isso, não quero dizer que todas as mulheres muçulmanas são oprimidas ou que todo homem muçulmano é opressor. Tudo que estou dizendo é que a grande maioria das mulheres muçulmanas hoje sofre de algum tipo de falta de liberdade. Seja ela educacional, sexual, ou em termos de emprego. E essas são as três coisas que eu quero para todas as mulheres. E acho que mais especificamente para as mulheres muçulmanas. A longo prazo, a posição da mulher muçulmana está no centro desses conflitos hoje. E da crise na qual o islamismo se encontra.

Marta Góes: Eu queria saber se, ao vincular a questão da mulher às diferenças entre o islã e o Ocidente, você não estaria aprisionando essa questão que ultrapassa em muito as fronteiras do islã. [Entre] os bebês na China, as meninas são mortas. Quer dizer, é uma questão... Com esse enfoque, talvez a questão fique soterrada por outras grandes dificuldades e nunca se chegue ao cerne da questão. Não seria mais produtivo pensar talvez nas semelhanças entre o que o acontece com a mulher no islã e nas outras culturas?

Ayaan Hirsi Ali: Sim. E, na verdade, é o que estou dizendo. Se você comparar culturas diferentes e comparar a posição das mulheres em culturas diferentes, o que se vê é que as culturas mais prósperas, as culturas mais ricas, as mais inovadoras são culturas em que as mulheres são livres, em que todo o seu potencial é livre. E cabe à própria mulher, ou à própria menina, com sua própria capacidade, decidir como buscar sua própria felicidade. E, de modo geral, em lugares onde as mulheres são mais oprimidas, onde elas não têm liberdade, onde não são enviadas à escola, ou são tiradas da escola; onde sua sexualidade é reprimida, diminuída, essas são sociedades mais violentas, mais pobres etc. Não estou ignorando a China, ou a Índia, ou outros países não-muçulmanos em desenvolvimento. Mas a posição das mulheres no Ocidente também não é aquela que elas gostariam que fosse. O que estou dizendo – e, mais uma vez, o que eu estava tentando dizer ao senhor Magnoli – é que, dentro de cada sociedade, dentro de cada comunidade, quando se vê a autocrítica vinda de dentro, isso leva à mudança. Leva à identificação do que está errado e, então, aos meios de mudar isso. Fui criada como muçulmana e, depois de 11 de setembro, quando tomei consciência desse grande conflito entre o mundo de onde eu vinha e o mundo em que eu estava vivendo, achei que era muito importante dizer: “ei, no mundo de onde venho, posso identificar as coisas que estão erradas”. E o que há de mais errado é a maneira como tratamos nossas meninas e mulheres. E, se quisermos mudar e alcançar o restante do mundo, precisamos mudar isso. E precisamos mudar isso começando com nossos próprios dogmas religiosos, nossos próprios costumes, nossos próprios hábitos. E o que transmitimos – costumes, religião, ensinamentos religiosos – são muito importantes, pois são os princípios que transmitimos às gerações futuras. E ainda que você deixe seu país de origem em busca de uma vida melhor, você leva esses valores com você. E é por isso que eu sempre volto a esses valores. Mas estou falando agora como alguém do lado de dentro, nascida no islamismo. E o que espero da mulher chinesa, da mulher indiana, da mulher brasileira é que faça isso, de dentro de sua própria cultura, pois ela a conhece melhor. A propósito, não apenas as mulheres, mas os homens também.

Daniel Piza: Eu queria saber se você acredita que a maioria das pessoas em sociedades islâmicas valoriza a tolerância – especialmente a religiosa, e [se] o problema são apenas os radicais. E, em caso positivo, o que fazer para que os radicais não tenham tanta influência?

Ayaan Hirsi Ali: Minha resposta a essa pergunta é: em primeiro lugar, distinguir entre o islamismo como um conjunto de crenças, como uma teoria – e, especialmente, como uma teoria política –, e os muçulmanos como seres humanos, como indivíduos. Como indivíduos, os muçulmanos são mais ou menos tolerantes do que qualquer outra pessoa. E, ao serem confrontados com alternativas de teorias diferentes, eles tendem a escolher, creio eu, como qualquer outra pessoa. O muçulmano busca o que qualquer outro indivíduo busca. Ou seja, uma vida normal: trabalho, férias, família, uma vida espiritual – nesse sentido eles não são realmente diferentes. Agora, há muçulmanos que desejam tirar da teoria política islâmica todas as obrigações da Jihad, ou Guerra Santa, e realmente colocá-las em prática. Essas são pessoas que definimos como radicais, puritanos ou extremistas. E o que eles têm a seu favor para atingir seus meios, ao pegarem o Alcorão e o Radith, ou “As tradições do Profeta”, é que eles dizem: “Isso é o que o profeta quer que você faça e, se você for um verdadeiro muçulmano, deve seguir o exemplo do profeta Maomé”. Eles são coerentes – e o que eles querem é coerente com o islamismo, como teoria política. O que os muçulmanos que desejam paz e tolerância – e uma interação amigável entre eles e entre os não-muçulmanos – devem fazer é dizer: “Nós sabemos que isso está nas escrituras. Não vamos seguir Maomé em tudo. Não achamos que ele seja infalível. Nós o consideramos dentro de seu contexto. O mundo evoluiu desde o século VII, e vamos fazer as coisas de modo diferente.” Mas essa teoria dentro do islamismo ainda não evoluiu. E a maioria das pessoas lhe fará a pergunta: “Mas se você disser: não vou seguir o profeta Maomé ao pé da letra, como é possível você ser um bom muçulmano?”. E creio que essa seja a pergunta que os muçulmanos precisam responder a fim de avançar.

[sobreposição de vozes]

Lillian Witte Fibe: Norma, deixe a Luiza fazer perguntas do telespectador.

Luiza Moraes: Eu tenho uma questão aqui que vai além da questão política e também da questão humanitária ou religiosa, que é do Ermélio José Coutinho de Campos, Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele pergunta se é possível que o islã se torne uma religião libertadora sem estar nas mãos dos interesses econômicos dos grandes chefes religiosos?

Ayaan Hirsi Ali: Bem, isso depende de os muçulmanos desafiarem esses líderes religiosos. Alguns muçulmanos como Irshad Manji [ativista muçulmana do movimento lésbico], no Canadá, e outros que conheci nos Estados Unidos e na Europa, estão tentando fazer isso. Eles estão tentando desafiar esses líderes radicais do islamismo. E o primeiro passo é perguntar: “O que achamos do Corão? O que nós achamos do profeta Maomé?”. Se o Corão é a verdadeira palavra de Deus, como os radicais estão dizendo, e tudo, todos os mandamentos ali contidos devem ser seguidos, então não se está mudando muita coisa. O que alguns muçulmanos realmente dizem é: “Certo, vamos ler os versos que pregam a paz e ignorar os que pregam a guerra. Vamos ler os que pregam a igualdade e ignorar os que são misóginos”. Mas isso não é o suficiente. Pois os radicais lhe dirão que você está errado. O que precisamos dizer é que o profeta Maomé estava certo em algumas coisas e errado em outras. Mas ele é um homem que está pensando dentro do seu contexto. Precisamos ir mais longe. E, a fim de fazer isso, temos de enfrentar acusações de heresia, acusações de sermos infiéis e tudo o que os clérigos lancem sobre você.

Norma Couri: Ayaan, você passou por uma mutilação bárbara que foi a extirpação do clitóris. Eu queria saber de você se é possível você falar sobre isso. [a entrevistada assente com a cabeça] Como você superou isso, se é que isso é possível superar? Uma vez um sul-africano me disse que as mulheres africanas não faziam análise, psicanálise, porque para elas era muito difícil falar da mãe, questionar a mãe, porque a mãe era uma figura central. Então, como você superou isso, se é que isso se supera? E como é fazer sexo para você?

Ayaan Hirsi Ali: [rindo] Para a maioria das mulheres africanas, a psicanálise, se elas a conhecem, é luxo, luxo absoluto. Não se gasta tempo sentada em um sofá, falando de sua mãe. Você prossegue com sua vida. E a vida na África é bastante difícil para a maioria das pessoas. A mutilação genital feminina e o costume de [faz um gesto de aspas] purificação, como minha avó o chama, são coisas muito comuns, que ocorrem com todas nós, na Somália... Com 98% das mulheres, segundo a Anistia Internacional e a Organização Mundial da Saúde, com meninas egípcias e meninas sudanesas. 144 milhões de mulheres foram submetidas a esse ritual. Você pode ter relações sexuais e ter prazer com o sexo – dependendo, claro, do tipo de mutilação a que foi submetida. Desde a menos violenta, em que se faz apenas um corte no clitóris, até a infibulação, que retira praticamente tudo. E, às vezes… bem, não às vezes, em geral as meninas morrem. Isso torna o sexo bastante desconfortável. Se você está entre esses dois extremos, como eu estou, é possível fazer sexo e ter prazer. Mas não se trata apenas da mutilação. Como mulher submetida a esse costume, dentro dessa cultura, você precisa se emancipar também mentalmente. E compreender que é bom para a mulher ter relações sexuais e que ela tenha prazer quando ela desejar e com quem escolher. E, quando isso estiver claro, a dificuldade da parte física é facilmente superada. Não é a parte mais difícil.

Norma Couri: E o homem...

Demétrio Magnoli: Ayaan...

Lillian Witte Fibe: O bloco tá acabando. [rindo] Vocês se resolvam aí. [dirigindo-se aos entrevistadores]

Norma Couri: O homem ocidental, como ele encara isso? Porque, pra um africano muçulmano, é normal. Mas como um parceiro sexual ocidental encara isso? Se foi difícil superar, ou...?

Ayaan Hirsi Ali: Bem, em meu livro eu descrevo isso. O parceiro ocidental, o homem que foi ensinado a respeitar o corpo feminino e os desejos da mulher, e que for bastante compreensivo, está lidando com outro ser humano. Ele sente que não cabe apenas a ele ter prazer, mas ele também deve dar prazer. Isso é algo a ser partilhado. Acho muito mais fácil conversar sobre isso com homens ocidentais ou ocidentalizados... Bem, deixemos a questão do Ocidente de lado... com homens que aceitem a sexualidade feminina.

Lillian Witte Fibe: Nós vamos fazer mais um intervalo e lembramos que por se tratar de um programa gravado, as perguntas de telespectadores apresentadas aqui foram enviadas antes pela internet no nosso site www.tvcultura.com.br/rodaviva. Você pode se informar sobre os próximos programas e enviar por e-mail perguntas, críticas e sugestões. Nós voltamos depois do intervalo.

[intervalo]

Lillian Witte Fibe: Você acompanha hoje no Roda Viva a entrevista com a escritora Ayaan Hirsi Ali. Ela acaba de lançar o livro A virgem na jaula – um apelo à razão onde, além de denunciar maus-tratos às mulheres muçulmanas, cobra mais rigor do Ocidente em relação aos costumes islâmicos. Senhora Ayaan, eu ia lhe perguntar agora diante de um cenário mais pessimista. A senhora acha que o mundo corre o risco de uma guerra mais prolongada entre o Ocidente e o islã – aquelas temidas guerras de trinta, cem anos –, se o islã realmente não fizer os progressos que a senhora prega?

Ayaan Hirsi Ali: Creio que existe uma diferença entre otimismo e pessimismo, uma vez que os pessimistas apenas prevêem que o mundo vai acabar, que a confrontação irá durar para sempre, que todos serão destruídos. Não sou pessimista – não nesse sentido; e em sentido algum. Eu me considero otimista, pois se você se dá conta de que alguma coisa está errada e você diz: “muito bem, isso é o que está errado, e acho que é isso o que podemos fazer” – e muitos de nós fazemos isso –, então pelo menos nós tentamos mudar as coisas. Não creio que o conflito entre islamismo e Ocidente irá durar cem anos. Acho que os muçulmanos irão adotar alguns valores ocidentais. Sendo que o mais importante deles, a meu ver, é o pensamento crítico, a liberdade de expressão e a libertação de suas mulheres. E esse conflito, assim como o comunismo, assim como o nazismo e como outras idéias totalitárias que desapareceram, o islamismo totalitário também irá desaparecer. E então haverá alguma outra coisa para a humanidade se ocupar.

Lillian Witte Fibe: Nós já estamos a caminho disso?

Ayaan Hirsi Ali: Vejo sinais de progresso desde 11 de setembro e também sinais de retrocesso. O poder militar... o uso do poder militar me assusta. Mas isso também porque venho de um continente em que coisas que levaram décadas para ser construídas podem ser destruídas de uma hora para outra para sempre, com todas as conseqüências que se pode ver. Em termos de progresso intelectual, uma das coisas que gosto de enfatizar é que mais livros sobre o islamismo têm sido publicados depois de onze de setembro do que, provavelmente, nos últimos duzentos, trezentos ou quatrocentos anos antes disso. Alguns estudiosos dizem que nos últimos novecentos anos. Por isso é que vejo tudo isso com bons olhos.

Demétrio Magnoli: Eu observo que desde a pergunta da Lillian até a sua resposta nós estamos num universo mental que aceita a narrativa de que há uma guerra, um conflito, entre o Ocidente e o islã. Isso parece ter virado algo natural aqui nessa conversa e eu observo que o Osama Bin Laden também acha isso, ele só está numa posição diferente.

Lillian Witte Fibe: o Bush também acha isso. [ri]

Demétrio Magnoli: O Bush também acha. Eu não acho [isso], essa é a minha pergunta. Eu me preocupo com a naturalização dessa narrativa. Você pede uma reforma no islã que eu acho muito necessária para os muçulmanos, para a sociedade muçulmana, sejam eles homens ou mulheres. É muito necessária. Mas quando eu leio o que você escreve... Você cita vários filósofos ocidentais, mas não cita filósofos islâmicos do passado. Cita alguns pensadores atuais, mas [não cita] Avicena [filósofo e médico persa – atual Irã – da Idade Média, conhecido no mundo árabe como Ibn Sina. Prolífico em diversos ramos do conhecimento, buscou realizar a união entre a filosofia natural de Aristóteles e o idealismo de Platão], Ibn Khaldun [historiador da região do Magrebe – norte da África – do século XIV. Delineou uma teoria de história cíclica, em que certos temas são recorrentes na história humana], ou seja, toda uma tradição que dentro do islã procurou conectar as sociedades muçulmanas à razão, à idéia da crítica. Toda essa tradição, pelo menos no que você escreve, está ausente. Assim como está ausente a apreciação de que no interior do mundo muçulmano existem fenômenos de mudança que são inegáveis. A Irmandade Muçulmana egípcia que nasceu como uma organização para restaurar o verdadeiro islã no mundo muçulmano, hoje rompeu com a idéia da Jihad e está em conflito aberto com Osama Bin Laden e com os jihadistas. E, aliás, em conflito aberto também com a ditadura no Egito. [A Irmandade Muçulmana é o maior partido de oposição egípcio. Age na semi-clandestinidade, pois embora não seja legalizado, opera no cenário político por meio de candidatos independentes] Existem coisas que se movem no interior do islã e isso não aparece nos seus textos, mas aparece a idéia de que o Ocidente precisa ajudar o islã a ser Ocidente, que o Ocidente precisa ajudar o islã a se reformar, e que a reforma do islã virá na ponta da baioneta do Ocidente. Você, por exemplo, é uma entusiasta da guerra de Bush, na forma como ele a imagina e no discurso que ele faz, que é uma guerra para levar a liberdade ao mundo muçulmano. Então, a minha pergunta é a seguinte: seria Bush o Lutero dos muçulmanos? [Lutero foi um monge e teólogo católico que, durante o início do século XVI, questionou diversas atitudes eclesiásticas, em especial as indulgências – o livramento de um pecado por meio da compra desta. Gerou uma revolução que provocou a cisão entre católicos e protestantes]

Ayaan Hirsi Ali: [rindo] Não. E eu acho que… No Brasil tenho apenas dois livros publicados em português, e não consigo reconhecer nesses dois livros nenhuma das coisas que você acaba de mencionar. Não sou uma entusiasta em dizer: “Vamos nos voltar para Ibn Sina e Ibn Rushd”. [Ibn Rushid, também conhecido como Averróis, foi filósofo e médico na Espanha mourisca do século XII, sendo o principal comentarista do período sobre a obra de Aristóteles – importante filósofo da Antigüidade] E a razão de eu não fazer isso é que, mesmo na época deles, esses críticos muçulmanos, críticos do puritanismo islâmico não sobreviveram. Pela mesma razão que outras pessoas hoje, no mundo muçulmano, que querem mudanças, não conseguem sobreviver. Quase sempre os radicais vencem. E quase sempre os radicais vencem porque o que eles estão dizendo, e o que está no Corão e nas tradições do profeta é consistente. Assim, quando um pensador iluminista ou um pensador que critica o puritanismo se posiciona, ele é denunciado e condenado como herege. Isso em termos do que ocorria com os pensadores do islamismo no passado. E acho que pessoas como Ibn Khaldun são admiradas, não apenas por mim, mas por muitos outros críticos dentro do mundo muçulmano. O que ocorre é que não tem havido muitos Ibn Khalduns. E, mais uma vez, tudo que estou tentando dizer não é que o Ocidente deveria ajudar o islamismo e os muçulmanos. Não. Nós, que fomos criados na tradição e civilização islâmicas, e as herdamos, podemos aprender com o Ocidente a olhar para nós mesmos e dizer: “esse dogma, ou aquela obrigação, ou esse mandamento e aquela prática em nossa civilização estão errados. Eles têm nos deixado pobres, têm nos colocado em conflitos uns com os outros e com o mundo exterior. E podemos mudar isso. Podemos aprender com o Ocidente”. No Ocidente hoje, dentro da arena intelectual, há intelectuais que dizem que os muçulmanos têm direito a sua própria cultura. E que qualquer forma de mudança, qualquer forma de reflexão, qualquer forma de imitação do Ocidente significaria abandonar algo essencial, algo profundamente importante, algo singular. E eu discordo disso. E acho que aqueles pensadores do Ocidente não estão fazendo ao mundo islâmico favor algum. Eu admiro os outros pensadores ocidentais que dizem: “Há algo terrivelmente errado com o islamismo hoje. O islamismo está em crise e somente eles podem mudar sua própria religião”. Não quero me demorar muito. Mas estamos também em um contexto no qual grandes grupos de muçulmanos estão deixando países muçulmanos e emigrando para o Ocidente. Aqui no Ocidente, esses imigrantes são confrontados com as conseqüências lógicas das escolhas que fazem. Ou seja, você não quer viver em um país muçulmano onde a sharia seja aplicada completa ou parcialmente. [a sharia é a jurisprudência – conjunto solidificado de decisões jurídicas – baseado nos livros do islã, em especial o Corão – o livro sagrado, e a Suna, que contém partes biográficas da história de Maomé – Sira, e partes prescritivas no modo de agir – os Hadith] Você vai para um país como a Holanda, ou como a França, ou como os Estados Unidos – e isso não significa apenas uma imigração geográfica. Significa todo um novo conjunto de valores. Significa todo tipo de coisas novas. Novamente, espero que eu tenha sido mais clara.

Lillian Witte Fibe: [Norma Couri tenta falar] Norma, deixe-me dar a vez para os telespectadores. Obrigada.

Luiza Moraes: Com licença. Luciano Linhares, de Feira de Santana, Bahia, pergunta se o islã pode, na sua opinião, ser restruturado em suas tradições, a ponto de que seu povo possa conviver pacificamente com os costumes modernos dentro do islã?

Ayaan Hirsi Ali: Para que o islamismo seja restruturado a maioria dos 1,2 bilhão de muçulmanos que existem hoje teria de aceitar que determinados dogmas essenciais dentro do islamismo devem ser refutados, revistos, revisados e abandonados. Um deles é a obrigação quanto à Jihad, ou Guerra Santa. A idéia de que os muçulmanos têm de combater os não-muçulmanos, pregando ou através da espada. A idéia de que homens e mulheres não são iguais, mas que as mulheres são subordinadas aos homens. A idéia de que apóstatas, ou muçulmanos que pensem diferentemente ou deixem sua fé, devam ser mortos. A idéia de que os homossexuais devam ser mortos. Todos esses dogmas no centro do islamismo precisam ser completamente revistos para que isso aconteça. E não vejo hoje nenhum movimento, nenhum movimento sério que trate disso. Vejo pessoas dizendo que islamismo significa paz, embora ele diga guerra. E enquanto essa contradição, essa dissonância existir, acho que vamos continuar nesse tipo de crise.

Norma Couri: Ayaan, por causa do argumento que você fez para o filme Submission – Submissão, o realizador Theo Van Gogh foi assassinado e no peito dele ficou cravado uma carta dizendo que você seria a próxima. Assim mesmo, você continuou com o Submission 2. Esse filme foi feito? Como é o roteiro dele?

Ayaan Hirsi Ali: O enredo do filme é, na verdade, a mudança que vem de dentro e pela qual todos clamam. Eu me considero alguém que nasceu no islamismo e na tradição islâmica. Sou uma mulher que se emancipou de todos esses dogmas e creio que isso é o que posso fazer pelas pessoas com as quais me identifico. O que todo muçulmano faz é orar cinco vezes ao dia em submissão a Alá. O filme se chama Submissão. O enredo fala de uma mulher que está no centro de um cômodo, rodeada por quatro outras mulheres. A mulher no centro está orando a Deus. Mas, enquanto ela ora, ela faz algo bastante estranho. Em vez de submeter-se completamente ela ergue a cabeça e faz perguntas. Ela faz isso usando versos corânicos, que eu pintei nos corpos das quatro mulheres. E ela diz: “Deus, o senhor diz que os maridos são os mantenedores de suas esposas e, se temem desobediência, que batam nelas. É assim que se é agredido.” E aquele verso é escrito no corpo de uma mulher. É assim que quero mostrar, usando imagens e palavras, que é possível não se submeter. E olhar para cima e questionar.

Norma Couri: Você não tem medo de ser assassinada, como o Theo?

Ayaan Hirsi Ali: Todos os críticos, desde o profeta do islamismo, sempre temeram ser mortos. Muitos deles foram mortos. Muitos foram silenciados. E creio que é esse medo de ser morto por fanáticos que tem mantido a civilização estagnada durante todos esses anos. Eu estive, e me encontro em países onde a liberdade de expressão, pelo menos teoricamente, é garantida por lei. E, se a lei é realmente aplicada e me é dada proteção – e estou desfrutando dessa proteção onde estou agora –, então não receio ser morta.

Demétrio Magnoli: Há duas decisões na Europa sobre a questão do véu que são decisões na mesma direção, mas em países diferentes. A França proibiu o uso do véu islâmico nas escolas públicas e, na opinião das meninas muçulmanas, a França fez muito bem porque elas com isso conseguem se livrar da pressão da família e podem ser como os demais alunos nas escolas públicas. Na Turquia, a Suprema Corte decidiu agora que a lei que o presidente tinha feito permitindo o uso do véu nas universidades é inconstitucional, ou seja, a Suprema Corte disse que não se pode usar o véu nas universidades. Mas a Turquia é um país com maioria de população muçulmana e com um governo de um partido de origem islâmica, embora bastante moderado, eleito por ampla maioria. Então na França a decisão contra o véu é uma decisão que é fiel à própria tradição da França. Na Turquia, a decisão contra o véu vai contra a tradição turca. Eu quero saber sua opinião sobre essas duas decisões, na Turquia e na França.

Ayaan Hirsi Ali: O que essas duas decisões têm em comum é que elas se concentram no véu como um símbolo religioso [na França]. E como um símbolo político [na Turquia]. O que as duas decisões deixam de ver é a moralidade sexual simbolizada pelo véu. O véu está, na verdade, dizendo ao mundo que uma mulher é responsável pela conduta sexual do homem. Ela tem de ficar em casa e somente sair com a permissão de um guardião. E, se houver uma necessidade premente de sair, então ela precisa cobrir sua beleza para não excitar o homem. Para mudar essa moralidade sexual, a fim de que o homem seja responsável por sua própria conduta sexual e por refrear sua própria excitação, não creio que se possa simplesmente criar leis para banir ou não banir o véu. Essa é uma questão social. É uma questão intelectual, uma questão cultural. E acho que os dois países falharam a esse respeito.

Demétrio Magnoli: Mas acha você acha que a decisão francesa, embora não completa, é correta? E que a decisão turca, da Suprema Corte, de proibir o véu é correta? – porque a Corte tinha que tomar uma decisão sobre isso. Ou não?

Ayaan Hirsi Ali: Eu apóio a decisão francesa, que é mais uniforme e que limita seu uso apenas na escola. O governo francês baniu o véu, a cruz e o quipá [pequeno chapéu circular usado pelos judeus], e todos os demais símbolos religiosos dentro da escola. Quando as meninas saem da escola, elas podem cobrir o cabelo e podem se cobrir. Acho que elas não podem usar o véu, ou talvez possam, mas a questão se restringe apenas ao recinto da escola. Na Turquia... Na verdade, eu acompanhei a argumentação francesa quanto à proibição dentro do complexo da universidade. Se quisermos… o véu de cabeça na Turquia hoje é um símbolo político. A universidade não é lugar de um partido político. Não teremos pessoas agitando bandeiras, usando véus de cabeça ou outros símbolos religiosos. Mas, desde que você saia dos terrenos da universidade, tudo bem.

Lillian Witte Fibe: Ok. Nós vamos fazer agora mais um intervalo e voltamos já, já com a entrevista de hoje.

[intervalo]

Lillian Witte Fibe: Voltamos com o último bloco do Roda Viva desta noite, que recebe a escritora somali Ayaan Hirsi Ali. Ameaçada de morte por radicais islâmicos, ela vive nos Estados Unidos e, além de escrever, faz parte do American Enterprise Institute, em um trabalho em defesa dos direitos da mulher muçulmana. Senhora Ayaan, uma das coisas que me impressionou bastante nos seus livros foi a sua tumultuada relação com o seu pai e o amor da senhora por ele. Eu gostaria de perguntar como está a sua relação com seu pai hoje, se é que ela evoluiu?

Ayaan Hirsi Ali: Continuo amando meu pai muitíssimo e espero que ele também me ame. Seguimos caminhos opostos. Ele me criou dentro de um conjunto de idéias que eu abandonei. Vivo na esperança de que possamos reatar nosso relacionamento.

Lillian Witte Fibe: Daniel.

Daniel Piza: Você foi acusada de ser uma fundamentalista do iluminismo, como se o iluminismo não fosse anti-fundamentalista por definição. Você tem um artigo no seu livro A virgem na jaula defendendo um Voltaire para os países do mundo islâmico. Então eu lhe pergunto, existem condições para surgir um Voltaire islâmico? [filósofo iluminista e ensaísta do século XVIII, Voltaire, como os demais iluministas, defendia o primado da razão como motor do conhecimento. Foi também um defensor da liberdade civil e religiosa, atacando as instituições eclesiásticas e civis estabelecidas por meio de textos satíricos] E a segunda pergunta: será que Voltaire não seria contra proibir símbolos religiosos dentro das escolas, como defensor da liberdade religiosa?

Ayaan Hirsi Ali: Creio que a principal característica do iluminismo é que não há verdade absoluta. Alguém tem uma teoria, outra pessoa chega e diz: “Creio que isso está errado – e eis o porquê”. E, se ele conseguir provar que sua teoria está certa, então nós a aceitamos como verdadeira até que outra pessoa chegue e diga: “Há algo errado com essa crítica”. E assim avançamos e progredimos. Por isso, não creio que seja possível ser um fundamentalista iluminista. Se Voltaire aprovaria hoje a proibição do véu? Creio que dependeria do contexto. Ele levaria em conta o contexto daquele comitê... do comitê do governo francês, ou do comitê que assessorou a comissão que estava aconselhando o governo francês. Teria analisado os fatos e teria dito: “Bem, creio que, sob essas circunstâncias, deve estar correto proibi-lo nas dependências das escolas”. E, tendo lido um pouco a respeito de Voltaire, creio que ele teria, de forma muito sagaz e divertida, denunciado a moralidade central da qual o véu é um símbolo, da qual o lenço de cabeça é um símbolo.

Daniel Piza: E se existem condições para um Voltaire?

Ayaan Hirsi Ali: Como liberdade de expressão, sim, há condições para um Voltaire. Assim, muçulmanos que vivem em sociedades ocidentais têm as condições de se tornar Voltaires. Se você for um muçulmano na Arábia Saudita, tentando mudar as coisas de dentro, então o desafio enfrentando por aqueles muçulmanos na Arábia Saudita, no Irã, em partes do Paquistão, em partes do mundo muçulmano em vários graus é muito maior do que o nosso, que temos a sorte de poder escrever e cujas idéias podem ser questionadas e criticadas, aceitas ou estimuladas. Mas a resposta depende do contexto.

Daniel Piza: De que lugar ele viria, então?

Ayaan Hirsi Ali: De que país viria um Voltaire? Bem, não haveria apenas um Voltaire. Provavelmente as pessoas nesse debate hoje, muçulmanos conceituados, ex-muçulmanos... Salman Rushdie vive no Reino Unido [escritor bretão-indiano cuja obra Os versos satânicos despertou a ira do mundo muçulmano ao tratar o profeta Maomé de forma pejorativa], Irshad Manji, no Canadá... eu sou holandesa. Há muitos estadunidenses… e, na verdade, nos Estados Unidos grupos de pesquisa estão se formando; houve dois comitês de ex-muçulmanos, um na Alemanha e um outro na Holanda. Há vários pensadores e políticos conceituados, portanto… eu diria que [seria] do mundo livre: Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália – talvez até mesmo do Brasil. Sei que vocês têm um milhão de muçulmanos morando aqui, portanto, quem sabe? Pode haver um Voltaire escondido em um deles, ou em muitos deles.

Marta Góes: Ayaan, eu queria perguntar: como uma moça, criada sobre os valores que você foi criada, tomou a palavra? Como foi esse processo de passar a escrever e soltar a sua voz? Que dificuldades internas você encontrou para isso?

Ayaan Hirsi Ali: As circunstâncias práticas que tornaram isso possível é que fui mandada para a escola e permaneci na escola. Fui exposta a circunstâncias diferentes. O simples fato de estar na Etiópia, um país não muçulmano, no Quênia, um país não-muçulmano, e ser confrontada com a idéia de que não-muçulmanos realmente existem... E também encontrar outros muçulmanos... Quando eu morei no Quênia, havia todo tipo de muçulmanos ali. E, portanto, isso exerceu um grande impacto sobre minha maneira de pensar e sobre a idéia de pluralismo. O que foi mais difícil? Houve duas coisas muito difíceis. Eu internalizara a idéia de inferno de tal forma que eu temia pensar em qualquer coisa que me levasse ao próximo estágio em que eu desafiaria Deus ou Maomé. A segunda coisa, depois de ter feito isso, de ter lidado com meu medo pessoal do inferno, e chegado à conclusão de que não se tratava de inferno, de Deus, tudo isso era apenas imaginação, o desafio seguinte foi o da afeição e do amor. No momento em que eu disse que não acreditava mais no inferno, que não era mais muçulmana, minha família ficou tão exasperada... e eu sabia disso. Eu sabia que meu pai ficaria furioso e minha família também. Eu sabia que eles pensariam que eu era louca, ou uma apóstata. Mas essas foram as duas perdas pessoais mais significativas. A propósito, uma foi um ganho. Perder o medo do inferno foi um ganho, embora muito sofrido. E a outra foram os laços com a família e tudo o mais. Creio que esse é o maior desafio para a maioria dos muçulmanos que desejam mudanças.

Luiza Moraes: Eu vou só aproveitar que nós estamos falando dessa negação de inferno, de “eu não sou mais muçulmana”. O João Nascimento, de São Paulo, pergunta: “O quê Deus representa para você? Qual é hoje o papel da religião na sua vida?”

Ayaan Hirsi Ali: A religião não tem papel em minha vida hoje, exceto como um conjunto de crenças que eu desafio. Principalmente a religião islâmica. Eu tento explicar às pessoas religiosas que não desrespeito seu desejo de crer em Deus. E sua busca por espiritualidade. A religião se torna uma abominação e leva à violação dos direitos humanos quando uma pessoa impõe sua religião, o que for que seu Deus lhe diga, o que for que esteja em seu livro sagrado a outras pessoas, tirando-lhes a liberdade. E é isso o que eu mais desafio. Uma coisa que é raramente discutida, ao criticar as pessoas religiosas, é como elas tratam seus próprios filhos. O que ensinam e aquilo que excluem de seus filhos em nome da religião. E, ainda assim, sou igualmente aberta. Creio que alguém que veja Deus apenas como inspiração para si próprio e para fazer o bem, ótimo. Quanto àqueles que vêem Deus como inspiração para a violência e para impedir o desenvolvimento da mente das crianças, devemos combatê-los.

Lillian Witte Fibe: Quantos idiomas a senhora fala?

Ayaan Hirsi Ali: Eu falo quatro idiomas. Falo somali, falo holandês, inglês e suahili. Aprendi árabe, mas já esqueci. Falo algumas palavras em árabe.

Lillian Witte Fibe: A senhora tem planos de ter filhos?

Ayaan Hirsi Ali: [sorri] Sim.

Norma Couri: Ayaan, eu queria perguntar duas coisas; uma: se você já presenciou o apedrejamento de uma mulher por adultério; dois: muitas mulheres famosas, artistas ou... artistas basicamente, lutam pelo direito da mulher no islã. Qual dessas mulheres você admira mais, qual delas realmente atua contra essa situação feminina?

Ayaan Hirsi Ali: Vi gravações em vídeo de apedrejamento. A maior parte pelos talibãs. Sob o domínio dos talibãs, no Afeganistão, havia alguns vídeos bastante ruins, mas muito claros acerca do que é um apedrejamento. Mas nunca presenciei um. Quem são as feministas que mais admiro? Hoje, olhando para a situação desesperadora das mulheres muçulmanas, admiro todas as feministas, ainda que não concordem comigo.

Norma Couri: Cite uma.

Ayaan Hirsi Ali: Um único nome? [olha para cima pensando]

Norma Couri: As atrizes, por exemplo. Tem muitas atrizes...

Ayaan Hirsi Ali: Eu sei, mas me recuso a dizer que admiro uma mais de que outra. Creio que cada feminista está fazendo o que lhe é possível fazer Eu continuo me referindo a Irshad Manji, pois ela tem de viver sendo também lésbica, porque ela tem mostrado, a sua própria maneira, que se pode ainda ser muçulmana e lésbica, ou sendo uma feminista.

Norma Couri: Você se assume como lésbica? Você se assume assim?

Ayaan Hirsi Ali: Não, não. Não sou lésbica. Irshad é...

Norma Couri: Ok. Eu fiquei na dúvida.

Ayaan Hirsi Ali: ...E por ser lésbica, sua vida é muito mais difícil do que se fosse heterossexual. Ela tem de lidar com desafios em três níveis diferentes. [ri]

Demétrio Magnoli: Ayaan, você é da direção da Anistia Internacional. [organização não-governamental de âmbito mundial associada à defesa dos direitos humanos] Eu acho que nos últimos tempos, nesses tempos de guerra ao terror, há questões novas que apareceram. Os Estados Unidos, sob a administração Bush, e em nome dos valores do Ocidente – segundo Bush, ao conduzir essa guerra produziu Abu Ghraib [prisão iraquiana utilizada pelos Estados Unidos durante sua guerra contra o Iraque (2003 – ) famosa por denúncias de violações aos direitos humanos], produziu Guantánamo [prisão existente na base militar estadunidense existente na Baía de Guantánamo em Cuba, para onde foram levados suspeitos de terrorismo. Também foi alvo de denúncias de torturas e violações aos direitos humanos], e produziu, principalmente, mais importante do que isso – que poderia até ser visto como fatos laterais de uma guerra –, produziu um documento. Alberto Gonzales, ministro da Justiça [na administração George W. Bush], produziu um documento que procura reinterpretar a Convenção Contra a Tortura [convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1984, da qual os Estados Unidos são signatários] de tal maneira a permitir a tortura. Na verdade os Estados Unidos, o país que impulsionou a Carta dos Direitos Humanos em 1948 [também conhecida como Declaração Universal dos Direitos Humanos, outra convenção internacional adotada pela ONU e seus países signatários], impulsionou hoje uma tentativa de tornar a tortura legal no mundo. Veja, isso não a faz pensar que o Ocidente muitas vezes assassina os seus próprios valores?

Ayaan Hirsi Ali: Creio que sim, se eu não tivesse testemunhado o debate bastante arrebatado nos Estados Unidos hoje: sobre a Baía de Guantánamo, sobre tortura, sobre como a guerra no Iraque foi conduzida, se foi certo ir à guerra. E vejo que há mais estadunidenses dizendo veementemente que são um país de patriotas, mas que não querem tortura de espécie alguma. Queremos preservar as liberdades humanas de todos. E ao mesmo tempo viver em segurança. Eu tenho acompanhado esse debate diariamente e não estou cega a ele. E sou uma crítica ferrenha de qualquer um que critique os Estados Unidos e diga que todos os estadunidenses são favoráveis à Baía de Guantánamo. Não, a Baía de Guantánamo é uma das idéias mais contestadas hoje. Se você olhar a avaliação da administração Bush hoje, você verá que é provavelmente a mais baixa que já tiveram. E há outros estadunidenses dizendo isso. Há outros estadunidenses contra a tortura, pelos direitos humanos e – mais uma vez, deixe-me enfatizar –, não são todos os americanos [a favor da guerra].

Luiza Moraes: A pergunta é da Tânia Correa, do Rio de Janeiro. Você nega a religião. Respeita, mas renega – vamos dizer assim – e explicou vários problemas. A pergunta dela é: “Com uma trajetória de vida com muitas lutas, desafios e vitórias, de onde vem a força para vencer tantas etapas de perigo, tantos desafios?”

Ayaan Hirsi Ali: Quando eu era uma pessoa religiosa, eu vivia com medo. Medo do inferno, medo de perder meus pais, medo de ser punida. Medo de pensar coisas erradas. Medo de pecar. Portanto, deixar a religião me trouxe um sentimento de libertação. Além de me mostrar minha própria força interior. Passei a amar outras pessoas, não porque elas partilham minha religião, ou são de minha família mas porque, como pessoas, concordo com elas. E foi com essas pessoas que formei uma família alternativa. Amigos e colegas – e é deles que tiro minha força. De dentro de mim mesma, e de outras pessoas, da humanidade, de livros, de filmes... das flores, das abelhas. [ri contidamente]

Lillian Witte Fibe: Desde que a senhora começou a sua luta e se tornou uma personalidade mundial até hoje, [como] a senhora faria um balanço da situação da mulher, principalmente da mulher dominada pelo islamismo fundamentalista? Porque é importante, como a senhora já deixou claro, a gente fazer essa diferença. A mulher muçulmana evoluiu desde o começo da sua luta até hoje? Evoluiu pelo menos um pouquinho ou nada?

Ayaan Hirsi Ali: Bem, comecei essa luta, essa missão, na Holanda. E a situação das mulheres muçulmanas que moram na Holanda hoje é muitíssimo diferente daquela de 2002, pouco antes de eu entrar nesse debate. Não fui a primeira a denunciar que a situação delas era muito frágil. Houve outro político, Pim Fortuyn, que foi morto. [político de tendência populista de direita, era carismático e não-convencional, morto em 2002 por um ativista radical do movimento ecologista. Defendia o ponto de vista que o islã era uma cultura atrasada] Antes deles, houve Frits Bolkestein, um liberal conservador... [político holandês e ex-funcionário de companhias petrolíferas, fez críticas à política multiculturalista e à expansão da União Européia durante os anos 1980, quando ganhou popularidade] Estou confundindo o termo [liberal] com o [liberal] dos Estados Unidos... Um liberal nos Estados Unidos é considerado um conservador. Mas Frits Bolkestein [é] um político liberal. O que mudou é que, anteriormente, as pessoas negavam que sua situação fosse diferente da de quaisquer outras mulheres. Hoje a conscientização é universal. A mutilação genital feminina hoje é monitorada, e há uma lei aprovada dizendo que, para a família de cada menina que corre o risco de ser mutilada, a [esta] família é oferecido um controle voluntário. Mas, se a família disser não, então o controle entra em vigor. Há um monitoramento de crimes de honra. Os assassinos são punidos, e hoje a investigação abrange toda a família, não apenas a pessoa que recebeu uma arma para atirar. Meninas eram tiradas da escola. Hoje todos os professores sabem que, quando uma menina muçulmana falta um dia, dois dias, eles devem ligar para os pais e saber por que ela não está indo à escola. E eu posso prosseguir. E creio que isso se estendeu a outros países europeus. E espero iniciar o mesmo debate nos Estados Unidos.

Daniel Piza: O que você diria às pessoas que dizem que os Estados Unidos, nos atentados das Torres Gêmeas, colheram o que semearam? [Torres Gêmeas era o apelido dado ao World Trade Center, conjunto de dois edifícios situados em Nova Iorque que ruíram com o choque de dois aviões de passageiros controlados por terroristas durante o atentado de 11 de setembro de 2001]

Ayaan Hirsi Ali: Considero esta uma observação ignorante. Até certo ponto doentia. As pessoas que estavam no World Trade Center eram pessoas de todas as classes sociais. Desde diretores a homens de negócio, a faxineiros, recepcionistas, policiais, todos foram mortos. Dizer que estava certo matar aquelas pessoas e que elas mereciam é doentio demais para ser considerado. Creio que as críticas às políticas americanas e à política externa americana são justificadas. E, como eu disse, muitos americanos já fazem isso. Mas creio ser errado dizer que qualquer grupo de pessoas que, por qualquer razão, tenha sido vítima de terrorismo tenha merecido ou buscado aquilo. Vi críticas semelhantes quanto ao assassinato de Theo Van Gogh, quanto às bombas no metrô de Londres. E creio que o governo espanhol errou em sair do Iraque depois dos ataques terroristas pois legitimaram o que, em minha opinião, são motivos equivocados e doentios. [A Espanha, por sua participação como aliada dos Estados Unidos durante a Guerra do Iraque, sofreu uma série de atentados terroristas simultâneos em três estações de trem em onze de março de 2004, ocasionando a morte de 198 pessoas]

Demétrio Magnoli: Ayann, o Ocidente produziu uma série de visões multiculturalistas do mundo, e uma série de organizações – que são, aliás, a idéia da cultura do Ocidente, a idéia do multiculturalismo – que dizem basicamente o seguinte: “Cada cultura tem a sua tradição e, portanto, nós não devemos nos meter com isso e nem discutir a tradição das várias culturas. E devemos, inclusive, abrir mão de princípios nossos para que essas tradições vivam intocadas dentro do Ocidente.” Você faz uma crítica interessante com a qual eu concordo inteiramente sobre isso. Eu queria que você expusesse essa sua opinião.

Ayaan Hirsi Ali: O que ocorre é que hoje a Teoria da Soberania se aplica também a minorias em países ocidentais. [A Teoria da Soberania do Povo, preconizada pelo filósofo Rousseau, diz que os indivíduos participam da vida política como sujeitos ao poder do Estado, mas também como cidadãos livres que podem influenciar na formação da vontade comum] Se você é uma minoria de qualquer país muçulmano, ou até mesmo de um país não-muçulmano como a China, ou a Índia, e você, em uma sociedade liberal, quer continuar com seus costumes antiliberais, e às vezes até mesmo contra as leis, há intelectuais que dizem que essa é a cultura deles e que precisa ser respeitada. E o que esses intelectuais não vêem é que os indivíduos oprimidos naquelas comunidades, principalmente crianças e mulheres, também emigraram de países sem liberdade e pobres em busca de uma vida melhor. E não estão recebendo a proteção da lei, que está ali para todos. Tive discussões na Holanda com alguns desses intelectuais, e eu perguntava: “Você enviaria seu próprio filho para uma escola muçulmana?”. E eles diziam: “Nunca”. “E por quê?” “Porque quando saíssem da escola não estariam preparados o bastante para participar da sociedade”. Então por que argumentar que o filho de outra pessoa – na verdade, alguém em uma posição mais vulnerável –, [ou] que seu filho seja mandado a essas escolas? Creio que esse é o tipo de injustiça que os multiculturalistas ignoram em nome da diversidade e em nome da [faz um gesto de aspas] paz relativa por um curto período.

Lillian Witte Fibe: Senhora Ayaan Hirsi Ali, nós agradecemos muito a sua presença aqui no programa hoje, agradecemos também a nossa bancada dos entrevistadores e agradecemos especialmente a sua atenção e a sua colaboração. O Roda Viva volta na segunda-feira as 22:40 da noite. Obrigada e até lá. 

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