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Memória Roda Viva

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Manoel de Oliveira

20/11/2000

Aos 92 anos e com média de um filme por ano, o diretor de cinema português, faz uma ode à arte cinematográfica e diz que faz um trabalho de resistência frente aos excessos das grandes produções

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[Programa gravado, não permitindo pergunta de telespectadores]

Cunha Jr.: Boa noite. Ele se tornou um dos grandes nomes do cinema internacional aos 70 anos de idade, quando, em geral, os cineastas já estão aposentados. Com uma média de um filme por ano, ele é um dos cineastas mais atuantes no mundo e há mais tempo, uma produção incrível, imensa, como se diz lá em Portugal. O Roda Viva entrevista hoje, esta noite, o diretor Manoel de Oliveira, o patriarca do cinema português.

[Comentarista]: O cinema contemplativo, reflexão de palavras e utopias e uma homenagem à vida, assim é um pouco da obra de Manoel de Oliveira, que chega aos seus 92 anos com 40 filmes, sete como ator e 33 como diretor. O veterano Manoel já viu tudo nessa vida de cinema. Não é apenas um herdeiro, mas também ajudou a criar o melhor do cinema mundial. Pertence ao grupo restrito dos mestres da categoria de Michelangelo Antonioni [(1912-2007) cineasta italiano] e Federico Fellini [(1920-1993) cineasta italiano, dirigiu clássicos como La dolce vita (1960), Amarcord (1974) e outros famosos mundialmente], aqueles que têm carinho por uma idéia. No cinema de Manoel de Oliveira os assuntos são quase sempre espirituais, o que não significa distâncias, e sim aproximações. O público recebe filmes cuidadosos, serenos na sua busca de significados.

Cunha Jr.: Para entrevistar o cineasta português Manoel de Oliveira, nós convidamos o jornalista Leon Cakoff, diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; Inácio Araújo, crítico de cinema do jornal Folha de S. Paulo; Lúcia Nagib, professora de cinema da Unicamp – Universidade de Campinas – e diretora do Centro de Estudos de Cinema da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC); a jornalista Norma Couri, colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo; Vicente Adorno, editor de internacional da TV Cultura de São Paulo; Maria do Rosário Caetano, repórter de Cultura do Jornal de Brasília, e Amir Labaki, articulista da Folha de S. Paulo e diretor do festival "É tudo verdade". O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília, mas vamos lembrar que o programa de hoje está gravado, portanto, infelizmente, você não vão poder participar enviando suas perguntas. Vamos começar, então, nosso programa. Manoel, boa noite, tudo bem?

Manoel de Oliveira: Muito boa noite, tudo bem.

Cunha Jr.: Você está trazendo para o Brasil seu filme mais recente, que se chama Palavra e utopia (2000), em que o personagem principal é o padre Antonio Vieira. Infelizmente, ainda é pouco conhecida a sua história aqui mesmo no Brasil. E tinha conversado antes com você e você disse que, infelizmente, isso acontece em Portugal. Você também é um homem de palavras, imagens e utopias. Para a gente ter uma idéia de quem você é, uma reflexão sobre você mesmo, gostaria de saber o que vocês têm em comum, você e o padre Vieira, por exemplo? O que você acha que vocês têm em comum?

Manoel de Oliveira: Em comum, somos dois homens.

[risos]

Cunha Jr.: Para começar. É um bom começo.

Manoel de Oliveira: Eu... Ele é padre, eu não sou...

Cunha Jr.: Certo.

Manoel de Oliveira: Sou ateu. Ateu não sou, sou religioso. Na verdade, sou religioso, mas sou leigo. Sou leigo, do ponto de vista religioso, literário e cinematográfico...

Cunha Jr.: E enquanto ativista...

Manoel de Oliveira: ...mas sou atrevido, daí faço filmes.

Cunha Jr.: ...Porque você também é um homem ativista, você é um homem teimoso na sua arte, assim como padre Vieira era um teimoso nas suas lutas. Nessa questão, acho, vocês têm bastante em comum. E nas utopias [também]: ele acreditava naquilo, ia em frente, mesmo achando que era muito difícil, e você também continua fazendo cinema, apesar das dificuldades enfrentadas muitas vezes. Estou dando a resposta já por você também, não é?

[risos]

Manoel de Oliveira: Já se dizia antigamente: “Teima, teima, que consegue”. É o que faço.

Cunha Jr.: Agora você... Só para complementar aqui. Não é a primeira vez que você se refere, em seus filmes, ao padre Vieira. Não me lembro especificamente, mas já vi em outros filmes uma citação ou outra...

Manoel de Oliveira: Non, ou a vã glória de mandar [filme produzido por Oliveira em 1990, que aborda a memória da expansão e conquista colonial portuguesa na América].

Cunha Jr.: ...e nesse, mais explicitamente, porque aí é uma frase do padre Antonio Vieira em que ele falava o quê mesmo? Qual era a frase que ele dizia?

Manoel de Oliveira: A palavra terrível é o "non" [não], por qualquer lado que tu vais é sempre non.

Cunha Jr.: É sempre non, quer dizer, já era uma coisa que você gostaria de fazer? O padre Antonio Vieira já era uma idéia que você tinha, fixa, de que um dia ia fazer alguma coisa?

Manoel de Oliveira: Já era uma pessoa pela qual tinha uma grande admiração e, quando pensei nesse filme, Non, ou a vã glória de mandar, que é um filme sobre a dádiva e sobre a derrota, e não sobre a vitória, pensei que o "non" tirado do Vieira seria bem para reedificar e para dar o nome ao filme. E, juntamente com a palavra non, que é do Vieira, juntei outra, que é de Camões, também muito interessante que é "a vã glória de mandar". Mandar é vão.

Norma Couri: Manoel, há outro ponto em comum entre você e o padre Antonio Vieira, que é a longevidade. Ele atravessou o século XVII e você atravessou o XX e estamos no XXI. Queria saber – acho que eu e todo mundo– qual é o seu segredo.

Manoel de Oliveira: É melhor perguntar a padre Vieira.

[risos]

Norma Couri: Ah, não. Quero saber o seu! [risos]

Manoel de Oliveira: Nasci em 1908 e padre Vieira creio que nasceu em 1608, se não é...

Norma Couri: 1608.

Manoel de Oliveira: 1608. E eu em 1908, faz uma diferença de 300 anos. Mas a tolerar, Vieira está presente ainda hoje, no meu entender.

Norma Couri: Mas ambos viveram muito e sempre trabalhando e você é uma surpresa para o mundo, você não pára de filmar.

Manoel de Oliveira: Talvez, não sei bem.

Norma Couri: Mas não há um segredo?

Manoel de Oliveira: Sou sempre uma grande surpresa...

Leon Cakoff: O segredo que me contou uma vez ele está querendo guardar: ele me disse que eram os grelhados.

[risos]

Manoel de Oliveira: O grelhado [risos].

Leon Cakoff: Comer grelhado sempre. É isso mesmo?

Manoel de Oliveira: É. Mas isso aí são fraquezas do estômago.

[risos]

Maria do Rosário Caetano: Manoel, o produtor francês Anatole Dauman [já produziu filmes de Godard (Masculino-feminino), Wim Wenders (Paris, Texas) e captou recursos sozinho para a produção de O império dos sentidos e a continuação, O império das paixões, de Oshima] dizia que os cineastas, à medida que o tempo passa, perdem a fertilidade, a criatividade. Você, à medida que o tempo vai passando, você vai ficando melhor, vai produzindo mais, vai criando mais. Você é a exceção que confirma a regra do Dauman ou você discorda dessa idéia?

Manoel de Oliveira: Acho que não é uma regra absoluta, não é. Penso que, com a idade, se perde a juventude, mas à medida que se perde a juventude e certas vitalidades próprias da juventude, aumenta-se a sabedoria, a prudência e várias outras qualidades. Enfim, Deus “dá as nozes a quem não tem dentes”.

[risos]

Lúcia Nagib: Tenho uma questão que está relacionada ao título do seu filme – Palavra e utopia –. Gostaria de pegar a primeira parte, palavra. Tenho um poema de sua autoria aqui – "Poema cinematográfico" –, [que] começa: “Filmes, filmes. Os melhores se assemelham aos grandes livros que, pela sua riqueza e profundidade, se tornam de penetração difícil”. Vejo aqui uma ligação com cinema e literatura, que parece estar no cerne. Embora a interface entre várias artes seja uma constante no seu filme, pintura, literatura, sobretudo cinema  e história... mas a literatura parece estar realmente no centro, é uma paixão. Penso um pouco nos filmes... como Agustina Bessa Luís, [escritora portuguesa com vários romances adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira, entre esses: Francisca, Vale Abraão, As terras do risco e outros], que deu Vale Abraão (1993) e tantos outros filmes. Essa paixão literária e a paixão pela palavra e a palavra portuguesa, de onde nasceu? Qual que é a fonte dela?

Manoel de Oliveira: Na verdade, a literatura tem um lugar extraordinário, porque a palavra é de uma riqueza enorme. Ela expressa por igual o sentimento ou o pensamento ou descreve qualquer das outras artes, coisa que as outras artes não descrevem. É capaz de descrever outro livro ou de descrever um quadro, de descrever um filme, de descrever uma personalidade, enfim, é um modo de expressão riquíssimo. E é um dom particular no homem, a palavra. Já dizia São Tomás [de Aquino (1225- 1274) frade dominicano e teólogo,  foi um dos fundadores da filosofia teológica escolástica, na Idade Média] que o homem se distinguia pela mão e pela palavra, era o único animal que falava e que opunha o polegar aos outros dedos. Curiosamente, há um cientista espanhol que descobriu que os nervos que atuam nos dedos vêm diretamente do cérebro, não saem da coluna vertebral, vem diretamente do cérebro à mão, por isso é que a mão tem uma agilidade, uma habilidade extraordinária. Quando a gente não pode chegar com a mão, joga a palavra.

Leon Cakoff: O senhor acha que, hoje, a nova geração de cineastas está usando mal as mãos? Estou me referindo ao movimento Dogma, que é muita câmera na mão, muito movimento, muita agitação na tela.

Manoel de Oliveira: Sim, a meu ver, há um excesso de agitação do movimento da câmera. A idéia de que o cinema é movimento te ilude, quer dizer, quando se diz que o cinema é movimento pergunta-se: é o movimento dentro do quadro ou é a câmera a virar cambalhotas? São duas posições que são interessantes de pôr. Hoje, o cinema tem usado uma máquina ou uma técnica... diria até que são facilidades que as máquinas têm de se moverem. Há um excesso de movimento da câmera – vai, procura, sobe, desce –, às vezes estonteante. No caso de um filme, onde a palavra tem um jogo importante, qualquer movimento da câmera é distração e se a palavra é o ponto é preciso dar [a ela] toda atenção. Se repararem, quando queremos ouvir qualquer coisa com muita atenção, em geral, fixa-se a vista em qualquer ponto para que o ouvido fique mais atento. Por isso, há um exagero no movimento de câmera hoje e há uma certa relutância em aceitar um cinema com imagem fixa, enquanto a imagem fixa é o único modo de apresentar a imagem num ponto de vista neutro – não posso dizer objetivo, porque objetividade não existe, mas é neutro. Se mover alguém, já está por trás, e o registrador não... eu, pelo menos, nos meus filmes, não quero estar presente, quero ser esquecido. O filme existe sem registrador.

Maria do Rosário Caetano: Manoel.

Manoel de Oliveira: Diga.

Maria do Rosário Caetano: O curioso é que você foi piloto de automóveis na juventude. Quer dizer, adorava velocidade e hoje você faz um cinema mais reflexivo, de planos longos. Como você explica isso? Você rompeu com a juventude até no sentido de um certo desinteresse por essa velocidade?

Manoel de Oliveira: Não, não tenho desinteresse pela velocidade, gostei muito do automobilismo e o Brasil teve um corredor sensacional, foi o [Ayrton] Senna [(1960-1994) três vezes campeão mundial de fórmula 01 1988, 1990 e 1991 - ver entrevista com Senna no Roda Viva], que eu via na televisão sempre que podia. Só não via quando não podia, era um homem extraordinário, não só como piloto, mas como criatura também. São coisas diferentes, uma coisa é fazer cinema outra coisa é correr de automóvel. Agora...

Norma Couri: Por que você parou de correr?

Manoel de Oliveira: Parei de correr, porque... Corri a última vez... Em 1938, corri na Gávea, aqui na Gávea.

Amir Labaki: Foi a primeira vez que você veio ao Brasil?

Manoel de Oliveira: Primeira vez que vim ao Brasil, em 38.

Vicente Adorno: Você chegou a competir com o Tazio Nuvolari na Europa? [(1892-1953) piloto de corridas de motocicletas e automóveis. Ficou mundialmente conhecido quando decidiu correr de motocicleta, mesmo com as duas pernas engessadas, depois de um acidente de carro. Correu por várias equipes, entre elas a Alfa Romeo, Ferrari e a Maserati]

Manoel de Oliveira: O Nuvolari?

Vicente Adorno: É.

Manoel de Oliveira: O Nuvolari era um grande corredor italiano. Na altura era um dos extraordinários. Nunca o vi correr... Não, acho que vi em São Sebastião uma vez, uma corrida...

Vicente Adorno [interrompendo]: Porque, inclusive, no Amarcord [filme de Federico Fellini], tem uma referência à [corrida] Mille Miglia. A Mille Miglia passa pela cidade durante o festival da queima da fogueira, “La fogaratia” é o nome desse episódio. Achei muito interessante. Mas, nos seus filmes, não há quase referência a esse período automobilístico. Por isso acho que procede a pergunta dela. Ficaram duas coisas assim completamente diversas, a sua atividade como piloto, homem da velocidade, e quando o senhor pilota uma câmera, que é uma coisa diferente, o senhor nos propõe um mundo completamente diferente.

Manoel de Oliveira: Sim, porque na corrida o gesto é de vencer o tempo e no cinema o gesto é outro, é uma atitude de reflexão. O meu cinema, o cinema que procuro ao contar uma história não é propriamente o contar da história, mas é a reflexão da história que conto, que é uma atitude diferente, obriga o espectador a usar mais a cabeça do que os olhos.

Amir Labaki: Como o senhor chegou ao cinema?

Inácio Araújo: O tempo, de todo modo, está muito presente no seu cinema, tanto na corrida onde há que vencê-lo como no seu cinema. Lembro, assim, de A carta (1999), que é seu penúltimo filme, que [conta] a história da Madame de Clèves, se passa no século XX, e existe uma atualização da história da princesa de Clèves [o filme é uma adaptação da obra La princesse de Clèves, de Madame de Lafayette (1634-1693)]. Mas, ao mesmo tempo, existem momentos em que ela é remetida a um convento típico do século XVII. [Isso] também [ocorre] na história do padre Vieira, [então] para nós, acho, fica a sensação muito clara de uma atualidade muito grande do tempo. Nós estamos pensando o tempo todo no quanto Vieira nos fala, acho que tanto a Portugal quanto ao Brasil, no presente. Dessa relação com o tempo é que queria que o senhor falasse um pouco.

Manoel de Oliveira: Bem, essa relação com o tempo nasceu ao refletir sobre o meu tempo. Eu principiei menino, quando nasci e a mentalidade foi se alterando à medida que ia crescendo e, como dizem, a identidade não é uma só, a identidade dos cinco anos não é a mesma dos 15. E aos 25 há outra, aos 35 [outra], vai maturando. Há uma continuidade mais que uma identidade, é claro que, com a idade e com essa passagem de tempo e com as evoluções sociais, as mentalidades alteram, mas os atos continuam a ser os mesmos. As relações entre homem e mulher, o ciúme, a paixão, a vingança são provenientes de milênios, não alteram. Há pessoas, mulheres recatadas, mulheres virgens, mulheres libertinas, assim houve há milhares de anos, assim há hoje. A natureza humana tem essa permanência... Se a gente ler a Bíblia, o velho testamento, coisas passadas há milênios e milênios, existe, realmente, um mundo de perversão total ao lado de um mundo de santidade e de recolha. Mas a princesa de Clèves, no próprio livro, refugia-se num convento e isso me inspirou que a mantivesse lá, [que] uma amiga freira pudesse ressaltar, de uma maneira mais sintética e mais rápida, o pensamento e o que ia à alma da Madame de Clèves e a contradição desse pensamento. De resto, embora haja pessoas que põem a idéia de que hoje a mulher não procederia assim, a mulher procede hoje assim como procedia antes. Não somos todos iguais, somos todos muito diferentes e algumas mulheres vêem na princesa elas próprias e não é, Madame de Clèves é aquela figura, o espectador é outra figura. Estão habituados com o cinema americano, que realmente investe para que o espectador passe a ser o intérprete e, portanto, passe a viver diretamente isso. Esse é um mau hábito, somos diferentes, aquele procede de uma maneira, o outro procede de outra e temos que aceitar essa possibilidade. A mim, o que me seduzia era justamente repor uma mentalidade muito outra, que é a do século XX em relação ao século XVII, os mesmos problemas, porque a libertinagem, digamos, de uma forma escondida ou com maior hipocrisia, já existia na Madame de Clèves também. Não é novidade, não é novidade em tempo nenhum.

Cunha Jr.: Como você lida com a crítica? Alguns críticos podem gostar, outros podem não gostar dos seus filmes? Quando eles são muito radicais, ferinos, em relação a algum filme seu, como você se comporta? Li uma entrevista, uma conversa que você teve com [Jean-Luc] Godard e, em relação à crítica, você até citou [Ingmar] Bergman [(1918-2007) renomado cineasta sueco, autor de clássicos do cinema internacional, como Morangos silvestres (1957),  O sétimo selo (1956) e Fanny e Alexander (1982)] com a seguinte frase: “certos críticos parecem mancos que querem nos ensinara correr”. Como você lida com as críticas? É difícil ler uma crítica muito negativa?

Manoel de Oliveira: Não, não é. Se a crítica é negativa e injusta para mim é um estímulo muito grande para continuar a filmar. Se a crítica toca numa ferida aberta, sofro e procuro corrigir essa atitude. De resto, a crítica é livre e o realizador não tem palavra, posso concordar ou não concordar, mas quem se expõe em público, se sujeita a toda espécie de crítica agora...

Cunha Jr.: Mas você acha que eles são mancos que querem ensinar você a correr?

Manoel de Oliveira: Ela refere-se a certos críticos e não à crítica. Faz muita diferença, não é? Como os jornalistas, há imensos jornalistas, mas há jornalistas e jornalistas, quer dizer, há jornalistas que enaltecem o jornalismo e há jornalistas que o diminuem e deveriam ser os próprios jornalistas que enaltecem o jornalismo que deveriam corrigir os jornalistas que o diminuem.

Cunha Jr.: Está certo. Amir, por favor.

Amir Labaki: Manoel, queria perguntar para você: como se aproximou do cinema, quer dizer, quais foram suas experiências de espectador de cinema, como menino e como garoto? E como você foi trabalhar inicialmente no cinema, ali no final dos anos 1920, início dos anos 30? Como você chegou ao cinema?

Manoel de Oliveira: A culpa foi do meu pai.

[risos]

Manoel de Oliveira: Primeiro por me ter feito nascer e depois por me levar ao cinema, aonde queria ir, não sei com quantos anos, seis anos, não sei, pequeno e lembro que me habituei àquela magia do cinema e persegui sempre a ver os filmes. E, é claro, o primeiro impulso era o da imitação dos atores, sobretudo dos atores cômicos, que eu admirava muito. Gostava de fazer as mesmas cenas dos atores cômicos, como Max Linder [1883- 1925) ator de cinema mudo francês]... Dizemos nós Max Linder, mas nós dizíamos Max Linder, não sei como dizem aqui...

Amir Labaki: Max Linder.

Manoel de Oliveira: Max Linder e tal para fazer essas partes todas cômicas, engraçadas, porque a vida é tão trágica, que esse lado irônico sobre a tragédia é extremamente saudável e permite ao homem suportar sofrimentos muito fortes. Mas, depois, imaginava que gostava de fazer, gostaria de fazer, mas não me julgava capaz, até que um dia vi um filme que era Berlim: a sinfonia de uma capital, de Walter Ruttmann [clássico do cinema mudo que mostra a capital alemã em um dia de 1928] e esse foi realmente o impulso definitivo. Eu [pensei]: bom, acho que é possível, não tem atores, não tem nada, é só filmar... a câmera. Tinha um amigo que era fotógrafo de muita qualidade. Nunca tinha feito cinema e o meu pai ajudou a comprar uma máquina pequenina e película e fiz o primeiro filme Douro, faina fluvial (1931).

Amir Labaki: Antes de fazer o Douro o senhor tinha trabalhado como ator no cinema?

Manoel de Oliveira: Sim, figurante. Ator, propriamente, não fui. Depois de ver Lima Duarte, a gente se abre a essa franqueza, não sente essa capacidade. [Lima Duarte, ator brasileiro que interpretou padre Vieira no filme Palavra e Utopia, de Manoel de Oliveira e também personagens célebres da teledramaturgia nacional - ver entrevista com Lima Duarte no Roda Viva

[risos]

Leon Cakoff: E por que o senhor diz que faz um cinema de resistência?

Manoel de Oliveira: Faço um cinema de resistência, porque há esse preconceito de que o cinema é movimento e que acaba a debandar os públicos do princípio até o fim. Faço um cinema de resistência, porque o cinema abusa em excesso da violência pela violência, do sexo pelo sexo e isso não leva a nada, só estimula a um tipo de desumanização. Quer dizer, matar um robô, um boneco ou um homem é igual, é uma figura que cai para o lado. E não é: o homem é diferente de todo o resto e pertence a um grupo que é o da humanidade, à qual nós devemos o maior respeito e o esforço maior que poderíamos fazer para defender e não para atacar. Até há brinquedos que se jogam nesse sentido de pontapé ao outro, de morte. Havia até um jogo, que era conduzir um automóvel e ganhava aquele que matava mais peões, depois foi proibido. Imagina-se até onde isso vai. Nesse ponto, sou absolutamente resistente. Quer dizer, quanto mais a técnica avança, mais eu recuo, porque a técnica desumaniza. Hoje há uma desumanização quase que total e a reflexão sobre o humano, sobre seus problemas, sobre a sua vida, por exemplo, na questão de sexo pelo sexo, encontram duas figuras – um homem e uma rapariga encontram-se, apaixonam-se e o primeiro ato que fazem é a necessidade de se reunirem. Então, isto é comum em quase todos os filmes americanos e agora parece que já passa para os europeus, e outra eu vi num filme, creio que era um filme inglês sobre [William] Shakespeare [(1564-1616) dramaturgo e poeta inglês, famoso mundialmente, autor de Romeu e Julieta, Sonhos de uma noite de verão, entre outros]. Passado, portanto, séculos antes e também se habituavam como agora. Fiquei espantado, quer dizer, outra é moda de vir comparar os cavos com lâmpadas... E o espectador não pensa, está ali entretido, aturdido, quando sai nem sabe o que é que viu. Mas, enfim, efeitos espetaculares, até conto uma história que talvez ajude a compreender o que quero dizer. Quando estive no Japão, fui ver o [teatro] kabuki [forma de teatro japonês conhecida pela exagerada maquiagem e estilização do drama] e levava uma intérprete. E, a certa altura do kabuki, que é imenso, via lá um jogo com os leques e tal e os espectadores deram palmas, aplaudiram um pouco esse gesto e perguntei à intérprete: "isso corresponde a um ritual muito certo do kabuki?" “Não, não, isso é uma coisa de que o público gosta, porque é assim movimentado e tal, uma coisa assim”. Mas a crítica não aprecia e diz que o kabuki não é isso, é uma coisa muito mais séria e a isso chama circo [risos]. Ora, o que não gosto de ver no cinema é o circo, quer dizer, o que quero fazer nos meus filmes é tudo, menos cinema. [risos]

Lúcia Nagib: Nesse sentido parece que o senhor é, inclusive, bastante provocativo. Estou pensando em muitos dos seus filmes, mas quando vi Palavra e utopia, há, por exemplo, cenas atrás dos personagens que são quadros pintados ou então um personagem, o Vieira fala um dos seus sermões e nós temos uma platéia que reage, mas essa platéia não está presente ali e a gente só ouve a reação dessa platéia. Então, a câmera se coloca de tal maneira, que a gente não vê muito bem o personagem que está falando ou se manifestando, não há um ponto de vista privilegiado, digamos assim. Nesse sentido, são todas atitudes que impedem essa identificação que o senhor estava criticando no cinema americano, não é do espectador com o intérprete, são coisas que barram e causam estranhamento. E, às vezes, acho que o senhor está brincando um pouquinho com esse tipo de atitude, acho muito interessante. Gostaria de saber se é proposital, se é nesse sentido de romper uma expectativa que se tem, com o cinema americano, de estar num naturalismo, numa verossimilhança que coloca imediatamente à vontade e se, então, é preferível que o espectador fique ligeiramente incomodado diante daquelas imagens.

Manoel de Oliveira: Disse muito bem: o espectador pode ficar um pouco incomodado. Mas essa é uma pergunta um pouco complexa, porque há filmes em que pedia aos atores [para] se dirigirem à câmera, quer dizer, passar ao espectador de uma atitude morta para uma atitude ativa. Ele mesmo tinha que reagir, obrigá-lo a pensar naquilo em que é ele que se dirige. Aqui, no caso do padre Antonio Vieira, havia a dificuldade econômica. Não dava para fazer uma multidão de igrejas compostas segundo o século XVII e não [segundo] o século XVIII e XIX, como quase todas estão, portanto não podia servir delas ou então fazer esses cenários gigantescos, que representassem essas igrejas iguais ao tempo em que era, então, isso por um lado.  Pelo outro lado, Vieira, tudo que ele diz é perfeitamente atual. É perfeitamente atual e é interessante que entendi que quem assistia ao sermão era a platéia. A platéia era a gente que estava na Igreja, portanto, ele fala para a platéia, fala para nós, para cada um dos espectadores que o está ouvindo e compete a cada um dos espectadores, que está a ouvir, fazer o seu raciocínio; achar que disse bem, mal, concordar, discordar. Enfim, ser ativo, não ser passivo, não ser levado, ser ativo. Neste último filme, um ator, o ator, aliás, era francês e disse – gostei muito de trabalhar contigo e tudo mais e acho que você manipula muito bem os atores. Eu disse: “não, não gosto muito de ouvir essa palavra manipula, não manipulo nada. Você foi dirigido por mim, não disse como devia dizer, só marquei posições. Porque todas as posições são aquelas que o podem beneficiar e que estariam dentro do enquadramento da máquina, porque se tiver fora não se vê, tem que estar ali. Portanto, não manipulei coisa nenhuma”. Bem, mas também não gosto da palavra dirigir, não "dirijo" atores, o que procuro é acordá-los, acordá-los no personagem, porque eles é que vão fazer, eles é que dão o seu corpo, a sua voz, o seu gesto, a sua interpretação, e acordar neles o personagem é minha função sem que eles dêem por isso. Portanto, o dirigir a câmera é tornar o espectador ativo e viajar...

Vicente Adorno: Queria retomar uma coisa que a Norma falou. Ela apontou a sua semelhança com o padre Vieira, ambos viveram muito tempo. Agora eu, talvez, vendo aqui, percebi, o senhor também teve instrução em colégio jesuíta, não foi?

Manoel de Oliveira: Tive sim, La Guardia. Residente no La Guardia, que era o antigo Colégio Campolide. Depois da República foram expulsos e um instalou-se em La Guardia, que era do lado norte do [rio] Minho, em frente à Caminha, mas já Espanha. E outro na Bélgica, que é o São João do Rito.

Vicente Adorno: Mas tem outra coisa que queria levantar. Luis Buñuel [(1900-1983) cineasta espanhol, adepto do movimento surrealista, dirigiu, entre outros, Um cão andaluz (1928), em colaboração com Salvador Dalí] e Alfred Hitchcock [(1899-1980) famoso e cultuado cineasta inglês, considerado o mestre dos filmes de suspense, dirigiu Festim diabólico (1948), Disque M para matar (1954), Janela indiscreta (1954), Um corpo que cai (1958), entre outros], também estiveram em colégios jesuítas. Então, o senhor acha que é preciso aprender alguma coisa com os jesuítas para ser um cineasta de longa vida e longa produção?

Manoel de Oliveira: Até para ser um cineasta contra os jesuítas, como Buñuel.  O Buñuel era uma figura muito interessante, não sei se foi o Orson Welles [(1915-1985) ator, produtor e cineasta norte-americano, dirigiu o filme Cidadão Kane (1941), baseado na vida do magnata do jornalismo William Randolph Hearst, que é considerado um dos principais filmes realizados no século XX]  que disse que o Buñuel era o realizador mais religioso que ele tinha conhecido. E lembro que, quando os aviões tentavam vencer a velocidade do som, quando atingiam essa velocidade caíam e faziam grandes buracos no chão, morreram vários pilotos experimentais, que arriscavam a vida para... Mas houve um que, quando pôs o manche no peito para o avião subir [faz um movimento para frente],  o avião descia, quanto mais descia, mais ele puxava para subir e, como ele não subia, cada vez mais descia, [então] ele fez o contrário [risos]. Quando avançou, o avião... [faz o movimento de subir]. Os comandos invertiam-se. Ora, o Buñuel inverteu os comandos.

Norma Couri: Manoel, você estava falando sobre os atores e você acabou fazendo o último filme do Marcello Mastroianni [(1924-1996) ator italiano que se celebrizou principalmente pelos filmes dirigidos por Fellini, como La dolce vita (1960)], Viagem ao princípio do mundo. Queria saber como foi a sua relação com ele, como foi trabalhar com o Mastroianni?

Manoel de Oliveira: Primeiro, não esperava... sabia que ele estava condenado, mas não esperava que fosse o seu último filme. Depois, tinha um relação afetiva com ele muito forte, não é? De resto, toda a equipe tinha uma relação muito forte com ele, porque era uma pessoa extraordinária. Ele dizia: “É, perguntam se vou, como os atores americanos, para uma clínica estudar o papel. Digo: vou nada, o realizador diz 'faz assim', faço assim, 'faz assado', faço assado, é simples”[risos].  “Depois, na América, disseram que tem latin lover [amante latino] e na Europa optaram também por essa expressão: fiz um papel de um cornudo, fiz um papel de um homossexual...”[risos] Era um homem muito simples, muito dado, tinha intuição de ator. Acho que era um dos grandes atores, tinha uma intuição, era tudo natural, simpático e nunca – sabendo que estava condenado como estava a morrer em breve – nunca se queixou a nenhuma figura da equipe, nem a mim nem a ninguém. E nunca se negou a fazer coisa nenhuma ou deixou de fazer coisa nenhuma. Eu lhe disse “olha, Marcello agora aqui vai de costas para subir esta ladeira, para não estar a machucar, ponho ali um duplo [dublê] com a mesma roupa e...” Ele disse: “Não, não, quero ir”. E ele fez. E outra coisa também dramática é que ele sabia que estava condenado e queria trabalhar, tanto que me pediu: “Manoel, se quiser fazer outro filme chama-me, que venho logo”. E fiquei muito emocionado com isso. A idéia dele era não parar, porque acreditaria... teria uma superstição de que, se não parasse, não dava tempo a morrer, sobrevivia. Ele acabou o filme e, no dia seguinte, foi para Milão fazer uma peça de teatro e, daí, foi para Nápoles fazer a peça de teatro e teve o ataque em cena, foi aí que ele caiu. Depois, foi para o hospital e morreu. Mas era um homem que gostava da vida e era muito simples, muito dado, e que fazia amizades com muita facilidade. Um homem solidário...

Cunha Jr.: Bom, li uma entrevista sua, Manoel, dada para o Leon Cakoff – Leon, inclusive, que é um dos responsáveis pela Mostra Internacional de Cinema–, e foi através da mostra que o grande público, vamos dizer assim, conheceu seu trabalho aqui no Brasil, [no] final dos anos 1970 – foi isso, Leon? Qual foi o filme?

Leon Cakoff: Foi na Segunda Mostra, 1978, com Amor de perdição [filme baseado no livro homônimo de Camilo Castelo Branco].

Cunha Jr.: Bom, mas você falou numa entrevista para o Leon, você disse o seguinte: “Deus é brasileiro”. Você disse que Deus é brasileiro desde Cabral. Queria saber por que você acha que Deus é mais brasileiro que português e qual é a sua relação real com a questão religiosa. Na verdade, são duas perguntas, não é? Você se lembra de ter falado isso para o Leon ou o Leon mentiu?

Manoel de Oliveira: Lembro, lembro. É que a pergunta era maliciosa.

[risos]

Manoel de Oliveira: Ora, respondi com a mesma malícia. Como, se Deus existe, é Ele que faz o destino, não é, Deus estava presente ou tinha destinado que assim acontecesse, como aconteceu na história. De maneira que são coisas que nos ultrapassam, nós escrevemos aquilo que se passou, mas somos incapazes de escrever aquilo que se vai passar.

Leon Cakoff: Manoel, no bloco anterior, o senhor falou da coincidência da atualidade do padre Vieira. Em Palavra e utopia a gente vê os sermões do padre Vieira nas igrejas e as pessoas que ouvem os sermões, os índios, os negros, estão do lado de fora das igrejas, elas não tinham o direito, há 300 anos, na época colonial, enfim, de estar dentro sequer das igrejas para ouvir os sermões de Vieira. Essa terrível atualidade do padre Vieira se repetiu nesse ano comemorativo dos 500 anos do descobrimento do Brasil que, aliás, não sei por que se diz que é comemorativo. Enfim, essa terrível coincidência se deu também nas comemorações oficiais do descobrimento na Bahia, onde os índios foram impedidos de assistir à repetição da celebração da primeira missa, etc. O senhor acha que existe motivo para se comemorar os 500 anos de descobrimento do Brasil? O senhor acha que o seu filme é uma contribuição para essa data?

Manoel de Oliveira: Não, meu filme não... Quer dizer, não pensei nessa parte, atingi o lado histórico e não no aspecto de comemorações. Eu me lembro de ter lido que os índios tinham dito que não tinham nada a comemorar. O que é histórico é histórico. O que está feito está feito. Errado ou não errado, é o que é. A história é, não se pode alterar, não vale muito a pena estar a falar nos erros da história, porque, de resto, a mentalidade há 500 anos não era a mesma de hoje sobre esse aspecto. Mas os erros são os mesmos. Mudou a mentalidade, mas continuaram os erros. O índio estava na sua terra, o português chegou e as relações foram muito amistosas, segundo a carta do Vaz de Caminha [(1450-1500) fidalgo e escrivão ligado aos empreendimentos ultramarinos, foi nomeado escrivão oficial na expedição comandada por Pedro Álvares Cabral ao Brasil. É responsável pela Carta de Achamento, dirigida a Dom Manoel, documento que descreve o país e seus habitantes, considerada a primeira obra literária no Brasil]. Ele nem veio para descobrir coisa nenhuma, ia para a Índia e deu com o Brasil. Suspeita-se que os espanhóis já tinham dado com alguma terra para ali e, portanto, não há certeza certa de que ele, se já tinha sido o acaso ou se procurou mesmo, se viria por lá alguma coisa e por isso nem se fala nunca do descobrimento do Brasil, mas do “achamento” do Brasil porque acharam. Acharam porque Deus quis.

Cunha Jr.: Há controvérsias em relação a esse achamento. Não foi bem achado mesmo o Brasil, porque os portugueses já sabiam da existência de terras aqui, etc.

Manoel de Oliveira: O Brasil nunca foi achado, porque Caminha fez seu próprio, não é, com o português e depois com todos os outros, em discernimento... com os índios, mais tarde, e usando [escravos], porque o Brasil não era Brasil se não fossem os negros que vieram aos milhares da África. E eram os próprios africanos, os próprios negros que arrebanhavam outros negros para vender aos europeus para os europeus os enviarem para a América e vieram para cá. E o negro deu, de fato, um traço ao caráter brasileiro, o brasileiro começou a formar-se depois do achamento ou do descobrimento ou do encontro, como queira, mas começou aí, quer dizer, não era Brasil antes disso, agora é que é Brasil, agora é que está a tornar Brasil, e mais brasileiro o povo do Brasil será quando integrar os índios totalmente e os negros totalmente como está a integrar os europeus e os asiáticos que, ao fim de alguns anos, não sei por que mistério da natureza ou vontade de Deus, como queiram, se tornam realmente brasileiros, brasileiros mesmos. Mas o brasileiro principia por ser europeu, por ser africano, por ser índio e depois outras nações vieram todas, agora do Oriente e fazem esse milagre que é o Brasil, não sei se por sua natureza, por seu tamanho, não sei por que é que as pessoas, ao fim dos anos... Duas, três gerações é o suficiente e o brasileiro é muito mais brasileiro do que o português é português.

Maria do Rosário Caetano: Manoel, como você explica que, em quase 70 anos de carreira, esse seja seu primeiro trabalho ligado diretamente ao Brasil, uma co-produção Brasil/Portugal? Porque que os nossos cinemas são tão divorciados, o português e o brasileiro?

Manoel de Oliveira: Bom, há uma razão: distância. A distância é sempre difícil de vencer, não é. Hoje, temos o avião, que é mais fácil, mas o que é certo é que as telenovelas têm um eixo extraordinário hoje. Não há quatro televisões, uma com dois canais, portanto faz cinco canais e não há nenhum desses cinco canais que não leve, pelo menos, duas telenovelas por canal, quer dizer, a telenovela absorveu por completo as audiências do... a tal ponto que começaram agora, os portugueses, a criar telenovelas portuguesas, mas à imagem e semelhança da telenovela brasileira, porque, é claro, não têm o mesmo encanto.

Norma Couri: Você assiste à telenovela brasileira?

Manoel de Oliveira: Assisto, assisto. Algumas nem sempre. Não vejo televisão, vejo muito quando estou disponível para isso. Agora, a minha mulher, por exemplo, gosta. Há telenovelas que ela adora e não quer perder.

Norma Couri: Mas o Lima Duarte você encontrou através do Sinhozinho Malta [personagem de Lima Duarte na novela Roque Santeiro]?

Manoel de Oliveira: O Lima Duarte... recebi um prêmio. Vi o Zeca Diabo [personagem de Lima Duarte na novela O bem-amado] e gostei muito e até já disse, não sei se numa entrevista qualquer, que, para os poderosos, o Zeca Diabo era o padre Vieira.

[risos]

Cunha Jr.: Manoel, você acha que um dos tropeços entre esse intercâmbio, por exemplo, de aqui não se assistir tanto o cinema ou produção de televisão que seja feito em Portugal, no Brasil, que, por incrível que pareça, a língua possa ser um impedimento? Porque nós, brasileiros, acho que temos mais dificuldades de entender o português de vocês, o português falado em Portugal do que o contrário: parece que vocês entendem melhor o nosso português.

Manoel de Oliveira: Nós não temos dificuldade nenhuma. Portugal não tem dificuldade nenhuma para entender o Brasil. Conto uma pequena história do Eduardo Prado Coelho, que é um intelectual português, estava no Rio e Janeiro, numa reunião de escritores de literatura. A certa altura fez [um corte] no dedo e foi à farmácia. Ele sabia que no Brasil abriam muitos lugares, enquanto que em Portugal são fechadas, então, ele chegou à farmácia e pediu: “queria um adesivo”.

[risos]

Manoel de Oliveira: E deram outras coisas para ele. E ele: “adesivo, olha aqui [mostrando o dedo]”. “Ah, um colante”, porque a palavra era outra.

[risos]

Lúcia Nagib: Tenho uma questão nesse sentido, achei o trabalho dos três atores que fazem o Vieira no filme... eles fizeram um trabalho inverso no sentido dos portugueses tentarem imitar um pouco a pronúncia brasileira e o Lima Duarte absorver um pouco da pronúncia portuguesa. Achei um trabalho extraordinário e, sobretudo, no Ricardo Trepa [ator de O princípio da incerteza (2002), Vou para casa (2001), Espelho mágico (2005) e outros. A maioria de seus filmes foi dirigida por Manoel de Oliveira], que tenta esticar as vogais muito bem da forma brasileira e [usa] o S, não o S português, mas o S brasileiro de algumas regiões. Achei um trabalho extraordinário e gostaria de que você contasse um pouquinho desse trabalho lingüístico que você fez com os atores. Não sei se foi você ou se foi um trabalho em conjunto.

Manoel de Oliveira: Não, foram eles. Foram eles. Eles é que fizeram, [eu] simplesmente punha em dúvida como seria a fala do português no século XVII. Quer dizer, não seria exatamente como é hoje e, se fizéssemos hoje, de maneira que [se] fizesse alguma coisa assim, meio portuguesa, meio brasileira e eles concordaram. E cada um tratou por si de fazer aquilo que lhe parecia melhor. Como é que sabe? Há uma coisa curiosa, apresentei um filme, chama-se O ato da primavera [documentário de 1962], e tinha apresentado outro no Fest Rio que era Benilde, ou a virgem mãe (1971), não tinha legendas e chegou ao fim e eles disseram: “Não entendi nada”. E eu fiquei muito triste e disse: “amanhã vai O ato da primavera”, que é um filme em que eu pus legendas para eles verem Portugal falado em português, que era gente lá do norte e ele disse: “Amanhã, que filme vai?” "– Vai O ato da primavera” -  "E tem legenda?” – “Não, não, não tem legendas”. Se eles não perceberam isso, então, o outro é que não percebe. Passou O acto da primavera e no fim disseram: “Bom, nesse já entendemos alguma coisa”. Porque era a fala do século XVI, o texto tinha o tom do século XVI e o que era mais difícil de entender pelos portugueses foi mais fácil para outro. E eu fiquei... Realmente, a fala do Brasil está mais ligada ao século XVI do que o português atual, creio eu, é uma suposição, não sou lingüista nem historiador.

Vicente Adorno: Essas coisas talvez ajudem a gente a se entender melhor. Eu estava pensando: aqui no Brasil houve uma tentativa, o Humberto Mauro fez um filme sobre o descobrimento do Brasil bastante interessante. E, ao que me lembre, nunca vi nenhum filme que fale sobre as grandes conquistas portuguesas e é interessante pensar. Vi um cientista da Nasa [Agência Aeroespacial dos Estados Unidos] comentando uma vez que a tecnologia que os portugueses desenvolveram no fim de 1400 era muito mais avançada, talvez até [mais] do que a tecnologia que foi desenvolvida para ir à Lua. E, ao mesmo tempo, era muito mais perigoso, porque se conhecia muito menos da Terra do que se conhecia dos caminhos interplanetários quando se fez a viagem à Lua. Isso não seria, assim, um grande tema, digamos, para um cineasta português – talvez para o senhor– examinar isso? Como foi essa influência da Escola de Sagres [a mais famosa escola de navegação, criada no início do Renascimento, um dos grandes símbolos de Portugal], por exemplo? Seria possível, talvez, fazer um filme sobre isso e mostrar como isso tirou Portugal do isolamento em que vivia, que era um país muito pequeno, para se projetar como uma potência mundial e conquistar terras completamente desconhecidas como o Japão, por exemplo? Aliás, aprendi no Japão que os japoneses nunca tinham visto pólvora e pela primeira vez na vida viram pólvora quando os portugueses estiveram lá. Essa importância que os portugueses tiveram na história, pelo menos até onde sei, nunca foi refletida pelo cinema e acho que é um tema tão fascinante!

Manoel de Oliveira: Esse momento histórico de Portugal é o mais altaneiro [soberbo] de todos, não é? Não é no sentido de conquista, é no sentido da dádiva. E o melhor que Portugal deu ao mundo foi conhecer o próprio mundo, onde o homem habita, conhecer novas raças, novos hábitos, enfim, o mundo inteiro. É claro que, por atrás disso veio a escravidão, vieram muitas coisas más. Porém, não era essa a intenção e nem é esse o valor dos descobrimentos. O descobrimento é realmente essa relação, quer dizer, no século XV, na Renascença [ou Renascimento], enquanto havia Humanismo no norte com Erasmo [de Rotterdam (1467-1536), teólogo holandês, grande crítico da Igreja Católica. Autor de Colóquios e antibárbaros, A instituição do príncipe cristão e outros escritos sobre as questões religiosas. Em sua obra mais conhecida, Elogio da loucura, criticou a corrupção do clero e propôs que a Igreja se organizasse com base nos evangelhos] e [Thomas] Morus na Inglaterra [(1478-1535) escritor considerado um dos maiores representantes do Humanismo na Inglaterra. Autor do livro Utopia, sobre uma ilha imaginária onde todos vivem em harmonia e trabalham em favor do bem comum]. Na Itália, era a pintura que se desenvolvia, na península [Ibérica] eram os descobrimentos. Mas, enquanto o humanismo nórdico era teórico, o humanismo dos descobrimentos era prático, era a relação com outros povos. Em 1470, mais ou menos, isto é contado por um etnólogo jesuíta belga, Portugal chegou ao Congo, ao Zaire e estabeleceu relações de amizade com o rei e levou alguns negros para Portugal. Depois trouxe os mistérios de Portugal para o Zaire e construíram escolas, igrejas e ensinaram carpintaria, pedreiro, etc.  Todos esses mistérios e as relações com o rei eram muito grandes, até creio que um príncipe português casou com uma princesa africana, negra, não é? De maneira que esse era um ato muito bonito, [então] não sei, não sou historiador, sei esse caso, que é suspeito, porque é dito por um etnólogo belga e depois isso foi redito e revisto por historiadores portugueses. É curioso que no Non, ou a vã glória de mandar fiz a Guerra de Alcácer-Quibir [batalha travada em 1578 na cidade de Alcácer-Quibir, norte do Marrocos, entre os mouros e os portugueses liderados por Dom Sebastião que, morto nessa batalha, deu vida à lenda de que voltaria, originando o movimento conhecido como sebastianismo, que acredita na vinda ou no retorno de um enviado divino], também chamada Guerra dos Três Reis, porque morreram três reis. E fui a Alcácer-Quibir e tinha saído, uma semana antes, no jornal escrito em francês, com quatro ou cinco folhas, a descrição desse tempo e a descrição da batalha completa, imparcial e feita por eles, marroquinos. E fiquei entusiasmado e construí a batalha segundo o jornal dizia. E o filme passou lá e eles gostaram muito, porque segui o ponto de vista deles. Realmente, o jornal era muito isento, parecia que não dava aquele ar patriótico, sempre a favor do lado que convém. Ali, vi esse desastre pelo lado deles. Desastre [que] foi o princípio da mudança mediterrânica para... com a descida armada para o domínio anglo-saxão, que ainda perdura hoje, que o não mediterrâneo que é o nosso. Parece-me que é, eu não sou historiador, mas, enfim, estudei esses problemas, mas, como artista, sinto que mesmo o anglo-saxão se transforma um pouco, torna-se latino aqui no Brasil. O Brasil tem qualquer mistério que não sei o que é.

[risos]

Manoel de Oliveira: Tem, tem. Realmente as pessoas não são brasileiras do Brasil, porque não há, não é, são gente européia, gente da África, a África tem uma importância enorme, a influência dos africanos. Li até num artigo qualquer no avião, que dizia que o branco tinha a alma do negro, que era, enfim, que dava uma certa doçura. E é essa doçura, esse trato que vai ao fundo do ser humano e o ser humano anglo-saxão ou eslavo ou latino é um ser humano.

Cunha Jr.: Manoel, tem duas frases aqui suas [que] achei muito interessantes, vou reproduzir. Você disse o seguinte: "sei que terei de parar de filmar um dia e deixar de viver um dia, só espero parar de viver primeiro", mostrando aí seu amor pelo cinema. E outra frase sua, que é: "nunca é perda de tempo ver um filme, qualquer filme", você só não assiste a filmes pornográficos, porque tem certas coisas que é melhor fazer do que ver”. Quero saber o que você gosta de ver. Quando você sai de casa o que você procura ver? Procura os clássicos, procura ver os novos cineastas, o que você gosta de ver no cinema?

Manoel de Oliveira: Gosto muito de ver os filmes anteriores. Quer dizer, daqueles... quando os verdadeiros mestres deram ao cinema uma ascensão, no sentido de se tornar uma arte, que chamavam arte muda ou a sétima arte. E, desde que recebeu esse estatuto, vejo esses pioneiros, admiro muito esse tipo de cinema. Ainda procuro o que faziam nesse tempo. Sou tolerante com qualquer outro tipo, e aberto a qualquer outro tipo de cinema, cinema de divertimento ou assim ou assado. O que não sou tolerante é que se aceite um tipo de cinema inicial ou de divertimento e se rejeita um cinema como objeto da arte, que é o mais valoroso. E por isso eu gosto de ver esses filmes. Acho que a coexistência de vários tipos de filmes que o cinema permite é saudável, é conveniente, como é conveniente a televisão, o teatro. O cinema não matou o teatro, a televisão não vai matar o cinema e nada disso, são coisas que se vão evoluindo e sendo paralelas. Todas vivem umas das outras, a base é única que é...

Cunha Jr.: Você procura ver os novos nomes também? Quando você está em Cannes, por exemplo, você chega lá e [diz] “vou ver o cinema de Bruno Dumont [cinesta francês, autor de La vie de Jésus (1996) e L’ humanité (1999)], porque é um novo cineasta e as pessoas estão falando bem do cinema dele”, você procura ver os novos?

Manoel de Oliveira: Procuro e até aprendo com eles. Acho que, por exemplo, o neo-realismo [movimento do cinema italiano, surgido nos anos 1940, que adotava temáticas sociais contestadoras, tornou-se referência para outras escolas e revelou importantes diretores]  trouxe muito de ensinamento à nouvelle vague, quer dizer, gente nova tem coisas interessantes. Tem outras que não são, mas tem algumas coisas interessantes e essas coisas interessantes são de aproveitar, não é? Essa permanência e essa relação entre... é como antigamente: a família não estava separada como está hoje. Lembro que havia o avô, havia o pai, havia o filho e havia o neto e o neto adorava falar com o avô e o avô adorava falar com o neto e o neto dava novos motivos, coisas imagináveis para o avô e o avô dava conselhos e ensinamentos ao neto, não é? Essa transmissão do novo para o velho faz o futuro, constrói de uma forma estruturada e forte e prudente, que hoje falta.

Cunha Jr.: Inácio, por favor.

Inácio Araújo: Queria perguntar o seguinte: a sua produção é bastante pequena antes da queda do salazarismo. E depois que cai o governo salazarista, o senhor produz com muita regularidade – até hoje, não é? – praticamente um filme por ano. Há uma relação entre a queda do salazarismo e a sua produção? Isso mudou alguma coisa para o senhor, o novo governo, o regime que veio depois do 25 de abril [data da Revolução dos Cravos, que derrubou o regime salazarista]? E queria saber também como o senhor vê Portugal nessa virada de milênio, com, enfim, depois do salazarismo também?

Manoel de Oliveira: Há razões muito fortes, não é porque minha atividade durante o salazarismo era muito forte e eu mandava projetos que já sabia que não iam ser aceitos. Não fazia mais filmes, porque impediam de fazê-los, depois de 25 de abril abriram-se outra espécie de liberdade e foi prometido aos realizadores fazerem filmes conforme quisessem, conforme pensassem, a favor ou contra o regime, pornográficos ou não, socialistas, avançados ou recuados, como quisessem. E essa é a grande qualidade que permite aos realizadores, novos ou velhos, fazerem filmes pessoais, independentes, livres. E a arte tem que ser feita com inteira liberdade e isso Portugal permitiu. Permitiu no campo cinematográfico e permitiu em outros campos, no campo social também. Eu acho que o 25 de abril foi um movimento importantíssimo, é claro que todos os movimentos são difíceis, porque já dizia Einstein que era mais fácil desintegrar o átomo do que mudar uma mentalidade. Agora, a revolução fez-se de um dia para o outro, todo o sistema mudou de um dia para o outro, mas as mentalidades não mudam de um dia para o outro. É preciso deixar para certo tempo. Em todo caso, teve uma repercussão muito forte. Teve no primeiro de maio [conhecido internacionalmente como o dia de comemoração das lutas do trabalhador] uma comunhão entre todo o povo português, de qualquer classe, todos saíram à rua e eram extremamente cordiais. Um dia fantástico e único, no qual os que tinham automóveis paravam para deixar passar os peões [pedestres] e os peões paravam para deixar passar os automóveis, isto é uma coisa extraordinária, só se deu naquele dia. E, além disso, teve um reflexo grande na Europa, porque foi uma atitude de dádiva, como só descobrimentos, assim como descobriram terras novas e depois se apoderaram dela. Agora, entregaram-nas, deram-nas e despiram-se de tudo e ficou apenas com a casinha portuguesa, porque não é mais do que uma casinha portuguesa, que tem metade da população de São Paulo.

Leon Cakoff: O senhor foi perseguido também, o senhor foi injustiçado pela Revolução de 25 de abril?

Manoel de Oliveira: Fui?

Leon Cakoff: Perseguido injustamente e sofreu uma represália, foi confundido na época, com um personagem do regime salazarista, ou não?

Manoel de Oliveira: Não, não.

Leon Cakoff: O senhor foi injustiçado?

Manoel de Oliveira: Não, não.

Leon Cakoff: O senhor não gosta de falar disso?

Manoel de Oliveira: Não. Sofri. O meu pai era industrial, tinha uma fábrica, uma fábrica pequena com 40 operários e ela foi ocupada. Tinha empenhado a casa para arranjar um processo de continuar a fábrica, um estudo para continuar a fábrica e tive que empenhar a fábrica para continuar também uma remodelação, para atualizar. E foi durante essa remodelação, em que tinha tudo que era meu empenhado, que eles ocuparam a fábrica. E ocuparam a fábrica e, é claro, eu estava a sustentar, só tinha dívidas, fiquei com as dívidas e eles ficaram com a fábrica e com a casa, que não era da fábrica, era minha. E começaram a vender as matérias-primas e vender as máquinas e vender aquilo tudo, que foi um pandemônio muito grande, não se entendiam uns com os outros. Houve um que se matou, deixou uma carta que nunca ninguém viu e finalmente aquilo voltou à minha mão depois de o outro morrer, como era o nome dele? Enfim, mas aquilo já não tinha solução e o prédio estava todo conosco, só havia uma parte que não. Nasci ao lado da fábrica e de menino, a fábrica era quase tudo, tinha poucos homens, era quase tudo mulheres. Era uma criança e me tratavam de modo maternal e havia realmente uma estima muito grande, o meu pai também tinha uma estima muito grande e era estimado. Mas já tinha morrido havia muito tempo. E seguiu-se isso, mas não houve mais nada que isso. Tiraram-me de um lado e deram-me do outro.

Maria do Rosário Caetano: Manoel, você se referiu à família. Você tem uma família artística – Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, o Diogo Dória – e também a sua família real, os seus netos estão fazendo cinema, fotografia, não é? Um deles é ator do Palavra e utopia. Queria que você falasse dessas duas famílias. Como seus herdeiros estão partindo para essa profissão também e como é a sua relação com aquele núcleo de atores que está sempre com você. Se algum deles tem ciúme quando você convida um astro internacional, o John Malkovich ou a Catherine Deneuve para trabalhar com você?

Manoel de Oliveira: Os atores portugueses têm sido muito dedicados e têm grande mérito, como, por exemplo, o Luís Miguel Cintra e a Leonor Silveira, quando trabalhei com Malkovich e com a Catherine Deneuve. O filme era português e eles eram estrangeiros que chegavam a Portugal. De maneira que, quando estavam só portugueses [se falava] português, quando estava Catherine Deneuve tinham que falar em francês e quando estava o Malkovich tinham que falar em inglês. E os atores portugueses falavam e ela também, a Catherine também falava bem inglês. De maneira que esse jogo permitiu, como aqui, tanto a Leonor Silveira como o Luís Cintra falam italiano, o aproveitamento. Eles têm essa qualidade extraordinária, não é? Além de falarem muito bem o português, falam também muito bem o francês, o inglês e o italiano. Isso é um dom. A família é dividida, não é? Quer dizer, a família é família, as relações de sangue são uma coisa, as relações antigas são realmente uma família, é a família do cinema, de todos os realizadores do mundo, somos realmente uma família. Nas famílias há simpatias e antipatias como em qualquer outro lugar. Além disso tenho, dentro da família, dois netos que querem e estão a fazer já alguns papéis como atores e tenho um filho que é pintor. Então, portanto, dentro da família dos artistas, não é, que é outro número a parte.

Norma Couri: Manoel você já tem outro filme pronto depois de Palavra e utopia, não é?

Manoel de Oliveira: Tenho, sim.

Norma Couri: Você falaria um pouco sobre ele?

Manoel de Oliveira: Falta ainda só as misturas que vou fazer em dezembro, porque tenho outras ocupações antes e só tenho disponibilidade em dezembro. Assim, em dezembro irei para Paris para fazer um filme falado em francês, com o [Michel] Piccoli, com o Malkovich, Catherine Deneuve, Leonor Silveira e outros.

Norma Couri: E tem título?

Manoel de Oliveira: Tem.

Norma Couri: Título?

Manoel de Oliveira: Vou para casa.

Norma Couri: Vou para casa.

Inácio Araújo: Manoel, queria voltar, só um segundo, queria voltar ao...

Cunha Jr.: Inácio, só para dizer que tem que ser rápido, que a gente já está no encerramento.

Inácio Araújo: Palavra e utopia tem uma discussão muito interessante sobre o choro e o riso, não é, em que o Vieira defende o choro. Por que que o senhor colocou essa discussão no filme?

Manoel de Oliveira: Porque é histórica. Aconteceu. Ele estava a ser perseguido pela Inquisição e, certa maneira, fugiu para a Itália e foi muito bem recebido na Itália, ele falava bem várias línguas, até sete ou oito línguas de índios, dialetos de índios. Enfim, era um homem muito viajado, ele esteve na França, Holanda, Bélgica e na Itália. Permaneceu na Itália e fez vários sermões em italiano. O Papa adorou, queria que ele ficasse pregador do Vaticano e a rainha Christina [rainha da Suécia que abdicou do trono para viver em Roma com sua corte pessoal composta por cientistas, sábios e pintores. Em 1674, ela encomendou uma disputa oratória sobre o tema "o mundo é mais digno de riso ou de lágrimas?" Um dilema encarnado por dois religiosos da Companhia de Jesus: Girolamo Cattaneo, que abraçou a causa de Demócrito, com seu riso, e o padre Antonio Vieira, que tomou o partido de Heráclito e suas lágrimas] que ele ficasse lá como seu confessor, mas ele estava com saudades e queria voltar para Lisboa. E, quando voltou para Lisboa, avisaram que não atravessasse Castella, porque seria maltratado. Então, ele tomou o barco e cegou, começou o princípio da cegueira. Mas porque era histórico e o Papa deu-lhe, então... proibiu a Inquisição [de julgá-lo]... seria só julgado em Roma, não podiam julgar outra vez em Portugal. Portanto, era um ponto importante essa relação com o Papa e eram muito importantes também os discursos, não é? O discurso que ele faz de que o homem tem uma terra para nascer e o mundo inteiro para morrer é uma coisa muito bonita. Acho que é interessante.

Cunha Jr.: Manoel, a gente está chegando ao final do programa, só para encerrar e é rapidinho mesmo, muita gente, muitos pesquisadores, muito críticos dizem que você é o cineasta da palavra. A Chiara Mastroianni [atriz, filha da atriz Catherine Deneuve e do ator Marcello Mastroianni. Trabalhou no filme A carta como Madame de Clèves], com quem você já trabalhou, disse que você é o cineasta do gesto, que você dá muita atenção ao gesto, você conversa com o ator dizendo como ele teria que interpretar aquela cena, de que tipo gestual você gostaria. O que você acha mais simpático de ser conhecido, como o cineasta da palavra, o cineasta do gesto ou como os dois?

Manoel de Oliveira: O cinema para mim representa um conjunto, como a vida. O cinema não é uma coisa só, o cinema é tudo. A máquina de filmar não faz nada, o cinema é aquilo que se põe diante da máquina de filmar. Isso é o que vale. E acho que não dou prioridade, hoje não dou, antigamente era diferente, mas hoje não dou prioridade à imagem nem à palavra nem ao som nem à música. Acho que são três colunas independentes, autônomas, mas que sustentam o pórtico que as liga e lhes dá unidade. Mas são autônomas e independentes, nenhuma é submissa, não está aqui uma música para preencher este bocado, que é vazio... Não. Está, porque precisa estar. Qualquer uma...  ou a palavra, ou o gesto ou a música ou o som, eles estão porque são necessários para a expressão que se quer dar ao filme. O que os une é o mesmo pórtico que eles sustentam.

Cunha Jr.: Está ok, Manoel. Muito obrigado pela sua presença aqui no Roda Viva. Obrigado a todos vocês, que participaram aqui como entrevistadores. Obrigado pela audiência de você que está em casa, lembrando que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira às dez e meia da noite. Uma boa noite para vocês e uma boa semana também. Até lá.

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