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Memória Roda Viva

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Luís Mir

22/11/2004

Num diagnóstico polêmico, o pesquisador afirma que o Brasil vive uma guerra civil e que o Estado pouco mudou desde a época da Colônia, critica o projeto histórico e político do país e apresenta propostas para remediar a situação

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[programa ao vivo]

Paulo Markun: Boa noite. Ele acaba de produzir um dos mais densos estudos sobre as raízes da violência no Brasil. Juntando medicina e história, pesquisou e analisou as origens da criminalidade durante cinco anos, buscando saber por que a vida vale tão pouco no Brasil, de quem é a culpa por tantas mortes e qual é o custo da violência para a sociedade. No estudo, ele afirma que vivemos uma guerra civil e que o Estado brasileiro sempre foi o principal promotor da violência. São conclusões do jornalista, historiador e pesquisador Luís Mir, o entrevistado desta noite no Roda Viva. Luís Mir estudou medicina na Espanha, onde também fez graduação e doutoramento em história. É autor do livro A revolução impossível, onde conta a história da esquerda e da luta armada no Brasil. E agora, está publicando Guerra civil: Estado e trauma.

[Comentarista]: O livro é uma edição volumosa: quase mil páginas. Um mergulho em cinco séculos de história do país que resultou em um estudo minucioso das origens da violência no Brasil. Na primeira parte, Luís Mir pesquisa os mecanismos sociais e políticos que provocaram segregações e marginalizaram grande parte da sociedade brasileira. Para o autor, o conflito armado que horroriza hoje, principalmente os grandes centros urbanos brasileiros, é a continuidade de uma violência que sempre existiu no país e que só toma uma forma diferente agora. Ele escreve que o Brasil é uma criação colonial recente, com tudo que isso possa representar de herança conflituosa e memória histórica trágica. Começamos com o genocídio dos índios, evoluímos para o massacre e a exploração escravocrata. Chegamos à República, com segregação territorial e econômica e nós lançamos no apartheid social [termo africâner adotado em 1948 na África do Sul. Originalmente, o regime de separação não só determinou que os grupos étnicos deveriam viver separados por bairros, como também retirou os direitos civis da grande maioria negra. Hoje, o termo é usado para explicar a situação de desigualdade social em países pobres, sem haver, necessariamente uma lei ou decreto oficial que estipule tal regime] na modernidade. As senzalas futuristas dão a medida mais visível da segregação; de 20 a 30% das populações de metrópoles brasileiras vivem em favelas. Em geral, num ambiente de ceticismo e hostilidade. Vivem como sempre viveram os pobres, negros, e marginalizados desde o Brasil colônia. Independência, império, abolição e República em nada mudaram o pensamento das elites governantes, que sistematicamente usaram a repressão e a violência para controlar os desiguais. Daí, a idéia de uma guerra civil permanente, onde, segundo o historiador, o Estado sempre agiu como o maior promotor da violência. Na segunda parte do livro, Luís Mir fala do atendimento ao trauma, especialidade médica que lida com as vítimas de todo tipo de violência, de acidentes a assassinatos, ocorrências que transformam hospitais e pronto-socorros em trincheiras, onde os médicos trabalham como cirurgiões de guerra. Luís Mir associa história e medicina para apresentar ao país a conta médica desta violência: cento e cinqüenta mil pessoas morrem de forma violenta a cada ano, 55 mil delas atingidas por armas de fogo. O socorro a essas vítimas tira dos cofres públicos 40% dos gastos totais com a área da saúde e deixa ainda mais precário o atendimento no sistema hospitalar. Uma conta financeira e humana que vai se tornando impagável, colocando o Estado diante de uma urgência: o Brasil precisa de um projeto de pacificação.

Paulo Markun: Para entrevistar o historiador e pesquisador Luís Mir, nós convidamos: Alberto Kanamura, médico especialista em administração de serviços de saúde; Nely Caixeta, editora executiva da revista Exame; Sérgio Adorno, sociólogo e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP); Renato Lombardi, jornalista e comentarista do Jornal da Cultura; Vannildo Mendes, repórter da sucursal de Brasília do jornal O Estado de S. Paulo; e Gilberto Nascimento, editor de cidadania da revista IstoÉ. Acompanham a entrevista aqui, na nossa platéia no estúdio, os seguintes convidados: Vera Leon, do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac); Aline Rosa dos Santos, do Jornal Comunitário Resoluto; Saulo Garroux, diretor da ONG Casa do Zezinho; Isabel Santos, da ONG Atitude Nova; Cristina Bezerra, do Fórum em Defesa da Vida; Ana Silvia Pupim, do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, zona sul de São Paulo; Vilma Pinheiro, epidemiologista da Secretaria de Saúde Estadual de São Paulo; Alexandre Lopes Ramos, aluno da Universidade São Marcos; Nelson Frente, diretor do Hospital Estadual de Vila Alpina; Narciso Ribeiro Dantas, estudante; Adriana Toldo, jornalista da [editora] Geração Editorial; e Adélia Chagas, jornalista. Boa noite, Luís Mir.

Luís Mir: Boa noite Paulo.

Paulo Markun: Lendo o seu livro, tive a impressão de que você inverteu o raciocínio usual. Porque se a gente disser para uma pessoa da sociedade: "nós estamos vivendo em uma guerra civil, esse negócio... Todo mundo, todo dia tem assalto, seqüestro, tem bandido para todos os lados, bandidos estão soltos, pessoas de bem estão presas nas suas casas, em seus condomínios" - esse é o discurso, inclusive, dos programas que tomam toda a nossa tarde na televisão brasileira, na maioria dos canais. No entanto, você disse que estamos em uma guerra civil, mas quem está fazendo é o Estado. Isso não é uma afirmação um pouco exagerada?

Luís Mir: Vamos por partes. Primeiro, quando digo que o Estado é promotor da violência, parto dos organismos que constituem o Estado, quer dizer, o Estado tem o monopólio legal da violência. Portanto, os cidadãos abdicaram dos direitos naturais, o direito à vida, o direito à felicidade, etc. O Estado, em troca do "protejo, logo obrigo", que nós sabemos muito bem é a função civilizatória do Estado [...]. Primeiro é o primado da vida, defesa da vida. Em determinado momento, quando você fala que eu inverti o raciocínio... Nós não podemos falar da situação epidemiológica da violência brasileira, dos agredidos, agressores, das vítimas, enfim, dessa contenda belicista que nós temos nas grandes metrópoles, sem falar nas suas matrizes, nas suas origens. Essa violência não é espontânea, não tem geração espontânea. Nós somos um país extremamente violento desde o início. Nós somos um país que começou com as capitanias hereditárias, que é uma pré-balcanização. Ou seja, nesse país, sempre foi mais importante a posse da terra, a ocupação da terra, não foi em função do povoamento, e sim da questão do interesse econômico direto, da capitania hereditária, do capitão hereditário. E, depois, nós entramos na monocultura, também com os grandes latifúndios. Quer dizer, quando começa a urbanização vem um grande êxodo rural, fruto, digamos, de uma mudança, enfim, uma mudança na estrutura agrária do país e nós viemos ao, digamos, inchaço urbano, que é um fenômeno do século XX. Então, essas populações desarraigadas do campo chegam à cidade como invasores. Agora, de repente, nós temos que estas pessoas são invasores, que essas pessoas são rejeitadas, elas são localizadas espacialmente nas periferias sem acesso, digamos. Bom. E aí você diz: "por que o Estado é o promotor da violência?". Não estou dizendo que o Estado tem um projeto estratégico para matar brasileiros. Agora, posso afirmar, com base na situação recorrente nestes cinco séculos de história, que o Estado brasileiro nunca foi um agente civilizador e pacificador.

Paulo Markun: Mas você diz que ele é étnico, quer dizer, que ele privilegia uma única etnia...

Luís Mir: Sim, a etnia dominante, a etnia européia.

Paulo Markun: E prejudica os afro-brasileiros...

Luís Mir: Isso, os afrodescendentes não desembarcaram do navio negreiro. Eles vieram por via marítima, desembarcaram, ficaram nas senzalas e agora estão confinados nas periferias das metrópoles. Na verdade, nós tivemos a “sub-abolição”. Eu quero dizer o seguinte: os afrodescendentes nunca fizeram parte do país real. Porque, veja bem, quando você diz o Estado como promotor, este país ele tem um problema [de fundação]. Quer dizer, sempre foi importante nesse país a natureza, o território, nunca foram as nações. Nunca foi a cultura. Nós somos grandes, essa terra é maravilhosa, porque é abençoada por Deus, pelo demônio, por todos, etc. E o povo? O povo sempre foi uma coisa casual. Agora, a etnia dominante, o processo de dominação dentro da sociedade brasileira, ele é permanente. O que nós temos que ter claro é assim: as armas mudaram, os processos mudaram, mas a dominação sempre se manteve inalterada. Uma coisa que nós temos que ter claro, é que o Brasil não está inviável como está, ele está se inviabilizando até como Estado-nação, que é um estágio pré ao que nós podemos chamar de modernidade. Nós não somos modernos em nada.

Renato Lombardi: Eu queria que o Luís dissesse como é que chegou a essa conclusão desses números que eu vou ler aqui. O atendimento às vítimas da violência consome cerca de 21 bilhões de reais por ano. Esse é um número que equivale a 40% dos gastos totais com a saúde que somam aproximadamente 52 bilhões de reais por ano. Aproximadamente cento e cinqüenta mil pessoas morrem violentamente no Brasil, dessas mortes, 55 mil são assassinados. Com 3% da população mundial, o Brasil registra 13% de todos os homicídios do mundo. Na cidade de São Paulo se gasta cerca de 3% de seu produto interno bruto, o equivalente a 9,3 bilhões de reais, segundo dados de 1999, no combate à criminalidade. 1% dos mais ricos da população concentra quase o mesmo volume de rendimento de 50% dos mais pobres, no caso de São Paulo. É tão difícil, ninguém tem número, ninguém tem nada, aí você vem com um monte de números aqui...

Luís Mir: Quisera ter eu esse poder de ser, digamos, o único depositário, o único, mas não sou. Quero esclarecer dois parâmetros básicos desse projeto de investigação: primeiro, apresentar a conta médica ao país. Quer dizer, nós temos a conta prisional, a conta judiciária, a conta da manutenção dos aparelhos policiais etc, eu não estou entrando nessa área. Em relação ao atendimento médico às vítimas da violência, ele é extremamente caro. Mas vamos às fontes. Quer dizer, das citações que você apontou aí, é o seguinte: os dados parciais, a base de dados [...], o serviço de informação do órgão Datasus [Banco de dados do Sistema Único de Saúde (SUS)], que são agrupados e unificados pelo Mapa da violência, uma publicação da Unesco. Esse é um convênio que existe entre o Ministério da Saúde e a Unesco e o Mapa da violência está na sua quarta edição. Ele foi corrigido, agora inclusive, porque ele assumiu uma coisa que, digamos, aproximou, abordou mais os dados com uma exatidão quase que ideal, que foi a subnotificação, a correção de 21%. Nós temos estados que têm 40% de subnotificação e 60%. Então, primeiro os dados da mortalidade são os dados da Unesco. O estudo comparativo sobre a taxa de homicídios em relação ao cenário internacional, o ranqueamento nacional em relação a isso é o Mapa da violência da Unesco.

Renato Lombardi: Não usou a polícia para isso?

Luís Mir: Não. Inclusive o seguinte. Está acontecendo um fenômeno interessante. O mapa da violência um e dois, que foi a primeira tentativa de unificação de dados da mortalidade, dos coeficientes de mortalidade, ele apresentava discrepâncias muito grandes em relação aos dados da polícia. Houve uma... Eu não vou dizer que houve uma negociação, porque eu não sei se ela houve efetivamente, mas eu posso te dizer, com grande segurança, Renato, que começa a se aproximar as bases de dados, elas começam a caminhar. Por exemplo, o dado 55.680 mortos do mapa da violência três e quatro, já corrigidos do índice de subnotificação de 21%. Qual era a outra fonte que você quer, por favor?

Renato Lombardi: Eu queria saber dos gastos.

Luís Mir: 1% com 50% da renda é dado do Ipea [Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas]. Em relação, digamos, aos dados dos gastos com saúde, existem três matrizes, digamos, para os gastos na área da saúde. Eu tenho o Conselho Nacional de Saúde, eu tenho o Conselho Nacional de Secretários Municipais, e eu tenho as Secretarias Estaduais de Saúde. E nas amostragens de custos médico-hospitalares, trabalhos de colegas, de pesquisadores da área hospitalar. Uma pesquisa, que você deve conhecer muito bem, aquela feita pelo Ipea, [e a pesquisa da] Confederação Nacional de Transportes, sobre os custos do trânsito. Você conhece essa pesquisa. Deixe eu só falar uma coisa, Renato, que eu sei que você tem uma base de dados na sua área de atuação profissional, todos os dados são oficiais.

Gilberto Nascimento: Então, no caso dos dados do mundo, a Unesco tem dados uniformes de todos os países iguais? Porque, pelo que sei também, em muitos locais a fonte é a polícia e, muitas vezes, são números também questionáveis, discutíveis.

Luís Mir: Não te digo, eu não vou afirmar, até porque vocês sabem que os números, eles permitem interpretações, eles permitem abordagens distintas. Agora, a metodologia da Unesco é a metodologia internacional vigente, ela é uma metodologia bastante boa. Talvez alguns pesquisadores nacionais possam discutir, e isso faz parte daquele exercício saudável da crítica, o ranqueamento que faz a Unesco de determinado... Agora, é uma tabulação internacional ao qual o Brasil entra em igualdade de condições com os outros países. Não há, com os dados da Unesco em relação à criminalidade no mundo, não há aquela controvérsia que houve com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que o governo brasileiro levantou aquela questão sobre os dados. Só uma coisa, que eu acho que não fui exato, veja bem. Os dados, os 52 bilhões, os gastos com assistência, é tudo orçamento público da saúde, os gastos públicos e oficiais, que os números privados não abrangem.

Nely Caixeta: Diante disso tudo, de todo esse custo que a violência trás para o país, não é de supor que o governo investisse por ano todo esse dinheiro para se tornar esse Estado pacificador que você prega? O que impede o governo de fazer isso? Há cinco séculos você diz que a gente está com o mesmo problema. Qual é o foco disso?

Luís Mir:Dividir o bolo. Não querem dividir o bolo. Então, veja bem… Nós temos a situação... Eu vou fazer uma média ponderada. Eu [não] vou te dar dados milimetricamente exatos, mas eles são o mais próximo do real. Nós temos uma população estimada pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] no ano de 2004, de cento e oitenta milhões de habitantes. Muito bem, nós temos, segundo os dados do Ipea, segundo os dados do governo, nós temos 53 milhões entre pobreza e miséria. E depois nós temos a chamada baixa privação [condições de precariedade socioeconômica], que é um conceito novo, mas é um conceito... Ele é meio dúbio, mas ele mede a baixa e alta privação, que é uma coisa, digamos, quase que um transferidor de distribuição de renda. Pois bem. A situação real nesse momento, a pirâmide social brasileira é de cento e vinte milhões... Repito: cento e vinte milhões de pessoas em miséria absoluta, pobreza e baixa privação. Depois o conceito de alta privação é discutível porque sempre volta para a base da pirâmide. Nós temos cento e vinte milhões de brasileiros, eles não estão incluídos no projeto de desenvolvimento econômico, no projeto de saúde, no projeto de habitação, no projeto de mercado de construção... Eles não estão incluídos. Então, é o que diz a professora Maria da Conceição Tavares [professora de economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Já foi deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Autora de Lições contemporâneas de uma economista popular (1994), A economia política da crise (1982), entre outros]: “como nós vamos incluir esses brasileiros, que estão fora desse projeto de nação, desse projeto de Estado, ou desse projeto econômico, tal, tal”. Você tem que dividir o bolo.

Vannildo Mendes: Você identifica no seu livro, na raiz da violência brasileira ingredientes como a discriminação, o xenofobismo, uma espécie que você chama de balcanismo [balcanismo ou balcanização] étnico no país...

Luís Mir: Extremismo étnico. Balcanização.

Vannildo Mendes: Balcanização. Bem, nós temos atualmente no poder um operário eleito democraticamente, de origem para lá de humilde, mestiço. Esses indicadores começaram a ceder, há uma tendência de... Você tem alguma expectativa que isso mude a partir de agora, ou o governo continua reproduzindo os erros, onde está acertando, e onde está errando?

Luís Mir: Primeiro vou te fazer uma provocação. A Presidência é uma exceção à regra. Nós não temos ministros, nós não temos uma representação étnica racial no que se chama Estado, que se chama de estrutura de Estado, sejam estruturas financeiras, administrativas etc. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva [eleito presidente do Brasil em 2002 pelo Partido dos Trabalhadores (PT),  reeleito em 2006] é exceção. O problema é o seguinte: acho que é um erro atribuir ao presidente Lula qualidades - digamos - acima das que ele tem. Obviamente, ele é uma pessoa muito popular, do movimento sindical etc. Mas quem elegeu o presidente da República não foi ele. Quem o elegeu foi um processo histórico de vinte anos. Este processo, na verdade, ele, digamos, estava à frente, digamos, era a maior liderança no processo histórico. Agora, quem elegeu o Lula não foi Lula. Veja bem. A condição educacional, a educação dele, enfim, a própria capacidade de formulação, apreensão, eu não vou discutir isso. Agora, eu posso dizer o seguinte: o Lula não foi eleito, porque ele era pobre, retirante, nordestino. Ele foi eleito porque havia um processo histórico, capitaneado por um partido, o Partido dos Trabalhadores, que apresentou uma alternativa democrática a um projeto político exausto, ou exaurido, que era o projeto da social-democracia da década de 1980, a modernização econômica etc. Também eu não vou entrar em julgamento do projeto social-democrático... O Lula foi eleito pelo PT, e não por ser Lula.

Paulo Markun: Luís, nós vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Nós voltamos com o Roda Viva que esta noite entrevista Luís Mir, pesquisador que juntou medicina e história para analisar a violência no Brasil [...]. Luís, o seu livro tem muito de diagnóstico e pouco de - não sei qual é a palavra exata e clínica para isso - mas enfim, de prescrição. E você aponta dois pontos que me chamaram a atenção, das possíveis prescrições para tratar desse problema: transferência de 10% da renda dos mais ricos, que detêm 50% da riqueza nacional, para começar a derrubar o apartheid em vinte anos; e estabelecimento de uma cota de 50% do ensino público, dos assentos da Câmara e do Senado para os afro-brasileiros, o que, segundo você, provocaria o final das cotas [sistema de cotas raciais] e um ensino realmente universal gratuito. É para valer essas afirmações?

Luís Mir: Vamos por partes. Obviamente, ela tem algo de exercício intelectual e provocativo, não vou negar isso. Mas o problema é o seguinte: nós temos todos os programas possíveis e imagináveis para a solução, à disposição da sociedade brasileira. Nós temos as PPPs [Programas de Políticas Públicas], as “Pópópós”, as “Pipipi” [Risos] Nós temos praticamente tudo. Nós temos o plano de recuperação das estradas, nós temos o plano de infra-estrutura portuária; nós temos a modernização do agrobusiness, o esforço exportador, a defesa do vôo “transatlântico das moscas azuis”. Nós temos absolutamente todo o tipo de projetos, projetos alguns da mais alta seriedade. Obviamente, eu acho que um país que começa a atingir a cifra de cem bilhões de dólares nas exportações, é um país com uma planta industrial razoável e tal. Agora, eu quero que você me aponte em todos os projetos existentes nesse país um projeto estratégico de inclusão de oitenta ou noventa milhões de miseráveis em um prazo determinado? Quando eu falo em implodir o apartheid, é você pegar e determinar 50%. A partir do momento que tiver 50% de afrodescendentes generais, administradores, banqueiros, parlamentares, professores etc, não precisará mais de cota. Passou a ser o quê? Passou a ser universal. A cota existe por quê? A cota existe porque não é universal. Quer dizer, eu acho absolutamente degradante que neste país 50% da população afrodescendente tenha que se contentar com as cotas. Além do mais, o seguinte: como você vai fixar um parâmetro minimamente aceitável e justificável de cota? Aí você diz: “Bom, mas é melhor a cota do que nada”. Nada eles estão recebendo há quinhentos anos.

Sérgio Adorno: Eu queria entrar nessa questão, mas eu, na verdade, vou voltar dois temas. Eu acho que um deles, que você, de alguma maneira, está insistindo aqui, é o argumento da relação desigualdade e violência. Vamos dizer que eu, como sociólogo, tendo muito a pensar em uma relação… Mas veja o seguinte: se a gente verificar o que aconteceu com a concentração da riqueza nestes últimos quarenta anos, não houve mudança substantiva. Quer dizer, o coeficiente de Gini [Medida criada pelo estatístico Corrado Gini na obra Variabilità e mutabilità (Variabilidade e mutabilidade), de 1912, usada para calcular a desigualdade de distribuição de renda em um país] continuou indicando uma alta concentração no início da década de 1960, e no final dos anos 1990. Em compensação, foi a partir dos anos 1970 que se teve uma escalada da violência, pelo menos a violência sob a forma de crime organizado, um conceito que você discute no seu livro. Então, fica a minha pergunta: em que medida uma política de justiça social - que é altamente desejável, eu não estou contra - vai ser a garantia de que nós vamos reduzir a violência, sobretudo, a violência fatal nessa sociedade? E eu quero associar isso a outra pergunta que está aqui, que também foi feita. Você está insistindo muito na idéia de uma guerra civil. Você é historiador e eu sei que os historiadores são muito ansiosos [para] as singularidades históricas. E o seu livro há uma insistência grande na recorrência histórica no Brasil. É como se, [desde a época] da Colônia, apesar das mudanças que operaram, na verdade, continua a mesma coisa. Quer dizer, a mesma elite que estava lá na Colônia continua hoje dominando o Estado. Será que os historiadores assinariam embaixo essa tese? Eu estou te perguntando isso porque, por exemplo, se você compara a guerra civil na Espanha, se você compara a guerra civil no leste europeu, se você compara a guerra civil na Irlanda, por exemplo, será que a gente tem situações semelhantes a esta, aqui no Brasil? Será que nós temos uma população armada? Que se opõe abertamente contra o poder do Estado, será que nós podemos dizer, de fato, que isso é uma guerra civil no sentido clássico que esse termo tem para os historiadores, para os cientistas políticos?

Luís Mir: Vamos por partes. Primeira parte que eu quero lhe falar é a seguinte: esse país nunca teve uma homogeneidade étnica, sempre foi um país fracionado. Quer dizer, o Estado brasileiro, veja bem, nós estamos falando do Estado naquele conjunto de organismos e instituições, sempre obedeceu a um projeto particular, um projeto privado. Privado no sentido de não atender a maioria da sociedade. Segundo, os enfrentamentos sempre partiram do Estado ou diante de movimentos, de mudanças sociais, ou de tentativas que o Estado tomou como revolucionários honestos. Eu quero deixar uma coisa absolutamente clara, Sérgio. Se você pegar o perfil do Estado brasileiro, quer dizer, se você classificar o poder colonial metropolitano como Estado, tem certas nuances, eu concordo contigo, não é exatamente um Estado clássico como a gente conhece. Agora, eu insisto no seguinte: em nenhum momento nesse país houve um projeto de integração, de entidade multiétnica, multicultural, e houve...

Sérgio Adorno: Mas então, por que o país não se fracionou? O país não se fracionou... Nós estamos vivendo [há] quatro séculos com toda desigualdade, não se fracionou. Poderia ter se fracionado...

Luís Mir: O problema é o seguinte. Nós tivemos o papel da colônia. Todos os outros países latino-americanos foram para via republicana - Argentina, Chile - por que nós fomos para o império? O império é anterior ao Estado. Quer dizer, a única maneira de manter uma maré reformista revolucionária, mas reformista, no vácuo da desvantagem do poder colonial, seria o quê? Seria o império, que é anterior ao Estado. Nós sabemos disso. O Estado imperial mantém não só os mecanismos de administração colonial, o modelo de produção, mas, inclusive, a organização social. Então, veja bem. Ela pode ter mudado de formas, obviamente mudou de intensidade e graus, e até de localizações, dentro das articulações sociais. Mas nós não podemos falar nesse país que a causa de determinada [unidade] fosse o povoamento. Foi sempre o território. Veja bem. O que eu quero dizer é o seguinte: o nosso povoamento sempre foi ocasional. A ocupação do Nordeste é uma ocupação de monocultura do açúcar, não um projeto de desenvolvimento, de ocupação do território baseada no fator humano, o fator natural. A mesma coisa com o sul. O que eu quero deixar claro para você é a “desafricanização” [refere-se à proibição do tráfico negreiro a partir de 1850 com a lei Eusébio Queiroz] do país ela começa em 1850, tem a imigração indo-européia. Na verdade, nós estamos falando de 38 anos antes da abolição. Porque se você pegar... Veja bem. Existem dois conjuntos... Esse é um dado, enfim... São dois conjuntos de genes, ok? Existe o cromossomo Y, que os filhos herdam do pai, e existe o DNA mitocondrial que os filhos homens herdam da mãe. Esses dois conjuntos de genes definem as matrilinhagens e as patrilinhagens. Em 1850, 50% da população desse país tinha mãe índia ou africana. Depois de 1850, veio a imigração européia, são aqueles cinco milhões que você sabe muito bem. E o que acontece? Baixa o índice da descendência da população africana... Nós temos, na época, 45 milhões de habitantes, e baixa por quê? Porque vieram os europeus, vieram as populações indo-européias e baixaram, digamos, a africanidade nesse país. Mas eu não quero fugir do conceito que você fala de guerra civil. Nós temos o seguinte: o conceito de guerra civil clássico, ortodoxo, contemporâneo, fala de insurgência, rebelião e depois fala no enfrentamento do Estado com um setor da população. Acho que mais grave que o conflito clássico que nós temos é o conflito multiétnico. A segregação nesse país foi uma política de Estado. A população foi mantida longe do mercado de trabalho, das distribuições das riquezas nacionais. Quando falo "fatiar o bolo" é simplesmente dizer o seguinte: o Estado não precisaria despejar esta massa, essa carga de violência que ele despeja sempre que se sente ameaçado, se houvesse uma nação minimamente integrada; eu não estou falando de paraíso, ok? Eu não estou falando de 90% de classe média, um país equilibrado e justo. Este país nunca teve um mínimo de equilíbrio social...

Nely Caixeta: Luís, uma coisa que eu acho que as pessoas que estão em casa nos assistindo, certamente estão pensando: "meu Deus, será que a gente vai ter que esperar para resolver o problema da violência, nós temos que fazer alguma coisa [agora], já que nós não fizemos em todos os nossos séculos de história no Brasil?". Eu acho que todo mundo que pega o seu carro de manhã na garagem, aqui em São Paulo, [com] a sensação de insegurança, o pensamento recorrente é: "será que eu vou voltar?". Eu acho que, eu gostaria que você mostrasse para nós qual o peso que você dá ao fato de que, na verdade, há uma falta de autoridade, de que as pessoas se sentem intranqüilas, existe todo o problema social que nós temos... Você tem a sua proposta, daqui a vinte anos nós podemos até resolver, mas de qualquer forma, eu queria [saber], o peso que você dá para esse estado de caos na ação da polícia e da Justiça que não faz justiça e nem polícia direito.

Luís Mir: Nely, essa pessoa que sai com insegurança, e essa insegurança pode, em determinado momento, até se transformar em um pânico, com possíveis estranhos na rua etc. É quanto da população? É 20%, Nely. 80% da população desse país não tem bens materiais para sofrer ataque de pânico...

Renato Lombardi: Não, se você estiver na periferia você vai ver que é igual, rouba-se um real, um par de tênis de qualquer um.

Luís Mir: Mas isso é ao vivo, rouba-se de tudo, até tênis usado, rouba-se... O que eu quero dizer é o seguinte: esse pânico social, essa insegurança são das pessoas detentoras de um determinado patrimônio.

Nely Caixeta: Não, eu acho que na favela eles são apavorados, eles são grandes vítimas.

Luís Mir: Na favela eles têm medo de policial. Porque, veja bem, existe uma coisa em medicina que se chama situação virótica, quer dizer, o vírus da Aids é um vírus que mata o hospedeiro. Até os epidemiologistas dizem que a médio e longo prazo, ele tem [que] tomar uma decisão, matar menos do que ele está matando. Então, dentro da favela, nós temos uma situação seguinte: a população fica entre a violência policial e a violência da micro. Aí concordo contigo, da micro e da macro criminalidade, ela está no meio do fogo cruzado. Ela não toma partido Nely.

Nely Caixeta: Do chefe, do chefe da quadrilha que está lá...

Renato Lombardi: O traficante que manda na favela obedece ordens. Tem regras, tem tudo.

Luís Mir: Agora nós vamos tocar em outro ponto. Veja bem. A Nely saiu em um carro, um carro normal, não estou falando de um carro importado e nada disso. Ela saiu, foi trabalhar, é uma cidadã - digamos - classe média, tem um rendimento razoável, e recebe um tiro na cabeça em um semáforo. Ok? Bom, primeiro o seguinte: esse jovem está usando uma 38, que é uma arma, digamos, padrão da guerra civil brasileira. Dois, se ele atirou em você, foi por pânico. Não estou dizendo que não queria te matar, é diferente. Agora, outra coisa. O fato desse jovem de 16, 18, 20, 25 anos estar ali armado, isso tem uma origem.

Nely Caixeta: E a origem não poderia ser porque ele fez um cálculo entre o risco de ser pego e o risco de se sair bem com o roubo? Alguém poderia me roubar e absolutamente nada vai acontecer. Qual o peso que você dá para isso? Se ele está agindo assim é porque ele sabe que ele não vai ser punido. Ele tem grande chance de se safar bem dessa situação.

Luís Mir: Ele não vai ser punido, mas o problema é o seguinte: não existe nesse país bandido velho, ele está morrendo muito cedo. A faixa etária dos bandidos hoje é 17, 18 e 19 anos. Nas penitenciárias a população carcerária vai de 21 a 29 anos.

Renato Lombardi: 21 a 26.

Luís Mir: 21 a 26, exato. Deixe-me só dar um dado para você. Eu, em absoluto estou questionando a insegurança. Eu só estou questionando a origem dessa insegurança. Nós sabemos muito bem que esse jovem, que pode dar um tiro, pode matar uma pessoa inocente, um trabalhador, como aquela pesquisa da Ruth [Vasconcelos Lopes, coordena o Núcleo de Estudos da Violência (Nevial) e é professora na Universidade Federal de Alagoas], que foi em Campinas, isto está no livro, quem está morrendo em Campinas são os jovens trabalhadores e estudantes em direção ao trabalho. Não estou falando outra coisa. Mas, voltando. Quanto ele ganha por esse carro roubado, Nely? Esse carro que vale 35 mil, 40 mil reais, ele não ganha mais do que trezentos, quatrocentos reais por esse carro.

Alberto Kanamura: Luís, esta situação que você está colocando, esse determinismo histórico, não é, "nós somos o que somos porque fomos o que fomos". É muito diferente dos outros países da América Latina, ou isso só acontece aqui no Brasil? Na Colômbia, na Venezuela, na vizinha Argentina, tem alguma coisa parecida? Na Bolívia? No Paraguai?

Luís Mir: Olha, os dados estão no livro, eu só quero chamar a atenção para vocês, porque a gente não pode ver os dados isoladamente. Paraguai tem 94,7% da população carcerária presa sem condenação. El Salvador tem 94% e a Bolívia tem 97% da população presa sem condenação. Ou seja, não tem justiça. Agora, você pergunta se isso acontece no Brasil. Em 1999 a grande São Paulo matou mais do que a Colômbia - é conflito. Há 45 anos [a Colômbia], com os paramilitares, [com] dois exércitos guerrilheiros - Farcs e ELN - e hoje [com] um exército treinado e assessoria direta, pois bem, a grande São Paulo matou mais. A taxa crescente de homicídios, em 1999 na Colômbia, se não me engano foi, 45, 55. São Paulo chegou a - eu não quero citar um dado errado - eu acho que foi 70, 72.

Sérgio Adorno: Você está fazendo uma comparação... Quer dizer, se eu comparar a taxa de homicídios hoje em São Paulo com a taxa de homicídios nos Estados Unidos, é evidente que a taxa do município de São Paulo é muito maior do que dos Estados Unidos.

Renato Lombardi: Com a taxa da população de São Paulo.

Luís Mir: Eu estou falando proporcionalmente, Sérgio. São Paulo matou mais, proporcionalmente, em 1999 do que a Colômbia. Proporcionalmente. Espera, eu não estou tirando isso da taxa de cem mil habitantes, São Paulo matou proporcionalmente...

Sérgio Adorno: Eu tenho dúvidas quanto a esse seu dado, que eu saiba Bogotá e Medellin e Cali têm taxas muito mais altas que o município de São Paulo.

Renato Lombardi: Eu tenho os números aqui. São Paulo tem uma taxa de 62 homicídios por cem mil habitantes. O Rio tem sessenta homicídios por cem mil habitantes. E aí você pega a Holanda, quinze homicídios por cem mil. EUA dez homicídios. Japão 1,6. Espanha 1,9. Quer dizer, claro, nós temos um número muito alto. E tem um outro detalhe…

Luís Mir: E esses dados não são de jovens, porque jovens vai a duzentos, ou acima de duzentos por cem mil.

Renato Lombardi: Eu gostaria que você dissesse se esses números da violência [incidentes] nos homicídios, se isso caminha para a impunidade? [Se não], caminha exatamente para quê? A falta de uma atitude rápida da polícia, da Justiça e do Ministério Público.

Paulo Markun: Aí eu queria entrar. Onde o livro é mais polêmico não é no diagnóstico é na proposta de alternativa. Então o que ele diz aqui com todas as letras. Diz assim: "precisamos negociar o armistício. O Estado brasileiro teria que suspender as hostilidades por certo tempo". A proposta é claramente a seguinte: não se atue mais nas favelas, que a polícia não mate mais ninguém, como é isso?

Luís Mir: Não. Em todos os países onde nós tivemos grandes surtos de violência, violência de todas as formas, se negocia da seguinte maneira: o Estado brasileiro tem que negociar, por exemplo, com o Paraguai. Quer dizer, chega de roubo de carros e chega de tráfico de armas. “Quanto vocês querem?”. “Bom, para substituir a exportação de armas e roubos de carros nós queremos cento e cinqüenta milhões de reais, e que vocês acertem a conta de Itaipu, que é de trezentos milhões de dólares”, e a gente nunca paga a conta de Itaipu. Isso é uma negociação de Estado. Quem de vocês já não viu uma blitz, uma invasão de favela? O que é aquilo? Aquilo é terrorismo policial. Porque o detalhe é o seguinte. Fala-se muito nas favelas, no exército do narcotráfico, [mas] onde estão os milhões de dólares do narcotráfico? Nos colchões dos barracos?

Renato Lombardi: Isso é outra história. Você falou em arrematar, quer zerar, zera. Entrevistei uma vez um assaltante que tinha trinta seqüestros, ele tinha dez assassinatos. Eu perguntei "você não vai mudar de vida?". E ele disse: "Eu mudo de vida doutor. Zera tudo. Minha ficha limpa e eu mudo de vida".

Luís Mir: Eu não estou falando isso. Eu não estou falando em impunidade judicial, nem impunidade e nem anistia para todo e qualquer tipo de crime. Eu estou falando em negociações entre Estados, que é a negociação do Estado brasileiro com a sociedade brasileira. Um projeto de proposta de pacificação. A primeira coisa que o Estado brasileiro tem que fazer é eliminar a licença da polícia brasileira de matar. Porque veja bem...

Vannildo: Isso basta, Luís?

Luís Mir: Isso é o primeiro passo. Vou fazer um paralelo, um exemplo do absurdo, para efeito de demonstração. Quando eu falo em trégua é o seguinte: de repente, estavam decapitando no Iraque os estrangeiros, os terroristas fundamentalistas...

Renato Lombardi: Decapitaram aqui em Guarulhos, né?

Luís Mir: Isso. Aí vem um mariner norte-americano e fuzila, dá um tiro na cabeça de um ferido dentro da mesquita. Aquele tiro justificou? Eu não estou avaliando quem estava na mesquita. [Então], quero dizer que, a partir do momento que o Estado brasileiro... A polícia mata porque tem o consentimento, o policial chega, faz uma blitz, mata um inocente etc. Ele perde o distintivo, entra em um processo, dá a arma etc. Agora, o que acontece quando eu falo da violência policial? O Estado não pode matar uma pessoa. Por quê? Porque é o primar da vida.

Nely Caixeta: Aí você combina com o bandido? Só o bandido pode matar?

Luís Mir: O bandido joga a polícia em cima dela... A responsável pela prisão, julgamento... Esse bandido tem que ser preso, julgado e tem que ser condenado, etc. Para isso existe civilização, instituições. Agora, o seguinte, há determinados setores da sociedade brasileira que querem "olho por olho".

Nely Caixeta: Aí volta aquela pergunta que lhe fiz. Qual é o peso que você dá ao fato de que as instituições não funcionam no Brasil?

Luís Mir: As instituições não funcionam porque não querem, porque não têm vontade política. A polícia é apenas um corpo funcional comandado pelo Estado. A polícia não é um bando de maníacos, entendeu? De enfermos mentais que resolvem em determinado momento matar um grupo de pessoas em uma favela, em uma periferia. A polícia é um corpo do Estado.

Gilberto Nascimento: Eu acho interessante ver um dado no seu livro [sobre] o bairro de Moema, que é um bairro de classe média alta em São Paulo. O índice de homicídios caiu de 14,84% para 4,11, é o menor da capital nos últimos quatro anos. E a possibilidade de alguém ser assassinado lá em Moema é de 96,5% menor do que no Jardim Ângela, que é um bairro da periferia de São Paulo. Agora, apesar disso, como você mostra aqui no livro, as vítimas são os pobres, os negros e os marginalizados. Mas todas as vezes que alguém de classe média, ou em uma situação mais privilegiada, é vítima também da violência, começa a se pedir mais repressão, mais armas etc. E de dois dias para cá, com esse livro na mão e discutindo esses números que você apresenta aqui, a reação é absolutamente a mesma, o que se discute e o medo, é a insegurança, mais armas. O que você acha disso e como se muda esse parâmetro aí?

Luís Mir: Pegando a sua indagação, mas pegando também a Nely e o Renato, na verdade, se você reparar, Moema é um bairro paramilitarizado. Eles têm, inclusive, seguranças privados nas calçadas, é um bairro completamente paramilitarizado em defesa do patrimônio, etc - todos têm o direito a defender a sua vida. Agora, veja só um detalhe. Primeiro, utiliza a linguagem militar: ocupar o morro, você vai combater um exército inimigo, vão ocupar o morro, fazer uma incursão, pressão, que é uma linguagem militar. Por que quando se fala em prevenção à violência, coerção, só vem polícia e só vem carro? Por que não entram nas favelas as escolas profissionalizadas, por que não entra a ocupação urbana do solo? Por que não entram os projetos? Eu até estava brincando com a Vera Leon [aponta para a platéia] "é tamborzinho para cá, tamborzinho para lá, capoeira para cá, capoeira para lá" [Risos]. Eu quero que entre renda, quero que entre emprego, tem que entrar saúde, tem que entrar a propriedade da casa. Outra coisa, por que a polícia só entra depois que aconteceu algum evento violento? A polícia tem que ficar lá. Mas para ficar lá tem que urbanizar, para urbanizar custa caro. Voltando, digamos, à questão da Nely, se a pessoa ganha uma casinha, TV a cabo, depois um carrinho, melhores roupas, em algum momento, ela vai querer viajar. Você não pode condenar a pessoa a uma expectativa de vida programada: você vai até quinhentos reais e aí você pára. Você não vai fazer isso. Agora, eu nunca vi, digamos, quer dizer, polícia por exemplo... Quando falavam no rearmamento da polícia que é o colete à prova de bala, carro e pistola. Agora, não são laboratórios de investigação, laboratórios de treinamento, polícia científica de altíssimo padrão, etc. E, além do mais, o seguinte: eu só quero falar uma última coisa em relação a padrões policiais. É interessante [ter a] Polícia Federal bem equipada. A Polícia Federal passou por uma reciclagem importante no governo Lula e sempre ela atua, são meses de investigação, sempre aparece o dinheiro. Por quê? É gozado que a Polícia Federal atue em grandes casos - sorte nossa - e sempre estão envolvidos em rendas do Estado. [Já] pegou sonegação fiscal, dinheiro oficial, [com] precisão e eficiência total. Agora, gozado, quando apreendem o dinheiro do narcotráfico [é] uma trouxinha aqui, outra lá, o dinheiro do narcotráfico nunca aparece. Além do mais, eu questiono uma coisa, só terminando, traficante não mora em favela. Quem mora em favela é distribuidor.

Renato Lombardi: Mora o preposto dele.

Luís Mir: Mora o preposto, o traficante não mora. O traficante não enfrenta polícia.

Paulo Markun: Luís, vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos daqui a pouco.

[intevalo]

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva esta noite entrevistando Luís Mir, pesquisador que publicou Guerra civil: Estado e trauma, uma obra em que se analisa a violência no Brasil [...] Eu vou mencionar duas perguntas aqui de telespectadores. Mas, a princípio, citar o fato que você defende, por exemplo, duas coisas: noções básicas de primeiros socorros e urgências deveriam ser apresentadas nas escolas públicas. E cita, inclusive, uma experiência específica…

Luís Mir [interrompendo]: José da Silva Rodrigues fez uma experiência fantástica.

Paulo Markun: Isso. E disse que “a pacificação da sociedade brasileira”, segundo você diz, “tem na escola a sua base principal e prioritária". E é nesse sentido a pergunta de Afonso Silva Lopez, de Morro Doce: “em relação à violência, existe algum tipo de programa de prevenção? Temos a campanha do desarmamento. Por que não proibir a fabricação de armas? Antiviolência, educação no trânsito e também assistência à família”. E, Paulo Treviane, de Curitiba, estudante: “qual seria o papel da educação para resolver a violência e outros problemas sociais?”

Luís Mir: Bom, eu vou usar mais uma vez o exemplo do absurdo. Você pegar uma pessoa de cinqüenta anos, com revólver na cintura - faz vinte anos que ele usa aquele revólver, que está pronto para matar o seu semelhante por qualquer provocação de trânsito etc - isso, digamos, é de difícil solução. Convencê-lo de que ele não tem o direito de matar o seu semelhante... faz vinte anos que ele leva um revólver, quer matar uma pessoa, ou há trinta anos que ele vive, enfim, em um ambiente violento. Agora, a educação, quando eu falo da educação e da prevenção, e José Mauro da Silva Rodrigues fez isso, fez um questionário dos primeiros socorros e, eu até digo no livro, que é o que todo mundo quer saber o que fazer, quando vê um atropelado, quando vê uma pessoa em convulsão, quando vê uma pessoa necessitando de primeiros socorros, até que chegue o Resgate e pessoa receba a assistência de vida, o suporte básico de vida. Na escola começa tudo, porque se a pessoa não respeitar o seu semelhante, não respeitar a faixa de pedestre, não aprender que ela não deve empurrar a pessoa para cair na calçada e se machucar, isso começa na tenra idade, quando começa o processo de formação. Segundo os cânones clássicos da psiquiatria, nós somos o que somos formados aos seis anos. O que nós seremos já está formado aos seis anos. Então, quando se fala de prevenção, é isso. Você pode tentar diminuir o dano físico e o dolo provocado por uma pessoa de cinqüenta, sessenta anos. Agora, com uma criança de seis anos, você pode torná-la sociável e não inimiga ou estrangeira diante do seu semelhante.

Sérgio Adorno: Eu só quero voltar um pouco nesse tema, que eu acho que é um dos temas fortes do seu trabalho, que é a questão do custo dessa violência, do ponto de vista do sistema de saúde. Eu não sei se, por exemplo, nesse cálculo que você faz, se entra… O teu cálculo, pelo que eu estou entendendo, os argumentos são muito econômicos. Existe outro argumento que é muito importante: os anos potenciais de vida perdida; que é, enfim, um critério que também se calcula. Queria primeiro saber se no teu custo entrou este componente?

Luís Mir: Não.

Sérgio Adorno: Segundo. Se eu considerar, além dos custos da saúde, todos os custos judiciais, prisionais, etc, vai se chegar em um ponto que essa dívida é impagável, se eu comparasse com a da Previdência, talvez a Previdência seja mais razoável de ser resolvida do que a da violência. A minha pergunta é basicamente a seguinte: como a sociedade brasileira consegue conviver em “guerra civil”, segundo você, com este custo impagável, que uma hora vai estourar em algum lugar. Onde vai estourar isso? Como nós vamos sair dessa e o que vai acontecer com a sociedade brasileira? Estou insistindo um pouco no seu argumento, que é um argumento, vamos dizer, forte - exagerado em certo sentido da guerra civil - e que, no limite, estou chegando à seguinte conclusão: bom, não tem saída. O sistema policial não vai ser reformado, a Justiça não tem solução, o custo é impagável, então… Não sei… Estamos caminhando para o quê? A solução é uma guerra civil?

Renato Lombardi: Entrega pro bandido…

Alberto Kanamura: Emendando um pouquinho na pergunta do Sérgio... Eu tenho a impressão que fica impagável isso. A pergunta é: nós estamos desperdiçando dinheiro nessa...? Está implícito que tratar a vítima da violência, de alguma forma, isso é um desperdício de dinheiro?

Luís Mir: Duas coisas: fala-se muito no Estado brasileiro que perdeu sua capacidade de investimentos. Eu vou apenas fazer uma pequena referência histórica do que eu considero, digamos, um custo impagável. O Muro de Berlim caiu em 1999 [muro que dividiu a cidade de Berlim em dois blocos, após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial: Berlim Ocidental (RFA), que era ligada aos países capitalistas, liderados pelos EUA e Inglaterra; e Berlim Oriental (RDA), ligada ao império soviético], fez quinze anos agora, em 2004 – Bonn, a capital da República Federal da Alemanha deixou de ser a capital da Alemanha unificada, voltou a ser Berlim. Feito o prazo de transição, havia em Bonn trezentos e cinqüenta mil funcionários. O prazo de transição - até Berlim assumir a condição plena de capital - foram trinta anos. A transição, você não pode retirar trezentos e cinqüenta mil empregos de uma cidade sem dar... Você sabe que a natureza detesta o vácuo, você tem que criar uma alternativa, não só de serviços, mas de renda, de emprego, mercado de trabalho, etc. Pois bem. O Rio de Janeiro era a capital federal desse país. Tinha a função agregadora, política, cultural, era a capital federal. Depois, o senhor Juscelino Kubitschek em um ano e 11 meses plantou um palácio inacabado, dois ministérios inacabados, uma coisa chamada Esplanada dos Ministérios, uma igreja e fundou a capital. Em um ano e um mês o Rio de Janeiro perdeu um milhão e duzentos mil empregos. O Rio de Janeiro dormiu capital federal e acordou balneário. Essa crise do Rio de Janeiro, essa falência do Rio de Janeiro tem quarenta anos. Então, insisto a você, quando você falou da questão da desigualdade. A desigualdade pode ser um fator de agravamento, mas não é o fator indutor e não é o fator principal. Agora, o Rio de Janeiro estar de pé é um milagre. Porque o que foi feito com a cidade do Rio de Janeiro é um crime contra a humanidade. Quebraram a cidade, tiraram um milhão e duzentos mil empregos dela e não deram nenhuma alternativa. Teria que se dizer o seguinte: "Bom, o Rio de Janeiro ficará a capital política do país por mais vinte ou trinta anos, até a reciclagem do setor de serviços, do centro turístico...". Vocês imaginam o que seria do Rio de Janeiro se não fosse o petróleo. Seria hoje...

Nely Caixeta [interrompendo]: Eu queria acrescentar o seguinte: o Rio de Janeiro ganha por ano 4,3 bilhões de reais com o turismo. O que se está vendo no Rio de Janeiro nas últimas semanas é uma coisa assombrosa, você vê os turistas sendo assaltados, mortos e imagina que, se 10% dos turistas do Rio de Janeiro decidissem não mais visitar a cidade, seria uma perda de quatrocentos e trinta milhões de reais. A cidade não agüenta isso. Os custos que a falta de um policiamento, a falta da ação firme das autoridades para impedir esse tipo de criminalidade, vai chegar um momento que não vai ter o que roubar no Rio de Janeiro, se continuar nesse passo.

Luís Mir: Eu quero te responder Nely, mas eu só quero, depois Sérgio, voltar à questão, digamos, que a gente deixou em suspenso sobre a conta impagável e para onde vamos. Nely, a questão é a seguinte: mesmo com a campanha de violência do Rio de Janeiro, o turismo, segundo o dado oficial da situação do Rio de Janeiro subiu 13% de 2003 a 2004, dentro deste período. Dois, o turismo no Rio de Janeiro é concentrado em uma faixa litorânea "privilegiada" por um bom policiamento, etc. Nely, você tem visto quem tem assaltado? Quer dizer, 95, 97% dos assaltos do Rio de Janeiro são o quê? São arrastões sem armas, com 14, 15, 16 anos… Tanto é que o turista espanhol… Por que chamou a atenção o turista espanhol com um tiro na cabeça? Porque essa molecada não usa armas. Quando pegaram... A barbárie, a violência que fizeram com aquele casal de argentinos, lembra? Que chutaram a mulher na areia... Eles não têm armas. Eles não têm armas.

Nely Caixeta: Mas afugenta, está nas primeiras páginas dos jornais, o The independent faz aquela matéria e disse que o Rio de Janeiro é uma cidade da barbárie.

Luís Mir: Isso. Agora deixe-me dizer o seguinte: se você pegar, aí que vem o detalhe, se você pegar a violência do Rio de Janeiro contra turistas, são 27 casos no período...

Renato Lombardi: 481 pessoas assaltadas de janeiro a agosto deste ano. 481, estatística dada hoje pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Só turistas.

Luís Mir: Perfeito. Eu vou te dar um dado da Scotland Yard [polícia londrina] que está acessível no site. Você sabe quantos turistas foram assaltados em Londres, nos últimos seis meses? 18 mil turistas. Então, veja bem…

Renato Lombardi: E Londres é uma cidade policiadíssima...

Luís Mir: Veja bem, não vamos confundir um tiro na cabeça contra aquele casal espanhol e outra coisa, você veja bem. A nossa crise é muito triste. É trágico o que nós estamos fazendo. Aqueles guris que assaltaram movidos, cheirados com cola... Aqueles que assaltaram aqueles argentinos, chutaram os argentinos para roubar o quê na praia? Uma bolsa? E tinha quanto na bolsa daquela argentina? Dez dólares? Vinte dólares? Quanto era aquele relógio? Eu estou pensando o seguinte: o grau de violência interpessoal em relação ao ganho econômico não existe, Nely. Agora, se você disser, aquela senhora argentina... Uruguaios, não é? Aqueles senhores uruguaios estavam na praia e ela tinha um colar de brilhantes no valor de vinte mil dólares e ele estava com um piaget de 25 mil dólares, e a filha...

Nely Caixeta: Mas é a banalização do crime. É banal…

Renato Lombardi: Só para acrescentar com dados. Eu estou com um levantamento da ONU [Organização das Nações Unidas] que diz o seguinte: das cidades do Brasil com os melhores indicadores, em termos de violência na região sul são Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Isso não justifica. A violência lá é baixa em relação ao resto do país.

Luís Mir: Aí vem o que o Sérgio levantou. Por exemplo, no Piauí, os índices de violência são os menores em todas as faixas, em todas as formas, não tem o que roubar ali, de [tão] miserável que é. Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, o estado de Santa Catarina desses três é o que melhor tem de índice de desenvolvimento, por quê? Porque tem uma poderosíssima classe média e um grau de distribuição de renda muito alto. Não se esqueça que Santa Catarina é algo como 2% da população brasileira, não sei, eram cinco milhões de habitantes, ou sete milhões de habitantes, enfim. Santa Catarina é o quinto exportador do país, com menos de 2% da população. E um detalhe, tem duas cidades: Joinvile e Blumenau. O PIB de Joinvile e Blumenau, eu estou dando o dado que eu tenho...

Renato Lombardi: Por que ninguém migra para essas cidades? Não existe migração para essas cidades, a migração é muito pequena em relação ao Rio e São Paulo?

Luís Mir: Mande um afro-brasileiro migrar para Blumenau... Ele não chega, não entra na porta da cidade.

Vannildo Mendes: Eu queria retomar um ponto do seu livro que é exatamente a questão da ação policial. Pelo que gente viu no seu livro, digamos, essa filosofia de ação policial violenta, militarista, belicista, foi cristalizada no período do Regime Militar [entre 1964 e 1985]. [Depois] veio a democracia e os índices de violência não retrocederam. Pelo contrário, se acerbaram, como você diz no capítulo “A década da Morte", a década de 1990. Vem a questão: A polícia tem conserto? É possível consertar essa polícia? Ou não seria melhor extingui-la e começar um novo modelo de segurança pública em outras bases a partir do zero?

Luís Mir: Vannildo, eu acompanhei três processos de revitalização, como estudante e também como profissional. Era um jovem estudante, quando fui para Portugal, Espanha para estudar e Grécia [também], [já] na fase final com as primeiras eleições. A primeira providência [do país foi fazer] a Constituição - Assembléia Nacional Constituinte. A segunda: dissolver os corpos repressivos. A polícia que está aí, a polícia que nós temos não sofreu nenhuma mudança funcional de treinamento - estou falando em termos estruturais. A polícia é um produto, digamos, herdado da ditadura. Para a ditadura ela serviu. Eu não estou questionando que na ditadura ela não tenha servido. Mas essa polícia não serve [hoje], ela não é democrática, não tem formação democrática, e ela não tem prática democrática. Então, na Espanha se chegou ao requinte de mudar o uniforme, quer dizer, a polícia tinha um uniforme cinza, horroroso, militarizado. Agora ela tem um uniforme azul, bonito. Por quê? Porque queriam dar a exata idéia à população de que era uma nova polícia. Nesse país se falsifica tudo, destruíram o Carandiru para não provar que aquilo foi a maior penitenciária da América Latina [Carandiru é o nome popular da Casa de Detenção de São Paulo, localizada na zona norte da cidade. Inaugurada nos anos de 1920 chegou a abrigar mais de oito mil presos. Em 1992, após uma rebelião, o presídio foi invadido pela polícia militar e 111 presos morreram no confronto. O evento ficou conhecido como Massacre do Carandiru. Em 2002, começou a ser desativada parcialmente. Atualmente é um presídio feminino e no local demolido foi criado o parque da integração]. Quer dizer, aquilo deveria ter ficado em pé até hoje. Se você vai a São Petersburgo, à antiga Leningrado, você entra na prisão de São Petersburgo, e até os instrumentos de tortura que o czar desenhava estão lá guardados... As celas onde eram torturados… Aqui, e só não transformaram o Dops [Departamento de Ordem e Política Social, instituição criada durante a ditadura do Estado Novo com o objetivo de controlar e reprimir os movimentos sociais contrários ao regime] em jardim de infância, o resto eles fizeram. Tinha que deixar as salas de tortura, os instrumentos de tortura e dizer: “aqui se torturou, agora, não se tortura mais”. Esse processo de falsificação da história... Agora, eu só queria deixar uma coisa, pelo respeito que eu tenho ao Sérgio e ao Núcleo de Estudos da Violência da USP. A questão é a seguinte, Sérgio: quando eu digo que a conta está impagável, é que se você pegar, quer dizer, eu vou dar dois extremos: Uma vez eu fiz uma conta, uma soma, uma adição básica, porque ouvia "o país perde não sei quanto com o turismo, o país não faz isso por causa disso". E deu um trilhão de reais. Ou seja, os chutes são numéricos… A única coisa que eu quero entender é o seguinte. Um paciente grave de trauma custa duzentos e cinqüenta mil reais, em vinte dias. Um dia de UTI custa de três mil e quinhentos reais a cinco mil reais. Quando digo que a conta é impagável é porque a capacidade do Estado brasileiro... O Estado brasileiro está enxugando cada vez mais a sua base econômica e social. E hoje, tem 45 milhões de pessoas sem habitação, sem saúde, não tem nada.

Paulo Markun: Luís fica a pergunta do Kanamura. Isso significa que não se deve tratar o paciente de trauma?

Luís Mir: O primado da vida. O paciente, ele pode ser ladrão, marginal, assaltante, bandido, juiz, presidente da República, até chegar à porta do hospital é um processo social, ok? A pessoa recebeu um tiro, foi assaltado, assaltaram a casa dele. No momento que o policial, que acabou de torturar uma pessoa e levou lá, enfim. No momento que ele chega na porta do hospital é um processo social. Mas, adentrou a porta do hospital, é um processo biológico. É um ser humano que precisa de assistência, ele vai receber o melhor tratamento possível, os médicos vão dar a ele, vão assegurar a ele, não só a sobrevivência, mas o máximo de qualidade possível, etc, etc. Uma vez feito o atendimento médico, o que vai acontecer, Paulo? Se ele for um criminoso, vai ter a polícia na porta, ele vai ser preso, julgado e condenado. Não compete ao médico utilizar a medicina, o atendimento como forma de punição ou absolvição. Para isso existem as instituições. Agora, o que eu queria deixar claro, e a mim me incomoda o seguinte: a partir do momento que você fala, digamos, por exemplo, das zonas periféricas, das favelas. O abandono das favelas, das zonas periféricas é programado. O Estado quer atender só determinadas faixas da população e o aparelho econômico está salvaguardado, o poder de coerção, de repressão dos quinhentos mil homens das polícias brasileiras, mais um milhão e duzentos mil... Está completamente assegurado. Não há uma crise do Estado.

Sérgio Adorno: Luís, você já esteve em uma favela?

Luís Mir: Já, várias vezes.

Sérgio Adorno: Porque no seu livro, você faz uma qualificação da favela inteiramente no negativo. Você diz que é um lugar da segregação, o lugar do cercamento, tem uma frase muito forte. Vamos dizer que isso seja parte da vida. Agora, o que incomoda é que não é só isso na favela, tá certo? Têm vários estudos mostrando que na favela têm trabalhadores, tem lazer, de uma maneira absolutamente não programada, com condições não muito adequadas, mas tem. Existe vida sociável, embora com muitas dificuldades. Existe trabalho dos movimentos de defesa do direito à vida, vários movimentos, quer dizer, uma quantidade de movimentos, há também uma vida que pulsa. Há também uma vida dinâmica. Então, como é que você explica que esta coisa, quer dizer, lá é só o lugar negativo, como é que também a favela é o lugar que...

Luís Mir: Primeiro, o conceito negativo é teu. Meu conceito é segregação. Para mim, a favela é um campo de concentração. Ali, a perspectiva de vida, a perspectiva econômica, a perspectiva social das pessoas não existe. Ali, quando as pessoas saem, ou elas saem para serviços mal remunerados junto à cidade, junto, digamos, ao aparelho econômico, são garçons, são cozinheiros, são vigilantes... Você não vai dizer que há uma massa de profissionais liberais, que moram dentro da favela. Não existe. Você não vai dizer que existem estruturas profissionais e estruturas de mercado, estruturas industriais ou comerciais dentro da favela. Eu quero lhe dizer, muito claramente, o seguinte: aquela população está condenada por um projeto econômico existente. Não é que ela optou em viver na favela. Sempre que a favela...

Sérgio Adorno: Essa favela que você está falando não existe mais. Na verdade, se você vai aos bairros da periferia hoje, a favela virou cidade. Você tem as casas de alvenaria, você tem as casas, de um modo geral, você vai ter eletrodomésticos, etc - não têm várias outras coisas, talvez você não tenha acesso à educação de qualidade, não tem mesmo. Mas eu acho que essa imagem que você está fazendo da favela é uma imagem antiga. Hoje não dá mais para fazer. Antropólogos que trabalharam com a vida na favela disseram pra mim: "eu estou voltando e começando do zero, porque o que acontecia há dez anos atrás é outra coisa". Eu estou falando isso por quê? Porque eu acho que você está interpretando um pouco a questão da violência muito pela visão das raízes e do passado. Eu acho que você está com dificuldade de entender o presente. Inclusive, entender o impacto dessa violência sobre o sistema de justiça, que eu acho que é um pouco a questão que as pessoas estão colocando aqui. Tem a ver com o problema da impunidade, tem a ver com o problema das instituições, de fato, estão muito aquém do que deveria ser um mínimo de controle social, um mínimo de lei e ordem. Então, eu queria que você pensasse um pouco sobre isso. Eu acho que tem um tom conservador no seu livro, ainda que eu reconheça muito os méritos, o esforço que você fez, que é extremamente meritório, mas por outro lado, ele dá uma visão de "sem saída". Quer dizer, eu não sei, eu, como sociólogo que acredito em mudança social, acredito em criação, em saídas possíveis...Eu não posso… Quer dizer, eu vou ler o seu livro e vou dizer: “bom, fecho o…”

Gilberto Nascimento: ... só complementando a fala do Sérgio Adorno, tem favelas, como a favela de Heliópolis em São Paulo, que é pulsante, é muito viva, um exemplo de projetos, de inovações também, de laboratórios sociais, de certa maneira. E tem muitas ONGs mais sérias que não estão só fazendo o “tamborzinho”. Estão muito preocupadas com a geração de renda e estão desenvolvendo experiências inovadoras, positivas… Que a gente acredita e torce para que o Estado consiga reproduzir essas coisas em larga escala, porque as experiências dos movimentos sociais são super positivas, mas o problema é de ser localizado. O Estado atende no geral, mas atende mal e não consegue resultados.

Luís Mir [interrompendo]: Sérgio, nós estamos falando de dois países diferentes. A tua favela não é a minha favela. Eu troco televisão e liquidificador por dente e educação, sapato roupa…

Sérgio Adorno: Eu não estou negando a desigualdade…

Luís Mir [interrompendo]: A segunda questão que eu digo é a seguinte: eu quero que sejam apresentados dados da atuação das ONGs, dos movimentos da sociedade civil, etc. Eu quero que sejam apresentados em termos de renda. Se você chegar e disser assim: “veja bem, vamos ser muito claros, vamos ser muito honestos, ainda bem que nós temos determinadas organizações sociais amenizando determinadas crises sociais”. Eu não estou questionando o papel dessas instituições. Agora, na favela de Heliópolis, eu li que tem vinte anos de trabalho… Quais são os índices de renda que melhoraram? Qual foi a redistribuição de renda que houve lá? Quais são as escolas que foram instaladas? Qual é o mercado de serviços que se criou lá? Porque nós sabemos muito bem - você que é sociólogo, Sérgio - que o principal problema da miséria é quebrar a corrente. É quebrar a corrente da miséria. É que o filho do segregado não seja segregado, que o filho do analfabeto não seja analfabeto… Agora, esse discurso, digamos, “ah, mas esse é um discurso velho”. É um discurso velho, porque a miséria brasileira é velha. Nós temos problemas… A casa de alvenaria… A casa de alvenaria tem trinta metros quadrados. Ela tem uma laje, quatro paredes e pronto. Eu não estou querendo dizer que, mesmo que algumas migalhas do banquete... Não estou dizendo que não foram redistribuídas. Foram. Nós estamos vivendo uma catástrofe humanitária nas periferias brasileiras. Eu não estou preocupado se a casa tem laje, se tem um liquidificador e um televisor. Acho ótimo. O que estou questionando é o seguinte: está se matando, está se condenando essa população a um grau belicista de cerco, por quê? Porque as raias sociais, as raias da miséria e da pobreza estão encostando nas fronteiras da elite dominante. Tem um conflito.

Paulo Markun: Luís, vamos fazer mais um intervalo e voltamos em seguida.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando Luís Mir, autor do livro Guerra civil: Estado e trauma, que analisa e discute a questão da violência no Brasil. Luís, a pergunta mais recorrente aqui, dos nossos telespectadores - eu vou ler os nomes de todos: Rui Fulgêncio, de Belo Horizonte, Minas Gerais; Domingos Sales, de Brasília, bancário aposentado; Paulo Naner, de Vila Clementino, São Paulo, administrador; e também Adelaide Moura, da Vila Gustavo; e, finalmente, o arquiteto Mário Renato Maina, de Porto Alegre. Querem saber o seguinte: por que não se fala em controle de natalidade? Qual é o número de filhos que os pobres têm que ter? Como se pode reduzir a quantidade de miseráveis deste país?

Luís Mir: Bom, nós temos a questão do controle da natalidade… Nós temos o exemplo mais flagrante, em termos internacionais, que é o da China, que decidiu um filho [por] casal. Bom, enfim... Em 1970 o Brasil tinha noventa milhões de habitantes. Vocês lembram o “hinozinho” - "noventa milhões em ação" [Refere-se ao hino feito para a Copa do Mundo de 1970]. Esses noventa milhões em ação viraram cento e oitenta em 25 anos. Não tem emprego, não tem casa… Não tem nem país… Quer dizer, o país precisaria ter crescido a 1000% ao ano para dar casa, emprego, saúde, etc, condições mínimas de vida. Sobre o controle da natalidade: o controle da natalidade nesse país é visto como arma social. Por quê? Voltando ao que eu tinha conversado, Sérgio, quando digo que existe uma pirâmide de programação social, quero dizer o seguinte: se nós pegarmos a educação, são milhares de professores que vão educar milhões de alunos e esses milhões de alunos vão ter que ter mercado de trabalho. Mercado de trabalho representa bilhões de renda transferida, etc. Chamo isso de programação social. Não vou chegar e dizer que sou contra o controle de natalidade. Sou contra o controle de natalidade a ponto, inclusive, de defender a desocupação gradativa humana do planeta. Nós estamos matando o planeta com a ocupação humana. Acho que nós temos que diminuir. Chegar a um bilhão e “tchau”. Agora, voltando, digamos, ao controle da natalidade. Chega uma pessoa e diz: “não, você não vai ter filhos”. A pessoa mora na favela…

Renato Lombardi [interrompendo]: Vou te contar depois a história do traficante que proibiu os filhos na favela…

Luís Mir: Isso. O controle da natalidade é uma questão básica de projeto estratégico de país. Em 1973, vocês conhecem muito bem, o estudo de Langoni [autor do livro Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil, referência importante na área econômica, o autor afirma que durante o período conhecido como milagre econômico, a baixa oferta de mão-de-obra qualificada, aliada ao aumento na sua demanda, foram os principais responsáveis pela alta da desigualdade brasileira observada nos anos 1960. A tese de Langoni é ainda usada nos anos 2000, para explicar as desigualdades econômicas do país] sobre a desigualdade no país. Voltando à questão, você conhece o estudo de Langoni, Carlos Langoni…?

Paulo Markun: Aliás, o principal adversário dele foi, depois, o ministro Pedro Malan [ministro da Fazenda durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso pelo PSDB (1995 - 2002)].

Luís Mir:Isso. Então, Langoni já alertava em 1973 - nesse clássico estudo da desigualdade - o que está por vir. Nada do que está acontecendo, Nely, é coisa de um ano, dois anos. “A serpente colocou esses ovos” há muito tempo. Há muito tempo que a serpente vem colocando ovos neste país. Há muito tempo que o fascismo [corrente ideológica originada na ditadura de Benito Mussolini na Itália (1922 a 1945) cujo termo permanece como sinônimo de autoristarismo, seja do Estado, seja de pessoas] vem matando, trucidando este país, das mais variadas formas, às vezes sob discursos muito modernos… Porque se existe uma coisa que a elite brasileira tem é a capacidade de adaptação. Eles conseguiram fazer a transição da Colônia para a independência com valores aparentemente vindos da Ilustração [movimento iluminista], do Romantismo e até da Modernidade para perpetuar a escravidão…

Renato Lombardi: Olha, deixe-me contar uma coisa…

Luís Mir: Só terminando. Sobre o controle da natalidade - voltando à pergunta do telespectador - sou favorável.

Renato Lombardi: Olha, o controle da natalidade [...] tem uma favela em São Paulo, chama-se favela do Buraco Quente, que fica no aeroporto…

Luis Mir: Já ouvi falar…

Renato Lombardi: ...Tem um traficante lá que mandava na favela. O traficante deu uma ordem: a mulher que tivesse filho na favela seria expulsa porque… Tinha mulher que tinha três, quatro filhos e cada um tinha um pai diferente. E ele deu ordem. Ele determinou, porque ele que comprava a cesta básica e o remédio, ele decretou o controle da natalidade. E aí, um dia, esse sujeito foi preso, foi quando eu o entrevistei e aí o governo resolveu tomar conta da favela e instalou uma série de outras coisas na favela. Quer dizer, o traficante decidiu decretar o controle da natalidade numa favela. Isso é um absurdo.

Luís Mir: Isso porque era um custo para ele. Deixe-me dizer o seguinte: nós não podemos perder uma coisa, esse traficante pagava a cesta básica e “protegia” os moradores por quê? Porque é o escudo dele, é o escudo dele contra a polícia, contra olheiros, contra… O problema é o seguinte: há determinados setores das populações faveladas que não tomam partidos nem pela criminalidade e nem pela polícia.

Paulo Markun: Por que você diz que não há crime organizado no Brasil?

Renato Lombardi: A droga não é um crime organizado? O contrabando não é organizado? O roubo de carga não é organizado?

Paulo Markun: Isto está textual no seu livro. Você diz o seguinte: “Temos a macro criminalidade econômica, que é contrabando, crimes econômicos, financeiros, apropriação do patrimônio público, corrupção. Mas não há crime organizado no Brasil, como nos Estados Unidos e na Itália”. E vai mais: “o berço da nossa criminalidade pública e privada é um conjunto de oportunidades materiais negadas à maioria da população, conflitos étnicos e sociais seculares e uma máquina governamental corrompida”. Quer dizer, não há crime organizado?

Luís Mir: Não, no sentido clássico. Se nós pegarmos o discurso latino, o norte-americano, o italiano são duas coisas bastante caracterizadas de crime organizado. Primeiro: não existem no Brasil sociedades criminosas, e sim quadrilhas. Dois: essas quadrilhas são específicas. As quadrilhas não podem mais assaltar os bancos, os bancos estão com um sistema de vigilância - satélite, helicóptero, armas maravilhosas... E eles partiram, ou para o crime personalizado, individual, o seqüestro relâmpago. Porque não dá mais para roubar com pistola, nem o gerente, nem o caixa. Ou eles partiram para o roubo de cargas. São sempre encomendas. Veja bem, se uma quadrilha, por mais organizada e poderosa que seja - Nely, você que cobre a área econômica - rouba uma carreta com dois mil televisores, vai para onde isso? Vai para o quintal dele? Vai distribuir entre os vizinhos?

Renato Lombardi: Por isso é organizado. Ele tem quem rouba, quem levante, apanhe, entregue, até quem venda. Isso, pra mim, é organização.

Nely Caixeta: E quem compre.

Renato Lombardi: Isso é organização.

Luís Mir: A grande diferença… Crime organizado é quando você controla desde o roubo até a venda final. O crime organizado brasileiro não é esse, eles vão lá, eles pegam, assaltam, entregam para aquele comerciante que esquenta a nota. Aí o comerciante que esquenta a nota vende aquela mercadoria legal… O que eu quero dizer é o seguinte: se você pegar o crime organizado em Nova York, eles controlam o quê? Eles controlam os sindicatos, eles controlam as lavanderias…

Sérgio Adorno: Você leu, por acaso, a CPI do narcotráfico?

Luís Mir: Li.

Sérgio Adorno: A CPI do Narcotráfico é muito clara. Ela deu [um fragmento] do que deve ser a rede de corrupção e do narcotráfico do país, ali você vê claro. Tem um encadeamento, começo, meio e fim. Há divisão de trabalho, hierarquia de poder, responsabilidades definidas. É mais do que organizado… Você está dizendo assim: “bom, não é a mesma coisa…” Máfia não houve aqui mesmo. Nós não estamos discutindo [isso] aqui. Temos crime organizado… Você pode até dizer que o crime organizado não se generalizou. A gente pode entrar numa discussão dessa natureza. Mas, dizer que não há crime organizado no Brasil, eu acho que é uma afirmação um pouco discutível.

Luís Mir: Não, pelo seguinte… Eu estou aberto à discussão. Eu acho que o crime organizado - lato sensu - a exemplo do italiano, a exemplo do norte-americano não existe. Dois, essas quadrilhas, elas não têm inserção nacional…

Paulo Markun [interrompendo]: Mas você diz mais, Luís.

Luís Mir: Espera aí, deixe só eu terminar… Essas quadrilhas não têm inserção nacional, Sérgio. A quadrilha que rouba cargas em São Paulo, o máximo que ela vai é até Belo Horizonte. Agora, ela é incapaz de fazer Recife, Salvador…

Renato Lombardi: Não, ela vai, ela vai.

Luís Mir: Não vai.

Renato Lombardi: Dou exemplos de grupos que roubam aqui e vendem no Nordeste, roubam aqui e vendem no Sul, no Centro-Oeste… Desencadeou uma…

Luís Mir: A venda não é apropriação. São duas coisas diferentes.

Renato Lombardi: Não, mas é o final da história.

Luís Mir: Sim, mas o final da história é um final comercial, não da quadrilha… Não é a quadrilha que vende.

Sérgio Adorno: É a cadeia produtiva.

[Sobreposição de vozes]

Luís Mir: A cadeia produtiva não se mescla com a quadrilha, porque a quadrilha tem métodos violentos, armas etc. O que eles querem é o produto no estoque, eles não querem envolvimento com as quadrilhas, tanto que as quadrilhas são alugadas. As quadrilhas são alugadas…

Renato Lombardi: É organização isso, é organização…

Nely Caixeta: Comprar sem nota é crime. Quem compra sem nota - eu como consumidora, estou comprando sem nota, participando da criminalidade, é tudo uma cadeia… Um elo da mesma cadeia.

Renato Lombardi: Tem uma ponta de quem rouba e uma ponta de quem vende. Nesse meio aqui, o grupo está bem montado.

Luís Mir: Renato deixe-me só lhe fazer a seguinte pergunta: quais são os maiores traficantes de drogas de São Paulo - você que conhece a área?

Renato Lombardi: São vários. Aqui é disperso, aqui é bem disperso, é diferente…

Luís Mir: Quanto você acha que o tráfico movimenta em São Paulo?

Renato Lombardi: Muito dinheiro. Eu não sei, mas muito dinheiro…

Luís Mir: Onde está esse dinheiro?

Renato Lombardi: Ué, deve estar… Tem gente que está vendendo propriedades para entrar no narcotráfico. Você vê que toda semana fazendeiros são presos, empresários são presos…

Luís Mir: Voltando ao que o Sérgio levantou, é o seguinte: primeiro, então, o tráfico é um problema comercial, antes de ser criminal, porque as pessoas querem entrar num negócio antes de entrar no crime. Os usuários são um problema de saúde pública. O que eu estou querendo apenas discutir com vocês é que nós não podemos falar, nesse país, de crime organizado nas lavanderias, crime organizado dos restaurantes, crime organizado nas ocupações territoriais, de determinadas coisas e o crime organizado no seguinte sentido, por exemplo, para mim, a contradição do crime organizado é o mesmo caso para entender…

Paulo Markun: Luís, nosso tempo está acabando. Temos menos de um minuto. Eu queria entender, como é que você, depois de todo esse diagnóstico sombrio, consegue terminar o livro com uma citação de Kant [(1724-1804) filósofo alemão, autor de Fundamentação da metafísica dos costumesA crítica da razão prática, entre outros], dizendo que "ninguém pode ou deve decidir qual vai ser o grau mais alto a partir do qual o homem deixaria de progredir". Qual é a distância entre idéia e execução, ou seja, o papel da liberdade? Como é que você… Onde é que você ancora otimismo, se é que você tem otimismo, em relação a essa possibilidade?

Luís Mir: O dia que eu acordar amanhã, que meus filhos forem para a escola, em que eu botar o pé pra fora e a pessoa que estiver passando na calçada for o meu inimigo e eu me sentir tentado a colocar a mão sobre a pistola e me defender… Não quero viver nessa sociedade. Eu não quero viver, eu estou fora. Não me coloquem nessa sociedade, não me chamem pra essa festa e também não vou culpar ninguém por não me convidar para essa festa, mas eu não quero… No momento que eu olhar o meu semelhante, que compartilha o mesmo espaço urbano, o mesmo espaço cultural, que pode ter a intenção de me dizer… No momento que eu não puder ser igual a ele, não quero viver mais.

Paulo Markun: Luís, muito obrigado pela sua entrevista, muito obrigado aos nossos entrevistadores, à nossa platéia e a você que está em casa e nós voltaremos na próxima segunda-feira com mais um Roda Viva. Uma ótima noite e até segunda.

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