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Memória Roda Viva

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Sebastião Salgado

17/4/2000

Um dos mais importantes fotógrafos documentaristas da atualidade fala de seu último livro Êxodos e de seu trabalho engajado

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[programa ao vivo]

Paulo Markun: Boa noite. Ele visitou uma humanidade ameaçada. Dessa viagem assustadora trouxe um dramático álbum de fotografia. O Roda Viva entrevista, esta noite, Sebastião Salgado, considerado um dos mais importantes fotógrafos documentaristas

[Comentarista]: "O economista que virou fotógrafo e ganhou fama de mestre da fotografia humanitária volta ao Brasil mobilizado pelo tema que nas últimas décadas o levou a viajar pelos cinco continentes para retratar a condição humana e revelar as desigualdades no mundo. O mais recente trabalho desse fotógrafo da dor humana, fruto de sete anos de investigação fotográfica, em mais de quarenta países está reunido em dois livros, que acabam de ser editados e transformados em uma exposição no Sesc Pompéia, em São Paulo. A exposição, que já estreou em Paris e Nova York, vai circular dois anos pelo Brasil, além de outras vinte outras grandes cidades do mundo. Sebastião Salgado quer provocar entre as pessoas um debate: a preocupação sobre um drama da humanidade neste final de século, o êxodo de milhões de indivíduos no mundo empurrados pelas perseguições políticas, pela luta por terras, pela fome e pelas guerras. Êxodos - título da exposição e do livro, é um retrato em branco e preto dessa luta pela sobrevivência, dessa aventura pela reorganização da família humana de praticamente todos os países do mundo. O fotógrafo escreve que o livro é a história da humanidade em trânsito. Uma história perturbadora, porque poucas pessoas abandonam a terra natal por vontade própria, se tornam migrantes, refugiados ou exilados constrangidos por forças que não podem controlar. E partem com o que conseguem levar, deixando para trás suas histórias, suas identidades. E vão como podem. Se penduram em trens, se lançam ao mar em frágeis embarcações, onde muitas vezes só o barco chega à alguma praia, ou vão à pé, mesmo sem saber para onde estão indo. Só estão aliviados por estarem vivos. E, quando chegam a algum lugar, descobrem que continuam excluídos. Sem lugar nesse novo mundo, ficam às margens da cidade grande, vendo o sonho libertário se desfazer nas ruas e até mesmo em alguma prisão. Sebastião Salgado diz que o livro é a história de 85% da população do mundo. A triste história de um imenso contingente humano à procura de um lugar e de um horizonte no mundo civilizado".

Paulo Markun: Para entrevistar o fotógrafo Sebastião Salgado nós convidamos: o cientista social e advogado Guilherme Lustosa da Cunha, ex-representante regional do Alto Comissariado da ONU para Refugiados; o jornalista José Arbex, editor executivo da revista Caros Amigos; o sociólogo Danilo Miranda, diretor regional do Sesc de São Paulo; a fotógrafa Maureen Bisilliat, curadora do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina; o cientista social Miguel Chaia, coordenador do núcleo Arte, Mídia e Política da PUC de São Paulo; e o jornalista Reinaldo Azevedo, editor chefe das revistas Bravo e República. O Roda Viva, você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília [...] Boa noite, Salgado.

Sebastião Salgado: Boa noite.

Paulo Markun: No final da introdução do prefácio do seu livro Êxodos, você diz taxativamente que a humanidade está ameaçada. Eu pergunto se para muita gente não é um pedaço da humanidade que está ameaçado, [se] são eles que estão ameaçados e não nós. Porque, às vezes, eu tenho a impressão que essa tragédia que você retrata, e que não tem endereço, nunca é na casa da gente, é sempre... Da gente que eu digo, nós, que estamos falando ao vivo este programa, enfim, apartados desse drama.

Sebastião Salgado: Eu acho que, num primeiro instante são... Esses 85% que eu falei estão ameaçados. Os 15% se consideram muito protegidos. Mas eu acho que essa proteção é relativa. E se não for para um debate mais aberto, para uma discussão mais ampla do problema da distribuição de renda no mundo hoje, um pouco da repartição, eu acho que todo mundo está ameaçado. Hoje, quando a gente fala de globalidade, realmente há. Nós todos, hoje, estamos dentro de um só sistema. Mesmo os países ultra protegidos do norte eles não estão seguros, realmente, de que a situação pode se manter no status quo, indefinidamente. Por exemplo, o que passou em Los Angeles há alguns anos atrás, quando três ou quatro policiais brancos agrediram um senhor negro e a desorganização que houve em torno de Los Angeles em algumas horas, alguns dias [caso  Rodney King]. Se isso coincidisse, talvez, com uma crise bastante forte do mercado financeiro e se essa crise se estendesse por mais algumas cidades americanas... Quando a gente viaja nas periferias das cidades americanas, Filadélfia, cidade média como [...], ou como Rochester [próxima a Nova Iorque], a gente começa a ver que a periferia das cidades americanas vivem sob uma tensão imensa, têm um cordão de pobreza muito forte. Então, eu acho que se desorganiza o sistema de uma vez é perigoso. Mas se desorganiza uma parte do sistema, como os Estados Unidos, em que se perdeu o controle do mercado financeiro, do mercado, da economia [refere-se à crise da internet ou das ponto com], um pouco da distribuição, a gente arrisca de queimar muito rápido. Eu acho que essa segurança que as pessoas têm, que acreditam que tendo uma bela conta no banco, um automóvel, uma casa é uma segurança para o resto da vida, não é. Vou te dar um exemplo. A Alemanha, por exemplo, em 1945. O que aconteceu em 1945 com os alemães... Em 1939, os alemães tinham uma situação invejável na Europa. Era fabuloso. Contas em banco, Mercedez Benz, fantástica. Seis anos depois, os alemães estavam na beira da estrada, esticando a mão, como os refugiados que eu acabei de fotografar. O caso da ex-Iugoslávia, que era um país relativamente equilibrado, relativamente tranqüilo e, em poucos anos, a Iugoslávia se desorganizou de uma maneira fenomenal, era realmente um país desenvolvido em termos sociais, econômicos, em termos de educação... [refere-se aos sucessivos conflitos separatistas nas províncias de Kosovo e Bósnia-Herzegovina que ocorreram nos anos 1990] O caso de Ruanda, eu conheci bem Ruanda. Eu trabalhei em Ruanda pela primeira vez em 1971. Fui como economista, trabalhando com a Organização Internacional do Café.  Eu trabalhava em uma espécie de banco de investimento, que era o fundo de diversificação. E Ruanda é um país muito organizado, bastante equilibrado e com uma distribuição de renda bastante eqüitativa. Eu voltei em Ruanda várias vezes. Em 1991, quando eu voltei a Ruanda, eu já pressenti que alguma coisa não ia...[massacre de Ruanda]

Reinaldo Azevedo: Salgado, seja nos protestos que houve em Seattle agora, nos Estados Unidos, por conta da reunião do Banco Mundial com o FMI. Enfim, houve uma verdadeira batalha campal ali [Batalha de Seattle]. E você percebe com um simples olhar. Ao olhar para as pessoas que estão ali protestando, que você tem, de algum modo, a classe média, informada, que está protestando. Está protestando em nome, digamos, do que se passa no Terceiro Mundo ou contra as misérias do Terceiro Mundo. Olhando as suas imagens a despeito da beleza delas, e a gente pode discutir depois o que é belo aí. Mas também parece que não há grandes motivos para esperança. Quer dizer, eu diria que no livro Êxodos, eu, certamente, não encheria os dedos das duas mãos se eu fosse escolher as fotos em que há um certo respiro, uma certa esperança sendo vislumbrada ali. No mais, o que me parece é que há um certo desconsolo, uma certa visão amarga, que coincide com o que você diz na introdução do livro, quando você diz: "Quando eu estava escrevendo esse livro, eu achava que a humanidade avançava em um rumo positivo.” Parece que você acha que não avança mais. Então, eu te pergunto: os deserdados, as pessoas em trânsito, não parecem capazes de se organizar para mudar o sistema. Os que pressionam contra o sistema, de algum modo, fazem parte, são a minoria radicalizada oriunda desse mesmo sistema. Eu queria saber onde está o ponto de escape, na sua opinião, se há algum ponto de escape.

Sebastião Salgado: Eu acho que tem um ponto de escape. Tem uma possibilidade. Seria realizar um debate, o mais aberto possível. As pessoas, de uma maneira geral, na parte protegida do mundo, quando eu falo que 85% vive um pouco a situação que eu fotografei, eu acho, realmente, que tem. Eu acho que tem mais ou menos uns 15% da população do mundo que fez uma fuga em direção ao futuro. E deixou atrás 85% do resto da população. Existe essa concentração de renda brutal... em uma parte do mundo tem uma sociedade, como a nossa brasileira, não é isso, a gente sabe... Nós temos uma renda per capita aritmética incrível, é realmente incrível, fabulosa. E a gente sabe que o salário mínimo aqui no Brasil o que ele é. Então, a gente vê que aqui é verdade essa fuga em direção ao futuro. Mas eu acho que se a gente conseguir ir em direção a um debate, um debate realmente com a sociedade, a gente tem uma discussão ética muito séria, de redistribuição de renda, uma discussão política. E se todo mundo tomar um pouco a sério, eu acho que nós temos recursos suficientes para resolver o problema.

Miguel Chaia: Sebastião, esse problema não é muito mais amplo? Ou seja, você tem visitado campos de refugiados. [locais provisórios criados por organizações não-governamentais (ONGs) com o objetivo de receber refugiados de diversas regiões. Geralmente, são acampamentos estruturados com o básico necessário para a sobrevivência, como locais para dormir, suprimentos médicos etc.]  E até gostaria que você fizesse algumas observações dessa qualificação de campos de refugiados. Até onde eles são campos de concentração, ou até onde eles são sistemas espacialmente, digamos, legitimados pela ONU? Mas, veja. Nós estamos falando de campos de refugiados que podem e existem nas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, vamos pensar nas cidades brasileiras. São condomínios fechados, quer dizer, é o mesmo com o centro da cidade que você não pode freqüentar à noite. Então, uma questão que se coloca é essa da intolerância, que talvez exista nas cidades, que você vem observando. A fotografia e o cinema mostram bastante e com muita riqueza essa questão da intolerância.  Desde Griffith [David Llewelyn Wark (1875- 1948) diretor de cinema. Refere-se ao filme Intolerância (1916), que mostra quatro histórias sobre a intolerância através dos tempos, uma delas trata da luta entre capital e trabalho nos EUA no início do século XX], até Sebastião Salgado, nós estamos [em uma] verdade mundial, [onde] a questão da intolerância é tratada. Então, quer dizer, a sociedade se preocupa constantemente em segregar, em separar determinadas populações, determinados contingentes. Desde o doente mental até uma determinada etnia. Então, eu lhe pergunto: o que é campo de refugiados para você? Esses campos de refugiados se dão apenas na Ásia, na África, nessas zonas rurais, ou também nas zonas urbanas, nas grandes metrópoles? Qual é a natureza deles? E, na sua experiência, visitando esses campos de refugiados nas suas andanças, você sente que a intolerância pode ser resolvida por esses meios formais? Hoje, uma nova democracia permite o controle ou que se evite a intolerância? Mesmo você dizendo que passando da idéia de revolução, que até antes você defendia, hoje você fala mais nessa democracia participativa, não é? Sem dúvida nenhuma, é um caminho, não se deve fechar. Mas como é agora a figura do homem que sente a humanidade em face dessa questão da segregação e da intolerância?

Sebastião Salgado: Olha, voltando para a questão de base, que é a questão do campo de refugiados, tem uma definição oficial nas Nações Unidas de campo de refugiados, teoricamente protegidos, localizados bem próximos de uma fronteira, ou onde as pessoas são confinadas, colocadas juntas. E aí dentro tem uma quantidade de aspectos diferentes. Tem campo de refugiado onde ele é totalmente aceito, acolhido pela população local. Outros onde as comunidades, onde o campo é implantado, [a comunidade] não aceita e recebe o campo mal, as pessoas são agredidas, vivem realmente muito mais em uma prisão do que num campo. Tem campos que são verdadeiras prisões. O campo que eu fotografei dentro da cidade de Hong Kong, tinha a renda per capita mais alta do planeta, pertencia à Inglaterra, pertencia ao Mercado Comum Europeu, com a quantidade imensa de organizações de lutas pelo direito civil, pelos direito humanos. E pessoas que caíram na prisão, onde metade dos prisioneiros eram crianças nascidas na prisão, [lá] não tinha prisioneiros que eram criminosos, mas eram tratados como criminosos dentro de uma prisão mais terrível possível. E você pode [ir] sofisticando, mudando a categoria até chegar, realmente, em uma periferia de uma cidade como São Paulo, ou em determinados guetos que existe aqui dentro dessa cidade, são verdadeiros campos de refugiados. Eu encontrei, por exemplo, a maioria das pessoas... Eu trabalhei muito em São Paulo, fotografando nesse projeto... porque eu fotografei nove grandes cidades que se parecem muito, para mim são as cidades do futuro: Cidade do México, São Paulo, Jacarta, Bombaim e uma série de outras na Ásia. Talvez eu tenha fotografado uma cidade de 150, 180 milhões de habitantes, onde São Paulo é um bairro dessa cidade, podemos pensar dessa forma. E aí, [lá] dentro, isso se parece demais. Tem uma quantidade de populações excluídas que vivem de uma maneira incrível, que dependem de ajuda, que não tem possibilidade nenhuma de reintegração, [uma população] descriminada e que se parece muito. Aí a discussão pode se abrir. Quando eu falei que eu acho que a gente tem que ir em direção a uma discussão... Eu acho que a gente tem que encontrar uma forma. Eu não tenho uma forma. Eu só vi. Eu só apreciei durante sete anos. Eu fiz um corte representativo do que eu considero um pouco dessa sociedade que a gente vive. E, hoje, essa exposição, esses livros, uma série de filmes que a gente está fazendo, eu acho que é uma matéria para provocar uma discussão. O que eu quero com isso é, realmente, provocar uma discussão. Mas a solução eu não tenho. Eu constato. Nós vamos discutir a partir desse corte representativo, onde eu também quero aprender.

José Arbex: Eu vou fazer uma questão que acho importante. Por uma coincidência imensa, hoje se completam quatro anos do massacre de Eldorado dos Carajás, onde a polícia militar do Pará assassinou dezenove honrados e honestos trabalhadores sem-terra. E a boa notícia é que o Estado brasileiro, por causa de um monte de pressão, foi obrigado a anular o julgamento que absolveu os comandantes militares do massacre. Então, eu acho que é uma boa notícia, a gente tem que comemorar. Agora, a pergunta que eu quero te fazer é a seguinte. Eu queria que você comparasse um pouco a condição desses trabalhadores sem-terra, que você fotografou, com aquilo que você viu no resto do mundo. Porque a gente, em geral, tem a impressão que o inferno é do lado de lá, que aqui não tem inferno, que o Brasil é um país bonzinho, um país de integração racial, o Brasil é uma democracia, no Brasil todo mundo se dá bem, o Brasil é bonitinho... Parece que o inferno não existe no Brasil, o inferno são os outros países. Eu queria que você contasse um pouco na tua relação com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], com o pessoal do MST, com o pessoal sem-terra, comparasse um pouco a situação deles com a que você viu em Ruanda e em todos os países que você fotografou.

Sebastião Salgado: Olha, pegando do ponto de vista até... racismo no Brasil, eu acho que o Brasil é um país profundamente racista, profundamente. A gente vê o comportamento que houve na nossa história, primeiro com os indígenas, depois com os negros que chegavam aqui. O tratamento recebido, que recebem até hoje... E hoje o problema desse grupo, que fez uma fuga em direção ao futuro, e a maneira que se trata no Brasil uma parte pobre da população, mesmo se ela é branca... A discriminação foi tanta que hoje ela é considerada quase como uma sub-raça. Então, eu acho que o problema é muito sério. Eu até hoje acho, e acho seriamente: dos movimentos mais sérios nesse país, o movimento sem-terra é um dos poucos movimentos que luta pela cidadania no Brasil. E eu tenho um respeito imenso pelo trabalho dos sem-terra. Eles foram altamente “diabolizados” no Brasil, não é isso? Mas quando você viaja pelo interior do Brasil, como eu viajei, para fazer esse trabalho que está sendo apresentado aqui, onde os sem-terra são uma pequena parte... mas foi transformada em um livro. Nós publicamos aqui em 1997, também pela Companhia das Letras [refere-se ao livro Terra. Está incluído no livro um CD com quatro músicas de compositores brasileiros importantes, entre esses, Chico Buarque de Hollanda. O prefácio do livro é de autoria de José Saramago. O livro se transformou em exposição de mesmo nome]. Eu pude observar um comportamento muito interessante. Na realidade, além de militar pela integração social do homem, através de escolas, através de informação, transformando realmente o cidadão, o movimento sem-terra, eu acho, que é um dos agentes principais de formação de consumidores nesse país. É um movimento de redistribuição de renda. Eu vi, em determinadas regiões, por exemplo, no sul da Bahia, uma cidade chamada Itamaraju. A quantidade de assentados e a transformação da cidade, na medida em que os assentamentos foram começando a funcionar; o movimento sem-terra tem um mecanismo muito interessante de comercialização de produtos que as pessoas não falam. Às vezes, as pessoas só falam que a questão é só a busca da terra e terminou. De forma alguma. Eles têm um nível técnico bastante interessante, têm um corpo técnico móvel que flutua nesse país, assistindo as cooperativas, os assentamentos, e um corpo muito interessante, bastante agressivo, de identificação de mercado para os produtos. Na realidade, existe uma melhoria enorme do nível de renda dessas populações [que] se transformam em consumidores e resolvem o problema de comércio, de indústria, de uma maneira muito interessante. Eu acho que é um movimento que tinha que ser visto de uma maneira muito mais respeitosa e carinhosa pela população brasileira e pelas autoridades brasileiras.

Guilherme L. da Cunha: Sebastião, eu gostaria demais de felicitá-lo pela sua obra. Como ex-funcionário das Nações Unidas, eu acho que você é um testemunho solidário, fraterno, da miséria humana, da barbárie que coexiste com a vida daqueles que comem três vezes por dia. As Nações Unidas, sobretudo a parte humanitária das Nações Unidas, a organização na qual eu trabalhei vinte anos, que é o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, tem se batido para proteger, assistir e melhorar a sorte de 22 milhões de refugiados que existem no mundo. As suas fotos nos interpelam e nos condenam ao mesmo tempo. É como se elas indicassem um crime, que nós todos somos responsáveis pela sua execução. Alguém diz que você utiliza a sua câmera Leica [marca de câmera fotográfica] como se fosse um microfone. Eu lhe pergunto: de que maneira você acha que a voz dos "debaixo", a voz dos abandonados pela história chega aos governos dos Estados membros da comunidade internacional e [de maneira que] seja capaz de mobilizar esses governos para elaborar políticas públicas para atenuar essa barbárie que você mostra de maneira tão extraordinária na sua obra?

Sebastião Salgado: Olha, eu acho muito difícil você sensibilizar a burocracia. Eu realmente acho muito difícil. Eu, se tivesse, se eu acreditasse que as minhas fotografias pudessem fazer efeito, seria com a base e não com a cúpula que dirige os países. Eu, quando vejo as Nações Unidas... eu trabalhei muito com as Nações Unidas, trabalhei muito, como você sabe, com o Alto Comissionariado das Nações Unidas para os Refugiados. Eu tenho um respeito enorme por esse departamento. As Nações Unidas são uma enorme burocracia que as pessoas acreditam que é ineficaz. Eu acho que têm determinadas coisas nas Nações Unidas que são altamente eficazes. Por exemplo, o tratado de paz em Moçambique as pessoas não comentam muito. Mas foi uma coisa fabulosa.  Foi possível terminar 18 anos de guerra, a população voltar ao país e tentar juntos fazer uma outra coisa na sociedade. O que houve em Ruanda, as Nações Unidas foram muito acusadas. As tropas que estavam dentro de Kiliari, se tivessem, no primeiro momento, tido realmente uma ação séria, a gente teria poupado possivelmente oitocentas mil vidas que foram assassinadas no massacre que houve. E mais: os milhões de refugiados, com centenas de milhares de mortos, foi uma catástrofe imensa. Mas, a gente acusa as Nações Unidas. E aí a culpa não foi das Nações Unidas. A culpa foi da enorme burocracia mundial que [é representada pelas] Nações Unidas. Porque as Nações Unidas são a adição dos governos de todos os países. Quer dizer, é a nossa burocracia que está refletida ali dentro. E, no momento de Ruanda, se o Conselho de Segurança das Nações Unidas tivesse aceitado o que as Nações Unidas informaram, que estava indo em direção a um genocídio brutal e eram necessários [aproximadamente] cinco milhões de dólares... As tropas da Nigéria estavam dispostas, prontas, [a] embarcarem para Kiliari, e se tivessem tomado determinadas posições no centro da cidade, teriam evitado, sem nenhuma dúvida, o genocídio que houve. E, simplesmente, por cinco milhões de dólares não houve respeito a essas pessoas, e foi o que foi. A desarticulação não só de Ruanda, de Burundi, hoje do Zaire... e são milhões de mortos em função de uma pequena indecisão burocrática, não mais do que isso.

Guilherme L. da Cunha: Os países que compõem...

Sebastião Salgado: Os países que chegaram a essa indecisão eram [de] o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que não é mais as Nações Unidas. São os países que formam o Conselho de Segurança.

Guilherme L. da Cunha: Exatamente.

Sebastião Salgado: São as nossas burocracias, das quais somos responsáveis, indiretamente somos responsáveis.

Danilo Miranda: Sebastião, eu pretendia trazer um pouco a discussão para essa nossa realidade atual aqui. Falando um pouco da exposição e do trabalho que você tem nesse momento mostrando aqui no Brasil, depois de uma experiência, já acumulando várias outras exposições que você tem feito, enfim. Essa exposição de agora, a Êxodos, e o trabalho em cima das crianças do Êxodos, retratam naturalmente uma experiência muito ímpar, muito especial, que você já vem acalentando, preparando há alguns anos. E é um projeto muito abrangente. Você está lidando, ao mesmo tempo, com fotografia, que é a sua linguagem principal e, além disso, você tem filmes, um trabalho, digamos, didático em cima desse material todo, trabalhando um pouco o making of etc. É uma experiência, portanto, muito especial, muito nova. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre essa questão de realizar um projeto com essa abrangência, com esse volume, trazendo essa informação tão vasta, tão grande, no mundo inteiro, para uma realidade como a nossa. Vivendo, portanto, uma situação muito própria do Brasil hoje, é para uma formação de novos brasileiros, não fotógrafos necessariamente, pessoas que estão interessadas em conhecer essa realidade. Você fala do debate, da necessidade, talvez da única saída, o diálogo, o debate, a solução para esse gap tremendo entre aqueles que têm mais e aqueles que não têm. Até que ponto essa exposição, e tudo que ela representa seja aqui no Brasil, seja nos diversos países em que estão acontecendo essa exposição e que vão acontecer ainda no futuro... como você vê, digamos, a repercussão de tudo isso? E como você imagina que você vai alcançar isso no futuro?

Sebastião Salgado: Eu acho que a questão é muito boa. Eu vou pedir a todo mundo me deixar falar um pouquinho, porque o projeto é tão largo, é tão abrangente e a gente conhece quase que só uma faceta dele aqui no Brasil. É um projeto onde nós estamos apresentando quase que simultaneamente em oito países ao mesmo tempo. Além dos livros, além dessa exposição de base, que nós estamos apresentando no Sesc, nós temos trinta filmes de três minutos cada um, que foram realizados na França pelo Canal Plus, onde a pequena agência de impressos que nós temos produziu, com uma companhia de produção chamada Riff e o Canal 3, trinta filmes. Neles a gente utiliza só as fotografias, onde eu faço pessoalmente os comentários e com um pouco de música. São vinhetas de três minutos que estão sendo apresentadas na França. Serão apresentadas durante quarenta dias. Começou no dia 28 de março e vai até o dia cinco de maio. Esses filmes serão apresentados aqui no Brasil. A GNT vai apresentar os filmes no Brasil a partir do mês de junho. Nós estamos também fazendo um filme longa metragem com um ator e produtor americano, que é o Tim Robbins [participou como ator de vários filmes, entre esses, Um sonho de liberdade (1994), Short curts: cenas da vida (1993), entre outros], que é exatamente um filme a partir também das fotografias. O José Saramago e o John Bern [Nielsen], escritor inglês, estão trabalhando o roteiro do filme, que está começando agora. Nós devemos apresentar o filme nas Nações Unidas no mês de setembro em Nova Iorque. Nós estamos organizando uma exposição no momento da Assembléia do Milênio [reunião de chefes de Estado promovida pela ONU em setembro de 2000], onde todos os presidentes do mundo virão na ONU e com uma projeção de slides que se aproxima um pouco às projeções que nós estamos fazendo aqui no Sesc, para esses presidentes, que vêem os países que estão sofrendo o que eu fotografei, para que eles possam aprender um pouco da [sua] realidade que muitas vezes eles mesmos não conhecem. E essas exposições também estão sendo organizadas em cada país de uma forma muito especial. No Brasil, além da exposição que nós temos no Sesc, nós temos mil jogos de exposição feitos a partir de pôsteres. São kits de pôsteres, são sessenta pôsteres distribuídos como kits, e um pouco a rede da cidadania, onde têm as pastorais. Tem o movimento sem-terra, centrais indígenas, centrais sindicais. Vão distribuir no Brasil daqui a quinze dias, cobrindo praticamente o território nacional. Nós temos um programa muito interessante, educacional, que estamos organizando com o Sesc, e a maioria das pessoas não sabe ainda desse programa. Três professoras da USP organizaram uma espécie de cartilha onde, através do Sesc no estado de São Paulo e, principalmente, na periferia da cidade de São Paulo, nós estamos fazendo uma formação de professores. E esses professores devem trazer ao local da exposição, como o guia da exposição, aproximadamente quarenta mil crianças. Eu tenho muita esperança que essas fotografias possam exercer uma influência enorme nessas crianças. E uma parte dessas crianças, eu tenho uma grande esperança, que elas possam estar na direção desse país daqui a vinte, trinta anos. E, se a gente consegue de uma certa forma motivar essas crianças, sensibilizar para a problemática hoje, possivelmente a gente esteja fazendo uma caminhada na direção, quem sabe, de uma solução. Na realidade, o nosso interesse de fazer essa apresentação a mais larga possível... e o que nós estamos fazendo no Brasil, nós estamos fazendo na França. De uma certa forma, estamos fazendo em Portugal, organizada de uma forma um pouco diferente. Essa exposição é parte da comemoração do Jubileu em Roma [comemoração católica ocorrida a cada 25 anos], que estamos fazendo junto ao Vaticano e a municipalidade de Roma. Com o jornal La Repubblica, estamos fazendo uma apresentação larga também na Itália, tentando provocar um debate... O que eu tenho vontade é que essas fotografias, das quais eu tenho uma grande responsabilidade... e quando você falou que eu utilizei a minha câmera um pouco como microfone, foi realmente um microfone. Muitas vezes eu fotografando, as pessoas vinham em direção à minha objetiva como se viessem falar no microfone. Na maioria das vezes, eu estava sozinho em determinados lugares. As pessoas me davam a mão, para me mostrar cenas que às vezes eu não podia fotografar de tão terríveis. Eu tenho uma responsabilidade imensa com essas pessoas que eu fotografei: de mostrar essas fotografias, de difundir de maneira mais ampla, que eu possa difundir para tentar ver se, juntos, a gente pode iniciar um pequeno debate. Para mim, é muito importante, por exemplo, o caso do Brasil. Mostrar essas fotografias no momento que nós estamos vivendo, esses quinhentos anos de comemoração desse choque cultural. A gente diz "o descobrimento". A gente não descobriu nada. Houve um choque brutal de culturas, onde uma cultura européia se impôs aqui dentro. Mas eu acho importante, hoje, a gente mostrar essas fotografias, porque a comemoração dos quinhentos anos é uma forma da gente comemorar essa chegada; de uma outra cultura aqui dentro. E essas fotografias, que por coincidência estão sendo apresentadas agora, é uma maneira fabulosa dos brasileiros se medirem com o resto do mundo. Eu fotografei a cidade de São Paulo, fotografei México, Istambul, Bombaim, Jacarta, várias cidades, nove grandes cidades do mundo, onde São Paulo, seguramente, pode ser vista como um bairro. Eu fotografei, aqui no Brasil, a luta pela terra. Fotografei a luta pela terra no México, na Índia, a nas Filipinas. Eu acho uma maneira fantástica da gente se medir com o que está acontecendo no resto do mundo. Fotografei o problema indígena no Brasil. Eu acho fantástico os brasileiros se medirem com o problema indígena no Equador, Honduras, no México e em outros países onde o problema se assemelha e precisa ser discutido. A gente não discute nada no Brasil sobre a África, uma grande componente da nossa raça é africana. [Ela] é hoje um continente completamente abandonado. Existem estatísticas interessantíssimas no Brasil que os brasileiros não conhecem: 5% dos prisioneiros do Carandiru [atualmente demolido, já foi o maior presídio da América Latina. Localizado em São Paulo] são africanos, são basicamente nigerianos metidos no tráfico de drogas aqui no Brasil. Então, tem tanta coisa para ser discutida aqui. Essa exposição, essas fotografias oferecem uma base para iniciar uma discussão. Não pretendo encontrar solução nenhuma. Pretendo colocar isso à disposição a quem de boa vontade queira discutir, as fotografias estão à disposição para exposições...

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo e vamos voltar à discussão, nós temos mais dois blocos de programa. Todo mundo vai poder fazer a sua pergunta.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o fotógrafo Sebastião Salgado. Ele realiza em São Paulo a exposição do seu último trabalho em pesquisa fotográfica, em mais de quarenta países, sobre o êxodo de milhões de pessoas pelo mundo [...]

Maureen Bisilliat: Pequena anotação. Nas situações limítrofes de guerras, de fome, de exílio, na ênfase que você dá à vitalidade do trabalho como relíquia, a força da sobrevivência se faz sentir contagiante e envolvente. Crianças e cenários impressionantes, verdadeiros quadros, cenas bíblicas de Michelangelo [(1475- 1564) figura do Renascimento italiano considerado um maiores nomes de toda a história da arte mundial, pintor, escultor, arquiteto, poeta. Responsável pela escultura Pietà e pelos afrescos da Capela Sistina] e Delacroix [(1798-1863) pintor francês, grande representante do romantismo. Autor de importantes quadros como O massacre de Chios (1822), A morte de Sardanápalo (1827), A liberdade guiando o povo (1830) entre outros]. Uma beleza trágica paradoxal. Às vezes me pergunto, no entanto, porque uma foto mal feita, um registro mal composto, mal iluminado, mal revelado, nos envolve de uma outra maneira curiosa, como que revelando sentimentos indefinidos, ambigüidades. Olhamos e indagamos acesso aos indivíduos fotografados. Lembro-me que [Ingmar] Bergman [(1918- 2007) cineasta sueco. Dirigiu Morangos silvestres (1957), A paixão de Ana (1969), O sétimo selo (1956), entre outros] dizia gostar de assistir projeções de filmes de famílias em 8 mm. Elementos borrados, gestos que se completam na imaginação. A obra de arte tem assim uma coisa... É difícil dizer, porque parece nossa referência [é] uma tela de encantamento e admiração. O instantâneo na sua falta de intencionalidade criativa dá margens a outras interpretações. Por que essa diferença da foto amadora, daquele registro sem nenhuma intencionalidade de criar uma foto? Há uma diferença. Qual é essa foto, por exemplo? O que é essa diferença, essa beleza, que sempre nas piores coisas, extraordinariamente transparece? Como se fosse... Não sei, são quadros de uma beleza estonteante. E, às vezes, uma fotografia mal feita, daquelas coisas assim, sem nenhuma preocupação de foco, nos atinge de outra maneira. Eu gostaria que você explicasse esse processo. E se isso quer dizer alguma coisa, o que eu estou tentando dizer.

Sebastião Salgado: Olha, eu acho que não tem nenhuma diferença entre fotógrafo amador e o fotógrafo profissional. Eu acho que existe uma coisa incomum entre fotógrafos. Amador ou profissional, se gosta realmente de fotografia e ama fotografia eu acho que é um fotógrafo igual, não tem diferença. Eu vejo as minhas fotografias do começo, quando eu comecei a fazer fotografia, quando eu era economista. Um dia, a fotografia fez uma invasão na minha vida. Eu vesti a fotografia, e eu quase que sinto hoje o mesmo prazer de fotografar de quando eu comecei a descobrir a fotografia e fotografar. Aliás, muitas dessas exposições que eu faço, utilizo fotografias, as primeiras fotografias. Elas se misturam perfeitamente com as de hoje, sem nenhum problema. Acho que a gente está falando aqui um pouco de política, não é isso? De uma discussão bem ampla de sociedade. Mas, antes de tudo, nós estamos discutindo aqui uma história fotográfica. Existe uma linguagem fotográfica, uma linguagem que, possivelmente, seja hoje uma linguagem universal. Eu me lembro: pessoas da nossa geração que estão aqui, a gente tentou estudar esperanto como linguagem de comunicação universal. Eu estudei esperanto quando era menino acreditando em me comunicar com todos os cidadãos do mundo. Depois, passou-se a falar do inglês, que o inglês tinha o poder da linguagem universal e, finalmente, a linguagem universal é realmente a imagem. Existe essa comunicação pela imagem, que é fabulosa. Se escreve uma imagem na Etiópia e se pode ler, sem nenhum problema, na Índia. Você poder ler sem nenhum problema aqui, sem tradução, sem nada. Então, tem esse poder da imagem. A beleza da imagem é uma coisa intrínseca a cada pessoa que realiza.

Reinaldo Azevedo: Sebastião, eu queria pegar uma questão correlata, você disse já em algumas entrevistas que você não faz arte, mas faz jornalismo. Se não disse de maneira tão sintética, foi, pelo menos, o que eu entendi. Eu queria que você destrinchasse essa posição, porque quando você escolhe a trajetória da luz, quando você faz o recorte ali, quando você escolhe o fundo, quando você, enfim, nos dá a sua visão daquilo que está lá, eu queria saber se a maneira como você reorganiza essa experiência. Não é, sim, tudo que se definiu como arte até agora?

Sebastião Salgado: Olha, essa questão vem de parte à questão da Maureen, e é uma coisa muito interessante. Quando você olha essa exposição, que está no Sesc, são 350 fotografias. E eu fotografei entre 1/2000 ou 2/2000 de segundo, talvez um quarto de segundo. Mas, se você fizer uma média, talvez eu tivesse fotografado 1/350 avos de segundo, em média. Tudo junto ali faz um segundo de fotografia, não faz mais. Então, no instante seguinte a fotografia já passou. Entende? Então, é naquela fração de segundo, realmente... Porque nós estamos falando aqui de fotografias instantâneas, porque existem muitos tipos de fotografia. A fotografia considerada de arte é alguém que faz uma arte e utiliza o suporte fotográfico para representar a sua arte. Eu acho que a fotografia do instantâneo é muito diferente. Eu estou falando do instantâneo. Eu me considero um repórter fotográfico, porque trabalho realmente na fração de segundo. Quando eu realizo uma fotografia, ela já é um produto final em 95%.  [Só] falta um pouquinho de acabamento na cópia. Então, eu reconheço que existe aí dentro uma idéia intrínseca de criatividade, existe uma idéia subjetiva da luz. Nessa fração de segundo é muito difícil você imaginar que essa luz está entrando de uma maneira, que o quadro é inteiramente controlado, essa é uma coisa intuitiva. Fotografia instantânea é puramente instinto.  

Reinaldo Azevedo: Na página 196, a questão da Pietá negra, você não pensou nisso? [Mostra a foto]

Sebastião Salgado: Possivelmente, é um senhor que está morrendo de cólera, nos braços de uma senhora. Passa atrás, numa casualidade extrema, uma senhora caminhando e um desenho na sala da senhora dá a impressão que você colocou uma coroa, uma auréola na cabeça do doente. Inteiramente por acaso. É um fato que você descobre depois, na hora de copiar a fotografia, se transforma realmente em uma criação.

Reinaldo Azevedo: Você não pensou nisso em nenhum momento?

Sebastião Salgado: Eu não pude pensar, porque eu não pude controlar a pessoa passando lá atrás. Então, tem esse lado... É claro que eu reconheço que existe um trabalho de criatividade em torno disso. E não tenho inocência de pensar que não tem. Mas, o primeiro suporte dessas imagens para mim é a imprensa, todas são realizadas na imprensa. O segundo suporte dessas imagens são as organizações humanitárias, como [...], por exemplo, que tem duas exposições, que circula no mundo inteiro [com] publicações, no debate que a gente realiza no mundo inteiro para captação de recursos para as organizações, que é importante. A principal parte dos recursos dessas organizações vêm de doações de indivíduos e, depois, essas fotografias vão estar nas paredes do Sesc, que abre amanhã. Nós vamos começar. Estão em vários museus do mundo. Depois, as pessoas vão levar para a casa delas porque gostam. Vão colocar em casa. E eu espero que, em casa, essas fotografias continuem fazendo um efeito, não é isso? Então, isso pode a ser considerado como um objeto que as pessoas vão levar como objeto. Mas a obra, o trabalho como um todo não foi realizado como um objeto, de forma alguma. Se fosse um objeto, eu acho que a gente podia discutir da eficácia dele como um objeto situado num muro de uma galeria. Mas a utilização é muito ampla, é realmente ampla. Têm os intelectuais que levam essa discussão, não é isso? Do objeto artístico. É arte ou não é arte? É uma discussão puramente de intelectual, que não compreendeu a utilização primeira dessas imagens, como elas foram utilizadas... Eu reconheço, hoje eu vi, na semana passada, uma venda de uma fotografia minha sendo feita pelo [...] em Paris, que é uma venda de leilão, de uma fotografia de imprensa, quando eu trabalhava na agência Gama. É uma distribuição da agência Gama, tem o carimbo de imprensa atrás, sendo vendido por dois ou três mil dólares numa... Eu tenho consciência que o momento que eu desaparecer, você tem daqui a vinte, trinta anos, muitas dessas fotografias... Se ela existirem na evolução da história, elas vão se transformar em objeto de arte. E eu não vou ganhar nada com elas. Quem vai ganhar são as pessoas que detém essas fotografias do mundo e que, seguramente, como aconteceu com outras obras de arte... Mas na realidade, eu acho que essa discussão tem que ser tomada a partir de outro nível. A partir de outro patamar que [não] só esse do objeto que está na parede.

Jorge Arbex: Eu queria pegar dois momentos da sua fala para te fazer uma questão, que talvez seja um pouco pessoal. O primeiro momento, quando você mencionou aqui a impossibilidade de tirar certas fotos tão terrível era a situação que você estava tentando fotografar. O segundo momento da sua fala foi quando você se referiu ao prazer de ser fotógrafo. De que prazer você está falando? Porque, na verdade, você faz uma fotografia que é programática, do ponto de vista político? Você tem uma ambição mais geral que não se restringe à fotografia, mas uma ambição política que te coloca em situações dramáticas, você fica revoltado com aquilo que você vê. De que prazer nós estamos falando aqui?

Sebastião Salgado: Olha, o privilégio de ser fotógrafo é um privilégio imenso. Tem pouca gente no mundo que pode ter acesso ao que o fotógrafo tem: ir aonde o fotógrafo vai, conhecer as pessoas que o fotógrafo conhece, de se deslocar como um barco na crista da onda da história. Então, as situações que você tem, o conhecimento que você tem, o gosto que você tem, quando você fotografa, como eu fotografei, por exemplo, quando se fez a questão do movimento sem-terra. Eu não tive só movimento de conflito, movimento de desgaste, é o que me interessava mostrar para haver um reconhecimento da luta desse movimento. Mas eu tive momentos de força, de prazer, de rir, de me aproximar das pessoas. A fotografia é uma coisa fabulosa para te permitir entrar na comunidade dos humanos. É muito difícil... O fotógrafo é um ser... É um átomo. Tem que fotografar sozinho. Eu jamais viajo com repórteres, é difícil eu viajar com repórteres, é difícil viajar com outro companheiro. Porque quando você chega, você chega em uma espécie de sub-conjunto. Existe uma comunidade frente a você. E quando você necessita falar das coisas essenciais, você fala com a pessoa que está ao lado. Você está com sede, precisa falar que está com sede, está com dor de cabeça, está com saudade da sua mulher, dos seus filhos. Quando você está sozinho, você fala com aquela comunidade, com a pessoa que você está em frente. Nesse momento você é assimilado, você é aceito, você começa a fazer parte, começa a ser a sua vida e você começa a viver com as pessoas. Existe um prazer imenso que a fotografia te dá, que ela te permite fazer. Então, essa linguagem... como um escritor que vai escrever, tem que ter prazer em escrever. O fotógrafo, quando escreve fotografia, tem um prazer imenso de escrever em fotografia. Tem vários dias que eu estou apresentando, eu viajei para os EUA para o início dessa exposição, em Paris [também].  Aqui, agora, eu estou com um desejo imenso de voltar a fotografar, me relacionar com as pessoas que a fotografia me permite relacionar e captar essa imagem. Dessa linguagem que é a minha vida, a minha forma de vida. Eu só sei viver dessa forma.

Jorge Arbex: Não se trata de um prazer missionário, então?

Sebastião Salgado: Mas de forma alguma, essa história de missionário, essa história de guru. Eu acho que isso aí é uma besteira total. Na realidade, eu pretendo trabalhar para ganhar a minha vida, eu tenho equipe, e eu não faço só fotografia social. Eu faço fotografia de publicidade, eu faço fotografia de moda, eu fiz... acabo de fazer uma história grande do Ocimar Versolato [estilista brasileiro, fez grande sucesso em Paris na década de 1990, depois de trabalhar para a  grife Hervé Leger. Depois de alguns fracassos comerciais escreveu um livro sobre sua trajetória no mundo da moda intitulado Vestido em chamas, em 2005] , que é um amigo. Eu adoro o Ocimar, e fiz uma história que vai ser publicada agora. Passei em vários desfiles de moda do Ocimar fazendo os ateliês de costura, fazendo o homem criando, e essa coisa, um prazer imenso de fazer. Fiz publicidade da Volvo, dos automóveis Volvo na Inglaterra, publicidade imensa que foi nas várias revistas, publicidade por todo o lado. Existe esse lado da linguagem fotográfica, que a gente tem prazer de escrever nela e trabalhar nela. Então, não é só um tipo de fotografia que eu faço. Eu fui conhecido em um tipo de fotografia, mas eu faço várias outras.

Paulo Markun: Para a gente não perder um pedaço da pergunta do Arbex e responder a indagação de Giane Barbosa Rodrigues, de Volta Redonda. Ele gostaria de saber se alguma vez você deixou de realizar algum trabalho em virtude do envolvimento emocional, ou com o elemento a ser fotografado, e pede para você citar um exemplo.

Sebastião Salgado: Muitas vezes.

Paulo Markun: Que tipo?

Sebastião Salgado: Sei lá. Nós estamos falando agora de Ruanda. Essa fotografia da Madonna, não é isso que acabou de ser mostrada aqui? Houve momentos em Ruanda que você colocava a sua máquina de lado, sentava em um canto e chorava. Você não tem condição de fotografar, é emocionalmente impossível. Tem momentos que... Tem uma capa de uma revista Bravo - não é isso?, de uma edição da Bravo - essa fotografia da capa de Bravo é um campo de refugiados na Croácia, de refugiados da Bósnia, que estavam quase em cima de uma linha de combate [mostra a foto] Esses refugiados viviam completamente isolados, faziam parte de uma leva que não foram violados, que não foram torturados. Quando eles sentiram a “vaga da bestialidade” vindo sobre eles, eles fugiram. E, quando eles fugiram, eles não preenchiam as condições ideais do refugiado ideal, eles não tinham direitos de ir para a Alemanha, de ir para a França. Os alemães enviaram esses trens que a gente vê no fundo da fotografia e, na realidade, o trem é o campo de refugiados. Eles viam todo mundo fugir, todo mundo ir embora e eles não tinham o direito de sair. Eles tinham que ficar. E o desejo deles era sair, porque o combate estava a dois ou três quilômetros. Você escutava o tiro de canhão... Eles eram assaltados. Tinha assalto militar sobre esse campo, a qualquer hora. Eles viviam em um total desespero. Eu me lembro que me aproximei de uma senhora para fotografar, fiz duas fotografias. Ela veio e me abraçou, e começou a chorar. E chorar porque alguém prestou atenção na vida dela. Quer dizer, alguém chegou perto dela e tirou uma fotografia. Então, ela se sentiu uma pessoa nesse momento. E nessa hora não é mais possível fotografar. Você tem que passar para a pessoa durante uma hora, duas, sem falar a língua, mas tentando compreender e aproximar. Nessa hora, existe uma comunicação muito forte que se faz. Você não pode fotografar. Tem uma quantidade de fotografias que eu nunca fiz na minha vida...

Miguel Chaia: Em relação a essas crianças que você... Retratos [Retratos de crianças do êxodo]. Especialmente, essa série de retratos. Eu tenho a impressão que elas tendem a uma homogeneização. Vamos tratar desse último volume. Eu vou explicar melhor. A criança é sempre utilizada como um recurso, para denúncia.  Às vezes, ela remete para uma forma enfática; outras horas, menos. Aí, eu quero conversar com você uma questão dos fotógrafos, que diz respeito a temas e formas. O tema criança, ele é muito desenvolvido por você. Ele foi desenvolvido pelo Miguel Rio Branco[Um dos mais destacados fotógrafos brasileiros. Vencedor de vários prêmios de fotografia tais como o Grande Prêmio da Primeira Trienal de Fotografia do MAM de São Paulo (1980) e o Prix Kodak de la Critique Photographique, Paris (1982). Autor de Entre os olhos, o deserto (2003), Silent book (1997)], que tem fotografias de crianças na rua, nas sarjetas. Só que ele usa a cor, quase que uma pintura, que o vermelho agride, como se fosse carne e sangue . E o outro fotógrafo, também de grande qualidade, que é o Vik Muniz, que fez aquela série Crianças do açúcar, em que ele fotografa, desenha com açúcar, e depois fotografa novamente. E aí nós temos a integração do olhar e coisa parecida. A sua fotografia é direta, não tem o recurso da cor e não tem o recurso da crítica e da revisão do olhar. Eu queria que você comentasse também essas distinções de abordagem desses fotógrafos. E, por outro lado, quais seriam os critérios para você selecionar as fotografias de crianças? Com exceção daquela criança que está na página 45, as demais, eu tenho impressão que passam uma infância não perdida. Esse jovem da página 45 é terrível. É o único que lembra, inclusive, me lembra o filme [A batalha de] Argel [1967, Itália. Direção de Gillo Pontecorvo] , me lembra a renúncia da infância e uma revolta, uma espera, uma expectativa muito grande. [mostra a foto] Então, eu queria que você discutisse a questão do tema criança, do tema infância e da formas que são tratadas para recuperar na sua significação.

Sebastião Salgado: Eu vou tratar desse tema especial que é esse livro: Retratos de crianças do êxodo, está certo?, porque é um livro inteiramente dedicado às crianças. Esse aí, na realidade, não fui eu que procurei essas fotos. Essas crianças que me procuraram, de uma certa forma. O Guilherme [L. da Cunha] sabe, porque ele teve em vários campos de refugiados, e a maioria dos fotógrafos e dos cameramen sabem isso perfeitamente. Quando você chega para fotografar um campo de refugiados, você chega para demonstrar uma situação delicada, uma situação difícil, uma situação de desespero. E você encontra em frente a sua câmera dezenas de crianças pulando, querendo sair nas fotografias, fazendo caretas. Então, é difícil, às vezes, você fazer isso. E eu não sabia, realmente, como encontrar uma solução. Eu estava em Moçambique - na província de Zambeve, em Moçambique - num campo de refugiados e eu tive uma idéia. Eu falei: "gente..." - falei em português com os meninos, por que eles falavam português direitinho, enfim. Eu disse: "...olha, vocês se colocam em fila, eu tiro um retrato de cada um e depois vocês me deixam trabalhar". Inteiramente de acordo, não teve problema nenhum... [as fotos das crianças são mostradas] E eu, realmente, fui colocar um filme, mostrar... porque com menino você tem realmente que fazer, porque menino é muito vivo, né? Você não pode enrolar que você fez uma foto, não adianta. Então, eu fiz um retrato de cada um. Olha, era uma coisa impressionante. Quando o menino vinha e ele se colocava em frente da câmera, ele adquiria toda a individualidade dele. Então, era uma fotografia que eu tinha uma quantidade de pureza imensa na minha frente, uma individualidade muito grande, uma inocência. Mas os olhos dessa criança, como uma janela para a alma dessas crianças... Eu fiz aquela foto do instantâneo, realmente, instantâneo, uma foto por menino, não mais. Ele saia e outro se colocava. Eu não posei ninguém, eles se posaram. E terminou aquilo uma hora depois, tinha mais vinte meninos, aquilo deu certo, e foi dando certo e eu fui fazendo. Quando eu cheguei na revisão, quando eu fui editar, eu descobri que eu tinha ali uma história incrível, tão forte quanto a outra, mas feita de uma forma diferente. Uma história que se impôs para mim. Eu não procurei essa história para fazer. Sinceramente, eu não procurei. Eu tenho no livro Êxodos uma quantidade de crianças em situação, ou vivendo, ou dentro, ou em uma outra relação. Muitas vezes, por exemplo..., a gente está falando de Ruanda, as crianças eram tão fracas, tão doentes, que aí elas não pulavam muito, elas viviam de outra forma. Realmente, o número de mortos chegava a dez mil mortos por dia no campo de refugiados. Então, era uma coisa dramática. Quando as pessoas estão fugindo, as crianças estão lá, estão escondidas. Elas não estão aparecendo.  Então, você faz uma ou outra em uma situação difícil. E a razão de a gente fazer isso no livro... que foi a Lélia, minha companheira, que desenha todos os livros, que desenhou a exposição, concebeu a exposição. Ela resolveu dar um fórum diferente às crianças. Então, resolveu fazer esse livro. Elas têm uma parte na exposição que é só das crianças. Agora, voltando à sua questão das crianças dentro da fotografia. A coisa que me toca mais na fotografia não são só as crianças. São as crianças e os velhos. Porque o velho já passou a vida dele toda lutando por uma vida melhor, criou os filhos, não é isso? Ele merece uma outra vida. Encontrar um velho em uma condição de exilado, fugindo, onde a vida dele está muito próxima do fim, onde realmente... ali você encontra o desespero. E, para mim, as crianças também me tocam muito, porque elas são realmente vítimas. Elas não escolheram de alguma forma estar ali, e tem esse lado que eu falo no livro, dessa inocência, dessa transparência. Às vezes, em um campo de refugiados recém iniciado, o vizinho ainda não conhece o outro, a pessoa ainda está desconfiada que o outro é um inimigo dele, quem sabe, que ajudou a assassinar uma parte da família. Existe essa desconfiança muito grande. As crianças já se entenderam, já estão juntas, já estão brincando, já assimilaram, já passaram à outra vida. Então, esses dois extremos na população que você trabalha é muito especial.

Guilherme L. da Cunha: Sebastião, me permita. Veja bem. Eu creio os telespectadores vão pensar que nós pertencemos à mesma tribo. E quem sabe eles tenham razão. Nós nos conhecemos há muitos anos e participamos de situações de refugiados, de deslocamento forçoso de populações em diversas ocasiões, no mundo inteiro: na África, na Europa e mesmo na América Latina. A minha pergunta a você é a seguinte: você tem os dois primeiros módulos no seu livro Êxodos, o primeiro sobre migrantes econômicos, aqueles que buscam melhores condições de vida.

Sebastião Salgado: E refugiados, para mim...

Guilherme L. da Cunha: E o segundo módulo... Eu também concordo, tem uma definição mais ampla. Mas os refugiados para as Nações Unidas são aquelas pessoas que fogem da violência, da perseguição e da discriminação. E existem pessoas que consideram que a intensidade desses movimentos populacionais constituem um indicador da saúde moral e política do mundo. E nós todos sabemos que essa saúde está bastante lamentável. Sabemos também, através de observadores, de jornalistas, das Nações Unidas, que a situação desses migrantes econômicos irregulares e desses refugiados, que são vitimas de violação dos seus próprios direitos humanos, é passível de ser remediada. Existem políticas públicas discutidas em papéis para que essa problemática dos migrantes econômicos e dos refugiados seja resolvida ou, pelo menos, atenuada. E essa responsabilidade estaria nas mãos daqueles países que têm condições econômicas, políticas e militares para obrigar àquelas pessoas que permitem a violação dos seus cidadãos, ou que permitem a saída massiva de seus cidadãos em busca de melhores condições de trabalho. A minha pergunta é a seguinte: você acha que a condição dos EUA, o Canadá, menos talvez, da União Européia, dos escandinavos, do Japão, é uma posição que quer desconhecer, que esbarra na perversidade, no sentido de não atacar essa problemática dos movimentos populacionais que se agrava nesse final de milênio, colocando em xeque a segurança do ser humano?

Sebastião Salgado: Olha, Guilherme, quando a gente fala dos EUA, do Canadá, fala da União Européia, a gente está fazendo uma acusação direta aos governos desses países. Eu acho que os governos desses países são representantes perfeitos dos povos desses países. A gente não pode fazer uma defesa dos franceses - você entende? - atacando o governo francês. Eles são verdadeiros representantes. Existe, hoje, um comportamento nos países protegidos, ricos do norte, [em relação] a sua questão no início, sobre os 15% e toda essa coisa. Existe hoje uma espécie de vida no paraíso. Eu estive abrindo a exposição outro dia, nos EUA, ela começou no estado de Nova Iorque, na cidade de Rochester.  E ela vem [depois] para a cidade de Nova Iorque, em setembro. Eu cheguei a Rochester e tive a impressão que nós estávamos na Lua. Saí do aeroporto de Rochester e cheguei ao hotel. Não vi um bicho humano na rua. Vi automóveis passando, imaginava que os humanos estavam lá dentro. [risos] Mas eu não vi, de forma alguma. Então, é como se eu tivesse chegando em um outro mundo. A França, hoje, é um outro mundo. Nós nos conhecemos na França há trinta anos atrás, estudantes na França. A França, naquela época, tinha aproximadamente um terço do PIB do que tem hoje. A França é hoje três vezes mais rica. Ficaram com aproximadamente a mesma população; era uma França [de] solidariedade. A gente ficava na beira das estradas, não tinha dinheiro para comprar um carro para viajar. Você pedia um “stop” para ir para Lyon, para ir para Marselha, e eles te levavam, os carros paravam. Hoje, não tem ninguém pedindo e ninguém leva se você pedir. A França é hoje um país com trinta milhões de trabalhadores e tem três milhões de desempregados, possivelmente muito mais do que isso, porque a gente não conta a mulher do desempregado. O filho do desempregado é parcialmente desempregado. Talvez a França, hoje, com trinta milhões de trabalhadores, tenha seis milhões de desempregados; um país que é seis vezes mais rico. Então, a gente se pergunta: que humanidade é essa? O que nós estamos vivendo? Você vê o PIB da França é imenso. O CAC, que é o índice da bolsa de Paris, continua subindo. É o problema da distribuição séria no interior da França. Um problema, depois, de desconhecimento e não interesse em participação nas causas humanitárias, apesar de [existir] uma boa parte das pessoas [que vivem] em uma área com um pouquinho de dinheiro. O comportamento do governo francês, hoje..., eu digo o governo francês, eu não estou colocando em acusação os franceses. Para mim, é um exemplo. Onde eu moro, os alemães têm o mesmo comportamento..., os ingleses, os americanos..., que é um comportamento, hoje, de um país protegido. Então, a ajuda que esses países davam para os países em desenvolvimento era uma ajuda grande. Hoje, essa ajuda vem via organização humanitária. A organização humanitária, eu trabalho demais com elas. Elas têm uma ação realmente interessante em um ponto da linha, quando é necessário fazer uma ação de urgência, como você sabe. Por exemplo, Médicos Sem Fronteiras, eles trabalham demais com as Nações Unidas, fazem um trabalho fabuloso. Mas, o que é essa ajuda humanitária? Eu estava vendo outro dia no Sudão, uma ajuda de vinte milhões de dólares que vinha dos EUA para o Sudão, para comprar grãos no Sudão. E uma boa parte da ajuda era gasta na compra dos grãos que vinham dos EUA. O transporte desses grãos, para chegar ao Sudão, só podia ser feito por barcos americanos, porque fazia parte de uma ajuda americana. Uma vez chegado no Sudão não tinha estrada, o transporte foi feito por aviões americanos. E uma vez que as pessoas comeram os grãos, a ajuda acabou, porque no país não ficou absolutamente nada. Ajuda não significa nada. É uma ponta do iceberg, não é isso? A ajuda é só aquilo. O resto da ajuda ficava nos países ricos. Então, eu acho que é esse comportamento que a gente tem que discutir, inclusive no nosso país. As leis que existem no Brasil, os projetos que existem no Brasil, ditos de ajuda social. A gente tinha que discutir a quem realmente eles ajudam; a quem eles servem? Então, essa discussão tinha que se colocar. É a discussão da sociedade que a gente tinha que fazer, porque as pessoas, a base da sociedade é de pessoas honestas, elas querem discutir. Elas têm o poder de voto. O poder de sanção tinha que ser utilizado. Têm leis mínimas que passam, tem uma lei que passou agora no Mercado Comum Europeu, que é uma lei terrível: é a utilização das matérias gordurosas vegetais. Existia uma lei... uma lei de nada passou esses dias, que muda de 2% a composição do chocolate, utilizando matérias gordurosas vegetais que não o chocolate. Então, isso foi uma lei imposta pela Nestlé, imposta pela fábrica de bolos da Inglaterra, que são empresas imensas de comercialização de chocolate, que vão fazer bilhões de dólares de lucro, mas vão criar centenas de milhares de desemprego no campo da Costa do Marfim, no Brasil, nos países produtores de cacau do mundo. Por que você reduzindo em 2% do consumo de cacau no mundo, você desemprega, sem dúvida, pelo menos cem mil famílias por aí. E essas cem mil famílias vão chegar por aqui. Vão chegar na periferia de São Paulo, vão chegar na periferia da capital da Costa do Marfim. Vão acabar chegando na França, vão desestabilizar um pouquinho mais. Mas foi passada assim, sem nenhum problema. O problema das bananas, que está sendo discutido hoje nos países ricos, a formação do preço dos produtos agrícolas. Olha, o Brasil não participa na formação do preço do café; só quando existe uma geada. Então, nesse momento, modifica um pouco a relação do preço do café. Os países produtores de chá, não participam no preço do chá. Os preços dos produtos agrícolas produzidos por aqui chegam nos países desenvolvidos a preços negativos. Porque quando você produz, você trabalha. E o fruto do seu trabalho, pagou o quê? Paga a sua alimentação, paga o que você veste, paga a educação dos seus filhos, paga a saúde, paga a casa, você queria pagar tudo. Quando você vê a quantidade de dinheiro que chega na África... Ruanda, por exemplo, o chá que é enviado pagava apenas a alimentação péssima das pessoas e um pouco de roupa, mais nada. Então, o que é saúde? O que é educação? Isso aí foi colocado no preço do produto que foi entregue de graça nos países ricos. E o que permitiu fazer essa fuga em direção ao futuro. Houve uma fuga em direção ao futuro, mas com a participação do planeta inteiro. O que os países ricos têm não foram só eles que produziram, o mundo inteiro produziu e transferiu para eles. Então, essas discussões têm que ser levadas a cabo. Essa exposição que nós temos aqui, que está saindo na França, e que está saindo na Itália, na Espanha e nos EUA, é uma exposição sobre a distribuição no mundo, é uma exposição sobre a globalização. Essas fotografias representam, de uma certa forma, os 85% dos globalizados dos quais nós não falamos. A gente fala de estatísticas da globalização; a gente fala de fluxo financeiro; a gente fala de fluxo econômico; de fluxo de informação, puramente estatísticas. Hoje está se discutindo, não é isso? A desvalorização de sexta-feira da bolsa de Nova Iorque. Ou a desvalorização da bolsa de Tóquio. Nós estamos falando de fluxo estatístico, 85% nós não estamos falando. Se houver uma desvalorização na bolsa de São Paulo, e se houver um problema de saída de capitais e tudo, nós vamos saber o número de desempregados. Então, eu acho que é isso que essas fotografias retratam dos globalizados.

Guilherme L. da Cunha: É uma exposição sobre direitos humanos.

Sebastião Salgado: É uma exposição sobre direitos humanos. Vem direto à questão, quando você colocou. É exatamente esse o problema. Então, o que é o campo de refugiados? É uma coisa muito mais ampla. A noção de campo de refugiados tem que ser uma coisa muito mais ampla, do que só a feita pelas Nações Unidas.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo e o Roda Viva volta já.

[intervalo]

Paulo Markun: Bem, estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro que viveu muito tempo aqui e está lançando uma grande exposição e dois livros sobre a movimentação de grandes contingentes da humanidade [...] Então, agora eu vou começar aqui juntando perguntas de três telespectadores que perguntam, resumidamente, o seguinte: por que tudo em preto e branco? Você vê a vida em preto e branco, quer dizer, você tem alguma objeção ao uso da cor?

Sebastião Salgado: Não, eu não tenho. Eu tenho admiração... a gente falou, agora mesmo, de Miguel Rio Branco. Para mim, Miguel Rio Branco tem fotos em cores fenomenais e compreende a cor. A cor, para mim, sempre foi um fator de desatenção no momento que eu fotografava. Por exemplo, eu ia fotografar alguém que tivesse uma camisa vermelha, ou um verde, ou um azul forte. Eu tinha uma preocupação muito grande, no momento da instituição da fotografia, de que aquela cor iria tomar uma proporção tão forte que ia levar a desconcentração da densidade da pessoa que eu estava fotografando. Ao passo que, quando eu fotografo em preto e branco, todas essas cores são transformadas em matizes de cinza. Então, me permite uma fuga, no momento da fotografia - que é claro [que] é uma abstração, nada no mundo é preto e branco. Mas que permite essa fuga e me concentrar exatamente na densidade das pessoas. Porque, na realidade, minha fotografia é uma fotografia basicamente do ser humano. Eu acho que o preto e branco tem uma vantagem, às vezes, para as pessoas... Para algumas pessoas, o preto e branco tem uma coisa dramática, ou permite dramatizar uma situação e que faz com que as pessoas tenham identificação com o preto e branco. Eu acho que não. Eu acho que existe uma coisa interessante com o preto e branco. Como nada é em preto e branco, no momento em que você olha uma fotografia em preto e branco você, qualquer pessoa que olha, é obrigada a fazer um exercício de reposição de realidade nessa fotografia. Então, quando você olha um preto e branco, você re-situa a realidade no preto e branco, você coloca dentro do foco que você quer. E você obriga a fazer uma viagem dentro do preto e branco, e te obriga a ter uma identidade com ele. A partir desse momento você começa a ver o preto e branco como uma parte de matéria sua. Então, tem essa vantagem. Pode ser até uma suposição, mas eu acho que tem essa facilidade para as pessoas, em relação ao preto e branco.

Jorge Arbex: Eu queria fazer outra pergunta de caráter pessoal, que é a seguinte: você está falando de suas viagens, Sudão, Paris, Nova Iorque, Brasil... A tua vida particular como fica? Quanto tempo você fica com a tua mulher, com o teu filho, quanto tempo você mora em casa? Quais as conseqüências do trabalho na tua vida privada?

Sebastião Salgado: Olha, essa é a parte mais difícil. Eu, para realizar esse trabalho, foram sete anos viajando, mais ou menos nove meses por ano e... difícil. Meus filhos, eu adoro meus filhos. Eu vivo com a minha mulher há 36 anos. Esse equilíbrio, o equilíbrio que tem uma pessoa que trabalha em um banco e que à noite volta para a casa dele, a gente consegue também viajando nove meses por ano. Você acaba tendo um equilíbrio. Todo mundo tem. Mas tem algumas coisas que a gente perde. Meus filhos. Eu tenho hoje um filho com 26 anos, outro com 21. Eu hoje olho para os meus filhos com um pouco de apertinho no coração. Eu perdi uma coisa fabulosa na vida deles, o crescimento dos meus filhos. Hoje, eu tenho um netinho de três anos e meio. Eu vejo pouco o meu neto. Eu tinha muita vontade de [vê-lo] crescer. Então, é um pouco... Esse sacrifício que a gente faz, fazendo esse trabalho. Agora, infelizmente na opção que eu fiz as coisas não acontecem na porta da minha casa. Eu tenho que ir buscar. Eu tenho que ir e vou. E eu acreditava que só eu fizesse assim. E, depois, é a minha mulher, por exemplo, que trabalha e que organiza todas as exposições e desenha todos os livros. Nós estamos inteiramente integrados no trabalho. Realmente, nós somos uma equipe. Eu tenho uma pequena equipe que trabalhamos juntos. Aliás, estão aqui dando aula, hoje, para faculdade do Senac, que a gente está mostrando outra exposição, que é um making of desse trabalho. Quer dizer, além da minha família, eu tenho uma outra família que é a família de trabalho, que é uma espécie de comunidade. É um pouco um comportamento tribal que a gente tem, no fundo.

[Sobreposição de vozes]

Danilo Miranda: Sebastião, você entra com situações limites. Você está em um dos momentos mais delicados, de situação de populações em movimento, campos de refugiados. Onde o clima... a situação toda é bastante perigosa, enfim. Eu me lembro também de uma colocação que você fez, na outra vez que você esteve no Roda Viva, sobre a realidade de São Paulo. A violência da cidade e tudo aquilo que te ameaçava e te mostrava, assim, uma outra São Paulo, que você já tinha visto quando foi estudante na USP. Você, pessoalmente, já foi vítima de alguma violência em seu trabalho?

Sebastião Salgado: Eu já. Já. Mas a violência existe. Eu fiz uma opção. Quando você vai trabalhar, você não pensa que pode receber alguma agressão... Por exemplo, no ano passado, eu quebrei meu tendão de aquiles. E o meu tendão já não estava bom, porque eu viajava muito. Fui trabalhar em Istambul e fotografando em um bairro curdo, com um grupo curdo, eu fui agredido por um grupo de turcos seriamente: levei muita pancada na perna e o tendão quebrou, partiu. [Então], volta para Paris para ser operado, onze dias no hospital, dois meses andando de muletas. Mas essas coisas fazem parte da minha vida, faz parte do meu trabalho. Eu já tive próximo de ser assassinado, mas passei, saí por ali. E uma grande quantidade de fotógrafos desaparecem. Desaparecem nas guerras, nos conflitos. Cameraman é a mesma coisa, que é o tipo de profissão que a gente não pode fazer do hotel. Muitos jornalistas vão na ponta, vão aonde a coisa está acontecendo, mas eles não precisam necessariamente ir para ter informação. Mas, para ter uma imagem você precisa ir. Eu preciso, para fazer uma fotografia de refugiados, preciso sair com os refugiados. Eu saí do Malawi, entrando em Moçambique, eu saia à pé com um grupo de refugiados, e onde eles passavam eu tinha que passar. Tinha minas, tinha uma série de coisas, mas essas coisas você não pensa. Você não está lá para saltar uma mina, você não está lá para quebrar um tendão. Você está lá para seguir, para fazer a sua vida, porque é uma forma de vida que tem que fazer.

Miguel Chaia: Você consegue reunir branco e preto e a guerra. Há uma estética específica nas suas fotografias. Você tem uma linguagem que realmente não se pode dizer que é apenas via fotografia documental. E mesmo seus críticos de galerias e de museus já o classificam como arte. Nesse caso, eu queria dizer o seguinte. Eu acho que você faz um realismo e que a estetização, seja da pobreza, dos fluxos, dos fenômenos sociais, está muito aparente. Quer dizer, eu acho que você usa o branco e preto para criar a síntese que te permite expressar as questões da pobreza, das tensões que existem na sociedade de uma forma imediata. O que eu lhe perguntaria é o seguinte. Para você a pobreza é bela, assim como os futuristas italianos diziam que "a guerra é bela"? Ou seja, há uma estética da guerra. Walter Benjamin discute isso [(1892-1940) filósofo e sociólogo. Refere-se ao texto "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica" (1936)]. E eu acho que há uma estética do social, eu até diria um pouco mais amplo. Há um realismo que não é um realismo socialista. Absolutamente. Eu acho que você tem um realismo humanista, que traz um certo elemento do mágico ao trágico. Mas a questão que eu te pergunto é esta: há uma estetização desse cotidiano sociológico, desses fenômenos, no qual se inclui, principalmente, a questão do trabalho? Você poderia dizer que a pobreza ou o sofrimento humano traz uma beleza, assim como os futuristas diziam que a guerra também trazia?

Sebastião Salgado: Olha. É claro que eu reconheço que a linguagem fotográfica é uma linguagem formal. Necessariamente, ela é formal, não é outra coisa, não é isso? Então, necessariamente, toda linguagem fotográfica é reescrita a partir da forma. Então, você pode definir como estética. Ela melhor feita, menos feita, não interessa. Ela faz parte de um conjunto de idéias e de experiências da pessoa que realiza, que é materializado ali, cortado junto com a realidade da qual está fotografando ou que está desenhando, que ela está pintando. Mas é uma linguagem formal. Isso eu reconheço perfeitamente. Agora, existe essa discussão, que para mim é puramente intelectual, e que ela tem que ser colocada e nós temos que discutir, da beleza da miséria. Não que exista uma beleza da miséria, é que existe beleza no planeta. O planeta é bonito. O ser humano é um bicho bonito, a relação entre o ser humano é bonita. Se eu tivesse feito uma fotografia de uma comunidade rica da Inglaterra, ou da França, ou daqui de São Paulo mesmo, ninguém colocaria a questão que eu tinha feito a fotografia com uma luz bonita, com a composição razoável e tudo. Isso faz parte, é tido como comum. Ao passo que você vai com o movimento sem-terra a uma invasão de terra, certo? Que existe uma luz, que está lá; que é dada . Eu não coloquei o sol naquele lugar, nem as nuvens. Elas já existem, naquele momento de atualidade que está acontecendo. Existe um momento de força, um ponto de força que você faz. Você não tem obrigação de fazer aquilo feio, tem a obrigação de fazer aquilo da forma que ele é. Ele, se ele se apresenta daquela forma. Então, é aquilo, é daquele jeito e não outro. É claro que se fosse outro fotógrafo fazer ele faria diferente do que eu fiz, porque a gente fotografa com o passado da gente, como eu acabei de falar. Eu fotografo com a minha mãe, com o meu pai, com a minha luz do Vale do Rio Doce, com as tempestades que tinham quando começava a época de chuva. Eu tinha medo que o céu caísse na minha cabeça, eu segurava na perna da minha mãe, com medo. Claro que aquilo me influenciou. Eu nasci em um país tropical, onde a luz é muito forte; e eu muito clarinho, então, o sol sempre, sem chapéu, me queimava o nariz. E meu nariz ficava ferido. Eu não podia sair muito no sol. É claro que todo mundo que andava em minha direção, eu vinha da luz para a sombra. Eu vinha contra a luz, eu fotografo imenso contra a luz. Agora, aquilo que eu te falei, que das 350 fotografias, todas adicionadas fazem um segundo de fotografia... Olha, fotógrafo é caçador, é instinto. Na sociedade que nós vivemos, inclusive, essa discussão que você está acabando de colocar, é uma discussão da razão. A gente privilegia a razão. Mas eu acho que nós estamos lá no instintivo, no bicho homem. Tem que se respeitar. E o fotógrafo é um bicho instintivo. Então, o que você vê em imagem é o instinto. E o que você vê representado, é uma representação real da realidade onde eu estive. E, seguramente, eu tenho um lado romântico, eu tenho um lado seguramente poético nesse tipo de coisa. Mas como diz o francês: [le] maître [c'est] moi, você entende. Essa coisa, eu sou incapaz de fazer de outra forma. As pessoas gostam ou não gostam. É só essa que eu posso apresentar, não tem outra.

Maureen Bisilliat: Instintivamente, a gente sente uma enorme diferença entre esse livro Êxodos, e aquele livro que você fez sobre os trabalhadores. Como se aquele livro dos trabalhadores fosse a esperança. Com o trabalho, as pessoas estão vivendo quase que castradas  [ao] poder do agir. A falta de ação, você percebe através de uma tristeza no olhar, através de uma certa lentidão, através de uma vida sem o poder de ser o seu próprio dono, através dos braços. Esse livro Workers, não sei como se chama aqui...

[...]: Trabalhadores

Maureen Bisilliat: ...Trabalhadores. É uma explosão de vitalidade. Não são ricos, são pobres. Mas são pobres em pleno domínio do ser. O trabalho não seria aquilo? Esse negócio do trabalho como uma relíquia, isso que é a tristeza hoje...

Sebastião Salgado: Maureen, muito interessante o que você está falando. Quando eu fiz Trabalhadores, tinham momentos em que eu tinha total admiração pelo ser humano. Ver fazer um navio é um negócio fabuloso. Você ver uma pessoa construir um navio, pegar uma placa de aço plana, é assim que se faz um navio, o início do navio. E, devagarzinho, você vê no estaleiro ao lado, no outro ao lado, o navio já em outras etapas. E o homem faz um navio, uma máquina colossal, que vai embora, você entende? E navega, passa pelos oceanos todos. E, um dia, ele não tem mais serventia e vai para uma praia da Índia, de Bangladesh, do Paquistão. E eles matam o navio. É tão difícil desfazer um navio como fazer um navio. E o homem desfaz. Transforma aquilo tudo outro vez em garfos, facas, em tudo que o navio transportou, ele faz o navio virar aquelas coisas. Como não tem metal suficiente naquela região, eles transformam aquilo. O homem realmente é um bicho de transformação. Ver construir uma barragem, ver construir um túnel... Eu estive trabalhando no canal do Rajastão [na Índia]. Quando eu vinha fotografando o canal do Rajastão fazia 52 anos que eles estavam construindo o canal, já tinha 48 mil km de canais construídos. Um canal principal, dando acesso e todos os canais secundários, terciários que estão juntos, fazendo 48 mil km de canal. Total admiração para ver a obra do homem, coisa colossal a obra do homem. E aqui [refere-se ao livro Êxodos] é quase que a antítese da obra. O que eu vi aqui, a idéia de fazer esse livro nasceu quando eu estava fotografando o outro livro. Vendo aquela obra fenomenal que o homem estava fazendo eu compreendi a globalização, que começou a ser falada há muito pouco tempo, não é isso? Mas a globalização já está instalada, já está preparada há dezenas de anos, ela vem se preparando para isso. Quando eu fotografava a indústria têxtil no Bangladesh, o país não produzia a fibra que ele estava produzindo, ela vinha da Índia, eles transformavam em tecido, que ia para as Filipinas para ser transformado em camisa. E aqueles navios, fabricados com dificuldade, essa engenharia fabulosa toda, transportava aquelas camisas para ser vendida às nove horas da manhã na Gap, em Nova Iorque. Então, a integração da economia já tinha visto total. E eu comecei a ver, quando eu estava fazendo a cana de açúcar aqui. Eu estava em Ribeirão Preto, Jaboticabal, eu perguntava aos trabalhadores de onde eles vinham: já eram trabalhadores do campo? E a maioria tinha sido proprietário daquela terra que eles estavam trabalhando. E que todo um processo de dinamização econômica, não é isso?, de projeto de mundialização de economias foi fazendo que o Brasil se transformasse no primeiro produtor de laranja, o primeiro produtor de soja, o primeiro produtor de álcool, de açúcar, e toda essa coisa, obedecendo, mais ou menos, um esquema de economia integrada, mundial. Isso foi criando uma quantidade de desempregados colossais. Aquele pessoal expulso para periferia das grandes cidades, o caminhão era enviado para contratar o bóia-fria, para contratar para o trabalho. E daí eu fui vendo que tinha uma história, uma história incrível dessa transformação colossal que o homem estava fazendo, você entende?, mas não aproveitava, realmente, o homem. Quando eu vi um robô em uma fábrica, eu ficava pensando: "meu Deus", o robô, que hoje está fabricando um carro, eu via aqui nas montadoras brasileiras, nas montadoras em outros países, eu via aquele movimento do robô. E você fechava o olho um pouquinho e era quase um movimento do trabalhador. O braço do trabalhador. E isso era materializado em uma máquina. Na realidade, ninguém descobriu o robô. É mentira. O robô foi evolução do trabalho do homem, que foi materializado ali e que devia liberar trabalho - efetivamente liberou trabalho - e o fruto desse trabalho deveria ser, servir à sociedade que o homem está trabalhando... Não é isso?, para liberar horas de trabalho, melhor pagamento, empregar mais gente, não é isso? Menos horas de trabalho para a pessoa pode viver um pouco melhor. Todo mundo tinha o direito de uma sociedade melhor. Então, eu estava vendo que, dê jeito nenhum. E estava sendo apropriado de uma outra forma e criando milhões de desempregados. Existe um fluxo hoje de abandono do campo em direção à cidade, em função da opção econômica que nós fizemos, em função da total degradação ambiental que nós fizemos, de 110 milhões de pessoas por ano no mundo que abandonam o campo em direção à cidade. Seria como você construir dez cidades do Rio de Janeiro por ano, de pessoas abandonadas, de pessoas em direção às cidades. Então, esse trabalho nasceu do outro. Esse é o capítulo número dois de Trabalhadores. Trabalhadores é o volume dois do Êxodos; é uma história que complementa a outra, é uma antítese da outra. Mas é um pedaço da outra.

Reinaldo Azevedo: Eu gostaria de aproveitar a oportunidade para fazer duas perguntas. Uma ao economista e a outra ao fotógrafo. O seu discurso, ele é tão assertivo, tão contundente quanto suas fotografias, marcando, insistindo na questão econômica, na questão da desigualdade. Eu te pergunto: isso é um pouco também um ato de resistência, da sua parte? Para você não ser muito glamourizado daquela fatia dos 15% que talvez te conheçam mais dos que os 85%? Essa é a pergunta ao fotógrafo. E a pergunta ao economista: qual é o lugar que você imagina dessa resistência necessária, dessa articulação de um novo discurso? Posto que ao ver essas fotos do Êxodos não me parece que essas pessoas aqui, segundo os flagrantes que você nos deixou registrados, não me parece que essas pessoas possam ser as articuladoras dessa resistência.

Sebastião Salgado: Olha, o problema da glamourização é um problema sério. Nós vivemos em uma sociedade hoje que se sustenta de individualidades. Então, existe o problema da promoção de um indivíduo, na promoção de um trabalho. É claro que todo mundo discute a estética no meu trabalho. Mas só a estética do meu trabalho que me pôs sentado aqui em frente a vocês discutindo. Se ela não tivesse uma estética razoável essas fotografias não seriam olhadas, entende? Então, esse tipo de contradição de dialética que leva a essa discussão - e que não é o tema principal do trabalho que foi feito, leva aí dentro esse tipo de glamourização - que é realmente alguma coisa que preocupa essa parte, a nata dos 15%. Pois tem um problema de consciência enorme e que encontram a justificativa do problema de consciência dela, atacando o instrumento que leva a realidade na mão dela. Ela é obrigada a olhar para aquela imagem, a discutir. Então, esse é o problema. Muito mais do que um problema de agressão. Há algo que ela [a nata dos 15%] sente como agressividade e ela responde com agressividade. A segunda questão, eu não me lembro...

Reinaldo Azevedo: E qual é o lugar da resistência?

Sebastião Salgado: Você tem toda a razão. Essas pessoas que, para mim, representam os 85%, não são responsáveis pelo [seu] deslocamento. A grande maioria delas, com algumas exceções, foram os criminosos, foram as pessoas que provocaram um distúrbio. Mas a grande maiorias delas, 99% ou mais, não compreendem porque elas perderam tudo. São pessoas que vêm da estabilidade, elas tiveram uma condição de vida razoável, tiveram uma casa, tiveram equilíbrio, tiveram condição de vida e, de um momento para o outro, perderam. Ou porque a economia mudou e elas não foram os "decisionários" no momento da modificação. Ou que houve uma violência qualquer, que em última instância... Quando você olha a formação de economista, eu fui economista, ela vem de uma deformação de um problema econômico na sociedade. Para mim, quando eu falo do problema racial no Ruanda, eu conheci bem Ruanda. Eu vi como economista, vi várias vezes como fotógrafo, antes do conflito, e vi, na época do conflito e depois dele. O problema do Ruanda foi um problema econômico. Quando o problema econômico aperta, e ele se transforma em um problema sério, aí o problema étnico aparece. O problema na ex-Iugoslávia no início foi um problema econômico. Houve a desarticulação de todo o sistema da Europa do leste soviético, onde a Iugoslávia era um tampão muito interessante, com o tipo de socialismo meio capitalista que eles tinham, [Mas] com a desorganização - ou a desorganização do sistema deles. Os europeus, muito desonestamente, tomaram a Eslovênia e a Croácia, que eram os sistemas que mais se pareciam com o europeu, e a parte rica da ex-Iugoslávia; e o resto estourou. O sistema de poder retrógrado, horrível, na Sérvia, que levou a uma violência brutal na região, toda a região se inflamou, mas a origem foi econômica. Então, eu acho que hoje nós temos que encontrar uma solução dentro dos 15%. Os 15% fizeram a fuga em direção ao futuro, esses 15% não vão conseguir viver isolados. Hoje nós estamos... [Mas] esses 15% vão ter que tomar consciência de que os recursos existem. Nós temos recursos concentrados nos bancos, nas financeiras, nas caixas de aposentadoria, nos EUA, no Canadá, nos países ricos do mundo. Os recursos existem. Nós podemos refazer o planeta inteiro. Podemos, por exemplo, tomar a Nigéria e o Zaire, e hoje que são os países mais desorganizados e pobres do mundo, mas que juntos tem uma população que se aproxima da do Mercado Comum Europeu, ou que se aproxima dos EUA. Eu estava fazendo uma conferência outro dia, com o bureau direct da Kodak, a direção da Kodak, constituída de pessoas muito interessantes... é constituída do diretor geral da Coca-cola, do diretor geral das companhias americanas, e eu falei: "gente, se vocês tomarem a decisão, realmente de empresários americanos, de fazer um investimento sério nos países africanos - toma Nigéria e toma o Zaire - de criar infra-estrutura, criar escolas, estradas, educação, saneamento. E criar uma condição de vida nesses países. E investisse seriamente nesses países, daqui a trinta anos você tem o mercado de consumo tão grande como o americano". Você sabe, é verdade. Existe recurso para isso, os recursos existem. A gente tinha que encontrar uma fórmula, não sei qual. Eu acho que muitos de nós... teria que pensar qual, onde a gente pudesse encontrar a solução. Quando eu escrevo na introdução desse livro que "antes eu tinha certeza que a evolução era uma coisa no sentido positivo". Hoje eu tenho esperança, eu não tenho certeza que a gente vai conseguir sobreviver. Se a gente conseguir discutir e pensar, nós podemos sobreviver como espécie, senão é difícil. Quando você pensa: nós somos uma espécie muito recente, a nossa espécie, de história escrita, não vai além de seis mil anos, oito mil anos. A referência que nós temos da nossa espécie são centenas de milhares de anos, ou milhões. Espécies muito mais forte fisicamente, potentes que a nossa, viveram cem milhões de anos e já desapareceram há 150 milhões de anos. Nós somos muito recentes. A nossa organização social é incipiente. E isso tudo pode desaparecer. Então, para mim, o verdadeiro Deus da espécie humana é o instinto de sobrevivência. Eu acho que a gente tinha que pensar seriamente no instinto de sobrevivência. Uma cidade como a nossa São Paulo, o nível de violência nessa cidade... Os seus filhos não estão garantidos da sobrevivência deles. Em um momento qualquer que eles saem no sábado à noite, um carro fura o pneu em uma zona qualquer duvidosa, ele pode ser assassinado, você entende? Então, a gente tem que pensar duas vezes, tem que encontrar uma fórmula de viver em público, de encontrar uma solução. Às vezes, têm uns países que eu vou, que me dá um prazer tão grande... Eu fui na Austrália, por exemplo. Eu penso na Austrália. Se eu fechar os olhos um pouquinho eu lembro de menino no Brasil e eu falei: se tivesse tomado um outro caminho, quem sabe, hoje, a gente não estava como a Austrália. Tinha recursos para isso, mas não estamos.

Paulo Markun: Sebastião, nosso tempo terminou e eu queria antes de agradecer a você pela sua entrevista, pedir uma indicação. Vários telespectadores escreveram para a gente, através de e-mail, telefonaram, pedindo: como entrar em contato com você, porque tem interesse de diversas cidades para que essa exposição chegue até lá. Em algumas cidades já se sabe que ela não vai chegar inteira, eles falam lá nos pôsteres. Enfim, eu queria que você deixasse essa referência e deixar registrado, evidentemente, todas as perguntas que foram formuladas, como é costume do Roda Viva, serão encaminhadas para você, para que você tome conhecimento e, caso necessário, responda.

Sebastião Salgado: Seria através das organizações que estão preparando a exposição no Brasil, através do Sesc, da Companhia das Letras, das organizações da cidadania, do movimento sem-terra. Eles vão saber como obter essas exposições. A exposição que está sendo apresentada no Sesc, será apresentada no Rio de Janeiro também, a partir do dia 20 de junho. Será em Curitiba, a partir do dia 15 de agosto; vai ao Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no mês de novembro ou dezembro. Essa exposição deve circular no Brasil por dois ou três anos. Mas têm as exposições de pôsteres, que estão na exposição, que vão circular pelo Brasil.

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, Sebastião Salgado. Boa sorte e que a exposição dê tudo certo. A partir de amanhã, no Sesc Pompéia, em São Paulo.

Sebastião Salgado: Exatamente, obrigado.

Paulo Markun: Uma boa noite para você. A vocês que tiveram com a gente, muito obrigado, e até a próxima segunda feira, sempre às 10:30 da noite. Até lá.

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