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Paulo Markun: Boa noite. O brasileiro sente necessidade de um cinema brasileiro? A televisão pode suprir a necessidade de uma dramaturgia que atenda ao interesse das pessoas? O nosso convidado de hoje conhece essas e outras questões e está no meio da discussão há mais de 30 anos. Ele acha que fazer cinema e televisão é uma questão de soberania nacional e recorre ao argumento de que o país que não preservar seus mitos, sua língua, sua identidade nacional, está condenado a desaparecer. O Roda Viva entrevista, esta noite, Jorge Furtado, diretor e roteirista de cinema e televisão, integrante do grupo de cineastas gaúcho responsável por um dos mais importantes núcleos de produção de filmes no país [Casa de Cinema de Porto Alegre]. Você acompanha a entrevista num instante.
[intervalo]
Paulo Markun: Jorge Furtado se tornou conhecido como diretor de alguns dos melhores curta-metragens do cinema nacional. Mas, também marcou carreira com a realização de longas e programas especiais para a televisão, que abriram um novo caminho, nova discussão em torno do audiovisual brasileiro.
[Comentarista]: Gaúcho de Porto Alegre, Jorge Furtado é figura presente nos debates e embates entre cinema e TV, que há anos se fazem no Brasil. E, há anos, ele fala das duas coisas, até porque, sua carreira tem um caminho duplo. Foi fazer cinema logo após ter começado a trabalhar na TV Educativa de Porto Alegre, em 1981.
[Jorge Furtado]: Comecei fazendo TV e fazendo um programa chamado Quizumba. Então, a gente queria fazer alguma coisa que durasse mais e resolvemos fazer cinema. Um grupo de pessoas se reuniu e a gente fez um curta chamado Temporal, em 1974. A partir dali, eu trabalhei mais um pouco na TV e depois fiquei fazendo publicidade e cinema.
[Comentarista]: Sua produção de filmes ganhou rumo e peso nos anos 80, especialmente com a criação da Casa de Cinema de Porto Alegre, em 1987, uma cooperativa criada por onze cineastas gaúchos. Nessa época de abertura política, surgiram dois trabalhos que marcaram a carreira de Jorge Furtado e até a história do curta-metragem brasileiro: O dia em que Dorival encarou a Guarda, de 1986...
[Trecho do filme]: "Ô praça, seja camarada. Me leva até o banheiro e me deixa tomar um banho. Eu tô derretendo aqui dentro. Não pode!" [fala do personagem]
[Comentarista]: ...e Ilha das flores, de 1989. Nos anos seguintes, Furtado abriu o leque de trabalho. Fez comerciais, programas para a TV e marketing político, o que lhe custou críticas e até denúncia de favorecimento pelos serviços prestados a candidatos do PT [Partido dos Trabalhadores], no Rio Grande do Sul. Na televisão, dirigiu e formatou programas e minisséries da Globo, onde ainda atua como roteirista. Escreveu roteiros das séries Agosto, Invenção do Brasil, Cidade dos homens, Comédia da vida privada e Memorial de Maria Moura [minisséries da Rede Globo de Televisão]. Também fez uma incursão pela literatura, onde começou com um livro de contos. Premiado em diversos festivais internacionais de curtas-metragens, Furtado teve sua primeira experiência com o longa-metragem em 2003. Houve uma vez dois verões foi realizado quase dezoito anos depois de seu curta de estréia. Em 2003, veio o segundo, O homem que copiava, que ganhou nove prêmios no exterior e o APCA [prêmio concedido pela Associção Paulista de Críticos de Arte] de 2004, como o melhor filme brasileiro do ano. Na seqüência, veio Meu tio matou um cara [2004], mesmo título do livro de contos. E lançou agora o seu mais novo longa Saneamento básico, o filme [2007]. A história se passa numa pequena vila de descendentes de colonos italianos na Serra Gaúcha. Eles queriam resolver o problema do esgoto.
[Trecho do filme]: "O esgoto é da comunidade, não é? Mas, esgoto é uma palavra ruim, parece o cocô da comunidade. Mas é o cocô da comunidade" [falas dos personagens]
[Comentarista]: Mas eles só tinham dinheiro para fazer um filme.
[Trecho do filme]: "Dez mil reais. Dá para fazer a fossa, dá e sobra"
[Comentarista]: O filme brinca com a produção cinematográfica ao opor uma câmera de vídeo nas mãos de uma família simplória. E, brincando, carrega a marca de humor que Jorge Furtado coloca em suas produções, mesmo quando o tema é voltado para um problema social.
[Trecho do filme]: "Ah! Ah!" [cena divertida de Saneamento básico, o filme]
Paulo Markun: Para entrevistar o diretor e roteirista de cinema e TV Jorge Furtado nós convidamos: Roberto Sadovski, diretor de redação da revista Set; Ricardo Elias, cineasta e colaborador da TV Cultura; Esther Hamburger, ensaísta crítica e chefe do Departamento de Cinema, Rádio e TV da USP [Universidade de São Paulo];José Geraldo Couto, crítico de cinema e colunista do jornal Folha de S. Paulo; Ricardo Calil, crítico de cinema da revista Bravo!; Hugo Sukman, jornalista e crítico de cinema e Paulo Lima, jornalista e editor da revista Trip. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os principais momentos do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional pela TV pública, para todo o Brasil. Como o programa de hoje está sendo gravado, ele não permite a participação direta do telespectador. Mas você pode mandar sua crítica, sua sugestão, sua observação pelo endereço eletrônico do programa que é: www.tvcultura.com.br/rodaviva, ou no mesmo endereço da TV Cultura, acessar o blog da [TV] Cultura e deixar lá o seu comentário. Boa noite, Jorge!
Jorge Furtado: Boa noite!
Paulo Markun: Eu queria começar pelo seu último filme, Saneamento básico que tem essa característica do humor, mas brinca também com uma questão que eu acho que é mais grave: faz sentido fazer cinema num país que não tem saneamento básico?
Jorge Furtado: Eu acho que faz todo o sentido. Faz todo o sentido fazer cinema, não é? Se a gente vai esperar que todos os problemas básicos se resolvam para produzir cultura, a gente não vai produzir nunca. A sociedade é uma coisa orgânica, todas as coisas têm que andar ao mesmo tempo.
Paulo Markun: Mesmo que seja com recursos públicos?
Jorge Furtado: Mesmo que seja com recursos públicos. Eu acho fundamental que o país tenha cinema. O país tem que ter cinema. E o cinema é produzido com incentivos fiscais, ou algum tipo de proteção do Estado, ou de dinheiro direto do Estado, no mundo inteiro, com exceção dos Estados Unidos e da Índia. No resto, todos os outros países produzem cinema com isenção fiscal, com algum tipo de proteção, reserva de mercado. E acho que isso é fundamental. O país tem que produzir cinema, sem dúvida. Infelizmente, o cinema brasileiro não conseguiu ainda dar um salto que é importante, eu acho, que é ser auto-sustentável. A Lei do Audiovisual, que está em vigor, que foi criada há mais de dez anos, foi pensada para isso: "vamos fazer um cinema que depois vai se sustentar na bilheteria", mas isso não aconteceu. E não parece que vai acontecer tão cedo. E o país, acho que precisa continuar produzindo cinema.
Esther Hamburger: Como você avalia a atual crise do cinema brasileiro?
Jorge Furtado: Pois é. A crise... tu fala de público?
Esther Hamburger: De público.
Jorge Furtado: É, o cinema brasileiro cresceu... Desde a retomada, desde 93 até 2003, ele cresceu sem parar. Em 93, os ingressos vendidos para cinema brasileiro não chegavam a 1%. E em 2003 passaram de 22%, foram 23 milhões, foi subindo, subindo, subindo. E de 2003 para cá, tá caindo. Essa pergunta é difícil de responder. Eu não sei exatamente a resposta. Acho que são algumas coisas. Acho que o cinema brasileiro, quando voltou, o primeiro filme foi o da Carla [refere-se à atriz e diretora Carla Camurati], Carlota Joaquina [1995]. Estava todo mundo louco para ver no cinema um filme brasileiro. Era o único que tinha, todo mundo foi, enfim, fez um milhão de espectadores e aí, foi subindo, subindo, subindo. Acho que houve uma certa saturação. Eu me lembro de ouvir "O cinema brasileiro tá melhorando, tá melhorando, tá melhorando". E eu parei de ouvir isso de um tempo para cá. Em televisão, a gente fala "o programa está entregando mal". Quando a gente vem depois da novela e a novela está com o Ibope [nivel de audiência, medido pelas pesquisas do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística] baixo, a novela está entregando mal. Acho que a marca “cinema brasileiro”, de um tempo para cá, começou a se desvalorizar um pouco. Talvez pelo excesso de filmes. Talvez porque os filmes não estejam encontrando o seu público. Não sei, eu acho que a gente também tem que olhar um pouco para a gente. Eu mesmo diminuí minhas idas ao cinema. A gente vê muito DVD, fica em casa vendo TV, tem YouTube, tem muitas outras coisas. Eu vou muito mais ao cinema para ver filme com as crianças, com a minha filha, filmes infantis. Então, sair de casa para ver um filme, tu já pensa duas vezes.
Esther Hamburger: Você ficou um tempão sem fazer cinema e você volta a fazer cinema justamente nesse momento de crise, tendo espaço na televisão.
Jorge Furtado: É... eu não fiquei um tempão, eu fiquei o tempo de fazer um filme, não é? Depois de Meu tio matou um cara, foi esse. É o tempo que leva para fazer um filme, três anos.
Hugo Sukman: Esse tema do saneamento básico, quer dizer, que é a razão de se fazer cinema, de se ver cinema... Sobretudo no cinema brasileiro, ele é um tema, em geral, levantado pela chamada direita, não é? Quer dizer, o cinema brasileiro sempre foi atacado, a existência do cinema brasileiro sempre foi questionada, justamente porque ela é financiada por recursos públicos.
Jorge Furtado: Hum-hum. [concordando]
Hugo Sukman: Você toca nesse tema, você vai nesse ponto, não pela primeira vez.
Jorge Furtado: É, porque eu acho que...
Hugo Sukman: Por que o interesse por esse tema?
Jorge Furtado: Porque esse tema é básico. O saneamento básico, o título do filme Saneamento básico, o filme, é o mínimo que se espera de qualquer sociedade, os incas [civilização pré-colombiana da América do Sul] tinham saneamento básico. Tu pensa nisso assim que tu vai fazer uma casa, é a primeira coisa. E o cinema, o filme é talvez um estágio, uma coisa muito avançada. O cinema é complicado, é caro, muito complexo. Então, o saneamento básico e o cinema parecem coisas opostas. O filme podia se chamar "Instalação elétrica, o filme" ou qualquer outra coisa assim. Mas, eu escolhi saneamento básico por ser uma coisa muito, muito básica. Mas, a gente tem que pensar o seguinte, eu digo que saneamento básico é coisa primeira que os incas já tinham, mas, antes disso, os incas já tinham arte. A produção de arte é fundamental, é anterior a qualquer coisa. Qualquer povo, [por] mais primitivo que seja, precisa contar histórias para continuar existindo. Enfim, para se manter como sociedade precisa produzir arte, não é? Seja pintura, dança, música e cinema. Hoje é cinema, talvez daqui a pouco termine o cinema. Talvez não seja mais cinema, seja audiovisual. Mas a produção de conteúdo audiovisual, essa vai continuar sendo...
Hugo Sukman: Mas, você tem dúvidas da necessidade da existência do cinema? E fez o filme para provar para você mesmo ou...
[risos]
Jorge Furtado: Não. Eu não tenho dúvidas da necessidade de contar histórias e da força que há em contar histórias com palavras e imagens coordenadas entre si, que é o cinema. O cinema é isso: uma imagem e palavra juntas, ao mesmo tempo. Pode ser quadrinho, pode ser televisão, pode ser internet. Mas, essa coisa de ver algo e ouvir algo ao mesmo tempo, e pensado por alguém que juntou essas duas coisas, isso vai continuar, seja numa tela grande... Eu tenho muitas dúvidas sobre o futuro do cinema, ir ao cinema, sair de casa, tela grande. Eu não sei se os nossos netos vão conhecer isso. A gente vai ter que explicar para eles o que era, não é?
Roberto Sadovski: Jorge, quem você acha que é esse público de cinema hoje? Quem que sai de casa para ver um filme brasileiro ou um filme qualquer? É o mesmo público que vai ver um blockbuster [filme, peça de teatro ou livro que é muito popular e faz grande sucesso, de grande bilheteria], que vai ver um filme nacional, que vai ver um filme mais alternativo? Quem é esse público?
Jorge Furtado: Não, juntando com a pergunta da Esther, o cinema brasileiro é meio... um gênero. As pessoas dizem "Vamos ver uma comédia, uma aventura ou um filme brasileiro?"
[risos]
Jorge Furtado: Na locadora é assim: nacional, comédia, drama... Nacional, uma prateleirinha ali. E esse público que vai ver cinema brasileiro é limitado, não é todo mundo que gosta de filme brasileiro. Então, eu vejo esse preconceito, mas que foi sendo quebrado. O cinema brasileiro, durante muito tempo tinha um preconceito assim: "é incompreensível, ou é pornográfico, tem muito palavrão". E isso foi sendo quebrado pela diversidade do cinema... acho que até antes da retomada. Eu me lembro do filme do Sérgio Rezende [cineasta brasileiro], O homem da capa preta [1986]. Enfim, antes da retomada, não estava mais no cinema só um tipo do cinema brasileiro.
Esther Hamburger: Dona Flor. [Dona Flor e seus dois maridos, 1976. Comédia brasileira dirigida por Bruno Barreto, baseada no livro homônimo do escritor brasileiro Jorge Amado. Foi grande sucesso de público e crítica.]
Jorge Furtado: É, isso aí já é bem antes, mas eu acho que existe uma certa tendência de que o cinema brasileiro tem que ser de um tipo só.
Roberto Sadovski: Será que falta diversidade de gênero, apostar em coisas diferentes?
Jorge Furtado: Talvez, talvez falte um pouco.
Esther Hamburger: Acho que falta cinema, falta cinema que fale português.
[risos]
Jorge Furtado: É, talvez.
Esther Hamburger: Cinema brasileiro tem a vantagem de falar português, porque na periferia as pessoas não lêem.
Jorge Furtado: Eu falei com um rapaz que programa um cinema em Altamira [cidade do estado do Pará], e estava passando agora Treze homens..., Catorze Homens..., ou Quinze homens..., não sei, enfim, ... e outro segredo [Treze homens e um novo segredo - 2007, filme hollywoodiano de ação]. Ele disse que quando começou a sessão, metade do cinema, quando viu que tinha legenda, saiu, foi embora, porque as pessoas não gostam de ler legenda.
Esther Hamburger: Ou não conseguem.
Jorge Furtado: Muita gente não gosta, ou não consegue. Muita gente gosta de ver os filmes em português. Então, é um público potencialmente grande. Mas o cinema é caro. A média de preço é dez reais. Há muitas coisas contra, jogando contra ir ao cinema, sair de casa para ir ao cinema.
Ricardo Elias: Jorge, você disse nos seus livros que fazer cinema no Brasil é como ser um astronauta no Chipre [ilha asiática, localizada no Mar Mediterrâneo]. Eu queria saber se, quatro longas depois, você mantém essa afirmação? Porque na época que escreveu o livro, você não tinha feito os seus longas ainda. Eu queria saber o que você acha que mudou e o que precisa mudar?
Jorge Furtado: Olha, eu acho que o que mudou, positivamente, é que tem um profissionalismo crescente. Tem mais roteiristas, tem mais a idéia de que o filme tem que ser planejado. Não é tanto mais aquela coisa de "vamos lá e na hora a gente vê". Isso mudou. Porque o cinema é uma coisa muito cara, que tem que ser planejada e que tem planejamento. Ele não impossibilita a invenção e não impossibilita a improvisação, ao contrário, ele facilita. Então, isso mudou. A profissionalização mudou. Agora, a dificuldade de fazer, de conseguir "grana" para fazer filme, essa continua depois de treze longas - e esse é o meu quarto. Os filmes anteriores fizeram boa bilheteria e esse filme agora é um filme com elenco incrível, uma comédia. A gente não conseguiu captar nada para o filme. O dinheiro para a produção foi de dois concursos públicos, mais a Columbia [Columbia Pictures], mais a Globo Filmes. A gente não conseguiu alguém que investisse. Isso continua tão difícil quanto, senão mais difícil do que já foi. E continua difícil tirar as pessoas de casa para ir ao cinema. As pessoas que vão até gostam, mas não vão. Pouca gente vai ao cinema e pouca gente vai ver filmes brasileiros...
José Geraldo Couto: Jorge, quando se discute sobre a ausência de público para cinema brasileiro, normalmente, há um personagem que surge aí, digamos, a televisão. Diz-se, então, que, para o grosso da população brasileira a necessidade de ficção, a necessidade de dramaturgia é suprida pela televisão. E eu acho que o teu cinema, nesse caso, é especialmente rico, porque ele dialoga muito com a televisão. Você trouxe muita coisa da televisão para o cinema e, ao mesmo tempo, problematiza as duas, os dois meios, digamos assim. Isso eu acho que é o que tem de mais interessante no teu cinema. Agora, eu acho que, às vezes - como você sabe que eu admiro muito o seu trabalho e talvez eu "pegue um pouco pesado" agora dizendo o que eu acho - nesse equilíbrio que você e o pessoal da Casa de Cinema têm feito entre cinema e televisão, às vezes...eu sinto uma demasiada concessão à televisão, a idéia de que para atingir o público, é preciso ter um pouco mais de televisão nos filmes. Seja em termos de elenco, seja em termos de linguagem mesmo, de estrutura narrativa. Não era o caso, nos seus três primeiros longas, mas eu senti um pouco isso nesse último, assim como no filme do Gerbase [Carlos Gerbase, cineasta e integrante da Casa de Cinema de Porto Alegre], Sal de prata [2005], acho que foi um filme que fez demasiadas concessões e, curiosamente, são dois filmes que tratam de cinema. Bom, eu queria saber se você optou por uma linguagem mais simples nesse seu filme, mais direta, uma linguagem mais mastigada para o público com a intenção de atingir mais gente ou se foi fruto simplesmente do projeto, da idéia? E se você, olhando sua produção a médio e longo prazo, vê os seus filmes podendo alternar filmes de maior empenho inventivo, criativo, no questionamento da linguagem como O homem que copiava [2003] e filmes mais de diversão, divertimento, mais superficial, digamos, como Saneamento básico, o filme [2007]? Acabou ficando longa a pergunta...
Jorge Furtado: Bom, eu não vejo essa diferença toda entre cinema e televisão.
José Geraldo Couto: Eu sabia que você ia falar isso. [risos]
Jorge Furtado: A diferença entre cinema e televisão é a maneira como a gente vê, só isso. A televisão é uma tela pequena numa sala com a luz acesa, telefone eventualmente toca, a gente liga e já está no meio [do programa]. Às vezes, a gente sai e pára, dá pause e tal. A televisão é uma coisa pequena. O cinema é uma tela grande, é só isso.
José Geraldo Couto: Não é só isso, Jorge, você sabe que não é só isso.
Jorge Furtado: É só isso, sim, a diferença. Eu estou vendo filmes que estão sendo lançados agora, A primeira página, Pacto de sangue [remakes de filmes de Billy Wilder (1906-2002), cineasta norte-americano], que são perfeitamente “víveis” na televisão. Eles não perdem absolutamente nada. Claro, que se tu vai ver um filme do Kurosawa, ou, enfim, uma aventura do Antonioni aí perde. Mas, dependendo do filme, é a mesma coisa. Quando eu penso um filme, eu acho que cada filme é um filme e precisa de uma linguagem específica para ele. Esse filme, o Saneamento básico pode ser visto, na minha opinião, de uma maneira muito simples. Qualquer criança brinca, qualquer criança se diverte, tem monstro, tem dança do monstro, tem de tudo. Mas, ele pode ser visto, na minha opinião, em muitos detalhes, que não são tão simples assim. Eu acho que ele trabalha em várias camadas, é todo baseado na commedia dell´arte, naqueles oito personagens da commedia dell´arte, na relação entre eles. As cenas são as do encontro do velho burguês com a mocinha desfrutável, enfim, são cenas da commedia dell´arte reorganizadas. Mas, ao mesmo tempo, se discute a linguagem cinematográfica, como é que se faz um roteiro, como se filma, como se transforma a literatura num roteiro e o roteiro num filme.
José Geraldo Couto: Então, quer dizer, que isso não está na linguagem do filme, na estrutura do filme, como nos seus outros filmes?
Jorge Furtado: A linguagem do filme é da comédia, são grandes atores. Voltando à questão dos atores, quando tu fala dos atores de televisão, esses atores do Saneamento Básico são, na minha opinião, os melhores que eu conheço. Eu chamei em 2004 o melhor ator para cada um dos papéis. Os dois atores ali que eu conheci na televisão são o Paulo José e o Tonico Pereira. O Paulo José, por causa do "Shazan e Xerife" [Shazan, Xerife e cia., seriado da Rede Globo em 1972], que eu brincava de Shazan e Xerife, e o Tonico Pereira, que ele era o "Zé Carnero" no Sítio do pica-pau amarelo [Sítio do pica-pau amarelo,1977-1985, programa infantil da Rede Globo, baseado na obra de Monteiro Lobato]. Todos os outros eu conheci fora da televisão, mas imediatamente foram levados para a televisão. Eu conheci o Lázaro Ramos em um teste de vídeo, mas ele imediatamente foi levado para a televisão, porque os atores muito bons são chamados para a televisão.
José Geraldo Couto: Tem uma crítica...
Jorge Furtado: E o Paulo José é um ator, [ver entrevista no Roda Viva com Paulo José] talvez o maior ator da história do cinema brasileiro, fez Macunaíma [1969], enfim.
José Geraldo Couto: Tem uma crítica freqüente sobre seu filme, que eu acho que é acessória, secundária, mas, isso pode ser pertinente. É a de que os atores são ótimos mas que eles não estão adequados aos papéis, que é difícil crer naqueles atores naqueles papéis.
Jorge Furtado: Olha, eu não concordo. [risos] Nem um pouco. Eu acho que eles estão muitíssimo adequados para os papéis e pensei em cada um deles para aqueles papéis. Agora, existe um certo vício, que é quase uma "praga", eu acho que é do naturalismo, a idéia de que o cinema tem que ser a vida real. Eles não parecem colonos. Eu vi trezentos filmes. Vi agora um filme do Walter Matthau [ator norte-americano (1920-2000)] e Jack Lemmon [ator norte-americano (1925-2001)] fazendo pela décima vez... São grandes atores, eles estão atuando, é uma representação, não é a vida real. Não peguei colonos da Serra Gaúcha para interpretar, como interpretariam de verdade, são cenas de comédia feita por atores que são comediantes. A comédia tem esse objetivo principal de fazer rir. Eles têm que ser bons atores para fazer bem a cena da comédia. O realismo, realmente, não me interessa assim. Vida real eu já tenho. [risos] Não pago dez reais para ver vida real. Eu pago para ver um filme.
Paulo Markun: Jorge, vamos fazer um rápido intervalo e nós voltamos num instante com o Roda Viva, que hoje tem na platéia Wander Vendramini, engenheiro e cineasta, Mariana Mendicelli, jornalista, e José Gozzi, coordenador do curso de cinema da FAAP [Fundação Armando Alvares Penteado]. A gente volta já, já!
[intervalo]
Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva, que entrevista hoje o diretor e roteirista de cinema e TV, Jorge Furtado. Com quatro longas-metragens nos últimos cinco anos e dezenas de produções para a televisão, este cineasta gaúcho marcou a sua carreira com a produção de treze curtas-metragens premiados no Brasil e no exterior.
[Comentarista]: O curta-metragem não deixou boas marcas na memória do brasileiro. Desconhecido do grande público, o filme de curta duração chegou a ter sua exibição obrigatória nos cinemas brasileiros, nos anos 70. O exibidor tinha que pagar 5% da bilheteria ao realizador do filme. Para fugir do custo, os próprios exibidores passaram a produzir curtas-metragens. Filmes de baixa qualidade, feitos só para cumprir a lei. Para quem ia ao cinema, o curta-metragem não passava de um filme chato. No final dos anos 80, surge o que se chamou de primavera dos curtas brasileiros. A produção cresce. A qualidade melhora. Mas, a exibição desses filmes ficou restrita a espaços alternativos e, depois, aos festivais. O Brasil se tornou um importante produtor e, em qualquer festival internacional, sempre tem um curta brasileiro. Para os cineastas, o curta-metragem é uma experimentação e um ponto de partida para um longa-metragem. Produzir não chega a ser um grande desafio. O mais difícil é o filme sair da lata e chegar às telas.
Paulo Markun: Como é que o pessoal de curta-metragem vai conseguir dar esse salto, que é raro e cada vez mais difícil, do curta para o longa, a partir de agora?
Jorge Furtado: [suspira] Olha, é difícil. O curta é sempre o começo e se tu consegue fazer um curta bacana, tu consegue, talvez, convencer alguém, a partir do teu trabalho, a investir no projeto de longa-metragem. Mas eu acho que o curta-metragem tem um valor em si, não é só uma etapa para o longa. Tu pode ter uma obra só de curtas também. Talvez o cinema seja a única forma de expressão onde a qualidade do trabalho é medida pelo tamanho, né? Ninguém compara um quadro do Picasso com o quadro do Pollock [Jackson Pollock, pintor norte-americano expressionista], "O Pollock é melhor, porque os quadros dele têm 2,20 metros", ninguém fala isso. Mas no cinema se fala isso.
Paulo Markun: Isso tem a ver com o fato de que isso era feito em película e custava uma nota. Hoje, com as câmeras digitais, tanto faz fazer dez minutos como uma hora.
Jorge Furtado: Hoje ficou muito mais simples tu fazer o teu primeiro curta, por causa das câmeras digitais, por causa da edição no computador e ficou fácil também exibir, porque a tela é um dos canais, mas existem muitos outros canais, como as televisões que passam curtas e, hoje, a internet. Pode-se ver qualquer curta praticamente na internet. No YouTube, tu bota lá o nome do filme e ele já está lá. Então, eu acho que essa demanda de curta-metragem é crescente. Talvez, mais do que a de longas. Tem muito curta sendo produzido. E o curta também, como ele não tem que tirar ninguém de casa, ninguém vai sair de casa para ver um curta, tu tem liberdade para experimentar totalmente e acaba produzindo filmes ousados, inovadores. Sempre tem curta bom. No Festival de Gramado, durante um tempo, só tinha curtas bons. Os longas eram chatíssimos, mas os curtas sempre foram bons. A produção de curtas sempre foi de qualidade. Mesmo nessa época onde os curtas eram chatos e tal, sempre tinha alguns bons. Eu me lembro do Couro de Gato, do Joaquim Pedro [1961, de Joaquim Pedro de Andrade] e Aruanda [1960, de Linduarte Noronha].
Ricardo Calil: Eu queria aproveitar esse gancho do curta. Alguns grandes cineastas, na história, estrearam já com obras-primas, como Orson Welles [norte-americano, (1915-1985)] com Cidadão Kane [1941], Rogério Sganzerla [brasileiro (1946-2004)] com O bandido da luz vermelha [1968]. E o teu primeiro filme, que você assinou sozinho, foi o Ilha das flores, que é considerado um marco do cinema brasileiro e não só de curtas. Um marco, ponto final. E, às vezes, eu converso com os meus colegas da crítica, depois de ver um longa seu e falo assim: "E aí, você gostou?" e eles falam: "Gostei muito, mas não é o Ilha das flores. Então, existe sempre essa expectativa de que você vai fazer um novo Ilha das flores. Eu queria perguntar para você o seguinte: você acha que esse ainda é o teu filme mais bem-sucedido artisticamente? E, de alguma forma, é um peso para você lidar com o legado do Ilha?
Jorge Furtado: Olha, é um pouco assim como "Ana Júlia" [música pop] para Los Hermanos [banda brasileira de rock], não é? [risos]. Aquela coisa que todo mundo pede e os caras não querem [tocar]. Mas, é que o cinema tem uma qualidade ótima, que é o fato de que um filme feito, continua feito. Eu recebi hoje dois e-mails, porque o Ilha está na internet. Hoje, eu recebi dois e-mails de pessoas que viram Ilha pela primeira vez. O filme continua sendo visto e quem não viu, veja. Tem em DVD. Então, eu acho que o risco que o artista corre é imitar a si mesmo. Na verdade, eu até acho que O homem que copiava, num certo sentido, é uma versão possível da estrutura ou da linha, da lógica do Ilha, que é a lógica do hipertexto. Uma coisa que se liga na outra, vai clicando na palavrinha azul e passa para o texto, como se fosse uma coisa em 3D, assim. E O homem que copiava é um pouco isso, porque o personagem principal do filme é quase um esquizofrênico, no limite, que relaciona as coisas de uma maneira meio estranha. Eu acho que um longa-metragem Ilha das flores seria insuportavelmente chato, uma hora e meia uma coisa leva à outra, dá para fazer a tarde inteira aquilo que você quiser, ficar ligando uma coisa na outra. Então, eu procuro não imitar a mim mesmo, fazer um filme muito diferente do outro. Esse meu último filme é muito diferente dos outros três, mais diferente de todos até, eu acho, mas os outros três também são diferentes. Eu tento fazer uma coisa que eu não fiz ainda. Agora, enfim, assim como [o cantor] Ivan Lins, pedem para ele tocar "Madalena", imagina, as pessoas falam "Ah, Ilha das flores." É só ver o filme, o filme tá lá.
Paulo Lima: Tem um filme sobre o qual a gente não falou aqui ainda, que eu, pessoalmente, gostei muito, que é o Houve uma vez dois verões [2002]. Nesse filme, você trabalha com atores estreantes, inclusive, o seu filho Pedro [Furtado]. E, agora, você trabalha com, como você mesmo disse, pelo menos na sua opinião, os melhores atores do Brasil. Eu tive a chance de ver Saneamento básico ontem, achei um filme interessante, mas, em alguns momentos eu vi a "Vani" [personagem da atriz Fernanda Torres na minissérie Os Normais, da Rede Globo. Fernanda Torres integra o elenco de Saneamento Básico, o filme] de Os Normais ali. E, de repente, o "Foguinho" [personagem de Lázaro Ramos, na novela global Cobras e Lagartos] pega o telefone no meio do filme e faz uma ligação meio malandra. A minha pergunta não é exatamente sobre um filme ou sobre outro, mas, o que é que se ganha trabalhando com atores amadores ou novatos e o que é que se ganha trabalhando com atores super consagrados como Wagner Moura, por exemplo?
Jorge Furtado: Olha, o que se ganha trabalhando com atores desconhecidos do público é uma força do personagem. Quando tu vê um filme iraniano, tu não conhece ninguém, tu acredita que aquelas pessoas são aqueles personagens, talvez no Irã as pessoas não sejam famosos da novela. Mas, a gente vê e acha de verdade, porque tu nunca viu aquele cara em outro lugar. Mas, se ganha com atores experientes, como são os do Saneamento, eles trazem para o filme a sua técnica, sua bagagem emocional, suas idéias, sua maneira de fazer. Essa questão de ver a "Vani", ver o "Foguinho" ou ver a "Bebel" [personagem da atriz Camila Pitanga na novela global Paraíso Tropical, em 2007] é porque eles são muito conhecidos e leva um tempo, às vezes, para tu te desligar do personagem que está no ar. Mas, eu garanto para vocês e para todos que acham isso, que esse filme, um filme como Saneamento só é possível com bons atores comediantes. Se eu pegasse atores inexperientes, o filme seria um desastre total. Porque não é isso, ali é cena de comédia como o Walter Matthau e Jack Lemmon. Eles têm repertório de gesto, de cena. Claro que, enfim, eles usam nas outras coisas também, mas tu ganha a técnica do ator. E é uma minoria que pensa "eu quero ver atores desconhecidos". A maioria do público gosta de ver de novo os atores conhecidos. Eu também, como público de cinema, vejo todos os filmes do Marcelo Mastroianni [ator italiano], o Fellini filmou com ele 20 vezes e eu sempre vejo de novo e abstraio. Não fico pensando "ele é o mesmo do outro filme".
Hugo Sukman: Jorge, a ficção que você inventou para esse atores, com esses atores, eles discutem questões suas e deles, que é fazer cinema.
Jorge Furtado: Sim.
Hugo Sukman: Que é, enfim... para que isso...
Jorge Furtado: Para que serve isso.
Hugo Sukman: Eu tive a nítida impressão, eu não concordo com nenhuma das opiniões, achei todas muito interessantes, mas não concordo com nenhuma delas. O que me incomodou um pouquinho vendo o filme, foi que parecia vocês discutindo entre vocês, satirizando vocês mesmos, não é?
Jorge Furtado: [interrompendo] Eu acho que nesse caso, assim, quer dizer, enfim...
Hugo Sukman: Essa questão...
Jorge Furtado: Sim, termine.
Hugo Sukman: Como o seu filme vai ser visto por 200, 300 mil pessoas, que são as 200, 300 mil pessoas interessadas nesse assunto, você não vê a contradição no tipo de cinema popular, que você persegue, da comédia dos grandes atores?
Jorge Furtado: Essa era a minha grande dúvida em relação ao assunto do Saneamento básico.Será que vai interessar para o público não interessado em cinema, como se faz cinema, duas pessoas discutindo a rubrica de uma cena? Se assusta ou não assusta, como vai filmar o aroma das corticeiras, como é que vai transformar isso em cinema? Essa era a minha grande dúvida, eu acabei com ela na estréia do filme. Porque em todas as sessões que eu fui - e tive em várias pré-estréias, em vários lugares - as pessoas riem muito disso porque elas não são cineastas, não são pessoas que fazem cinema. Não são os cineastas refletindo sobre o fazer cinema. São pessoas que nunca pensaram na vida em fazer um filme. Pela primeira vez pegam uma câmera e vão, o público vai junto, acompanha: "ah, realmente, como é que o cara vai fazer?". Então, são amadores, não é um cinema sobre si mesmo. É sobre si mesmo, mas com os personagens comuns, gente absolutamente comum fazendo um filme.
Ricardo Calil: Jorge, eu queria emendar na pergunta do Sukman, que eu tenho uma visão diferente também. A minha preocupação era um pouco ao contrário. Se você, ao apontar certos problemas, certas deficiências do cinema brasileiro, com leveza, mas também com uma certa acidez, você não poderia estar se colocando numa situação de distância, de afastamento em relação a esses problemas? Você teve essa preocupação ao fazer o roteiro?
Jorge Furtado: Eu tive... acho que tive. Eu pensei, claro, tem muitas coisas ali que são, são... o meu dia-a-dia é pensar o como se escreve roteiro, como vai filmar, como vai tornar visível uma coisa. Tem coisa ali que é do começo do cinema, como do meu cinema, como é que vai fazer a fumaça, o figurino, como é que filma. Então, eu pensei nisso, mas eu acho que eu estou bem, eu acho que o cinema tem que ser meio sobre ti mesmo. O meu primeiro público sou eu e tem que ser uma coisa que me interesse. Eu não falo dos outros, eu não estou fazendo filme sobre outras pessoas, estou fazendo um filme sobre mim mesmo.
Esther Hamburger: Qual a diferença entre fazer televisão e fazer cinema, nesse sentido?
Jorge Furtado: Não... não há muita diferença. Eu acho que quando a gente fez o Cena Aberta [programa semanal da Rede Globo, exibido em 2003, apresentado pela atriz Regina Casé. O programa foi produzido em parceria com a Casa de Cinema de Porto Alegre, e trazia uma adaptação de obra literária a cada episódio], por exemplo, às vezes, eu sentia que a gente estava fazendo, na televisão, um negócio muito sofisticado, porque eu concordo com essa história de que o Brasil já tem a sua necessidade de dramaturgia muito suprida pela televisão. Nós temos uma televisão poderosa, fazendo ficção todo o tempo. Mas, é uma ficção muito... sempre o mesmo assunto, né? O folhetim, quem vai casar com quem, a ascensão social pelo casamento, quem é filho de quem, esse tipo de assunto, que é do folhetim. Então, na televisão, eu tento fazer, junto com muita gente, uma televisão muito diferente do normal. O pensar novas linguagens, novas possibilidades de dramaturgia, fugindo do folhetim.
Paulo Markun: Mas isso não acaba sendo...
Jorge Furtado: Mas, no cinema eu tento fazer uma coisa mais popular... Não é o mais popular possível, mas um cinema popular, que inclua o público, que leve para o cinema o público.
Paulo Markun: Mas, no caso da televisão, essas experiências de dramaturgia, de minisséries e até mesmo de programas alternativos, nós estamos falando normalmente de programas feitos pela TV Globo, com todo o seu poderio, nem sempre se transformam no futuro em linguagens da dramaturgia tradicional. Quero dizer, a novela, principalmente...
Jorge Furtado: É, a novela tem um formato muito próprio. Mas, eu acho que quando o Guel [Arraes, diretor] fez o TV Pirata [programa humorístico exibido pela Rede Globo entre 1988 e 1992], por exemplo, ele rompeu com um tipo de humor que se fazia na televisão, que vinha do rádio.
Esther Hamburger: Por que a gente não tem Armação ilimitada [seriado voltado para o público adolescente, exibido pela Rede Globo entre 1985 e 1988, sobre aventura, esportes e temas típicos do Rio de Janeiro] mais? Não tem nada do tipo Armação ilimitada?
Jorge Furtado: Por que não tem? Não sei.
[risos]
Paulo Lima: Jorge, agora, a gente estava falando aqui de cinema e TV Globo...
Jorge Furtado: [interrompendo] Só para terminar uma coisinha aqui do Paulo, eu acho que o Comédias da vida privada [programa semanal exibido pela Rede Globo em 1995, baseado em crônicas do escritor Luís Fernando Veríssimo], acaba sendo um pouco incorporado pelos atores. A televisão se recicla, a [TV] Globo é uma grande indústria e, como toda a grande indústria, precisa ter um departamento de pesquisa, que faça as coisas que vão ser no futuro.
Paulo Lima: Pois é, pegando o gancho nisso aí, quer dizer, você está falando que a Globo é uma grande indústria, de fato é. E a gente, quando fala de dramaturgia na televisão ou dos atores que você contratou agora ou chamou para fazer o filme, imediatamente, se remete à [TV] Globo. Eu queria saber como você está vendo a ascensão da TV Record, inclusive, com uma dramaturgia interessante, copiada ou não, baseada ou não na da [TV] Globo, mas que tem criado ali uma concorrente a essa indústria? Dizem que para a indústria é sempre bom a concorrência, não é?
Jorge Furtado: Eu acho, como trabalhador da área, eu acho sempre a concorrência boa, né? Agora, para te falar bem a verdade, eu não estou vendo, eu não sei exatamente o que a Record está fazendo, são novelas?
Paulo Lima: São, são novelas.
Jorge Furtado: Eu não sei.
Paulo Lima: Inclusive, contratou boa parte da [equipe] técnica da [TV] Globo.
Jorge Furtado: Ah, sim.
Paulo Lima: O que causou um certo pânico ali num determinado momento dentro da [TV] Globo, porque os técnicos, o pessoal de som, câmeras, etc, foram para um prédio ali perto do Projac [Projeto Jacarepaguá, centro de produção da Rede Globo], fazer as novelas da [TV] Record.
Jorge Furtado: Eu acho que a concorrência é sempre boa.
Ricardo Elias: Jorge, a gente está falando de televisão. Você, como diretor de cinema, em primeiro lugar, o que a televisão contribuiu para você, como diretor de longa-metragem? O que você acha que trouxe da televisão que você usa num set de cinema e o que você vê normalmente? Você vê televisão? O que você acha da televisão que está sendo feita no país, hoje em dia?
Jorge Furtado: Olha, eu vejo jogos do Grêmio, normalmente. [risos]
Paulo Lima: Não vê a [TV] Record.
Jorge Furtado: Não, a [TV] Record, não sei nem o número. Eu vejo notícias e esportes. Eu vejo, uso muito a TV para ver filme em DVD. Agora, o que eu trouxe, o que eu aprendi na televisão, muitíssimo. Porque o diretor de cinema tem um problema, ele experimenta muito pouco, pratica muito pouco porque tu vai fazer um longa-metragem a cada três anos, vai dirigir atores a cada três anos, tu vai montar a cada três anos, vai escrever roteiros, é muito longo. Então, tu tem que exercitar mais. E a televisão é um exercício constante. Eu aprendi muito de dramaturgia, de marcação de cena, movimento dos atores, porque assim... eu não vim do teatro, eu não fiz, nunca fiz teatro, então, essa questão de posição dos atores, marcar a cena, eu aprendi isso fazendo televisão. E eu fiz quase 100 roteiros, que viraram programas, filmes e coisas. Então, o fato de tu escrever e ver depois feito, tu aprende na prática, o cinema tem uma coisa muito cruel que quem escreve, quem pinta, bota um monte de coisa fora. Mas, quem faz cinema não, "não gostei desse meu longa, não vou mostrar", não existe isso. Então, tudo o que tu faz é público. Todas as suas experimentações, todos os teus erros, todo mundo vai ver. Então, a televisão te possibilita aprender com a experiência, a produção constante, rápida, com recursos na mão e com um público gigantesco. Eu acho uma certa nobreza elitista do cineasta dizer "não, eu só faço cinema". Cinema é caro, pouca gente vai. A imensa maioria da população brasileira não tem acesso a outro tipo de dramaturgia que não seja da televisão, eles merecem qualidade, que tu tem que estar lá fazendo também, não pode entregar a televisão para o folhetim e para a baixaria só. Então, tu tem que estar lá dentro fazendo qualidade, lutando contra tudo. Porque, tu compra um programa, um filme americano por 30 mil e tu vai produzir um negócio que custa 400 mil, 500 mil. Então, convencer um produtor sobre "esse ator brasileiro, tem que ser dramaturgia brasileira" não é fácil. É mais fácil comprar novela mexicana e colocar no ar, é mais barato. E na relação custo-benefício por Ibope, o cara dá 20 com uma novela mexicana e custa uma merreca, ou 40 com uma novela caríssima, minissérie. Então, é importante manter um espaço de qualidade dentro da televisão.
Paulo Markun: Jorge, vamos fazer mais um rápido intervalo. A gente volta em seguida com o Roda Viva, que também é acompanhado na platéia hoje por José Luiz Pedro, presidente da diretoria do Foto Cine Clube Bandeirante, Paulinho Caruso, cineasta e Fernando Lopes, fotógrafo social. A gente volta já, já.
[intervalo]
Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva que entrevista, esta noite - num programa gravado, portanto, não permite a participação direta do telespectador - Jorge Furtado, diretor e roteirista de cinema e televisão. Ele é integrante de um grupo gaúcho de cineastas que se reuniu e criou, no Rio Grande do Sul, um dos mais importantes pólos de produção audiovisual do país.
[Comentarista]: Porto Alegre, 1987. Onze cineastas gaúchos, incluindo Jorge Furtado, criam a Casa de Cinema, uma cooperativa e um espaço comum para organizar a produção e a distribuição de filmes do grupo. A partir de 1991, a Casa de Cinema se tornou uma produtora independente, ainda voltada para a difusão dos filmes produzidos pelo grupo original, mas, se abrindo também a outros trabalhos. Além das dezenas de filmes, vídeos, comerciais, programas e séries especiais de televisão, ofereceu cursos de roteiro e realização cinematográfica, fóruns de debates e programas eleitorais para a TV. O site da Casa Cine POA, na internet, além do histórico, traz relações de filmes e projetos realizados e faz conexões para dezenas de outros sites dedicados ao cinema, produtoras, associações e entidades cinematográficas do Brasil e do exterior, banco de dados sobre filmes, festivais, páginas pessoais de diretores e até links que permitem baixar curtas-metragens para o vídeo do computador.
Paulo Markun: Jorge, a pergunta é de alguém que, digamos, respeita o trabalho que vocês fazem lá. Você acha que uma organização do mesmo gênero poderia existir em outro estado, que não o Rio Grande do Sul?
Jorge Furtado: Talvez na Bahia, não é? São estados que têm uma cultura muito forte e o Rio Grande do Sul e a Bahia têm essa característica. Já falei muito em Minas [Gerais], quando eu vou à Minas, de fazer coisas parecidas lá, mas o pessoal diz: "Não, em Minas, o pessoal não quer ver filme mineiro". No Rio Grande do Sul tem uma cultura muito forte, eles gostam de ver filmes gaúchos, bandas gaúchas, autores gaúchos.
Paulo Markun: Agora, o fato de vocês terem tido participação na campanha política do PT e o PT ter governado o Rio Grande do Sul por tanto tempo, tem alguma ligação uma coisa com a outra?
Jorge Furtado: Não, nenhuma, a gente começou a fazer campanhas, éramos oposição e fizemos cinco campanhas eleitorais. Três para a Prefeitura e duas para o governo do Estado. Ganhamos quatro e perdemos uma. Mas não tem relação nenhuma, porque a gente fazia cinema muito antes disso e continua fazendo depois. Acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Roberto Sadovski: É...você falou que vocês não conseguiram captar o orçamento de Saneamento básico. Foram poucos recursos. Você acha que o cinema brasileiro está muito caro para fazer hoje? Um filme hoje está muito caro? Porque eu vejo o filme como O cheiro do ralo [2007], que custou trezentos milhões.
Jorge Furtado: Não, trezentos mil.
Roberto Sadovski: Trezentos mil, desculpa! E projetos que foram aprovados para captação de quatro, cinco milhões. Você pensa "Onde diabos vai esse dinheiro todo?". Você acha que cinema está muito caro fazer no Brasil?
Jorge Furtado: Eu imagino que O cheiro do ralo tenha custado tão barato porque as pessoas não receberam para fazer, são sócias do filme.
Roberto Sadovski: Sim, foi um risco.
Jorge Furtado: Imagina, é... agora, o cinema é caríssimo. É tudo caro, o equipamento, o negativo, revelação, as cópias são... O cinema é um negócio muito primitivo, aquelas cópias pesam toneladas, negativo. É uma equipe muito grande. Para ser mais barato, tu tenta concentrar em pouco tempo, mas é uma equipe de mais de 100 pessoas durante dois meses. Então, o cinema é caro. O cinema brasileiro, acho que está na média de preço. O cinema argentino é um pouco mais barato que o nosso. O problema é que ele não se paga, né? Essa que é a questão.
Roberto Sadovski: Como você vê essa relação com os filmes que são aprovados para captar recursos? Como você vê esses critérios, quem tem mais chance de conseguir, por exemplo?
Jorge Furtado: Pois é, atualmente o cinema é financiado por concursos públicos, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], a Petrobras, que, na minha opinião, é a maneira certa de se destinar a verba pública, através de concurso público. Quando a gente começou a fazer cinema, a nossa implicância era com o fato de que o dinheiro era: "estou com o projeto aqui, está aqui o dinheiro", sem transparência nenhuma. Então, o que a gente exigia, desde os anos 80, é o que está sendo feito, desde então. São concursos públicos com o júri de seleção, tu apresenta o projeto. Os critérios variam de júri para júri, mas levam em conta o projeto em si, cada um dos projetos, e o currículo das pessoas. Agora, essa questão, o cinema fica muito acuado, mas eu vejo muitas vezes os jornais falando sobre o fato de que o cinema brasileiro é subsidiado, vive de incentivos fiscais, mas os jornais vivem de incentivos fiscais. Os jornais não existiriam sem os incentivos fiscais. Os jornais não pagam impostos. Quer dizer, se valem da mesma Lei, da Constituição, art. 157 da Constituição, que as igrejas e os jornais não pagam impostos, o papel não paga imposto, a fotografia, o papel fotográfico, nada. Isso faz sentido? Acho que sim. Acho que faz sentido sim. Esse artigo foi incluído na Constituição pelo Jorge Amado [(1912-2001), escritor baiano de fama internacional, autor de Capitães de areia e Gabriela, cravo e canela, entre tantos outros, foi também deputado pelo Partido Comunista Brasileiro], em 1946. Ele tinha medo que o [presidente] Getúlio [Vargas] usasse os impostos para sufocar a imprensa, então criou a lei, era proibido criar impostos para a imprensa. Isso era só para o papel, em 1988 virou geral. Por que o Estado faz isso? Porque uma imprensa forte, livre e plural é fundamental para a existência do Estado. Mais importante, na minha opinião, do que a existência do próprio governo, é uma imprensa forte. Então, o Estado chega à conclusão "nós precisamos ter jornais". E, por isso, não vamos cobrar impostos para os jornais. A mesma coisa para o cinema.
Paulo Markun: A propósito, temos uma pergunta de Leon Cakoff [idealizador e produtor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo], exatamente sobre a questão dos incentivos fiscais. Vamos ver!
[VT com Leon Cakoff]: Quero registrar primeiro minha grande admiração pela Casa de Cinema de Porto Alegre. O trabalho que a sua turma faz lá, com repercussão nacional e internacional, é feito sem perder as suas características regionais. Parabéns, Jorge Furtado! Agora, Jorge, queria a tua opinião sobre um fato que eu acho perverso nessa cadeia de produção de cinema no Brasil. Graças a leis de incentivo fiscal, parte dos impostos que iriam para o governo, são canalizados para se fazer cinema no Brasil. Isso faz com que produtores, técnicos, artistas, enfim, não corram riscos, muito menos os distribuidores, que também não correm riscos, graças a outras leis de renúncia fiscal. Agora, nesse processo todo, o risco é só dos exibidores, que são obrigados a exibir filmes brasileiros. Jorge, você não acha que esse risco deveria ser mais distribuído em toda a cadeia do cinema brasileiro?
Jorge Furtado: Acho, concordo. Acho que esse é um grave problema. Todas essas leis de incentivo foram criadas com a idéia: "Vamos incentivar o cinema para que ele, depois, se torne auto-sustentável". Mas ele não se tornou auto-sustentável. Quanto tempo tem a Lei do Audiovisual já?
[...]: Quinze anos.
Jorge Furtado: Quinze anos já e ela não... e não só isso, acho que este ano vai cair mais o público ainda. E a gente tem um investimento em torno de 300 milhões em produção de cinema e um público que, talvez, chegue a seis, sete milhões e olhe lá! Então, é muito dinheiro investido para pouco retorno de público. Talvez fosse melhor comprar ingressos, não é?
Hugo Sukman: Mas essa lógica do patrocínio associada com nenhum risco que o produtor corre, não inibe a criação, de uma certa maneira? Quer dizer, eu conheço...
Jorge Furtado: Essa lógica...
Hugo Sukman: Evidente que não é o seu caso, tem diretores que são constantemente fracassos de público e de crítica e que continuam filmando, às vezes, filmes cada vez mais caros. É uma lógica inversa, lógica pervertida, digamos assim.
Jorge Furtado: Isso é complicado porque se gente pensar que só tem que se fazer filme de mercado...esquece essa de que o governo não deve investir em cinema, vamos fazer filme de mercado que se paguem. Imaginem os filmes que vão sobreviver? Pensem quais são os filmes que vão ser feitos. O que vai ser feito é um tipo de cinema, que é um cinema do testado, do já visto. Isso dá certo, vamos nessa! Não vai ter experimentação alguma. Agora, se tu chegar, ao mesmo tempo, e disser assim: "não, não, esqueçam o mercado do filme". Aí vira um mercenato, o cara é cineasta por direito divino, entendeu? "Eu faço filme que ninguém vai ver, não me importo com o público, faço o filme para mim mesmo e quero o dinheiro público para fazer isso".
José Geraldo Couto: Tem muita gente que preconiza isso também.
Jorge Furtado: Tem gente que preconiza as duas coisas. Assim, o que eu penso é que a gente precisa buscar qualidade e público, ao mesmo tempo. Esse é um desafio. Não é o desafio dos anos 60, que era chocar o público. A arte precisa chocar. Não é o desafio também de fazer uma coisa, um negócio que dê muito dinheiro. É fazer uma coisa que seja, ao mesmo tempo, de qualidade e popular. Essa é a...
[...]: Um desafio.
Jorge Furtado: Um desafio.
Esther Hamburger: Quando você fala... eu concordo plenamente com você e eu acho que a gente tem muitos exemplos que demonstram que é possível, que é possível fazer quantidade com qualidade na televisão e é possível fazer quantidade com qualidade no cinema. Você falando sobre as duas coisas, eu sinto você mais empolgado com a televisão do que com o cinema em todas as suas respostas aqui. [risos] Então, por que fazer cinema?
Jorge Furtado: É, talvez, talvez. Sabe por que o cinema? Por que a empolgação com o cinema? Por que eu continuo insistindo, empolgado com o cinema? Não sei por quanto tempo, mas, por um tempo ainda. Porque o cinema tem um público muito atento, a televisão são quarenta milhões de desatentos. Tu vê, assim, escreve um negócio, fica meses escrevendo, o cara diz assim: "Ah, vi ontem o teu programa. Eu perdi o começo, não vi o primeiro bloco, mas estava bacana" [risos].
[...]: Estava comendo um sanduíche na cozinha.
Jorge Furtado: É. Um negócio... A televisão é meio um rádio, as pessoas ouvem, ficam de costas ali. E o cinema não, o cinema é uma atenção total. Então, para quem escreve, para quem fica ali três anos fazendo o negócio, saber que está todo mundo prestando atenção e tal, o cinema é muito cativante por isso. Muito sedutor por isso. A tela, a sala escura, a tela grande. E outra coisa também, eu falei da tela grande e da sala escura, eu até pensei em uma outra coisa que é o fato de ser uma coisa compartilhada com outras pessoas. Eu estou vendo um filme cercado de desconhecidos. É uma experiência pública, assim, as pessoas riem. Eu vejo eles rindo. É uma atividade, um ritual, sair de casa, ir ao cinema. Se perdermos isso, vai sobrar o quê?
Hugo Sukman: Só para voltar no assunto que você está falando, nos anos 60, os filmes se pagavam, quer dizer, ainda existia uma lógica de mercado. Macunaíma foi um grande sucesso e se pagou. Bandido da luz vermelha, filmes que chocavam, filmes que inventavam e se pagavam. O que eu te perguntei foi essa lógica um pouco encastelada, entende? Blindada, digamos.
Jorge Furtado: É, eu acho que a realidade mudou muitíssimo de lá para cá, assim. Quando Dona Flor fez 13 milhões ou 14 milhões, o ingresso custava cinqüenta centavos de dólar. Hoje, custa cinco dólares. O cinema era o cinema de rua, as pessoas, era outra lógica. Agora é shopping. Não tinha esses blockbusters tomando 80% das salas, ao mesmo tempo, mega lançamentos com 500 cópias. A lógica mudou bastante. Agora, realmente, não tenho uma resposta para te dizer. Eu estou totalmente na dúvida do que fazer depois de amanhã. O ano passado a gente teve 70 filmes e 60 fizeram menos de 100 mil espectadores, 50 fizeram menos de 50 mil espectadores.
Esther Hamburger: E a televisão também está numa crise. Porque você não tem coisas tão estimulantes, como você já teve.
Jorge Furtado: É, a televisão eu acho que se mantém, o Ibope mantém alto, não sei, acho que sim, ou não.
Esther Hamburger: Sim, mas, estou falando em termos dramatúrgicos.
[...]: De qualidade.
Esther Hamburger: De qualidade, criativos.
Jorge Furtado: Sempre tem, sempre tem coisas boas acontecendo.
Esther Hamburger: Mas é uma coisa mais episódica.
Jorge Furtado: Mais episódica, talvez.
Esther Hamburger: Não tem mais... por que isso?
Jorge Furtado: Não sei. Talvez porque tem outras alternativas para a gente. O cinema, ele tinha uma coisa que era ou tu vê no cinema ou tu não vê. Quem nasceu depois do vídeo-cassete não sabe o que é isso. Mas, a gente ia ver uma sessão em Porto Alegre, no cinema Bristol, que era a sessão "maldita", era o último dia antes de o filme ser queimado. Ia ser queimado na segunda-feira. Então, no sábado, a gente ia para a sessão e via vários filmes. Era assim, segunda-feira vão queimar o filme. Então, preciso assistir o filme, senão nunca mais vou ver. Agora, pensa: "não, vai sair em DVD. depois eu vejo no Youtube, vai passar na TV". Não tem o sentido de urgência que tinha o cinema que tinha antes. Então, isso também mudou e vai mudar mais ainda quando a TV ficar digital e tu puder baixar o filme que tu quiser, a hora que tu quiser, montar programações. O que já está acontecendo no Youtube, na internet. Todos os sites que tu baixa filme, vê filme a hora que tu quer. Então, isso mudou muito, mudou tudo.
Roberto Sadovski: Como é que o curta-metragista vai pagar as contas, se todo mundo baixa?
Jorge Furtado: Do mesmo jeito que sempre pagou, não sei como. [risos]
Ricardo Calil: Você, no cinema brasileiro, você é o grande cronista do "jeitinho brasileiro", não é? Na minha opinião, quer dizer, em todos os teus filmes existe um personagem importante, que tem um comportamento desviante, que não chega a ser um mau-caratismo, mas ele tem algum truque para se dar bem, relacionado, em geral, à dinheiro, não é? No Houve uma vez dois verões é uma garota que finge que está grávida. No O Homem que copiava é um sujeito que copia notas de dinheiro. No Meu tio [matou um cara] é um garoto que inventa uma história para impressionar uma garota e no Saneamento básico é uma turma que pega um dinheiro que é para cinema, mas que quer construir uma fossa sanitária. Para você é um processo racional essa tentativa de radiografar um certo espírito brasileiro, ou você percebe esse conjunto da obra depois que ela está pronta?
Jorge Furtado: Olha, eu percebo o conjunto da obra depois que ela está pronta, é verdade. Eu não tinha me dado conta disso, até ler uma crítica no Cahiers du Cinema [revista francesa de cinema], no ano passado, que dizia exatamente isso que tu está dizendo. Houve uma mostra de filmes em Paris, com todos os longas juntos. As pessoas diziam que os meus filmes não falavam do Brasil, mas falam muito do Brasil e, falava exatamente isso [a crítica], a questão do "jeitinho". Enfim, eu não tenho simpatia por heróis, meus filmes não têm esse herói virtuoso, eles são heróis românticos. E eu acho que o Brasil tem essa coisa. Os filmes policiais não dão certo aqui, meio por isso. A gente não acredita em entregar alguém para a polícia, isso aí é uma sacanagem, ninguém faz isso. Então, essa idéia de que a "lei não foi idéia minha", ela está meio... vai desde o "jeitinho" que faz sentido, até a sacanagem mais grosseira e a roubalheira desenfreada. Então, o limite entre essas coisas é a questão ética. Eu acho que pegar o dinheiro que era para fazer um filme e usar esse dinheiro para fazer uma fossa faz sentido, eles têm razão em fazer isso, entende? Agora, usar o dinheiro da merenda escolar não. O quanto tu vai aceitar da lei... tem aquela coisa, a lei não "pega". Essa lei de usar cinto de segurança, em muitos lugares não pegou. No Brasil tem essa coisa que, por um lado é ruim e por um lado, faz sentido. Mas eu nunca tinha me dado conta disso até alguém me dizer.
Paulo Markun: Jorge, nós vamos fazer mais um rápido intervalo lembrando que a entrevista de hoje também é acompanhada em nossa platéia por Raul Feitosa, foto-repórter e diretor de intercâmbio nacional e internacional do Foto Cine Clube Bandeirante, Leonardo Bello, cineasta e Renata Figueira, aluna do curso de cinema da FAAP. A gente volta já.
[intervalo]
Paulo Markun: Voltamos para o último bloco do Roda Viva, que hoje entrevista o diretor e roteirista de cinema Jorge Furtado. Jorge, o cineasta Allan Fresnot tem uma questão sobre filmes médios, vamos ver.
[VT com Allan Fresnot]: Jorge, eu queria saber sua opinião sobre a dificuldade da nossa profissão. Nós passamos três, quatro anos para montar um filme, para fazer um empreendimento de um filme. Esse filme, os exibidores não morrem de amores por ele, temos dificuldade um pouco na distribuição. Eu queria saber o que é que você acha que a gente deve fazer para conseguir melhorar as condições de produção, principalmente, dos filmes médios?
Jorge Furtado: A pergunta é ótima. Eu acho que a gente tem que fazer bons filmes médios, filmes não muito caros, mas citando o próprio filme do Allan, Desmundo [2003], que é um filme que eu gosto muito, uma reconstrução de época muito bem feita e merecia um público maior do que teve, se tivesse mais divulgação, talvez. Porque também tem isso, a gente está competindo com... eu entrei num shopping aqui em São Paulo, estava passando Saneamento básico, Transformers, Harry Potter, Shrek, os únicos seres humanos em cartaz eram os nossos, o resto, tudo era monstro. [risos] E rato, tinha um rato também. E esses objetos, personagens, esses filmes, estão nos biscoitos, nos chinelos, em tudo. Então tu não consegue, a pessoa não fica nem sabendo que teu filme existe. Então, divulgar, você conseguir uma divulgação maior para os filmes, e qualidade. Eu acho que o cinema brasileiro vai sobreviver se as pessoas quiserem vê-lo. Nós não podemos obrigar as pessoas, "não, tem que sair de casa para ver, tem que se interessar por ver". E os cineastas têm que pensar nisso também, no público, não é?
Ricardo Elias: Você é a favor da cota de tela?
Jorge Furtado: Eu sou totalmente a favor, totalmente. Se nós não tivermos a cota de tela, o cinema desaparece.
Paulo Markun: Explica o que é a cota de tela?
Jorge Furtado: Cota de tela é o número, a obrigatoriedade de cada sala exibir tantos dias, que eu não sei atualmente quanto é, 28, não sei quantos dias são.
Ricardo Elias: Hoje é de 28... não tenho certeza também.
Jorge Furtado: É, uma coisa assim, de filmes brasileiros. Porque se não fizer isso, lembrem-se que a gente está fazendo Saneamento básico, custou um milhão e poucos de dólares, está competindo com um filme que custou 400 milhões de dólares, mas o preço do ingresso é o mesmo, os mesmos dez reais. A não ser que a gente decida "vamos deixar que o cinema americano tome conta de tudo".
Ricardo Elias: Isso já aconteceu.
Jorge Furtado: Já está acontecendo, em parte. Já voltou, mas existe a cota de tela. Quando se criou a União Européia, a grande questão da França era "nós temos o nosso cinema". A Espanha, Alemanha, todos têm, senão tu vai ser completamente destruído. É a mesma coisa da reserva de mercado também da imprensa. A televisão tem que ser de um proprietário brasileiro porque senão ela acaba totalmente. Então, tu tem que te proteger. Isso é uma lógica de Estado, tem que pensar. Eu sou a favor. Ligando com o que o Allan falou e respondendo um pouco também a pergunta do Cakoff, os exibidores são a parte frágil, porque se o cara corre risco... A gente diz "Não, tem que exibir, tem que exibir o filme". Mas, o cara diz assim: "Bom, mas eu não posso exibir um filme que tem cinco pessoas na sala. O cara tem que pagar o meu cinema". Ele não está sendo subvencionado pelo Estado, o exibidor. E eu vejo os exibidores se queixando e com bastante razão: "o cineasta brasileiro está pouco se "lixando" se o filme dele vai ter público ou não, mas eu tenho que ter público na sala". Então, a gente tem que fazer filme que tenha público. Essa lógica: filmes de qualidade, com público. Essa aí é a equação que a gente tem que enfrentar.
José Geraldo Couto: Agora, Jorge, voltando ao seu cinema, você sempre privilegiou nas suas entrevistas, nas coisas que você escreve, você dá a impressão de sempre privilegiar muito a escrita, o roteiro, o momento do roteiro. E vendo os seus filmes, a gente vê que outro momento que é bastante privilegiado é o da montagem. E fica parecendo que o momento da filmagem, para você, é quase que um mal necessário, uma coisa que você não tem especial prazer, não é ali que você aplica seu maior empenho, sua maior criatividade. Queria que você falasse um pouco disso, se é verdade isso.
Jorge Furtado: Eu gosto muito do roteiro, mas eu tenho aprendido a me divertir com a filmagem. Eu achava que o filme, depois do roteiro, só piorava. [risos]. "O roteiro está perfeito, agora vai chover, o cachorro vai latir, o ator vai se atrasar...".
Ricardo Elias: Quando você não dirige, também acha isso? Quando faz só roteiros, também acha isso?
Jorge Furtado: Não, às vezes eu me surpreendo que o diretor resolve uma coisa que eu não tinha resolvido, enfim. Mas, eu aprendi mais a descobrir que os atores melhoram, às vezes, a tua cena. E muitas vezes isso acontece. Às vezes, o fotógrafo resolve uma coisa. Então, o cinema é um trabalho de equipe e eu aprendi... Agora, a montagem, depois de passado o furacão, que a filmagem é meio um furacão, são dois meses que tu trabalha 14 horas por dia, tentando cumprir um cronograma. Aí tu senta e diz "bom, agora eu vou com calma, tranqüilo, posso pensar de novo".
José Geraldo Couto: É que alguns filmes teus, eles se resolvem mesmo, são concebidos já para serem criados mesmo na montagem, não é? O caso do Ilha das flores, do O Homem que copiava.
Jorge Furtado: Não, não.
José Geraldo Couto: São filmes que sem a montagem...
Jorge Furtado: Não, absoluto...
José Geraldo Couto: Eles não existiriam.
Jorge Furtado: Não, nenhum filme existiria sem a montagem.
José Geraldo Couto: Sem a montagem, tal como ela é feita, eles seriam outra coisa completamente...
Jorge Furtado: Não, não é verdade.
José Geraldo Couto: Não contam só a história, é isso que eu quero dizer.
Jorge Furtado: Não, o roteiro do Ilha e o roteiro de O Homem que copiava, a montagem muitíssimo fiel, está tudo pensado. No caso do Ilha, plano por plano, decupado plano a plano. A montagem do Giba é maravilhosa. Ele resolve muita coisa, mas segue uma coisa, depois que eu filmei e agora eu vou ver como é que eu vou resolver isso aqui, isso tudo está pensado.
José Geraldo Couto: Não pensei na operação técnica da montagem.
Jorge Furtado: Ah, sim!
José Geraldo Couto: Pensei na montagem enquanto concepção.
Jorge Furtado: Ah, na montagem enquanto concepção!
José Geraldo Couto: Na hora do roteiro você já pensou numa montagem que daria sentido para aquele material?
Jorge Furtado: Essa idéia de que uma coisa junta com outra, cria uma terceira, eu acredito nela totalmente. Agora, acho que há cinema de todo gênero. Agora, com a morte de dois grandes cineastas, o Bergman e o Antonioni no mesmo dia, uma coincidência que, desde que o Shakespeare [William Shakespeare (1564-1616) considerado o maior dramaturgo inglês e um dos maiores nomes da dramaturgia mundial, autor de Romeu e Julieta] e o Cervantes [Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), escritor espanhol, autor do clássico da literatura mundial Dom Quixote] morreram na mesma data, não acontecia um negócio tão triste, no mesmo dia. Eu fiquei pensando que um livro do filme do Antonioni não tem nenhum sentido. Não tem um livro "A noite, o livro" [refere-se ao filme A Noite - 1961]. Não existe, não é?
José Geraldo Couto: Exatamente.
Jorge Furtado: Mas o Bergman tem grandes livros, não é? O ovo da serpente [1977] é um grande livro, Cenas de um casamento sueco [1974] é um grande livro. São dois grandes cineastas, um da palavra, do texto escrito, e o outro isso, só da imagem. Então, eu acho que há cinema de todo o tipo. Meus filmes são bem diferentes um do outro também. Gosto de experimentar.
Hugo Sukman: Jorge, estava falando de cota de tela, eu lembrei das cotas raciais e lembrei que talvez você seja o único cineasta brasileiro que use atores negros em papéis que não são...
Jorge Furtado: Pensei em vender, inclusive, a minha cota. [risos]
Hugo Sukman: Que não são obviamente papéis...
[...]: Subalternos.
Hugo Sukman: ...destinados a atores negros. Isso é uma grande queixa dos próprios atores. Quer dizer, isso foi muito comentado nos seus filmes, o que você pensa disso?
Ricardo Elias: Só para avisar, tem poucos filmes no cinema brasileiro - tem estudos sobre isso - que não usam os estereótipos normalmente associados à figura do negro no audiovisual, que é sambista...
Jorge Furtado: Escravo...
Ricardo Elias: Jogador de futebol, escravo e favelado. E você tem três filmes, os três últimos filmes seus têm protagonistas negros e o negro da classe média, o negro comum.Tem até o discurso do personagem Darlan, no Meu tio matou um cara, que fala "Eu sou o único negro dessa escola". É uma preocupação sua?
Hugo Sukman: Só queria completar a pergunta com uma coisa. Eu participei de um projeto sobre cultura negra e africana no Brasil, que aconteceu em vários estados do Brasil. E o estado que mais se interessou, onde o projeto fez mais sucesso foi no Rio Grande do Sul, que é um estado, tradicionalmente, pouco lembrado por isso.
Jorge Furtado: O Rio Grande do Sul é acusado injustamente de racismo. Tivemos um governador negro, tivemos a única Miss Brasil negra, o prefeito de Porto Alegre é negro.
José Geraldo Couto: Mas, o primeiro jogador negro do Grêmio foi só em 1952.
Jorge Furtado: "Pô", ele tinha que falar do Grêmio! [risos] Mas, enfim, essa questão é... minha filha de seis anos disse uma coisa, o Lázaro [Lázaro Ramos] ficou muito nosso amigo, ela gosta muito dele e diz assim: "Eu não sei por que é que dizem que o Lázaro é negro". [risos] E eu acho que a lógica é meio essa... eu penso no ator, o ator é bom e fim, entende? Se tu ficar pensando que tem que ser negro, a não ser que, enfim, seja um caso específico... mas, pode ser de qualquer cor. Eu acho que essa é a lógica, de que o ator tem que ser bom e não importa a cor, tu tem que se despir, é um preconceito realmente. Nós somos um país negro e temos que botar os atores negros na tela, só isso. Na verdade, é uma coisa muito simples, não tem complicação nenhuma. No O homem que copiava, eu cheguei a ler que "no filme não dizem que ele é negro". [risos] Para que dizer isso? Também não diz que ele é branco...
Paulo Lima: Jorge, nessa pesquisa que a gente recebe aqui, com uma série de matérias sobre você, tem uma penca de elogios e de prêmios etc. Mas, uma das primeiras páginas é uma coluna do [jornalista e colunista] Diogo Mainardi, na [revista] Veja, mais ou menos dois anos e meio atrás, com acusações pesadas aqui. Um texto bem duro, não é? E, salvo engano, você processou a Editora Abril, e acho que ganhou recentemente. Eu queria que você falasse um pouquinho desse episódio, como isso impacta um artista como você?
Jorge Furtado: Eu sou totalmente 100% a favor da liberdade total de expressão, enfim, a função da imprensa é essa. Agora, quando alguém escreve alguma coisa que é mentira e caluniosa, eu acho que tu tem que fazer não é responder ou mandar cartinha, é processar. Tu tem que entrar na Justiça porque a única maneira de ele deixar de fazer isso é ele ter prejuízo com a calúnia. Então, o que eu fiz foi processar e ganhei.
Paulo Lima: Você ficou satisfeito com o resultado na Justiça?
Jorge Furtado: Bastante.
Paulo Markun: Jorge, última pergunta. O nosso tempo está acabando. Tempos atrás, nós tivemos aqui no Roda Viva o criador do hipertexto, uma figura fantástica chamada Ted Nelson, que tem mais de 70 anos de idade, inventou o hipertexto, que é a pré-história da internet, nos anos 60. E eu perguntei a ele o que é que ele pensava em fazer, qual era o sonho dele, ele disse que queria fazer um filme, mas queria fazer um filme como a internet, como o projeto dele de internet, que nem é parecido com a web, é uma coisa um pouco mais complicada, que não tem continuidade, ou seja, que você pudesse sair no meio da história, caminhar para um lado ou para o outro. E isso me levou a pensar que, realmente, se a gente pensa na internet como um veículo de um produto audiovisual, ele não necessariamente precisa ser linear, com começo, meio e fim. Você já pensou alguma coisa nesse sentido? Isso te anima?
Jorge Furtado: Eu já pensei. Até tentei fazer um roteiro de um game, de um videogame. E é complicadíssimo. Porque ele anda para todos os lados, ao mesmo tempo, e desisti. Mas, eu acho que essa questão da interatividade, de tu poder decidir, ela não substitui o cinema, porque sempre houve o teatro e sempre houve o jogo. O jogo é interessante, tu interfere no resultado, a tua atitude, o que tu fizer vai mudar o resultado do jogo ou não, vai caminhar para um lado ou para o outro. O que é interessante no teatro é o fato de que tu não pode fazer isso.
Paulo Markun: Só pode falar mal depois.
Jorge Furtado: Tu não pode impedir. Eu não tenho nada para fazer, o Hamlet vai matar o Apolônio [personagens de Hamlet, obra de Shakespeare] atrás da cortina e eu não posso impedir isso. Esse prazer de "eu não tenho nada a ver com isso, estou só assistindo" é o prazer do teatro e é o prazer do cinema também. É diferente do prazer do "eu posso fazer". Então, são duas coisas que sempre vão existir, sempre vai existir a interatividade, o jogo, e sempre vai existir o teatro.
Paulo Markun: E o cinema, e o diretor de cinema?
Jorge Furtado: O cinema, como imagem em movimento, com sons associados a ela, vai existir sempre, sem dúvida. Agora, o tamanho da tela e onde vai passar, eu não sei.
Paulo Markun: Jorge Furtado, muito obrigado pela sua entrevista. Obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Nós estaremos na próxima segunda-feira mais uma vez aqui, com outro Roda Viva. Uma ótima semana e até lá!