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Memória Roda Viva

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Jô Soares

30/5/2005

O humorista e apresentador relembra curiosidades de programas antigos, experiências que herdou dos pais e amigos, além das entrevistas mais marcantes ao longo da carreira

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Paulo Markun: Boa noite. Ele é uma das figuras mais conhecidas da televisão brasileira. Seria impossível escrever a história da TV no país sem lembrar, por exemplo, dos seus personagens humorísticos. Da linha de shows, saltou para os programas de entrevistas, onde também marcou época, primeiro no SBT [Sistema Brasileiro de Televisão] e atualmente na TV Globo. Mas, acima de tudo, ele é um homem multimídia. Além dos espetáculos no teatro, também invadiu a literatura. Seu novo livro,  Assassinatos na Academia Brasileira de Letras, está no primeiro lugar entre os mais vendidos do ano. É para falar do livro e de outros assuntos que Jô Soares está conosco esta noite.

[Comentarista]: http://programadojo.globo.com. Um pouco da história pessoal do carioca José Eugênio Soares está ali [refere-se à página na internet] nas fotos da infância. Fantasiado de holandês aos três anos, fazendo graça com a cartola aos cinco e [uma foto] da época que estudou na Suíça, onde também aprendeu a fazer pose na neve e a tocar o bongô que o acompanharia pelo resto da vida. Brincalhão e bem humorado, desde jovem exercitava a vocação para fazer rir, não haveria outra carreira para ele. Até pensou em ser diplomata, mas seguiu o instinto, pegou carona no cinema nacional dos anos 1950 e foi para a TV. Escreveu e atuou em vários programas até 1967, quando ganhou papel fixo, o mordomo da Família Trapo [humorístico de grande sucesso da TV Record entre 1967 e 1971. Os episódios eram gravados em um teatro, com platéia e quase sempre iam ao ar com improvisos], ao lado de Ronald Golias [(1929-2005) comediante brasileiro cujo personagem mais conhecido chamava-se Bronco, da Família Trapo], na TV Record. Em 1970, Jô Soares chegou à [TV] Globo, escreveu e atuou em quadros de humor até ganhar um programa próprio em 1981, Viva o Gordo, uma das maiores audiências da emissora nos sete anos em que ficou no ar. Em 1988, na busca de novo rumo na carreira, foi para o SBT com o humorístico Veja o Gordo e, poucos meses depois, finalmente colocou no ar seu tão sonhado projeto, um programa de entrevistas que a Globo dizia que não valia a pena por no ar. Jô Onze e Meia estreou em agosto de 1988 surpreendendo o público e quem sentasse naquela poltrona para ser entrevistado. Seguindo a fórmula de sucesso dos talk shows americanos [gênero de programa televisivo ou radialístico baseado em entrevistas. O público está presente no estúdio e pode manifestar-se. São usadas técnicas de descontração e informalidade], Jô entrevistou de personalidades importantes da vida nacional a figuras anônimas do povo. Foram 11 anos no SBT até retornar à Globo em 2000. Com o mesmo formato, mas com muito mais recursos, o Programa do Jô manteve a cara do dono, que hoje diz fazer só o que quer e o que gosta. E ele gosta de muitas coisas. Já dirigiu e atuou em filmes, fez e ainda faz teatro, pintou quadros e até participou da nona bienal de São Paulo. A paixão pela música foi das brincadeiras no palco a um programa diário de rádio sobre jazz. A carreira de escritor decolou com histórias de futebol [Em 1994, Jô escreveu, em conjunto com Armando Nogueira e Roberto Muylaert o livro A Copa do Mundo que ninguém viu e a que não queremos lembrar, sobre os campeonatos mundiais de 1950 e 1954] e dois best sellers, O Xangô de Baker Street [1995],  adaptado para o cinema e O homem que matou Getúlio Vargas [1998], ambos já editados em sete países. O autor lança agora o seu terceiro romance, Assassinatos na Academia Brasileira de Letras [2005], uma história de crimes que atingem imortais da Academia e cuja investigação expõe personagens e detalhes da vida do Rio de Janeiro da década de 1920. Pesquisa histórica, suspense, comédia, prosa e humor, a fórmula que está mostrando o caminho das pedras para o autor Jô Soares.

Paulo Markun: E para entrevistar o humorista, apresentador e escritor Jô Soares, nós convidamos Cícero Sandroni, jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras; Nizan Guanaes, publicitário; Grace Gianoukas, atriz; Sílvia Poppovic, apresentadora da TV Cultura; Roberto D’Ávila, jornalista; e Pasquale Cipro Neto, apresentador do programa Nossa língua portuguesa, da Rádio Cultura AM. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso registrando em seus desenhos os momentos e o flagrante do programa. O Roda Viva, como você sabe, é transmitido em rede nacional de TV para todo o Brasil. Para participar você pode usar o telefone (11) 3252-6525, o fax 3874-3454 ou o endereço eletrônico do programa que é rodaviva@tvcultura.com.br. Boa noite, Jô.

Jô Soares: Boa noite.

Paulo Markun: Você está sem água aí, não é?

Jô Soares: Estou sem água e quero começar fazendo uma reclamação.

Paulo Markun: Por favor.

Jô Soares: O Paulo Caruso está me desenhando ali, mas  parece a "Dona Benta" o desenho que ele fez. [refere-se à personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, programa televisivo adaptado da obra do escritor Monteiro Lobato].

[risos]

Jô Soares: Não é possível assim, Paulo.

[...]: Isso é maldade.

Jorge (garçom): Aceita uma água, senhor Jô?

Jô Soares: Aceito, obrigado. Como é que é?

Jorge (garçom): Aceita uma água, senhor Jô?

Jô Soares: Senhor Jô. Parente do Alex, você? [refere-se ao garçom chileno Alex, do Programa do Jô, sempre alvo de piadas do humorista]

[risos]

Jorge (garçom): Não, senhor Jô.

Jô Soares: Está bom, obrigado.

[O garçom Marcos fala algo em castelhano]

Jô Soares: [não compreende] O quê? É tudo na linha do Alex...[risos] Está bom, a água está jóia. Obrigado.

Paulo Markun: Você vai pensar que é piada, mas ambos trabalham na TV Cultura, ambos são chilenos e ambos são da mesma profissão do Alex...

Jorge (garçom): Meu nome é Jorge.

Jô Soares: Obrigado. E você?

Marcos (garçom): Marcos, senhor.

Jô Soares: Muchas gracias. Mucho gusto.

Jorge (garçom): Até logo senhor, prazer.

Jô Soares: Até logo.

Marcos (garçom): Com licença.

Jô Soares: Alex, se cuida, tá?

[risos]

Paulo Markun: Pois é. Diz que tem escritor... que a idéia persegue o escritor. Pelo menos eu li isso em várias entrevistas de autores,  que o sujeito [diz]: "Tenho uma idéia de um romance que me persegue há anos". E no meu caso, por exemplo, fico perseguindo uma idéia para ver se consigo escrever. Em qual das duas categorias você se inscreve?

Jô Soares: Eu não sei. Acho que realmente nenhuma das duas,  porque eu só consigo começar a escrever um livro quando eu sei como é o final do livro. Quando eu tenho uma idéia para o final, aí eu escrevo de trás para adiante, que foi o caso dos três livros. Agora em Assassinatos da Academia Brasileira de Letras foi a mesma coisa. Eu estava indo para a televisão para fazer o meu programa e li uma notícia no jornal falando de alguém que tinha oferecido um banquete para várias celebridades. E foi um camarão que causou uma intoxicação em todos os convidados, tiveram que sair dali correndo e ir para um hospital para fazer lavagem estomacal etc., senão teriam morrido. Aí eu estou no carro e pensando "puxa, que coisa interessante, isso daria até um livro, você pensar num grupo de pessoas envenenadas ao mesmo tempo, na mesma hora. Bom, mas para acontecer isso, teria que ser um grupo de pessoas célebres e muito famosas, que fossem um grupo o mais representativo possível no país..."

Paulo Markun: [interrompendo] O Congresso Nacional.

Jô Soares: Hein?

Paulo Markun: O Congresso Nacional.

Jô Soares: O Congresso Nacional [risos], mas aí também matar todos seria, aí já seria...

[...]: Seria uma boa idéia, hein.

Jô Soares: É. Eu diria que... talvez no próximo livro. Mas o que seria o mais representativo no país? E eu pensei na Academia Brasileira de Letras.

Cícero Sandroni: [interrompendo] Mas logo a Academia, Jô?

Jô Soares: Meu Deus, foi uma certa intimidade, Cícero, que eu tenho com a Academia. Porque eu fui casado com a Teresa Austregésilo [atriz] e foi um dos...

Cícero Sandroni: [interrompendo] Mas posso fazer uma perguntinha? Quer dizer que você não dá liberdade nenhuma aos seus personagens, você já sabe como é que vai ser o fim?

Jô Soares: Não, eu dou. Dou liberdade no meio do caminho.

Cícero Sandroni: Não, quer dizer, um assassino que você acha que no fim você vai condenar, porque ele é um matador, no meio da história ele não pode se arrepender e...

Jô Soares: [interrompendo] Não, se arrepender não pode. Pode trocar de assassino no meio do caminho.

Cícero Sandroni: No meio do caminho, é claro.

Jô Soares: Mas eu tenho que saber como e porquê que termina. Talvez seja um vício de humorista, de comediante, mas eu acho que o desfecho é muito importante...

Cícero Sandroni: Sim, claro.

Jô Soares: Partindo daí, no meio muda muito, como a personagem feminina principal, que é a Galatéia, que surgiu de repente, ela se impôs no livro.

Cícero Sandroni: [interrompendo] É, ela surge no meio do livro...

Jô Soares: Exatamente.

Cícero Sandroni: [interrompendo] Aliás, de uma maneira maravilhosa, Jô.

Jô Soares: Muito obrigado.

Cícero Sandroni: Aquela maneira como ela se despe, enquanto o pai vai fazer o café. Aquilo é um jogo de cena de uma sensualidade...

Jô Soares: Olha, eu fiquei excitadíssimo quando eu vi o que ela fazia. Mas o que acontece é o seguinte: se você tem um fecho no final - porque é quase um roteiro de cinema - então, eu posso brincar no meio, podem surgir vários personagens, mudar várias coisas. Mas eu sei como é que acaba.

Silvia Poppovic: Mas Jô...

Jô Soares: Pois não.

Sílvia Poppovic: Uma das coisas que mais me impressionaram no livro... Eu, este fim de semana, mergulhei nas suas palavras e na suas minúcias e nas inscrições tão ricas daquela época. Eu fiquei realmente encantada, quer dizer, lógico que o enredo é divertido, é surpreendente, mas sabe que teve uma hora que eu comecei até a viajar? Falei assim: "Acho que o Jô viveu nessa época, não é possível ele ter tanta referência". É quase como se sua figura se encaixasse naquela situação, tamanha qualidade, eu acho, dos adjetivos, do vocabulário, das expressões. Eu fiquei muito bem impressionada, imaginado da onde é que você tirou tanta informação. Como é que você mergulha dessa maneira tão, tão...?

Jô Soares: Não tinha outra maneira de ser. Fui eu mesmo porque - tanto que eu dedico o livro aos meus pais - aquilo é um mundo que foi vivido intensamente pelo meu pai e pela minha mãe, então são memórias que eu trago como se fossem minhas...

Sílvia Poppovic: Impressionante...

Jô Soares: Claro que são da minha mãe e do meu pai. Tem uma hora no livro que a personagem se refere à Dona Mercedes, que é o nome da minha mãe, que ela está grávida jogando no cassino do Copacabana [Palace, hotel carioca] e diz "Dona Mercedes, esse menino vai nascer no 27". Que era uma coisa que o croupier dizia para minha mãe quando estava grávida de nove meses, jogando no cassino. E ela com 40 anos, casada há 16 anos sem ter filho, de repente estava eu lá dentro. Aliás, ela foi se consultar o primo da minha mãe que era, na época, um dos grandes ginecologistas do Rio, já pensando que era um fibroma e ele falou: "Não, não, é um filhoma que você tem" [risos]. E ela desandou no choro, porque naquela época, de cesariana... Então são memórias, são coisas que papai me contava, então ficou uma coisa meio que vivida, não é?

Sílvia Poppovic: Mas as brilhantinas, a minúcia, eu fiquei muito impressionada com isso. As expressões, a maneira como as pessoas se portavam...

Pasquale Cipro Neto: [interrompendo] A linguagem, eu ia...

Sílvia Poppovic: A linguagem, impressionante.

Pasquale Cipro Neto: [interrompendo] A linguagem. Como é que você burilou isso, Jô? A questão da linguagem, como é que você foi pescar coisas?

Jô Soares: Sabe o que é engraçado? É que as pessoas me falam muito da linguagem e eu não noto isso, porque é uma coisa que saiu quase que naturalmente, mediunicamente, me lembrando exatamente dos diálogos do meu pai, da minha mãe, de entrar em um clima da época, de 1924...

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Socapa. [A expressão "à socapa" significa disfarçadamente]

Jô Soares: Perdão?

Roberto D’Ávila: Socapa...

Jô Soares: É, aí já é uma coisa bem teatral falar "socapa"... Mas, enfim, eu acho que são coisas de uma memória emotiva, uma memória nostálgica. Quer dizer, são saudades de um tempo que eu não vivi.

Pasquale Cipro Neto: [interrompendo] Você fez esforço?

Jô Soares: Não, eu fiz muita pesquisa no sentido de não correr o risco de usar palavras que não existiam na época.

Pasquale Cipro Neto: Isso é interessante demais...

Jô Soares: Porque aí você quebra, não é? É como você ver uma personagem às vezes fazendo um sotaque. Se a pessoa sair do sotaque, acabou, você não acredita mais no que ele está falando. E eu acho que quando você escreve é a mesma coisa. Não que seja uma linguagem rebuscada ou erudita, não...

Sílvia Poppovic: [interrompendo] É particular.

Jô Soares: Particular.

Sílvia Poppovic: Ela é particular e muito adequada.

Grace Gianoukas: Mas, ao mesmo tempo, por mais que às vezes a gente não saiba exatamente o sentido da palavra, ela é completamente compreensível. Aliás, eu acho uma injustiça... quanto tempo tu levou para escrever esse livro?

Jô Soares: Cinco meses, foi muito rápido.

Grace Gianoukas: Eu devorei em uma noite, sabe?

[risos]

Grace Gianoukas: Então é uma injustiça...

Jô Soares: [interrompendo] Obrigado. Que bom.

Grace Gianoukas: Porque é maravilhoso, a gente não consegue parar de ler. Então, tem uma coisa que eu acho fascinante, porque ele mistura história, ele mistura... Às vezes a gente acha que entrou em uma história em quadrinhos, às vezes a gente acha que está no cinema, sabe? Então eu acho ele muito cinematográfico, as personagens são fascinantes, são engraçadas, é uma delícia de ler, não dá para parar de ler. Eu acho que, por exemplo, para estudante que, às vezes, a escola pede para ler Machado de Assis, e todos vão na internet buscando ou tentando buscar o resumo do livro para enganar o professor... eu acho uma excelente maneira de começar a ler, porque é tão interessante, tem a realidade, tem as personagens de ficção, é tudo uma grande aventura, é fascinante!

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Aliás, Jô, já interrompendo-a [Grace Gianoukas] como você faz no seu programa [refere-se à frase muito usada por Jô Soares: "Sem querer te interromper, mas já interrompendo"], você mistura personagens da cidade do Rio de Janeiro com personagens que você inventou. E você faz uma homenagem ao teu ex-sogro também, não é?

Jô Soares: Ao velho Austregésilo [Antônio Austregésilo Rodrigues de Lima], cujo apelido era Velho Peluxo, como chamava sua segunda mulher, com quem ele casou quando ele já tinha sessenta anos. E teve dois filhos, a Teresa, com quem eu fui casado, e o Henrique. Então, eu me lembro, chequei a conhecer o velho Austregésilo...

Cícero Sandroni: [interrompendo] O professor Austregésilo era tio do Austregésilo de Athayde [(1898-1993) jornalista e cronista brasileiro, presidente da Academia Brasileira de Letras de 1959 até sua morte], não é?

Jô Soares: Exatamente. E já era da Academia de Medicina, fundador da Cátedra de Neurologia. E tudo aquilo é real, foi a primeira pessoa a se corresponder com Freud, com Jung [Carl Jung (1875-1961), psiquiatra e psicanalista], enfim, era uma pessoa muito interessante. Infelizmente, quando eu o conheci, ele já estava em uma cama, com noventa e tantos anos e sofrendo de Alzheimer [doença degenerativa do cérebro, que se manisfesta inicialmente por alterações da memória episódica], que ainda não se chamava Alzheimer. O interessante é que ele dizia para a Teresa e para o Henrique o seguinte: "Olha, o que vai acontecer comigo é que cada vez vou perdendo mais a habilidade de pensar, de me vestir, disso, daquilo e eu vou morrer como um vegetal numa cama". Quer dizer, ele era o rei do diagnóstico, era um grande médico da sua época, era exatamente o craque no diagnóstico, que na época não tinha toda essa parafernália de exames e aparelhos...

Paulo Markun: Mas você de alguma forma tem uma nostalgia daquele Rio de Janeiro, não é?

Jô Soares: Quem não tem?

Paulo Markun: Mesmo que você não tenha vivido?

Jô Soares: Que eu não vivi. É porque eu tive uma nostalgia de um tempo que eu não vivi, mas que está muito presente na alma de nós todos, como São Paulo daquela época também. Eu acho que meu próximo livro vai se passar em São Paulo, porque quando eu me mudei para São Paulo, em 1960, eu fiquei fascinado com a riqueza policultural da cidade, multicultural. Só que nesse livro eu quis homenagear um pouco o Rio dessa época, homenagear essa figura, o apelido do Austregésilo,  o Peluxo, que vem de "pé de luxo". Porque ele nunca deixou de usar uma bela polaina e que, ao mesmo tempo, era um sujeito fascinante, uma figura extraordinária. Então eu achava que merecia, era bom se ambientar no Rio daquela época, esse livro. Também por ser uma época incrível pelo fato de ser um governo do Arthur Bernardes [presidente do Brasil entre 1922 e 1926]. Que foi muito injustiçado, pois era um governo progressista. No entanto, passou para a história como um governo de recessão, porque foi obrigado, por causa de todas as revoltas dos tenentes [tenentismo] a governar 95% [do tempo] sob estado de sítio.

Cícero Sandroni: Eu acho que todo o período dele foi sob estado de sítio.

Jô Soares: Não, teve um pequeno... meses.

Cícero Sandroni: Mas é interessante essa visão que você tem do governo Bernardes. Porque a historiografia, geralmente, passa o Bernardes como o grande censor, o homem que mandava os seus adversários para a Amazônia, não é? Mas ele foi um grande defensor da economia nacional.

Jô Soares: É verdade.

Cícero Sandroni: Agora, em 1924, quando se passa a história do seu livro, ele bombardeou São Paulo quando houve, aqui, a revolta do General Isidoro Dias Lopes [Apoiou o fim do Império e combateu o governo Floriano Peixot, sendo exilado por isso. A revolta referida ocorreu em 5 de julho de 1924], não é?

Jô Soares: [interrompendo] Exatamente.

Cícero Sandroni:  E de onde saiu daqui a Coluna Prestes, em 1924. Eu acho que faltam duas coisinhas no seu livro, uma é uma referência a este episódio e outra é o fato de que, em 1924, na Academia, o Graça Aranha [diplomata brasileiro e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.  Participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Rompeu com a Academia em 1924, após ela recusar seu projeto de renovação] fez o célebre discurso defendendo o modernismo e dizendo: "Ou a Academia se renova ou morra a Academia". Não é morram os acadêmicos, é morra a Academia.

Jô Soares: [interrompendo] Morra a Academia.

Cícero Sandroni: E a Academia depois se modernizou, todos os modernistas entraram para a Academia...

Roberto D'Ávila:  [interrompendo] Jô, você vai para a Academia?

[risos]

Jô Soares: Eu vou fazer uma noite de autógrafos agora...Vou tomar chá.

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Cuidado com o chá, Jô.

[risos]

[...]: Chá envenenadíssimo.

[falas simultâneas]

Sílvia Poppovic: Eu, se fosse você, eu não ia não.

Jô Soares: Eu vou. O Cícero garante.

Sílvia Poppovic: A vingança tarda mais não falha. Tomar chá com todos eles depois desse livro!

Paulo Markun: [interrompendo] Você... desculpe, mas você não respondeu à pergunta do Roberto D'Ávila, que tinha um duplo sentido. Você respondeu só em um sentido.

Jô Soares: Qual era o outro sentido?

Paulo Markun: Você tenciona candidatar-se a uma vaga na Academia Brasileira de Letras?

Jô Soares: Não, eu não tenciono me candidatar a Academia. Primeiro, porque eu acho que seria tremendamente pretensioso e, segundo, como eu já declarei em várias entrevistas, eu não me sinto à vontade de fazer campanha para receber uma homenagem.

Pasquale Cipro Neto: Mas você disse que gostaria de usar o fardão.

Jô Soares: Hein?

Roberto D'Ávila: O fardão, você ia adorar.

[falas simultâneas]

Jô Soares: Eu ia adorar apresentar o programa com o fardão de lycra. Tem que ser lycra para ser elástico caso eu engorde ou eu emagreça. [risos] Evidente, quem não gosta daquele fardão? Todo mundo. Mas eu não acho que é incompatível comigo pela minha irreverência, pelo meu lado absolutamente anárquico de fazer campanha para receber uma homenagem. Não entendo isso.

Cícero Sandroni: Agora, você sabe, Jô, eu conversei um pouquinho com você sobre isso. Entre os fundadores da Academia tem um humorista, o Urbano Duarte [(1855-1902) jornalista, cronista, humorista e teatrólogo brasileiro. É o fundador da Cadeira nº 12 da Academia Brasileira de Letras, em 1897] .

Jô Soares: É verdade.

Cícero Sandroni: O Urbano Duarte só escreveu um livro, chamava-se Humorismo e era muito engraçado. Eu vou te mandar o livro, você lê? Ele era de uma graça incrível, fazia graça com tudo. Um dia fez uma graça com o Mato Grosso, fez uma crônica dizendo "Mato Grosso não existe, Mato Grosso é muito longe, quem é que vive em Mato Grosso?". Agora, ele se esqueceu que ele era major do Exército e o general Cantuária, então, o designou para servir em Corumbá [cidade que, então, pertencia ao Mato Grosso].

[risos]

Jô Soares: Que maldade, deu uma enquadrada.

Cícero Sandroni: Deu uma enquadrada.

Jô Soares: Agora você, se referindo ainda ao governo de Artur Bernardes, é engraçado, porque todos os movimentos dos tenentes eram movimentos, no fundo, conservadores. Movimentos baseados em cartas falsas, baseados também no pedido de aumento de salário, e falo isso muito à vontade, porque o próprio Eduardo Gomes [(1896-1981) político e militar, um dos líderes das revoltas tenentistas] era primo irmão da minha mãe. Só que, apesar de heróico, aquela passeada dos 18 do Forte [A Revolta dos 18 do Forte de Copacabana foi a primeira manifestação do tenentismo], que era uma coisa de maluco...

Cícero Sandroni: [interrompendo] Que não eram 18. Eram 19.

Jô Soares: É. Eram 19, aliás, aquilo eu não entendo, aquilo dá um livro belíssimo, que era aquele gaúcho [Otávio Correia – único civil a fazer parte dos 18 do Forte], deve ser tataravô do Roberto D'Ávila, que estava assistindo e saiu, foi pegar um fuzil, participou daquela marcha...

[...]: Viana?

Jô Soares: Hein?

[...]: Viana Mule?

Jô Soares: Não.

Cícero Sandroni: Não, não.

Jô Soares: Costa... Morreu. Morreu de chapéu, de terno. Era o único.

Cícero Sandroni: Foi o único que morreu, era um civil.

Jô Soares: Exatamente.

Roberto D'Ávila: Jô, deixa eu falar um pouquinho no assunto, dá licença? Vendo você falar, a tua cultura, você tem uma memória incrível. Eu me lembro que, há uns 25 anos atrás, em um almoço lá no Rio, você me falou que a sua idéia era fazer um programa - um talk show - e você estava no auge dos teus programas humorísticos. Essa saída para o talk show foi uma forma, digamos, de não envelhecer em uma profissão - em uma profissão que não se envelhece bem -, mudar e mostrar tudo o que você tinha? Foi uma saída pensada para você?

Jô Soares: Olha, Roberto, eu não consigo fazer nada calculadamente, sabe? "Agora eu vou fazer isso e depois eu vou fazer aquilo". Acho que as coisas vão acontecendo desde que eu tenha vontade de fazê-las. Desde que eu trabalhei com o Silveira Sampaio [(1914-1964) ator, diretor de teatro. Implementou um estilo de comédia ligado à cultura do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60], fazia um programa de entrevistas e eu fazia as entrevistas externas e as entrevistas em outras línguas,  eu disse: "puxa, esse é um programa que eu me daria bem, porque tem um lado irreverente, tem um lado de humor solto". E o Silveira Sampaio foi beber com o Jack Paar [(1918-2004) Comandou o The Tonight Show de 1957 a 1962], que fazia na época o Tonight Show, que depois, durante 30 anos foi feito pelo Johnny Carson e hoje em dia é feito pelo Jay Leno, com similares como David Letterman [talk shows e apresentadores norte-americanos de grande sucesso].  Mas o grande criador do Tonight Show foi o Steve Allen, também comediante, depois o Jack Paar, também comediante. Eu assistia aos programas e dizia "que coisa maravilhosa!", porque é humor também, quer dizer, meu programa também é um programa de humor, não é um programa de personagens. Porque imagina a Norminha [personagem de Jô Soares] de barba, não seria possível mais! Então eu acho que são personagens que ficaram hibernando, mas não foi uma coisa calculada. Na minha primeira saída da TV Globo tinha a certeza de que eu queria fazer um programa de entrevistas e com humor. E o engraçado é que, quando eu comentei com o Ziraldo [cartunista, chargista, escritor de obras infantis. Consagrou-se com a obra Menino maluquinho, em 1980] , ele falou "você é doido, como é que você vai fazer três entrevistas por dia?". E eu falei: "porque forma uma bola de neve, daqui a pouco tem sempre um vizinho que conhece um outro que tem mania de treinar cachorro, o outro que ensina papagaio a falar, quer dizer, uma coisa puxa a outra". E que é o que acontece.

Roberto D'Ávila: Você montou um a belíssima equipe, não é?

Jô Soares: Graças a Deus, estamos juntos desde 1970, Marcos Nunes e Tom Marques.  Depois quando eu fui fazer o programa de entrevistas, Diléa Frate e Anne Porlan. E mais as meninas, que são jornalistas extraordinárias, que fazem as prés [entrevistas]. Aquilo é uma coisa que não pára, sabe...

Roberto D'Ávila: Você usa ponto [eletrônico] ainda?

Jô Soares: Eu uso ponto do ponto de vista técnico, porque se a pessoa ficar falando no teu ouvido, não dá, de vez em quando alguém se entusiasma, aí eu faço assim com a mão [gesticulando], ninguém em casa não entende o que é aquilo, é porque a pessoa se entusiasma. O ponto é bom: "Olha, vai entrar tal coisa, tem não sei o que no telão, a mesa com os objetos vai entrar pelo lado direito". Ou porque às vezes não adianta você fazer uma pré, porque você faz a primeira pergunta e a conversa muda inteiramente. Então, se eu esqueço alguma pergunta fundamental para o convidado a jornalista me avisa "não esquece de perguntar tal coisa", que é referente a um dos interesses do convidado. E o convidado é a coisa mais importante do programa. Então é por isso que eu acho fundamental o ponto.

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Você acha mesmo que o entrevistado é o grande personagem do teu programa?

Jô Soares: Acho. Os dois grandes personagens do programa são o convidado e a platéia que está ali presente, que dá o calor humano, que dá risada, que é o açucarzinho na boca do comediante.

Roberto D'Ávila: Um amigo teu, hoje de manhã lá no Copa [Copacabana Palace] -  aliás, o seu livro se passa no Copa, no você viveu muito lá, e hoje de manhã eu estava lá, por acaso - que gosta muito de você, disse, quando eu falei que ia te entrevistar: "Maravilha, com o Jô entrevistando já é uma grande entrevista, imagina entrevistá-lo!".

Jô Soares: Deve ser um grande amigo realmente. [risos]

Nizan Guanaes: Por falar de grandes amigos, Jô, o que você acha do Pânico na TV [programa de humor da Rede TV, transmitido desde 2003. Com diversos repórteres e quadros humorísticos, o programa faz piadas com celebridades, imita personalidades e faz caricaturas das situações do cotidiano.]?

Jô Soares: Eu acho ótimo. Eles têm que fazer o que eles fazem, aliás, o verdadeiro pânico é "o Pânico vai estar lá". Ué, eles são sempre bem-vindos. Eu encontrei com o Pânico duas vezes, uma foi na saída da minha exposição aqui no Museu da Escultura e outra vez foi chegando para gravar minha participação no show de quarenta anos da Globo. Dessa vez, ele batia no... - aliás, é um rapaz que faz o Sílvio Santos, mas que para mim é o Paulo Silvino [humorista brasileiro], é igual, é a cara do Paulo Silvino - ele batia no vidro e dizia "abre, abre", eu falei "não, não dá. Eu tô contigo e não abro, não vai dar".

[risos]

Jô Soares: Mas, não tem o menor problema, eu acho que eles fazem...

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Você vai calçar as "sandálias da humildade"? [o entrevistador refere-se a um dos quadros mais famosos e polêmicos do programa. Trata-se de uma espécie de "prêmio" ou reconhecimento para as celebridades consideradas arrogantes ou que, por algumas vezes, ignorem a equipe do programa durante as entrevistas e abordagens inesperadas. Jô Soares, entre outros artistas, foi um dos mais procurados pela equipe nesse quadro]

Jô Soares: Eu acho que eu já visto as "sandálias da humildade" sempre, na minha profissão, porque senão eu não estaria há 47 anos fazendo o que eu faço. Mas quero encontrar com eles, não tenho a menor... as pessoas ficam muito assustadas.

Roberto D'Ávila: Eu pensei que eles estivessem aí hoje, não estavam.

Pasquale Cipro Neto: [interrompendo] Olha que eles chegam. Olha que dá tempo, hein! É ao vivo isso aqui. [risos]

Jô Soares: Serão muito bem vindos. Tem gente que quer barrar o Pânico. O pânico não se barra, ou se sente ou não se sente.

[risos]

Paulo Markun: Você acha que é uma boa forma de humor que eles fazem?

Sílvia Poppovic: [interrompendo] É isso que eu queria...

Jô Soares: Olha eu... Voltando a falar nos meus 47 anos de profissão, eu nunca fiz nenhuma avaliação crítica de nenhum colega. Eu considero que são colegas também, porque também fazem humor. Já os entrevistei quando eles faziam rádio, então não me sinto à vontade de falar "eu acho que eles são assim ou são assado". Eu acho que eles fazem o que eles sabem fazer e o que eles têm que fazer, o resto é ficar falando no vazio. Agora, não pensem que é uma coisa destruidora ou assustadora. Eles têm que fazer o que eles fazem. E na hora em que eu encontrar vou responder com o maior carinho e com humildade. Evidentemente que as "sandálias da humildade", como é uma coisa que todo artista que se preze já calça, não podem ser transformadas na "sandália da humilhação". Isso é evidente que não.

Sílvia Poppovic: Agora, Jô, não precisa avaliar nenhum colega, mas em termos de evolução da televisão, quer dizer, como você faz televisão há tantos anos e como ator, como diretor, como redator, você conhece a história desse nosso veículo aqui como poucos. Você acha que as coisas estão indo para um lado bom? Você acha que as coisas estão num momento, talvez, de baixa, mas talvez melhorem? Como é que você a evolução da nossa televisão? Por que todo mundo fala do baixo nível, todo mundo critica, mas ao mesmo tempo todo mundo assiste. Eu queria saber a sua avaliação do que está acontecendo?

Jô Soares: Eu vou te responder com uma frase que eu ouvi do Dom Hélder [Dom Hélder Câmara (1909-1999), foi bispo e defensor dos direitos humanos durante o regime militar] quando eu estava no Recife fazendo show, que depois no Dops [Departamento de Ordem Política e Sócial – órgão criado com o objetivo de controlar e reprimir qualquer movimento contrário ao regime militar], a minha ficha no Dops era assim "elemento do Dom Hélder infiltrado na classe teatral". Então eu estava visitando o Dom Hélder, tinha lá a televisão francesa e a pessoa que estava entrevistando falou: "Na última vez que a gente se viu o senhor disse que ia me converter, prometeu de me converter". Ele falou: "Eu nunca disse isso, porque a conversão vem lá de cima, eu não posso converter ninguém pelo seguinte, para te converter eu teria que julgar você. Na hora em que eu julgar você eu não estou sendo cristão". Eu quase caí de joelhos, que maravilha! Eu uso a mesma frase para dizer que na hora que eu for avaliar, sob qualquer critério, como está o humor ou a qualidade da televisão, eu vou cair naquela idéia da  fazer uma equipe de notáveis para avaliar os programas de televisão. Eu vou cair naquela idéia da Marta Suplicy [política, foi deputada federal e prefeita de São Paulo pelo PT] de fazer uma equipe de notáveis para avaliar os programas de televisão. Vamos pegar dois notáveis da época, Dom Hélder e Dom Eugênio, um conservador e outro absolutamente, lindamente progressista. Quem é que vai estabelecer o critério de qual dos dois é o notável? Que notáveis? Qual é o critério para se escolher um notável?  Então não sei te falar. Não sei mesmo, Sílvia, não estou me furtando a dizer que a televisão caiu ou a televisão subiu. Eu acho que tem programas que são de alto nível e tem programas que são de baixo nível, da mesma forma que o Congresso Nacional tem deputados de alto nível e outros de baixo nível. Mas aí eu não posso dizer que por causa disso a política brasileira é a pior possível.

Roberto D'Ávila: Quando você falou em humildade, eu fiquei pensando aqui, por exemplo, você leva o Fernando Henrique [presidente do Brasil entre 1995 e 2003], quando era presidente, no teu programa, e em vez de chamá-lo de presidente, você chama ele de Fernando...

Jô Soares: [interrompendo] Não, não. Chamei de presidente.

Roberto D'Ávila: Não, chamou de Fernando.

Jô Soares: [interrompendo] Presidente... Chamei de você, que é diferente.

Roberto D'Ávila: De Fernando, não?

Jô Soares: Não, chamei de presidente. Quando eu comecei o programa eu estabeleci uma maneira de chamar os convidados de você, pelo seguinte, no Brasil o tratamento você e o tratamento senhor não são de diferença a não ser de classe social. Você chama um ministro de senhor e chama o motorista dele de você. Ao contrário da França, onde você chama o ministro de vous e o motorista de vous. No Brasil, serve para você fazer uma diferença de escala social. Como é que eu vou fazer um programa onde eu entrevisto um ministro e um engraxate e vou chamar um de senhor e o outro de você? Aí eu falei "vamos chamar todo mundo de vossa mercê ou vosmecê, vamos chamar todo mundo de você". E tem uma coisa curiosa, que quando eu entrevistei o Bulhões [provavelmente Otávio Bulhões (1906-1990), ex-ministro da Fazenda durante o regime militar] , com 90 anos, o Otto Lara, que era muito meu amigo, ligou para mim e falou "Jô, você não pode chamar o doutor Bulhões de você!". E eu falei "Não tenho outra coisa, eu não posso chamar... porque senão vão pensar que um é morto o outro é vivo, eu chamo todo mundo de você".

Roberto D'Ávila: Aliás, o Brizola [ele] chamou de Leonel, só a dona Neuza [esposa de Leonel Brizola] chamava ele assim. [risos]

Jô Soares: E eu chamava ele de Leonel, não é?

Pasquale Cipro Neto: Leonel [com ênfase no sotaque sulino]. [risos]

Jô Soares: Passou isso, depois eu entrevistei o Prestes [Luís Carlos Prestes (1898-1990), político comunista brasileiro. Liderou a Coluna Prestes], eu chamava de senador e de você. Primeiro ele tomou um susto, na primeira vez. Depois aquilo foi criando um intimidade que, de repente, durante a entrevista, ele fez uma declaração que nunca tinha feito antes, que é de me dizer "a grande paixão da minha vida foi a Olga [comunista alemã Olga Benário (1908-1942), ex-mulher de Prestes, morta em um campo de concentração], essa foi realmente a grande paixão da minha vida". E o que permitiu que ele dissesse isso para mim? Foi exatamente essa intimidade que se criou, que no começo também ele olhou assim, depois foi entrando no jogo e ficamos os dois conhecidos conversando. É claro, não tem como diferenciar, com o Fernando Henrique foi a mesma coisa. Eu não posso ter a hipocrisia de ter uma pessoa que eu já entrevistei várias vezes como senador, como ministro e que eu chamei de você, passar a chamar de senhor, porque isso não quer dizer respeito. A prova que o tratamento não é sinal de respeito é que na Câmara, vocês veêm, às vezes, um deputado: "Vossa Excelência é um filho da...", não é? Respeito não tem nada a ver com esse tipo de tratamento.

[comentarista]: Nos 17 anos de entrevistas, desde os tempos do Jô Onze e Meia no SBT até o atual Programa do Jô, na Globo, os números acumulados são recordistas. Mais de 3.400 programas, mais de 9.000 entrevistas, que Jô Soares prefere classificar como conversas, onde procura explorar tanto a personalidade do entrevistado quanto o assunto a ser tratado. Irreverente e provocador, arranca revelações que podem comover ou fazer rir. Em geral produzem risadas, o que leva o apresentador a dizer que continua fazendo humor, um humor diferente, produzido a partir de uma entrevista diferente, mesmo quando o assunto é sério. Pelo sofá de Jô Soares já passaram personalidades e convidados de todo tipo e nem os temas mais sérios, como política e economia, escaparam da opinião, da crítica ou da piada do apresentador humorista.

Paulo Markun: Bem, Jô, pergunta de Patrícia Ferreira Lima, do Jaguaré, bairro de São Paulo. Você tem liberdade para escolher os convidados do seu programa?

Jô Soares: Totalmente. Isso foi uma das reivindicações fundamentais para poder fazer o programa na Globo, com que eu tinha também ligações afetivas muito grandes, porém não dá para você fazer um programa desse, sem ter total liberdade. Isso não é uma coisa de arrogância, não é uma coisa de imposição ou disso ou daquilo. Basicamente três pessoas conversaram comigo para minha volta para a Globo. Uma delas foi a Marluce [Marluce Dias Silva, diretora-geral da Rede Globo entre 1996 e 2008], a outra foi Evandro Carlos de Andrade [jornalista brasileiro (1932-2001), foi diretor de jornalismo da TV Globo] infelizmente já falecido, e o próprio Roberto Irineu Marinho [filho de Roberto Marinho, posteriomente tornou-se presidente das Organizações Globo], que eu conhecia...E com essas três pessoas eu deixei bem claro que não dava para fazer um programa que não tivesse liberdade total.  Foi engraçado que a Marluce, quando voltou, comentou  com o [...]: "No primeiro programa vai chamar o Lula e o Brizola". E ele falou: "Tudo bem, mas espero que algum dia ele chame o Antonio Carlos". E eu digo: "de preferência, até no mesmo programa!". Tem que haver uma liberdade para você fazer um programa desses. Quando você começa a colocar limitações acaba o programa.

Paulo Markun: Fazendo um merchandising explícito do programa que eu estreei na rádio Cultura FM, às sete da noite, chamado Atenção Brasil, numa entrevista com você eu notei, na entrevista que a gente gravou na semana passada, que você mencionou uma certa mágoa pelo fato de a Globo não ter aceitado essa idéia originalmente, que o fez ir para o SBT.

Jô Soares: Não, não chegou a ser mágoa, foi uma realidade. Na hora...

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Não é uma questão de horário, Jô? O Boni uma vez me contou que você queria o programa 11 da noite, 11 e meia, tanto é que chamou Jô Soares Onze e Meia, e eles não podiam te prometer...

Jô Soares: Não, a discussão não foi pelo horário. A discussão que houve nunca foi em torno de horário. Claro que não, porque o programa, a hora que entra, tem o mesmo impacto e a mesma repercussão, não tem variação. Evidente que na Globo as audiências aumentaram em função de ser um canhão muito mais forte, mas nunca houve isso. O que acontecia na época é que... eu até entendo perfeitamente, não havia espaço para enfiar esse programa na programação da Globo, mas não houve mágoa nenhuma, eu entendi.

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Mas Jô, dá para avaliar duas fases do Jô Soares Onze e Meia, a época que você estava no SBT e depois quando você voltou à Globo? Você acha que seu programam melhorou depois que você foi para a Globo?

Jô Soares: Eu acho que o programa abriu mais o leque de possibilidades.

Sílvia Poppovic: Não perdeu nada?

Jô Soares: Em termos de entrevistas, você poder fazer uma entrevista em Nova Iorque, fazer um link, como eu já fiz em Nova Iorque; ou fazer em Paris, fazer uma entrevista onde eu quiser...

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Os próprios atores da Globo, você tem agora na mão.

Jô Soares: Evidente. E, além disso, o que eu tenho lá, o que eu tive com o Evandro e continuo tendo com o Schroeder [Carlos Henrique Schroeder, diretor-geral da Rede Globo], que é um apoio total do jornalismo.

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Você depende do jornalismo e não da programação?

Jô Soares: Perdão?

Roberto D’Ávila: Você depende do jornalista e não da programação.

Jô Soares: Eu não dependo do jornalismo ou da programação, eu tenho ligação com os dois. Mas, por exemplo, a mesma fidelidade que havia com o Evandro há com Schroeder, se amanhã ligar e disser "Schroeder, por favor me empresta uma equipe de jornalismo para fazer uma matéria no Ceará?". Eu tenho como fazer...

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Mas sabe o que é, Jô?

Jô Soares: No SBT já não havia isso, essa possibilidade. Então, eu acho que o programa cresceu, o programa abriu o seu leque e, quando eu fui para a Globo, as pessoas também estranharam: "Mas vem cá, você vai ter o mesmo tipo de liberdade que você tinha no SBT?". E eu respondia dizendo "da mesma forma que quando eu saí da Globo para ir par o SBT, o pessoal dizia 'será que o Sílvio [Sílvio Santos, apresentador, empresário, dono do SBT] vai te dar o mesmo tipo de liberdade que você tinha na Globo?'".

Sílvia Poppovic: É que no SBT vocês fizeram uma coisa que todos os jornalistas babavam de inveja, que foi cobrir a história do Brasil, a política, o que estava acontecendo, o impeachment do Collor, as entrevistas mais importantes. No dia seguinte todo mundo estava discutindo quem tinha ido no seu programa na véspera. Quer dizer, tudo acontecia lá, era um palco de muito efervescência, não sei se o Brasil estava em uma fase tão quente e vocês mergulharam de cabeça nisso, tinham esse espaço, aproveitaram. Eu me lembro que era imperdível mesmo, quer dizer, se você quisesse entender o que estava acontecendo no Brasil, tinha que ver o Jô...

Jô Soares: [interrompendo] Havia uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] durante a tarde que se repetia a noite no programa e com abertura para todo mundo.

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Não é que o foco mudou, indo para a Globo não é que o foco mudou. O país, vamos dizer, se acalmou.

Jô Soares: O país é que mudou, eu não posso ficar torcendo...

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Não é porque foi para a Globo que não pode mais falar de política.

Jô Soares: ...para ter um desastre nacional. Hoje eu entrevistei o Aécio [Aécio Neves, político do PSDB. Foi governador de Minas Gerais], já entrevistei o Palocci [Antonio Palocci, deputado federal. Foi ministro da Fazenda do governo Lula até 2006], sempre com perguntas, muitas vezes, contundentes, claro que com a maior elegância. Só que aquele momento era tão escandaloso que eu não precisava nem fazer nenhuma pergunta contundente, o momento era contundente, mas eu não vou ficar torcendo para o país entrar em total bagunça, para eu poder aproveitar isso no programa. É claro que se houver uma CPI agora, quem for na CPI vai no programa. Isso não tem o menor problema.

Roberto D'Ávila: Você tem um poder de concentração incrível, eu sei que você escreve com pessoas passando, você fala...

Jô Soares: Até prefiro.

Roberto D'Ávila: Até prefere, não é? É incrível teu poder de concentração. Agora, na vida, tem dias que a gente está triste, tem dias que a gente está melhor. Como é que você grava todo dia quando você não está bem? Você faz humor triste algumas vezes?

Jô Soares: Não, pelo seguinte, na hora em que eu chego para gravar, sei lá, seja qual for o estado de espírito, na hora que eu chego e começo a gravar aquilo me diverte tanto que não tem como eu ficar triste ou ficar chateado ou aborrecido. Porque eu me divirto naquilo que eu faço, é uma benção você trabalhar naquilo que te diverte. Tanto em teatro, quanto escrevendo, quanto na televisão, é sempre uma coisa que me diverte demais, porque se não me divertir eu não faço.

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Quer dizer, você corta a realidade. A realidade...

Jô Soares: Totalmente.

Grace Gianoukas: Quero aproveitar. Por acaso, eu sei que você dirigiu um filme, chama-se O pai do povo [1976]. Por eu ter ficado tão impressionada com esse livro, pelas imagens e pela construção das personagens que são fantásticas, qualquer ator gostaria de encarnar qualquer uma dessas personagens, o "Camilo Raposo", o "Varejeira", são personagens geniais...

Cícero Sandroni: [interrompendo] Não, o "Varejeira" não.

[risos]

Grace Gianoukas: Mas são tipos de construção maravilhosas...

Paulo Markun: O duro é encarar o "Varejeira".

Grace Gianoukas: Você tem vontade de dirigir um outro filme, quem sabe adaptar um roteiro a partir do livro?

Jô Soares: Vontade eu tenho de eu mesmo adaptar um roteiro de um livro meu.

Grace Gianoukas: Mas dirigir?

Jô Soares: Não sei fazer, porque eu acho que é outra coisa. No O pai do povo - que, aliás, é um trabalho maldito que eu fiz, foi lançado no Rio e em São Paulo na semana do carnaval, então, evidentemente que foi um desastre - eu não consegui fazer o trailer. Da mesma forma, eu não saberia fazer um roteiro, porque eu não saberia o que cortar, o que não cortar. Que é aquela dificuldade que às vezes o próprio diretor de cinema tem de cortar o próprio filme.

Roberto D'Ávila: E aquele projeto da ópera, de você dirigir uma ópera?

Jô Soares: Não dá, porque meu negócio é teatro mesmo.

Cícero Sandroni: [interrompendo] Mas o teatro te perdeu, Jô, para a televisão?

Jô Soares: Não.

Cícero Sandroni: [interrompendo] Por exemplo, eu me lembro...

Jô Soares: Eu continuo fazendo. Eu dirigi o FrankensteinS [2002] há pouco tempo, estou com um projeto também.

Cícero Sandroni: [interrompendo] Eu me lembro daquela peça, Os físicos.

Jô Soares: [interrompendo] Ah! O casamento do senhor Mississipi.

Cícero Sandroni: Os físicos também, você lembra disso?

Jô Soares: Não, Os físicos não. Eu fiz O casamento do senhor Mississipi.

Cícero Sandroni: Você dirigiu Os físicos pelo menos?

Jô Soares: É, eu dirigi e interpretei.

Cícero Sandroni: A televisão te absorve de tal maneira que você não voltará para o teatro para fazer um clássico, para fazer um...

Jô Soares: Não. De forma alguma, tanto que há três anos eu dirigi o FrankesteinS...

Cícero Sandroni: Sim [FrankesteinS]. Sim, sim.

Jô Soares: ...de um autor franco-cubano [Eduardo Manet]. E estou com o projeto de um clássico agora, que eu não posso ainda dizer o nome, porque o Marco Ricca [ator brasileiro] me pediu que não comentasse com ninguém. Não estou comentando viu, Marco? Porque dá tempo de você fazer as coisas. Você só não tem tempo de fazer as coisas quando você não faz nada, porque aí você não quer fazer nada.

Roberto D'Ávila: Você é disciplinado, Jô?

Jô Soares: Não, não.

Roberto D'Ávila: Não. Você foi chamado o homem da renascença, porque você tem vários conhecimentos sobre muitas coisas, aliás, foi até uma revista estrangeira que...

Jô Soares: [interrompendo] Foi um jornal estrangeiro, como era o nome? The New York Times.

[risos]

Roberto D'Ávila: Calça as "sandálias" [da humildade]!

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Mas, Jô.

Jô Soares: Olha aí as "sandálias".

[risos]

Sílvia Poppovic: Jô, mas uma perguntinha curta assim, em ordem de tesão, para ser bem clara, o que você gosta mais, televisão, música, teatro, literatura, pintura? Quer dizer, se você tivesse que fazer uma escala do que você gosta mais de tudo isso que você faz, porque...

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Mulher, não é, Jô?

Jô Soares: Bom, evidentemente. Mas, Sílvia Poppovic, me desculpe, essa pergunta não é digna de você.

Sílvia Poppovic: Por quê?

Jô Soares: Porque é aquela pergunta, o que você gosta mais de fazer? Isso ou aquilo? Não tem...

Sílvia Poppovic: Não, não é isso, mas é que você faz tantas coisas...

Jô Soares: É o que eu estou fazendo na hora.

Sílvia Poppovic: ...que eu fico pensando, porque é muito versátil, quer dizer, é muita coisa, você faz tudo.

Jô Soares: Eu gosto... Eu não faço tudo, se eu fosse neurocirurgião, seria um espanto...

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Não, está bom. Vamos dizer: na área das artes você se dedica a muitas áreas...você toca instrumento, você escreve, você atua, você é entrevistador, você é escritor, escreve roteiros de teatro, dirige teatro, são muitas habilidades. Eu fico imaginando que deve ter alguma coisa dessas que te dá mais prazer. Eu estava imaginando que hoje em dia o que [talvez] mais te desse prazer fosse escrever, fosse a literatura.

Jô Soares: Tudo me dá o mesmo prazer na hora que eu estou fazendo. Então, na hora... por exemplo, eu saio da televisão, onde eu gravei um programa que nem sempre sai - você sabe disso - como a gente quer, mas sai. Chego em casa, vou escrever, porque muitas vezes acontece isso... Na hora que eu estou fazendo o programa a coisa que eu mais gosto é de fazer o programa; na hora que eu sento para escrever é escrever; na hora que eu vou pintar é pintar, porque para mim são dedos da mesma mão.

Paulo Markun: Mas são coisas diferentes no envolvimento da pessoa, quer dizer, escrever é a coisa mais solitária que tem, fora uma outra que a gente não pode falar aqui, não fica muito bem. Mas eu diria que é prazerosa...

Jô Soares: [interrompendo] Depende no que você está pensando.

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Quer dizer que não fica bem para você, Markun.

[risos]

Paulo Markun: Ah é?

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Dois pitos, para mim e você.

[risos]

Paulo Markun: Mas escrever é super solitário. Fazer televisão é um trabalho necessariamente de equipe, e você tem uma equipe e essa equipe é parte do jogo.

Jô Soares: Olha, eu não sei. Na hora que eu estou escrevendo, claro que é um ato solitário, mas é um ato que não vai ser solitário...

Paulo Markun: [interrompendo] Você já pensa no...

Jô Soares: É um ato que eu sei que não vai ser solitário. A minha grande dificuldade quando eu pensava em escrever era exatamente isso "como é que eu vou agüentar ficar trezentas páginas sem contar, sem mostrar para ninguém". Graças a Deus algumas pessoas me ajudaram nisso, eu escrevia um capítulo e já mandava, para ter um feedback, porque é a coisa básica do comediante.

Cícero Sandroni: [interrompendo] Dá uma insegurança?

Jô Soares: Não, não dá insegurança. Dá a necessidade do açucarzinho, do feedback, da pessoa afagar a tua cabeça e dizer "está ótimo, está legal".

Grace Gianoukas: Você relê e fala assim "não, não, isso não"? Revê, relê, ou já pega um caminho...

Jô Soares: Não. Às vezes acontece de você chegar e dizer "não, isso aqui está tudo errado" e...

Cícero Sandroni: [interrompendo] Cortou na carne.

Jô Soares: É, tudo é uma experiência de vida. Esse negócio, por exemplo, do Copacabana Palace, meu pai e minha mãe me deixaram uma grande herança que foi a possibilidade de passar cinco anos estudando fora. Cinco anos depois papai perdeu tudo que tinha, foi morar em um apartamento emprestado da irmã dele, eu voltei da Europa e fiz uma mudança do Copacabana Palace para um quarto alugado na Praia do Junior, com aquele burro sem rabo levando a mudança, fui para esse quarto alugado na Praia do Junior. No entanto, não me afetou em nada a não ser positivamente, porque eu via papai chegando em casa dizendo "Mecha, para amanhã já temos, vamos ver agora depois de amanhã como é que vai ser", como se fosse um hippie. Então, isso marcou muito a minha vida no sentido de estar sempre sabendo que você deve lutar pelas coisas sem ficar guardando mágoas que não levam a coisa nenhuma. Então, por exemplo, toda essa experiência, que podia ter sido uma coisa traumática para mim, quando eu a perdi, passou a somar. Eu acho que isso é que é importante. Isso soma não só no escritor, mas no homem de televisão quando eu entrevisto alguém, quando, volta e meia, eu entrevisto alguém que eu conheci na época da Praia do Junior, fica uma ligação com o mundo. Isso eu acho que é importante não perder, por isso que eu digo que a grande herança que eu recebi foi essa. Porque o dinheiro acaba, podem tirar de você. Isso que você aprendeu não tem como tirar.

Roberto D'Ávila: Mas os seus pais também te passaram uma herança cultural?

Jô Soares: Claro! Claro que sim. Minha mãe, com quem eu brincava demais, era uma pessoa que lia muito, muito culta, falava oito línguas. Então, tudo isso vai somando.

[comentarista]: 47 dos seus 67 anos Jô Soares dedicou à televisão. Viveu de perto tudo que aconteceu na telinha. Dos tempos do preto e branco ao colorido, dos tempos da TV analógica à revolução digital. Mas além das mudanças tecnológicas, viu também o que mudou na programação da TV brasileira. Seu humor, marcado pela sátira política e de comportamento, tornou-se um registro das mudanças de costumes. Jô viu e participou das transformações que a TV teve de fazer para acompanhar os novos tempos, disputando uma audiência cada vez mais dividida. Mudaram os conteúdos, mudaram as piadas e trouxeram nova discussão sobre o papel e o efeito da telinha na vida das pessoas.

Paulo Markun: Jô, você vê muita televisão ainda?

Jô Soares: Eu vejo, quer dizer, vejo mais noticiário, vejo programas a cabo, mas eu não acompanho muito a programação, sobretudo por causa dos meus horários de trabalho, que batem um pouco em cima dos programas à noite.

Paulo Markun: [interrompendo] Você tem um esquema de folga relativamente confortável. Você trabalha muito durante um período, depois tem, a cada dez semanas, tem duas semanas, não é isso? E durante o ano um período em que você reapresenta programas etc. O que você faz no tempo de folga?

Jô Soares: Geralmente eu viajo, porque se você não viaja não tem como descansar, porque o telefone não pára, tem sempre alguém querendo perguntar alguma coisa relativo a uma matéria que está fazendo, não dá para você desligar.

Nizan Guanaes: [interrompendo] Jô, perdão. Como você está vendo hoje a política no Brasil? O atual cenário político?

Jô Soares: Igual.

Nizan Guanaes: Você, que é um espectador privilegiado.

Jô Soares: Acho igual. Acho terrível como as coisas se repetem, não é? A Sílvia estava falando da CPI do Collor, claro que não é igual, mas tem uma hora que você diz assim "será que as coisas vão se repetir?". Apesar da mudança de qualidade que aconteceu na política, da mudança de pessoas com mais competência, no entanto com a mesma ânsia de poder. As coisas que você sacrifica em nome do poder, para mim, são inacreditáveis. Agora, eu percebo que não é só aqui, é no mundo todo. Você, quando entrevista um político, de qualquer lugar, você percebe que o olhinho dele está sempre pensando além, está pensando em outra coisa. Então, claro que é uma coisa difícil de você encarar, mas é a realidade. Não é diferente em lugar nenhum do mundo. Eu entrevistei o Gorbachev [político russo, último secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, entre 1986-1991] , o olhinho dele era igual ao do nosso querido Brizola.

Roberto D'Ávila: Isso já é preconceito, Jô. O olhinho do político é igual ao... Isso é preconceito.

Jô Soares: Não, é conceito, é verdade. O olho do político está focando em outra coisa. Como aquela mania que o político tinha de olhar não para você, mas para a câmera; que às vezes eu já cheguei a falar a alguns políticos  "Não olha para a câmera não. Conversa comigo, deixa que a câmera pega". Por que senão parece uma conversa entre dois cegos, olhando para frente.

[risos]

Jô Soares: Mas não vejo... não acho que o momento seja pior, nem acho que seja muito melhor. Mas como otimista que eu sou acho que é um momento melhor. Hoje eu estava, hoje mesmo, entrevistando o Aécio, e eu dizia para ele "as coisas que você está falando, por exemplo, a respeito das alianças do PT aconteceram com o PSDB  também". E ele falou "Não, claro, eu não estou justificando uma coisa dizendo que antes não houve, não é isso". O que ele acha é exatamente... o terrível, o nível de alianças pessoais e não partidárias que acabam acontecendo na política brasileira. Quer dizer, os partidos não são ainda...

Cícero Sandroni: [interrompendo] Os partidos não existem mais. Os partidos estão inteiramente desfacelados...

Jô Soares: Não existem. Aliás, eu acho que na realidade nunca existiram. Quando você pensa que o Tenório Cavalcanti era da UDN [União Democrática Nacional, partido de oposição a Getúlio Vargas] junto com o Affonso Arinos [Affonso Arinos de Mello Franco (1905-1990), político, jurista, ensaísta e crítico literário. Foi o único constituinte de 1946 que participou da elaboração da Constituição Federal de 1988. Entre outras as leis, elaborou a que pune os crimes de racismo], que é um homem da maior dignidade... estão no mesmo partido.  Quer dizer, nunca houve isso. No Brasil nunca existiu.

Roberto D'Ávila: Eu queria voltar para o teu lado humano, Jô. Eu senti que quando você falou dos teus pais...

Jô Soares: Por quê? Agora eu estou desumano? [risos] Fala Roberto.

Roberto D'Ávila: Eu queria voltar para o teu lado humano no sentido que você passou uma certa emoção quando você falou dos teus pais. Você está em um período, assim, de memória da tua vida, de pensar nas coisas do passado. É  por causa do livro?

Jô Soares:  Isso eu acho que é uma coisa que eu estou há muito tempo. Eu acho que não dá para você... primeiro não teria motivo, no meu caso, de rejeitar uma memória ou de romper com essa memória, para mim essa memória me enriquece. Mas é um período que acontece há muito tempo e também há muito tempo que eu me pergunto "o que é isso meu Deus? Será que eu vou morrer? Estou próximo da morte, de ficar relembrando tanta coisa?", mas acho que não. Acho que nós todos passamos por isso, que se chama saudade. Saudade das pessoas.

Cícero Sandroni: Claro. Que livro você leu quando era criança e adolescente? Os livros que mais te marcaram na tua infância e na tua adolescência?

Jô Soares: O primeiro livro que eu li foi do Monteiro Lobato.

Cícero Sandroni: Sim.

Jô Soares: Eu descobri ali um mundo extraordinário.

Cícero Sandroni: Que o Monteiro Lobato criou...

Jô Soares: É. A partir daí eu me lembro que quando papai chegou em casa na hora do almoço e falou "Sabe quem morreu? O Monteiro Lobato". Eu fiquei sem almoçar e sem jantar.

Cícero Sandroni: [interrompendo] 1948.

Jô Soares: Isso para mim...

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Sacrifício.

[risos]

Jô Soares: Isso era uma prova, realmente, de total amor e abandono. Não é possível, foi em 48. Eu tinha 10 anos. Eu comecei pelo Caçadas de Pedrinho [1933] e fui em frente. Depois os de Emílio Salgari [escritor italiano (1862-1911)], depois O Livro da Jângal, de Rudyard Kipling [escritor indiano (1865-1936). O livro reúne famosos contos como "Mowgli,O Menino-Lobo", "Os Irmãos de Mowgli" e o "Avanço da Jângal". Kipling foi o primeiro escritor inglês a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, em 1907], toda aquela literatura...

Cícero Sandroni: Coleção Terra, Mar e Ar [Companhia Editora Nacional], provavelmente.

Jô Soares: Também. O Tesouro da juventude [W.M.Jackson Editores], que eu nem sei qual é a origem, acho que é francesa, mas enfim, aí foi indo sem parar.

Pasquale Cipro Neto: Jô, eu estou tentando aqui voltar para o livro. Acho ótimo você falar disso tudo, mas eu quero voltar para o livro...

Jô Soares: [interrompendo] Vamos lá.

Pasquale Cipro Neto: Você falou que não quer ser membro da Academia, porque você acha desagradável ter de pedir para que façam uma homenagem a você. A Academia é só o lugar para o qual se vai para receber uma homenagem ou ela tem outra função? E mais, no livro, às vezes, aparece uma expressão [Acadêmicos de Funkaria]...

Jô Soares: [interrompendo] Espera aí. Não, espera aí. Relativo, exatamente...

Pasquale Cipro Neto: [Risos] Mas junta aí...

Jô Soares: Pode ler aí [Risos]. Dito por um acadêmico.

Pasquale Cipro Neto: Sim, perfeito. Claro, lógico. Mas eu queria que você juntasse uma coisa com a outra... Você falou que pensou quando ouviu aquela notícia no rádio e tal, uma entidade que representasse o Brasil, sei lá o que...

Jô Soares: Uma elite.

Pasquale Cipro Neto: Celebridades, elites e tal. Junta tudo isso, por favor.

Jô Soares: Vou juntar. Primeiro, quero trazer como meu advogado/testemunha o próprio Affonso Arinos, pai do atual Affonso Arinos [Affonso Arinos de Melo Franco Filho, diplomata e político, integrante da Academia Brasileira de Letras], que eu ponho no começo do livro. "Pena que às vezes a Academia não se lembre que também é de letras".

Pasquale Cipro Neto: [interrompendo] Você acha genial esse livro.

Jô Soares: Acho genial. Farda, fardão [Farda, fardão, camisola de dormir é um livro de Jorge Amado].  É uma obra prima, onde através do microcosmo da Academia, ele faz uma análise de um macrocosmo que era o Brasil da época, que era época da ditadura do Vargas [Getúlio Vargas]...

Cícero Sandroni: É verdade.

Jô Soares: E onde ele põe todo esse jogo político da eleição para a Academia. Então, evidentemente que na Academia tem, teve e sempre terá o jogo político também. Da mesma forma que na francesa, onde a Academia Brasileira é inspirada, também sempre teve esse jogo político. Então, quando eu digo isso, com toda a sinceridade, é que eu não me vejo - é evidente que eu acho que é uma honra, imagina você participar da Academia  - mas eu não me vejo, eu acho que eu sou irreverente demais, anarquista demais para me ver fazendo uma campanha, indo na casa do Cícero [Sandroni], por exemplo, dizendo "Cícero, meu querido, gostaria que você lesse os meus livros". Eu não me vejo fazendo isso. Isso faz parte de um ritual acadêmico.

Cícero Sandroni: É, mas esse ritual acabou um pouco agora, sabe, Jô? Esse negócio de visitas, os acadêmicos... Eu, por exemplo, não visitei ninguém quando entrei há um ano atrás. Quer dizer, esse ritual é um ritual do passado, que hoje já não existe mais. E mesmo isso de procurar os acadêmicos, você tem que procurar, tem que escrever uma carta. Agora, antes de mais nada, você tem que ter um cadáver. [risos]

Sílvia Poppovic: Isso não é problema.

[todos falam ao mesmo tempo]

Jô Soares: Eu espero não ser candidato nunca, então.

Cícero Sandroni: No seu livro são cinco cadáveres...quatro ou cinco?

Jô Soares: São quatro, mas podemos providenciar mais.

[risos]

Cícero Sandroni: Tem o capanga que também morreu, coitado.

Jô Soares: Coitadinho.

Cícero Sandroni: Agora, eu acho o seguinte, o seu livro fala dos cadáveres, mas não fala dos candidatos. Só tem um candidato que é o Urbano Negromonte...

Jô Soares: Isso.

Cícero Sandroni: Que tudo leva a crer que... Não vou contar, não vou contar...

Jô Soares: Não, pelo amor de Deus!

[risos]

Cícero Sandroni: Quem é que matou, não é? Mas não fala muito dos candidatos. Quatro vagas, Jô!

Jô Soares: Que benção não é?

Cícero Sandroni: Quatro vagas, os candidatos iam pular!

Jô Soares: Mas tanto que o meu querido acadêmico lá, o...

Cícero Sandroni: [interrompendo] Qual deles?

Jô Soares: O Euzébio Fernandes [personagem do livro] falou "nunca aconteceu isso".

Cícero Sandroni: Nunca aconteceu.

Jô Soares: E ele usa isso para não deixar o outro ser candidato. Fala querido.

Roberto D'Ávila: Com esse excesso de informação que a gente vive hoje, como é tua memória? Você esquece as coisas ou a memória ainda é fantástica como você sempre teve?

Jô Soares: Não, eu acho que a minha memória é boa, o que acontece é que às vezes eu lembro da pessoa e não lembro do nome. Aliás, eu contei isso no programa outro dia, que eu estava autografando um livro, aquela fila de autógrafos, chega na minha frente o Eduardo Conde [(1946-2003) cineasta, cantor e dramaturgo], que era meu amigo querido, eu olho para a cara dele e digo, "meu Deus, como é nome dele? Pelo amor de Deus!". E ele me entrega o livro, aí eu fiz uma brincadeira "Me parece que o senhor é famoso, como é o seu nome mesmo?". Ele falou "Eduardo Conde", entrou no jogo! "Eduardo Conde, perfeito, Jô Soares, muito prazer", aliviado, botei o nome. Mas acho que isso acontece com todo mundo. E tem uma coisa curiosa também, que às vezes eu encontro uma pessoa que encontrou comigo há trinta anos e fala "você não vai se lembrar de mim" e não sei porque eu me lembro.

[risos]

Jô Soares: "Claro que eu lembro, no almoço na casa do Millor e tal, tal época". E, às vezes, a pessoa diz "Você não vai lembrar de mim" e eu digo "é verdade, não lembro mesmo".Tem pessoas que dizem "Você não se lembra em tal almoço em 1960?". E uma senhora uma vez falou para mim: "Lembro de você com a sua avó em Poços de Caldas, você era um bebê". Eu falei "Minha senhora, não sou eu porque eu não conheci a minha avó, nenhuma das duas eu conheci". E ela: "Como não, conheceu sim!". E a pessoa fica indignada, fica insultada, acha que eu estou mentindo.

Grace Gianoukas: E a quantidade enorme de convidados que você já teve, você consegue lembrar? Assim, de repente vem a imagem...

Jô Soares: Não, às vezes não.

Grace Gianoukas: Muita gente, não é?

Jô Soares: Não dá. São nove mil e tantos, as vezes não dá.

Nizan Guanaes: Agora, Jô, te acusam de, como se diz, falar mais que os entrevistados. De não dar margem, com esse conhecimento, esse homem da Renascença do The New York Times, ele passa como um rolo compressor. É verdade isso?

Jô Soares: Em princípio eu acho que não. O que eu acho que acontece é o seguinte: às vezes, quando o assunto me interessa muito eu entro no que se chama de "arenga" com o convidado. Aí ele fala uma coisa, eu rebato, e eu mesmo já disse em várias entrevistas às vezes eu atropelo o convidado. Bom, bastou eu mesmo dizer para isso virar uma verdade geral. Mas se você acompanhar, posso te dar uma amostra de entrevistas através dos anos que você vai ver que isso só acontece... Me lembro de uma vez numa entrevista com o Saulo Ramos [jurista e escritor], eu não deixei ele falar, porque o assunto me interessava tanto... Mas, no geral, eu acho que não, porque senão o programa não teria interesse. E eu vejo, muitas vezes, que até eu deveria mudar o assunto. Mas não mudo, porque antes de mais nada eu acho que eu sou uma pessoa razoavelmente educada. Da mesma forma que eu brinco dizendo que eu sou um gordo exibido, porque a nossa profissão é uma profissão de vitrine, a gente está exposto ali. É uma profissão de risco. Profissão do comediante, do ator, do apresentador, é uma profissão de risco.

Roberto D'Ávila: Mas às vezes você se irrita um pouco, não é? A gente nota, quer dizer...

Jô Soares: [interrompendo] Com o convidado?

Roberto D'Ávila: É. Você não gosta muito do tema e tal.

Jô Soares: Muito raramente, muito raramente. Claro, evidente, como todo o ser humano, que é um ser humano que está ali conversando. Então, quando eu brinco dizendo que eu sou exibido aí dizem "Jô Soares que é muito exibido". Evidente, se eu não fosse exibido eu não estaria exercendo uma profissão de vitrine. Mas não é no mal sentido que eu falo. Eu falo, inclusive, brincando com isso.

Roberto D'Ávila: Você acha que você é exibido?

[risos]

Jô Soares: Claro que eu sou exibido. Como você, Roberto D'Ávila, você é muito mais exibido do que eu em muito menos tempo.

[risos]

Roberto D'Ávila: Mais magrinho.

Sílvia Poppovic: É mais discreto. Só para terminar de falar dos entrevistados, qual o pior entrevistado? Um que chega, senta lá, você fala "Pronto, ferrou agora...".

Jô Soares: É aquele que não fala.

Sílvia Poppovic: Não fala.

Paulo Markun: [interrompendo] Lacônico.

Jô Soares: Antigamente eu não sabia o que dizer. Agora eu brinco, quando o cara fala "sim, não" eu digo "isso vai longe, essa entrevista vai longe". Shirley Horn [(1934-2005) cantora e compositora norte-americana], por quem eu tenho a maior admiração como cantora de jazz, ainda no SBT, ela sentou do meu lado e eu dizia "mas você esteve num festival e tal", e ela dizia "Yes". Aí eu dizia "em tal lugar você não..."e ela falava "I dont’ no". Isso foi um suplício, aí eu botei ela para cantar e ela deu um banho...

Roberto D'Ávila: Quando você entrevista o Luis Fernando Veríssimo, você leva a Lúcia, não é?

Jô Soares: Aí na hora que acabou a entrevista, que eu saí, ela estava sentadinha em um degrau da escada lá no SBT, fumando um cigarro. E quem tinha levado a Shirley Horn era o André Cristóvam [músico brasileiro, dedicado ao jazz e blues], que estava conversando com ela. Quando eu passei, ela me segurou e falou "Jô Soares, foi a melhor entrevista que eu dei na minha vida". [risos]

Paulo Markun: "Falei tudo que eu queria dizer".

Jô Soares: É, porque eu falava por ela. Foi me dando uma aflição que eu fui dando as informações que ela devia ter dado. Ela só falava "Yes".

[comentarista]: Desde Gordon, o mordomo da Família Trapo, trazia na ponta da língua o francês aprendido nos tempos da Suíça. Até os humorísticos da Globo na década de 1970 e 1980, Jô fez o riso geral na TV com paródias e sátiras do nosso cotidiano, dos tipos populares e de figuras públicas. No total mais de trezentos personagens que surgiram e se renovaram na idéia que Jô tem do humor. Um ramo que, segundo ele, está sempre em crise, mas está sempre renascendo da crise.

Paulo Markun: Você não tem saudade do bordão, Jô?

Jô Soares: Não.

Paulo Markun: Bordão é um desfecho fantástico, está certo. Não tem nada melhor do que isso.

Jô Soares: Não, evidente. Mas você não consegue forçar um bordão. É uma coisa que surge naturalmente. Como de repente até no programa de entrevistas tem o "beijo do gordo" que virou um bordão, não é? Quando eu estava lá na feira do livro tinha uma menina de dois anos e meio no colo da mãe que fazia assim para mim "Ah, um dedo do dodo, dedo do dodo". Dois anos e meio! Então é uma coisa que cola. Eu queria, falando em bordão, aproveitar que o "Sois rei", do Reizinho [quadro do programa  Viva o Gordo] é um bordão baseado em um fato ocorrido com o Aurélio Buarque de Holanda [crítico de literatura, professor de português, lexicógrafo. É o criador do famoso "dicionário Aurélio", cujo nome oficial é Novo dicionário da língua portuguesa], que tomou um táxi, o carro enguiçou, estava de fardão, o motorista olhou para ele pelo espelho aí não resistiu e falou "Sois rei?". Maravilha. [risos]

Roberto D'Ávila: Jô, você acha mais engraçado fazer televisão ao vivo? Dá uma certa adrenalina?

Jô Soares: Claro que dá, por isso que eu faço questão de gravar o meu programa como se fosse ao vivo. Eu aviso aos convidados, aviso a todo mundo antes "olha, isso daqui é como se fosse ao vivo, gente", para todo mundo ficar absolutamente ligado. Mas sem querer mudar de assunto, eu gostaria que o Nizan falasse daquele dado da Folha de S.Paulo, tão interessante.

[risos]

Nizan Guanaes: Ah, não. Eu aqui nos alfarrábios, que eu tive que pesquisar, porque você sabe que não dá para fazer propaganda e nem entrevista sem pesquisa...

[risos]

Nizan Guanaes: Mas, a pesquisa da Folha do ano de 2002 lhe é favorável quanto àquela questão de falar mais do que os convidados...

Jô Soares: Está vendo?

Nizan Guanaes: 55% contra 44%.

[risos]

Sílvia Poppovic: Jô, deixa eu fazer uma pergunta, não de ordem humana, mas de ordem...

[...]: Desumana.

Sílvia Poppovic: Não, de ordem desumana também não...[risos]. Superficial, vamos dizer assim. Você tem uma vida particular muito preservada e isso é uma coisa rara no mundo artístico. Você consegue preservar sua intimidade e a gente só sabe, enfim... Essa coisa que o Markun estava dizendo que, inclusive, você tem uma qualidade de vida que você faz questão de manter muito bem cuidada, como essa história de ficar quatro meses em Nova Iorque, de escrever lá, ter um apartamento onde você deve ter o seu grupo de pessoas...

Jô Soares: [interrompendo] Ficar quanto tempo você falou?

Sílvia Poppovic: Imagino que uns quatro meses.

Jô Soares: Não!

Sílvia Poppovic: Não é o tempo que o programa fica fora do ar?

Jô Soares: Dois meses.

Sílvia Poppovic: Parece uma eternidade para a gente que assiste.

Jô Soares: Muito obrigado.

Sílvia Poppovic: Para a gente, é um tempo, realmente, que a gente fica sem o programa ao vivo, mas não é isso que eu queria dizer. Eu queria saber de você, já que você não dá entrevistas nas revistas de celebridade, como é que você gosta de gastar dinheiro? Como é que você gosta de viver bem? Quando você falou "Hoje eu vou viver bem, eu vou fazer uma extravagância". Quando que para você, está se presenteando?

Jô Soares: Bom, primeiro porque eu acho que preservar a privacidade é quase que um dever nosso. Para mim é uma coisa que acontece naturalmente, porque a nossa vida já é tão pública, já é tão devastada, já é tão à vontade, relax, que se a gente não preservar um mínimo de intimidade fica uma coisa pavorosa, por isso que eu não... Eu acho que o termo "celebridade" ficou hoje em dia muito abrangente, como o termo artista. Então a Fernanda Montenegro [atriz brasileira de cinema, TV e teatro. É considerada por diversos críticos como a melhor atriz brasileira dos últimos tempos] é artista. E uma pessoa que participa de um programa eventual, que tem cinco minutos de fama, também é um artista. Ficou uma coisa meio generalizada. Agora, onde é que eu gasto o meu dinheiro? Eu vou usar as palavras do Marcos Caruso [ator], quando eu inaugurei o meu estúdio, que é no andar de baixo da minha casa, que falou "Puxa, que maravilha! Você gasta o seu dinheiro naquilo que você faz". E é aquilo que me dá prazer. O Bernard Pivot [jornalista francês, consagrado com o programa Bouillon de Culture (Panelão de Cultura, em francês), transmitido pelo canal France 2], quando esteve lá também falou para mim uma frase muito bonita, disse assim "Você gasta o seu dinheiro com extrema elegância". Eu gasto naquilo que eu faço, que é aquilo que me dá prazer.

Sílvia Poppovic: Você comprou um outro andar no edifício onde você mora e você fez um estúdio...

Jô Soares: Fiz um estúdio, tem um loft enorme...

Sílvia Poppovic: Abriu tudo e fez um lugar para você...

Jô Soares: É. Tem um estúdio de música, tem piano, tem refletores, quer dizer, eu posso ensaiar uma peça de teatro lá. E é onde eu escrevo, enfim, é onde eu pinto.

Sílvia Poppovic: Era um sonho, uma coisa que você queria se oferecer.

Jô Soares: Evidente. Porque tem gente que compra um iate...

Sílvia Poppovic: Ou dois iates. [risos]

Jô Soares: Ou dois iates. Eu não saberia...

Roberto D'Ávila: Jô, você falou do Bernard Pivot, que é o maior apresentador de cultura da televisão francesa de todos os tempos. E você no programa dele, fez um sucesso imenso. Eu sei que realmente eles ficaram muito impressionados, você contando piadas em francês, você domina profundamente a língua. É mais difícil contar piadas em outra língua? Mesmo dominando a língua?

Jô Soares: Não, se você domina a língua, não. Eu tive uma sorte muito grande no primeiro programa com o Pivot  que estava presente o Jean D’Ormesson, que é da Academia Francesa [de Letras]...

Cícero Sandroni: [interrompendo] Academia Francesa.

Jô Soares: E que esteve no Brasil. É uma figura, você tem vontade de levar para casa, porque ele é bonito. Ele estava, na época, com 78 anos quando eu o conheci, olhinho azul, cabelo branco, elegante à beça. Tem um livro sobre a família dele, que vem das Cruzadas, com um senso de humor incrível, e que esteve no Brasil. Então quando falou Brasil... e o livro dele, passava-se uma parte no Rio de Janeiro e em Salvador. Aí eu comecei a elogiar o livro dele e elogiei, elogiei. E o Pivot uma hora falou "Chega". Aí ele falou "Deixa o rapaz falar, está tão bom"...

[risos]

Roberto D'Ávila: Todos nós aqui no Brasil, acho que a gente tem um viés meio colonizado. Você acha que fazer sucesso na França ou nos Estados Unidos ou na Inglaterra é mais gostoso?

Jô Soares: Não. Só no caso de um livro, é. Porque aí não é mais você, aí é o livro pelo livro. Sabe, eu fico até acanhado que de repente saiu uma crítica no The Washington Post sobre o "Getúlio" [refere-se ao livro O Homem Que Matou Getúlio Vargas]. Aí eu sou Mr. Soares. Eu leio aquilo e fico meio com vergonha, porque é como se estivessem falando de mim sem me conhecer e sem falar de mim. Quer dizer, não é porque a pessoa me viu na televisão. É o livro pelo livro. Então é claro que é uma coisa que mexe com você.

Roberto D'Ávila: Quando você vende cem mil na França e sem televisão dá um certo gosto, não é?

Jô Soares: Evidente. Por que você se vê o segundo na lista dos mais vendidos durante dois meses. Mexe no sentido de ser o livro, não ser o Jô Soares ou ser o Monsieur Soares que escreveu um livro assim, assado. Tirando isso, o bom é você fazer sucesso no teu país, porque eu não saberia morar fora do Brasil, não saberia criar fora do Brasil, porque eu sou um fruto típico do Brasil. Todas as minhas memórias, toda a minha criatividade. Eu não saberia criar fora do Brasil; aliás, eu tenho admiração pelo exilado que é obrigado, de repente, a fazer uma carreira fora da sua terra, porque é difícil você se inspirar fora da pátria.

Cícero Sandroni: Um ator como Gustaf Gründgens, aquele que fez Mephisto, não conseguiu saída não. Era um ator. [Gustaf Gründgens (1899-1963) foi um dos mais conhecidos atores alemães. Sua vida originou o livro Mephisto, de Klaus Mann, em que são relatadas as ligações do ator com o regime nazista].

Jô Soares: E também aquele grande maestro, que eu não me lembro o nome agora, tocou no aniversário do Hitler e não sei o que, não conseguiu, enquanto o Herbert Von Karajan [(1908-1989), maestro austríaco] foi embora, não conseguiu sair.

Cícero Sandroni: O pianista...

Jô Soares: Não. Era o...

Sílvia Poppovic: [interrompendo] Furtwängler [Wilhelm Furtwängler (1886-1954), maestro alemão, antecessor de Karajan como diretor da Filarmônica de Berlim], não? Não, não era. Furtwängler, não.

Jô Soares: É. Que era o maestro da...

Sílvia Poppovic: Era o Furtwängler.

Jô Soares: Exatamente. Que era o maestro da Filarmônica de Berlim.

Roberto D'Ávila: Em Portugal você se diverte muito, não é?

Jô Soares: Muito, porque meu programa passa lá, faz muito sucesso. Tenho grandes amigos lá. E é um pouco a gente, não é?

Grace Gianoukas: Desculpa, eu queria te perguntar uma coisa. Para mim e eu acho que para toda a minha geração, para muitas pessoas de muitas gerações, o humor que tu sempre fez na TV sempre foi um humor muito inteligente, muito sagaz e muitas vezes político, "pegava bem no nervo". A censura te incomodou?

Jô Soares: A nós todos. Primeiro eu quero dizer o seguinte, que eu tenho a maior admiração por você, pelo Marcelo Médici, por toda uma geração jovem de humoristas, de atores, porque eu acho que você pode ser ator sem ser comediante, mas para ser comediante você antes é um ator. Muitas vezes me perguntam por que não há uma renovação maior. Há, está aqui a prova. Só que é tão difícil surgir um novo comediante ou uma nova comediante quanto é difícil surgir um novo tenor ou uma nova grande soprano, porque depende de uma série de características. Agora, voltando ao negócio da censura, nós todos sofremos com a censura. O Max Nunes, que está comigo até hoje, meu querido padrinho, um gênio do humor na televisão brasileira, também de música...

Pasquale Cipro Neto: [interrompendo] Que está aqui por sinal. Acompanhou você. Ele veio junto. Ele está aqui.

Paulo Markun: Está assistindo ali.

Jô Soares: Veio junto.

Pasquale Cipro Neto: Fidelidade mesmo.

Jô Soares: Não tem como eu me livrar dele, não há hipótese.

Pasquale Cipro Neto: Querido Max.

Jô Soares: E que é uma pessoa de uma modéstia, também um grande compositor. Você vê, "Bandeira Branca" é do Max Nunes. Quando eu digo isso às pessoas se espantam.

Roberto D'Ávila: E é médico, não é Jô?

Jô Soares: É, é lindo. Então a gente sofreu muito. E o engraçado é que, às vezes, a gente inventava coisas para driblar a censura, como o caso do personagem "Gandola", que sempre dizia que queria um emprego e ninguém dava até que ele dizia "Não, mas é que quem me mandou aqui foi o Gandola". Aí o pessoal sempre arranjava empregos cada vez melhores para ele. Isso levou um ano e meio até que os militares do governo descobrissem que gandola era o nome de uma túnica militar. Aí proibiram o quadro. Inclusive depois que uma senhora na feira, no Jornal Nacional [telejornal da TV Globo], disse "Isso aqui, só mesmo chamando o Gandola". Aí proibiram o quadro. A gente mudou o nome de "Gandola" para 'Bochecha". Então tinha várias coisas, quadros que foram sumariamente proibidos.

Pasquale Cipro Neto: [interrompendo] Houve um episódio real, não é? O Palhares, alguém que se fez passar pelo Palhares, há coisa de uns três, quatro, cinco anos, não sei. Fato verídico, talvez até inspirado no "Gandola", o sujeito era o Palhares e ele resolvia tudo ali no INSS [Instituto Nacional de Seguro Social], aposentadoria daquelas nebulosas, até que um dia alguém foi perguntar quem era o tal do Palhares.

Jô Soares: O Capitão Gay de cara foi proibido. Quem peitou foi o Boni, que falou assim "Não, mas vai!". Contaram para o Boni que havia em Brasília o "coronel gay", que era candidato ao governo de Brasília. Eu me lembro como se fosse hoje, o Boni no telefone dizendo "Não, não, mas me interessa, eu quero peitar isso, eu quero peitar e o Jô vai fazer o Capitão Gay". Aí eu fiz o Capitão Gay e tudo bem. Meses passados, depois que o Capitão Gay estava no auge, eu estou no aeroporto e vejo um senhor gritar para mim "Jô, Jô, Capitão Gay, venha cá!". Ele falou "Eu sou o coronel gay, muito prazer". E aí apresentou o ajudante de ordem dele, disse "E esse aqui é o meu Carlos Sueli".

[risos]

Jô Soares: Quer dizer, aquela coisa de ser mais realista do que o rei.

Paulo Markun: Nosso tempo acabou. Última pergunta, super rápida, que é de Lenk Peres, de Granja Viana, Cotia, que é a seguinte: tirando as celebridades e as personagens muito interessantes anônimas, outros mortais comuns pagam para ir ao seu programa?

Jô Soares: Não, nunca ninguém pagou para ir ao programa. Eu acho que isto faz parte da própria credibilidade do programa. Aliás, também saiu, em uma época de eleições, uma matéria na Folha de S.Paulo dizendo que os programas que se tinha certeza que ninguém pagava para ir eram do Boris Casoy e do Jô Soares. E, sobretudo, pelo seguinte: eu ganho muito bem e isso seria uma desmoralização...

Roberto D'Ávila: [interrompendo] Só quando você levou o Roberto Marinho.

Jô Soares: Mas aí é um pagamento mensal! Eu fiz, talvez, a única grande entrevista com o Roberto Marinho. Porque se você aceita dinheiro para levar alguém, como é que você fica? E, no entanto, tem gente que já se aproveitou disso para cobrar, para levar alguém no programa e depois dizer "Olha, não deu certo. Paciência, não deu certo". Porque não há hipótese de alguém pagar para ir ao programa, eu estaria trabalhando contra mim.

Paulo Markun: Jô, muito obrigado pela sua entrevista.

Jô Soares: Obrigado eu.

Paulo Markun: Obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Na próxima segunda estaremos aqui com mais um Roda Viva.

Jô Soares: E daqui a pouco, por favor, Programa do Jô, não se esqueça.

Paulo Markun: É isso aí. Até lá.

 

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