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Memória Roda Viva

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Dom Claúdio Humes

11/7/2005

O cardeal brasileiro, que foi cotado para ser Papa, explica por que a Igreja Católica é contra o casamento entre homossexuais, células-tronco, eutanásia e aborto, entre outros temas controversos

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[Programa gravado não permitindo a participação de telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. Há anos o catolicismo vem perdendo adeptos e a grande maioria dos católicos não freqüenta a Igreja. Preocupada com isso, a Igreja Católica pensa numa nova evangelização, buscando se tornar mais visível e presente na vida moderna. O Roda Viva discute esses temas esta noite com o chefe da maior diocese do país, Dom Cláudio Hummes, cardeal arcebispo metropolitano de São Paulo.

[Comentarista]: Dom Cláudio Hummes era arcebispo de Fortaleza quando foi indicado pelo Vaticano para substituir Dom Paulo Evaristo Arns no comando da arquidiocese de São Paulo em 1998.  Foi a mais importante troca de cargo na Igreja Católica no Brasil durante o pontificado de João Paulo II. Gaúcho de Monte Negro, filho de lavradores de origem alemã, foi ordenado sacerdote em 1958, viajando em seguida a Roma, onde fez doutorado em filosofia. De volta ao Brasil e nomeado bispo de Santo André, viveu no ABC paulista de 1975 a 1996, atuando na linha de defesa dos direitos humanos e da justiça social. Acompanhou de perto os momentos tensos do regime militar dos anos 1970, especialmente o período de maior repressão e mobilização sindical. Foi quando conheceu o líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, com quem viveu situações delicadas em conflitos entre trabalhadores, Polícia e Exército. Amigo do presidente eleito, Dom Cláudio Hummes também manifestou publicamente esperanças no governo Lula, depois de ter responsabilizado o governo Fernando Henrique [presidente eleito em 1994, foi reeleito em 1998 até 2002] pelo desemprego no país. Mas não tardaram as críticas do cardeal ao novo governo, entre elas: a de que faltava energia no combate ao desemprego, na reforma agrária e na redução de juros e impostos. Este ano, durante a semana santa, o arcebispo considerou legítima a escolha de políticos como alvo na malhação do Judas, porque o povo é quem sofre as mazelas sociais. Dom Cláudio sabe que muita coisa depende dos políticos e, por isso, o povo tem razão quando reclama deles.

Paulo Markun: Para entrevistar Dom Cláudio Hummes, nós convidamos: padre Cido Pereira, diretor do jornal O São Paulo e âncora do programa Construindo cidadania na rádio Nove de Julho; Laura Greenhalgh, diretora executiva do jornal O Estado de S. Paulo; Ricardo Kotscho, jornalista; Luiz Felipe Pondé, professor de filosofia da PUC e da FAAP; Cristiane Segatto, repórter especial da revista Época; João Batista Natali, repórter especial da Folha de S. Paulo; e Vicente Adorno, editor de internacional da TV Cultura. Temos também a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. Boa noite dom Cláudio.

Dom Cláudio Hummes: Boa noite, Paulo.

Paulo Markun: Queria começar pela conjuntura. Durante muito tempo a Igreja Católica foi uma referência nos momentos difíceis que nós vivemos no Brasil, sempre ela sinalizou a expectativa da defesa dos direitos humanos, a construção da democracia, enfim, na volta da esperança, inclusive. Qual é a posição da Igreja diante da situação que a gente vive hoje, nessa conjuntura de crise em que bandido vira mocinho e alguns mocinhos parece que viraram bandidos?

Dom Cláudio Hummes: Creio que a Igreja está um pouco perplexa, porque tinha muita esperança nesse governo, claro. Uma parte da Igreja, até, como você sabe, apoiou fortemente a ascensão do PT como partido no Brasil, fez crescer esse PT, sobretudo pelas comunidades eclesiais de base, digamos assim, as pastorais sociais. E as pessoas que foram vendo no PT aqueles ideais, aquelas causas que a Igreja estava defendendo sempre, mas de modo muito particular, no tempo da ditadura, quando houve toda aquela repressão e via no PT, de fato, uma possibilidade ou uma oportunidade de o Brasil ser reformulado e ser mais justo, mais fraterno, como nós dizemos, mais humano, mais respeitador dos direitos de todos igualmente, não apenas de algumas classes, enfim. E essa esperança ainda existe, mas ela ficou bastante comprometida com os acontecimentos de agora, mais recentes, todas as denúncias de corrupção que haveria dentro do partido, que haveria dentro do governo, enfim. Creio que a Igreja está um pouco perplexa [refere-se ao escândalo do mensalão]

Paulo Markun: Qual é o compromisso da Igreja, de alguma forma, em dar um rumo?

Dom Cláudio Hummes: Ela já se pronunciou em nível de CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. A CNBB se pronunciou, agora, recentemente, quando houve o conselho permanente em Brasília, isso foi na semana passada e ela tomou uma posição muito clara, muito forte, de que tudo deve ser apurado, que deve ser punido, enfim. Eu mesmo, logo no início – isso foi quando começaram as denúncias –, fui rapidamente entrevistado pela imprensa e dizia isso já, que era necessário apurar absolutamente, plenamente, que a impunidade é a pior coisa que pode existir diante de um momento de crise, sobretudo a impunidade que dá força à corrupção. Então, houve de fato alguns pronunciamentos e algumas tomadas de posição quanto à toda essa crise que está aí.

Ricardo Kotscho: Dom Cláudio, queria fazer uma pergunta mais espiritual do que política, embora uma coisa esteja ligada à outra. O que o senhor pode recomendar para as pessoas, especialmente os mais jovens, para que não desanimem das nossas instituições e mantenham esperança em um país melhor? Porque há um clima generalizado, assim, de desesperança, desencanto. Como o senhor, a Igreja, podem dizer que é possível fazer para manter a chama acesa?

Dom Cláudio Hummes: Eu diria que nós todos e a Igreja, de modo especial, devem deixar claro que o Brasil é maior do que essa crise. O Brasil é maior que um partido, um governo. Eu acho que o Brasil, hoje em dia, tem implantado instituições democráticas bastante sólidas. O Brasil tem progredido, apesar de tudo, tem um progresso sob muitos aspectos. Pode se começar com o aspecto econômico... Claro, progrediu também no mal sentido, de aprofundar a pobreza de uma parte, de uma parcela do povo que, de fato, ficou mais pobre. [Mas] acho que uma faixa do povo melhorou de vida com esse governo. Há muitas iniciativas sociais nesse sentido, programas sociais que vem ao encontro das necessidades da população. E, sobretudo, eu acho que nós deveríamos acreditar no Brasil e acreditar em nós mesmos, no povo brasileiro, que nós somos capazes de criar o Brasil que nós queremos. E isso são momentos, é claro, da história que, de repente, aparecem os podres da história, aparece, como nós sabemos, a corrupção [que] existe por todo lado, existe em todo mundo, em todos os governos, só que há momentos em que ela cresce e há momentos em que ela se revela. Então, todos nós ficamos muito magoados, em primeiro lugar, porque nós não esperávamos isso, diante de tudo aquilo que foram as promessas de um governo. E também, por outro lado, nós vimos, digamos assim, separar “o joio do trigo”. Existe muita gente boa no governo, no partido que está no governo, o próprio Lula eu acho que é uma pessoa que nós devemos realmente manter a esperança...

Ricardo Kotscho: Se o senhor encontrasse amanhã o presidente Lula numa audiência, o que você gostaria de dizer para ele?

Padre Cido Pereira: Queria completar essa pergunta, [já] que o senhor nunca negou amizade e o carinho pelo presidente Lula, uma amizade que começou nos tempos lá em que o senhor era bispo de Santo André. Então, quer dizer, nessas alturas: qual é a diferença entre o Lula líder sindical e o Lula presidente? E essa amizade eu acho que até lhe daria o direito de ouvi-lo ou, pelo menos de procurá-lo, que ele deve estar muito no inferno astral terrível, então, completando a pergunta feita pelo Ricardo.

Dom Cláudio Hummes: Sim. De fato, sou amigo do Lula desde os tempos do ABC [greves do ABC]. E isso porque lutamos juntos. Eu estava contando quando levamos pedrada juntos, enfim, estivemos juntos nas portas das fábricas de manhã cedo, de madrugada nos tempos das greves dos metalúrgicos. Então, nós tivemos uma história junto ali no ABC. E isso criou entre nós uma amizade, de fato. Mas isso não pode, de forma nenhuma, fazer com que não se seja objetivo, não se seja justo e eu gostaria que aquilo que eu dissesse fosse objetivo e não fosse algo subjetivo, apenas porque sou amigo dele. Eu continuo sendo amigo dele, admiro ele muito e creio que foi um dos sinais maiores do Brasil diante do mundo de que um homem que vêm dos metalúrgicos, trabalhador, um torneiro mecânico, chegasse a governar um país e governasse da forma como está governando. É claro que agora temos todo esse problema da corrupção, mas eu gostaria de dizer que eu continuo vendo o Lula como uma pessoa absolutamente honesta. Seria para mim, uma das maiores surpresas e decepções se, de fato, se provasse que ele tem alguma coisa a ver com a corrupção, eu não creio nisso.

João Batista Natali: Eu só queria lhe cumprimentar em outro sentido. Durante muito tempo, o PT foi visto como uma espécie de referência de moralidade dentro da política brasileira. Hoje em dia, essa idéia está se esfacelando, está caindo aos pedaços. Isso, então, provoca uma segunda etapa, um segundo momento, um tipo de reflexão um pouco cínico, por parte do cidadão, que é o seguinte: já que essa referência de modalidade ruiu, então, isso significa que ela ruiu com relação a todos. Quer dizer que existe uma espécie de maldade generalizada na classe política e nas instituições. Ora, essa postura moral em relação à política tem alguma coisa a ver com a espiritualidade e com a religiosidade? O senhor não teme que o Brasil possa estar mergulhando, com essa crise do PT, em alguma coisa muito próxima de um cinismo generalizado, ou seja, "são todos eles iguais, todos eles se equivalem, todos eles se autonivelaram no nível mais baixo possível..."

Dom Cláudio Hummes: Perfeitamente. A todos nós, é claro, ética tem a ver com todos, tem a ver com a convivência humana em sociedade. E, realmente, existe o risco de haver um maior cinismo, existe esse risco. É por isso mesmo que eu acho [bom] que se fale sobre isso, que se reflita sobre isso. Isso mostra que não é a conclusão que se deve tirar, não é essa conclusão que se deve tirar. Mas que, na verdade, o povo brasileiro tem grandes reservas morais, grandes reservas éticas. E a gente vê isso no dia a dia, na dedicação das pessoas, e mesmo na, digamos, não só mágoa, diante do magoado, mas também na, digamos assim, rejeição, na indignação diante de tudo aquilo [é] mostrado, na medida em que isso [provoca], de fato... O povo, é óbvio, vai se indignando. E com razão, porque essa indignação ajuda também a reagir eticamente de uma forma saudável, e não apenas se tornar cínico, o que seria de fato a pior conseqüência. Mas acho que todos nós temos um grande desafio diante disso, mídia, Igreja, enfim, todos aqueles que formam a opinião pública devem ajudar o povo a refletir sobre isso.

Paulo Markun: Voltando, para não deixar a pergunta do Kotscho sem resposta, o que o senhor diria para o presidente Lula se o reencontrasse, se é que o senhor pode dizer aqui?

Dom Cláudio Hummes: Eu daria a ele um grande abraço, certamente daria a ele um grande abraço e diria que eu espero que ele consiga dar a volta por cima e reconstruir esse governo e levar em frente o governo e terminar, [é] isso que eu diria a ele. E eu espero isso dele, que tem capacidade de fazer isso. A estrutura moral interior ele tem, para isso.

Laura Greenhalgh: Dom Cláudio, não faz muito tempo, o senhor deu uma entrevista e cobrava ousadia do governo Lula, pensando basicamente na questão do emprego – ou desemprego, melhor dizendo –, dos programas sociais, do comprometimento das verbas, dos orçamentos aos programas sociais e tal. Essa sua colocação, essa sua entrevista precede todo esse processo a que nós estamos assistindo no Brasil. Queria... Lembro que foi uma entrevista forte, [em] que o senhor, amigo de tanto tempo do presidente Lula, cobrava dele ousadia. Então, pergunto para o senhor o seguinte: como tem sido a interlocução da Igreja – e aí falo da CNBB, órgão representativo máximo –, com o governo Lula, desde o início?  Quer dizer, no início havia as promessas, e havia todo aquele clima de “vai dar certo”, de “demorou, mas aconteceu”. Como foi essa interlocução, quando o senhor falava, há dois meses atrás, "olha, é preciso de ousadia nesse governo", qual era o retorno que o senhor tinha disso?

Dom Cláudio Hummes: Pela relação da CNBB com o governo... A CNBB sempre, graças a Deus ainda continua, sempre manteve uma atitude de muita autonomia, de uma autonomia diante do governo. E é bom manter essa autonomia da Igreja, do governo, cada um do seu lado, dentro daquilo que são suas responsabilidades no país. A Igreja sempre defendeu isso, a sua autonomia. E, portanto, de ter autonomia também de criticar, embora criticar construtivamente, não simplesmente por criticar, ou destruir, enfim, mas ajudar com as suas críticas. Isso eu acho que é importante, a Igreja deve manter isso e mantém. O Lula diz isso, aliás, já dizia isso no tempo do ABC. Ele dizia sempre que, por exemplo, certas coisas eu não participava, porque não eram na verdade, não tinha nada a ver com a Igreja, propriamente, eram coisas do partido, primeiro do sindicado, e depois o partido nasceu, a CUT [Central Única dos Trabalhadores], eu participei de tudo isso. E, desde logo, o Lula sempre dizia: "nós não somos um braço da Igreja e nem a Igreja deve ser um braço do sindicato, da CUT, do PT. Cada um está na sua área e deve manter-se autônomo na sua área para poder agir, sem sentir como se tivesse um braço pelo qual ele também responde, a Igreja pelo PT ou o PT pela Igreja". O fato é que depois, isso já como presidente, o Lula disse isso para nós na Assembléia logo depois da posse dele, ele confessou, de fato, que, sem a Igreja, sem as comunidades eclesiais de base, todo aquele trabalho que a Igreja tinha feito durante a ditadura militar, de conscientizar a população e as suas bases de modo especial, para a justiça social, para toda essa luta, enfim, da democracia, o Lula disse que o partido não teria sido um partido nacional desde logo que nasceu se não fosse, de fato, toda essa estrutura da Igreja que existe por todo país. Afinal, a Igreja existe de norte a sul do país, através das suas paróquias, de suas bases. Então, isso sempre fez com que, na verdade, nós tenhamos algo em comum. Nós temos algo em comum, mas, mesmo assim, nós não devemos perder a autonomia, a capacidade de criticar tranquilamente e, repito sempre, construtivamente. E a CNBB tem procurado fazer isso, muitas vezes, até, talvez, como dizia o Paulo [Evaristo Arns], talvez até demorando um pouco, exatamente pelo respeito que nós temos por toda essa luta do PT e por tudo aquilo que ele foi e continua sendo. Acho que ele pode se sanar, e deve se sanar, eu acho que isso é possível. Então, a Igreja tem acompanhado e vai continuar acompanhando, muito independentemente, mas também torcendo para que dê certo isso, por causa do povo, não por causa sei lá de quê, mas por causa do povo. Nós temos compromissos com essa população toda.

Luiz Felipe Pondé: Diante desse cenário, dessa crise política do governo do PT, algumas pessoas já fizeram muitas críticas a certas camadas do clero da Igreja Católica nos últimos anos no Brasil, na América Latina, de se envolverem demasiadamente com a chamada política secular, com a política profissional. Isso que está acontecendo com o governo do PT não seria, de alguma forma, um prato cheio para aqueles ditos conservadores? E eles falariam coisas do tipo: "está vendo aí como a Igreja não deve se alinhar de forma muito evidente com nenhuma linha de política secular, porque o trabalho da Igreja não é se meter com plataformas de partidos específicos"? Não seria essa crise que a gente está vivendo, um objeto que poderia ser utilizado por correntes ditas conservadoras da Igreja, contra esse alinhamento, que durante muito tempo a gente esteve acostumado a pensar, a Igreja Católica, a comunidade eclesial de base, PT, Lula no governo e agora esse escândalo todo?

Dom Cláudio Hummes: Sua reflexão tem sentido, tem sentido, claro. Mas eu acho que nós devemos ver isso acabar, para que seja esclarecido. Que haja gente que vai dizer: "olha está aí",  "viu no que deu", enfim, mas a Igreja como um todo, e isso vem da orientação da Igreja, no sentido mundial, partir do Papa João Paulo II, e isso certamente será a posição de Bento XVI [cardeal Joseph Ratzinger, eleito para suceder ao Papa João Paulo II no conclave de 2005], que a Igreja deve viver a história, ela não pode viver paralela à história, muito menos contra a história, ignorando-a. Ela tem que se inserir, ela tem que ser inserida nessa história e ela tem responsabilidades conjuntas com todas as outras instituições que tem a ver com o bem comum, que tem a ver com o povo, que tem a ver com a paz mundial, tudo isso. A Igreja tem necessidade, ela deve, ela precisa estar ali, inserida na história. Isso vem desde a vida, na verdade. Quando a gente vai ver, por exemplo, os pontos centrais do judaísmo, por exemplo, o ponto central do judaísmo foi Deus libertando o povo hebreu da escravidão do Egito, quer dizer, Deus se coloca dentro da história ali, e protege esse povo. Depois, nós cristão vemos Jesus Cristo [que] é o próprio filho de Deus que se fez homem e entrou na história, portanto, faz parte da história, [foi] morto dentro dessa história. Então, tudo isso nos mostra que a Igreja deve permanecer, apesar dos riscos, às vezes, de se tornar por demais envolvida e, talvez, de repente, devendo também fazer as suas reflexões e retomar os caminhos. Mas isso faz parte da história da Igreja, a Igreja também nunca vai ser perfeita nisso, porque ela também é humana. Então, tudo isso vai humanamente... E por isso é possível criticá-la de vez em quando, e ela deve aceitar a crítica quando está por demais envolvida, ou está por de menos envolvida, como dizia [o apóstolo] Paulo no começo, que parece que deveríamos ter falado alguma coisa a mais, se manifestado mais nessa crise. Ou, então, estamos falando demais, enfim. Então, a Igreja deve se sujeitar a essa crítica e deve assumir isso muito seriamente para, de fato, de novo, se reposicionar segundo os grandes ideais.

Luiz Felipe Pondé: A perplexidade pode vir do fato, justamente, da Igreja dos últimos anos ter estado demasiadamente perto do governo, e acreditar, especialmente, na proposta do governo.

Dom Cláudio Hummes: Sim, houve muitos posicionamentos... Por exemplo, se dizia que a Igreja estava muito dentro do social e do político, décadas atrás, então houve um afastamento de muitos católicos. O que depois não se verificou objetivamente, quer dizer, cientificamente, a própria ciência social pode dizer isso... que isso não ocorreu na verdade, porque, às vezes, algumas regiões de dioceses que não tinham muito esse envolvimento sofreram, igualmente, uma evasão de católicos. Então, essas reflexões são sempre [feitas]... a distância histórica nos ajuda a ser mais objetivos, de repente. Nos ajuda a ter uma visão mais...

Vicente Adorno: Não teria sido uma fatalidade histórica? Porque, na época da ditadura militar – ou das ditaduras militares – que havia na América Latina, a Igreja Católica era uma das poucas instituições que ainda se mantinham sólidas, tinha a confiança do povo e, por isso mesmo, desempenhou um papel tão importante até na redemocratização. Mas, agora, a Igreja pode ser vista como uma aliada do governo, e que esse governo pode ruir, isso aí também não contribuiria, digamos, para uma depreciação da Igreja, do papel dela?

Dom Cláudio Hummes: E nós sempre quisemos evitar isso. Todos os documentos, reflexões do passado, já pela relação da Igreja com o PT, uma vez que o PT nasceu lá no ABC, dentre aquela situação de greve que a Igreja estava muito junto. Depois, das comunidades de base, tudo aquilo. E nós sempre lutamos contra partidos católicos, porque a Igreja não deveria apoiar um partido, porque nós já tínhamos visto isso na história tantas vezes e não dá certo. Porque acabava também assumindo responsabilidades junto, mas eu acho que a Igreja mantém isso fortemente na sua consciência. Agora, o que de fato no dia a dia ocorre, aí sim, muitas vezes nós temos que nos corrigir, ou estar perto demais ou estar longe demais. Mas essa é a dialética da existência concreta do dia a dia; o importante é que a Igreja tenha consciência que ela não deve apoiar um partido e não deve, digamos assim, envolver-se com o governo, institucionalmente...

João Batista Natali: Me permite, por favor, fazer uma pequena síntese em relação a essas duas últimas perguntas, que talvez seja também uma pergunta de muitos telespectadores. Existe a possibilidade de essa crise empurrar a Igreja para a direita? Seria essa, digamos...

Dom Cláudio Hummes: Não, não. A Igreja está mais sólida a respeito disso. Eu acho que a Igreja, de fato – repito – ela realmente não esperava isto. Embora tudo humanamente seja possível, sempre se pode esperar, mas ela não esperava isso, dessa forma. Realmente, está havendo uma denúncia muito grande, a situação não está boa, não está bem. Porque não são mais apenas algumas coisas pontuais, mas acaba nos dando uma impressão que está envolvido um conjunto de coisas do governo, do partido.

Paulo Markun: Dom Cláudio, nós vamos fazer um intervalo [...] E, nós voltamos dentro de instantes com o Roda Viva, que hoje tem na platéia: Maria Angélica, assessora de imprensa; Blanches de Paula, professora da área de aconselhamento pastoral; Francisco Nunes, professor de filosofia da Faculdade Cásper Líbero; e, frei Diogo Luiz Fluip, diretor da revista Mensageiros de São Antônio. Nós voltamos já.

[intervalo]

[Comentarista]: Dom Cláudio Hummes foi um dos quatro brasileiros a participarem da eleição do novo Papa Bento XVI. Apontado até pela imprensa estrangeira como o favorito na sucessão de João Paulo II, Dom Cláudio nunca quis comentar o assunto. Esperou a fumaça branca da Capela Sistina [sede histórica do conclave, reunião para escolha do novo Papa, quando, sob os famosos afrescos do Juízo Final de Michelangelo, grande pintor do Renascimento, os cardeais de várias regiões do mundo decidem quem será o novo líder da Igreja Católica e emitem uma fumaça branca quando a decisão se concretiza] e só então falou. Disse que o eleito, o cardeal Joseph Ratzinger, sempre pareceu favorito, porque era o mais preparado para ser Papa. Mas a escolha de Ratzinger surpreendeu muita gente, até mesmo na Igreja Católica. Joseph Ratzinger, com 78 anos, era considerado idoso demais e não se acreditava na opção dos cardeais por alguém, supostamente, tão conservador. Ratzinger dirigia a Congregação para a Doutrina da Fé, órgão do Vaticano que substituiu o Tribunal da Inquisição [Tribunal do Santo Ofício]. E sempre adotou posições que contrariaram a ala progressista da Igreja. Por isso deixou a impressão de que o novo papado, apesar de ser conduzido por um teólogo competente, também seria marcado da ortodoxia católica.

Paulo Markun: Dom Cláudio, a eleição do Papa Bento XVI mostrou que não sou só eu que não entende de Igreja. A grande maioria dos analistas que eu li no Brasil e no exterior erraram redondamente. E, ao que tudo indica, pelos primeiros movimentos do novo Papa, estão errando também no que toca ao seu perfil. O senhor foi muito comedido nas declarações que deu antes da eleição. Mas agora que o Papa está eleito, eu queria saber como o senhor enxergava esse processo? E se é isso mesmo, no mundo civil não tem ninguém que entende de Igreja?

Dom Cláudio Hummes: Isso seria exagerado, porque a Igreja está muito... A Igreja está aí, todos acompanhamos e, obviamente, a eleição de um Papa tem muitos ingredientes que escapam um pouco, sim.

Paulo Markun: Por exemplo?

Dom Cláudio Hummes: Por exemplo, o próprio fato de que Deus... Nós, na nossa fé, cremos que Deus dirige, Deus orienta, apesar de ser através das mediações humanas. É aí que está o mistério um pouco difícil de que já falava Santo Agostinho, do livre-arbítrio ao lado do soberano domínio de Deus, enfim, como isso se combina. Mas nós cremos realmente que há uma ação do espírito santo dentro desse processo. Mas isso não tira em absolutamente nada a liberdade humana. Acontece, por exemplo, vou lhe dar um detalhe que nós todos conhecemos, no momento em que se vota, em que se coloca o voto na urna: cada um de nós, em voz alta, diz que ele, diante de Deus, que vai julgá-lo, diante de Jesus Cristo que vai julgá-lo, e nós estamos diante daquele quadro do Juízo Final da Capela Sistina, se diz isso: "diante de Jesus que vai me julgar, eu voto naquele que eu acho que deve ser votado".

Paulo Markun: Mas há um mecanismo que conduz para o consenso, não é um turno só?

Dom Cláudio Hummes: Claro. Por isso que eu digo, o processo ocorre humanamente. Não há milagre, tudo corre muito humanamente. Pelo que se vê, fazemos discussões antes, existem discussões, existem pessoas que vão sendo, obviamente, apresentadas um ao outro como possível candidato, tudo isso. Não existe candidatura, não existem candidatos oficiais. Há todo um movimento, há um movimento natural entre as pessoas, isso, de fato, existe sim. E disso surge, aos poucos, também, o que a gente chama de mediação humana.

Ricardo Kotscho: Dom Cláudio, só entre nós, um segredo. O senhor, quando saiu o resultado do novo Papa, o senhor ficou triste, ou se sentiu aliviado por não ter sido escolhido o novo Papa? Fala só para nós.

Dom Cláudio Hummes: Essas coisas íntimas é complicado, não? A gente não está aqui em um confessionário. Eu me sinto muito feliz com o Papa que nós temos e com todo o processo que houve nesse período. E eu creio que também, cada vez mais, todos nós vamos nos sentindo felizes com esse Papa foi escolhido. Ainda que, por enquanto... Ele apenas tem feito coisas muito simples. Na verdade, ele conquistou o povo, ele faz pequenos discursos, pequenos pronunciamentos, mas a gente ainda está esperando coisas maiores que vão sacudir um pouco mais.

Luiz Felipe Pondé: Dom Cláudio, sobre essas coisas que vão sacudir as análises e tal, normalmente, se falou muito quando o Ratzinger foi eleito, que havia uma vitória da corrente reacionária e conservadora da Igreja. E a gente acompanhou na mídia, a questão, na Itália, com relação ao casamento dos homossexuais. Então, eu acho que muita gente gostaria de perguntar para o senhor, para a Igreja em geral. O senhor como representante, afinal de contas a Igreja é contra ou não o amor entre homossexuais? Qual é a posição em relação a essa questão? Como a gente poderia pensar isso?

Dom Cláudio Hummes: Eu sempre acho que todas essas coisas, nós devemos nos perguntar, em primeiro lugar: quais são os valores que a Igreja defende? Não se trata em ser a favor ou contra, porque isso seria muito arbitrário. A Igreja, já por sua história, por sua experiência, mas por toda a sua natureza também transcendente, como nós cremos que seja, ela não poderia ser arbitrária, como Deus não é arbitrário. Deus não proíbe ou comanda alguma coisa, só por pura arbitrariedade, mas porque há valores em jogo. Então, ali deveria se perguntar: “quais são os valores que estão em jogo? O que se está querendo preservar, quando ela faz esse tipo de pronunciamento ético e moral?” Toda a moral, quando ela se torna um condenamento, ou uma proibição, ela deve ter razões fortes, positivas. Porque uma ética, uma moral, sozinha ela não se sustenta. Seria uma arbitrariedade, uma imposição. E aí nós, com razão, deveríamos sacudir. Quer dizer, nós não poderíamos aceitar isso. E, sobretudo, homens e mulheres modernos não podem aceitar isso; é a modernidade que deu tanto realce à subjetividade, autonomia, liberdade, a liberdade de consciência. E a Igreja, ela assina tudo isso. Mas quando existem valores em jogo que, segundo a Igreja, poderiam estar sendo ameaçados ou feridos por certos comportamentos e atitudes, ali ela tem que entrar e dizer: "olha, meu caro, se você acredita nesse valor, você deve ter cuidado para não prejudicá-lo, para não feri-lo, não destruí-lo".

Paulo Markun: Qual é o valor ameaçado?

Dom Cláudio Hummes: Então, qual é o valor que está ali? O que a Igreja, muitas vezes, tem revelado, não a questão da dignidade humana, dos direitos humanos, iguais e para todos, e, portanto, para homossexuais, essa liberdade, esses direitos são iguais para todos, e, portanto, tem que ser defendidos. E o que a Igreja tem dito, muitas vezes a respeito, em primeiro lugar, da prática, não da tendência homossexual, mas da prática homossexual, que segundo a Igreja feriria a castidade. E, depois, a questão do casamento, entre homossexuais, seria algo que feriria o valor da família. Uma vez que a família, nós a conhecemos como sendo um homem e uma mulher, que se casam para ter filhos. Tem filhos, quer dizer, a família se forma assim. Isso que é uma família como nós aprendemos. A Igreja defende essa família.

Luiz Felipe Pondé: Uma perversão da função do amor, de certa forma?

Dom Cláudio Hummes: A palavra... Tem que cuidar com a palavra, porque com a palavra você poderia estar dizendo que as pessoas são perversas...

Luiz Felipe Pondé: Não no sentido republicano, sobre o desvio só, a função.

Dom Cláudio Hummes: Por isso você tem que tomar cuidado com a palavra. Eu acho que uma coisa é: qual o valor que se está ali? Outra coisa são as pessoas, as pessoas são absolutamente dignas e iguais a todas e devem ser assim defendidas. Agora, cada uma é responsável... Cada um de nós é responsável, quer seja no casamento, seja na vida de celibatários, que somos nós, por exemplo, os pastores, os padres, enfim. Nós devemos manter esse valor que a gente chama de castidade. Existe uma castidade entre os casais, existe uma castidade também, obviamente, para os religiosos, para os celibatários. É disso que nós falamos, quando nós falamos desse valor de praticar o homossexualismo, a prática. É isso que a Igreja tem muitos problemas de poder aprovar. Ela entende que ela não pode aprovar.

Laura Greenhalgh: O que o senhor chama de praticar o homossexualismo? Parece que o senhor faz uma distinção aí, uma coisa seria a homossexualidade, outra coisa seria a prática da homossexualidade. O que o senhor chama de prática? Eu não estou entendendo... A pessoa pode ser um homossexual sem a prática? É isso que o senhor quer dizer?

Dom Cláudio Hummes: Sim, sim.

Laura Greenhalgh: Como a Igreja lida com isso?

Dom Cláudio Hummes: Eu sei é como todos nós lidamos, quer dizer, como a sociedade lida com isso, como é que as pessoas lidam com a sua própria sexualidade. Nós podemos ter atitudes na nossa vida sexual que não se pode aprovar, claro. É possível que exista isso. É possível que exista. A própria opressão da mulher, sexualmente, é um abuso da sexualidade masculina. Então existe, de fato, isso. A prática homossexual não é de se contar aqui e descrever, mas todos nós sabemos o que são atos homossexuais, enfim, é isso que a Igreja tem muito problema sobre isso. Porque a própria moral nos diz isso, que isso é contra a lei de Deus, então, na verdade, acho que cada um com a sua sexualidade deverá saber comportar-se, digamos assim, viver a sua sexualidade eticamente. É isso que a Igreja propõe, a Igreja não condena as pessoas e muito menos... Se fosse uma coisa que não fosse, digamos assim, que tornasse as pessoas diferentes...

Paulo Markun: Pode haver um celibato homossexual. Aí sim.

Dom Cláudio Hummes: Pode, pode. A virtude da castidade pode ser praticada por homossexuais, como tem que ser praticada por todos nós.

Ricardo Kotscho: Uma coisa que muita gente não entende na Igreja Católica hoje, principalmente os jovens, é a proibição da camisinha, é um assunto bem terreno, interessa a muita gente. Quer dizer, de um lado, existem as campanhas médicas, que propõe o uso da camisinha para evitar a aids, que é um mal da humanidade, hoje. Do outro lado, a Igreja Católica condena a utilização do preservativo. Como o senhor explica isso para o leigo? Principalmente para os jovens...

Dom Cláudio Hummes: Se eu posso pedir-lhe, por favor, eu estava ainda naquela reflexão anterior...

Ricardo Kotscho: Os médicos, as campanhas de saúde pública, pedem que se use camisinha para evitar aids. E, por outro lado, a Igreja Católica condena o uso de preservativo. Essa contradição, principalmente para os mais jovens, como o senhor... O que o senhor poderia dizer para ajudar as pessoas a entender isso?

Dom Cláudio Hummes: Mais uma vez voltando ao que a Igreja quer preservar, na verdade. Porque seria a pior coisa que a Igreja fosse arbitrária, seria a pior coisa...

Paulo Markun: Mas ela é, quando proíbe.

Dom Cláudio Hummes: Ela não é. Exatamente porque ela preserva, ela pretende preservar um valor. Ela entende como valor...

Vicente Adorno: Mas um valor dentro da moral católica. Não?

Dom Cláudio Hummes: Sim, exatamente. Claro, obviamente isso. A Igreja Católica defende a vida, a transmissão da vida pelo ato sexual, isso que ela defende. Sobretudo, defende a vida, portanto, que deve ocorrer em todo ato conjugado, digamos assim, deve estar aberto à vida.

Vicente Adorno: Mas defender a vida não seria também defender as pessoas de uma contaminação? Por exemplo, na África [a aids] está matando milhões e milhões...

Dom Cláudio Hummes [interrompendo]: Claro, aí vem outro aspecto. Vem outro aspecto ali. Obviamente que é um assunto extremamente difícil, eu digo, é um assunto extremamente difícil. E se a Igreja diz que, no combate à aids, não se deveria usar camisinha como um dos instrumentos de combater a transmissão da aids [é porque] ela não está dizendo simplesmente para proibir alguma coisa. Mas ela está muito preocupada com aquilo que a gente poderia dizer: "bom, o importante é fazer sexo seguro", então todo tipo de atividade sexual é possível, contando que se faça sexo seguro. E dizer isso parece à Igreja ser demais. A Igreja acha isso demais. Isso já não é mais ético, eu dizer que o que importa é o sexo seguro, o resto todo é possível e é permitido. A Igreja não vai tão longe, e é por isso que ela diz: “não é esse o caminho. Existem muitas outras formas de evitar o contágio”. Embora sejam mais complicadas. Eu reconheço que é muito mais complicado, hoje, na sociedade muito transgressiva, e muito permissiva, transgressiva, onde até a permissividade é muitas vezes aplaudida. Então, se torna muito difícil para os jovens, sobretudo. Pois aí é que está o drama, quer dizer, aquilo que a Igreja... A Igreja sabe que ela tem responsabilidades históricas. Ela não pode errar assim e mais adiante lá dizer: “infelizmente erramos”. Ela tem uma história toda; é uma Igreja muito, ela é muito prudente, porque ela não pode errar nessas coisas.

Paulo Markun: Mas a proibição da Igreja, Dom Cláudio, ela ajuda ou dificulta a distribuição do preservativo? Isso quem me disse, entre outros, além de padres que trabalham em organizações não-governamentais [que] ouvem da própria Igreja ligada à luta contra a aids, também médicos como Dráuzio Varella [médico oncologista. Ficou conhecido pelo livro Estação Carandiru, em que narra sua atuação na prevenção da aids no presídio Carandiru - ver entrevistas com Varella no Roda Viva]. Ela dificulta que o preservativo chegue até os jovens. Agora, o discurso que a Igreja faz em busca da castidade, do sexo apenas dentro do casamento, não chega a ser a prática. E aí só funciona metade, só funciona o lado ruim da história.

Dom Cláudio Hummes: O valor da vida...

Cristiane Segatto: A Igreja vem perdendo influência na vida privada dos cidadãos, não é? Por tudo isso, quer dizer, não pode usar camisinha, não pode tomar pílula, não pode uma série de coisas. E, com isso, eu acredito que é uma das razões para a perda de fiéis. Qual é a saída para Igreja, seria flexibilizar esse discurso e se modernizar?

Dom Cláudio Hummes: Você toca em um assunto importante, e a mim me interessa essa deixa que você... Você diz “ela deve se modernizar. Ela deve discutir as coisas”. E eu concordo que ela deve discutir as coisas. E ela sempre terá que discutir. Ela deve estar sempre aberta ao diálogo, aprofundar esses assuntos. E por isso é muito difícil para a Igreja, porque ela tem valores que ela não pode perder, porque ela é a depositária, por assim dizer, a partir de Jesus Cristo, é a depositária de certos valores que nós não podemos perder e que nós achamos que são valores humanos, não são apenas valores transcendentes, são valores humanos. E, portanto, a Igreja não pode perder esses valores. Mas ela deve estar sempre aberta a um diálogo, um diálogo para retomar os assuntos, aprofundar os assuntos. Buscar, de fato, clareza humana, não apenas clareza revelada e transcendente. Clareza humana sobre tudo isso. E as ciências humanas têm, de fato, entrou em todas essas matérias, isso nós sabemos, explorou isso, começou já com a psicologia. Mas, hoje em dia, há tantas outras ciências humanas que exploram, que procuram entender seriamente... As ciências humanas procuram seriamente encontrar a verdade dessas coisas. E a Igreja deve estar aberta a isso aí, tem que estar aberta e dialogar profissionalmente sobre todos esses assuntos. E a Igreja nunca poderá ser contra a ciência, quando alguma coisa se mostra objetivamente como certa. Em termos científicos, a Igreja não pode ser e nem é contra. Como dois e dois são quatro, como seria contra que dois mais dois são quatro.

Cristiane Segatto: Mas você concorda que muitos desses preceitos são impraticáveis nos dias de hoje? Por exemplo, não usar camisinha, não tomar pílula anticoncepcional, isso é impraticável...

Dom Cláudio Hummes: Exato, mas todos esses aqui são aspectos novos da vida humana de hoje, porque a ciência, de fato, progrediu muito, a tecnologia progrediu muito, e, portanto, a Igreja tem ali diante dela um grande terreno ainda de estudo, e de estudo compartilhado com os cientistas acerca disso. E deve ser compartilhado, deve ter um diálogo honesto, não a polêmica. Mas o diálogo, dizer: "Você não tem razão, eu fico na minha, etc.". Não, a polêmica não conduz muito, a polêmica pode ser só no momento em que, de fato, é impossível se criar um diálogo. Então você diz: "não, eu não concordo com você e ponto final". Eu acho que o diálogo tem que ser sério dos dois lados, sério no sentido de responsável, tem que querer realmente encontrar a verdade juntos. Querer encontrar a verdade, a verdade científica eu estou dizendo. E essa verdade científica, a Igreja nunca vai negar.

João Batista Natali: Perdoe-me, mas o Papa Bento XVI [é] considerado como alguém que praticou ingerência na política interna italiana, quando ele interferiu nesse último plebiscito relativo ao uso das células-tronco. Os cientistas têm uma posição com relação às células-tronco e a Igreja tem outra. O senhor defende sempre o diálogo, [mas] o Papa, aparentemente, adotou uma posição dogmática em relação àquilo que a Igreja pensava, antes de qualquer diálogo com os cientistas, mas com os cientistas da própria sociedade. Isso, então, tem uma espécie de direcionamento conservador do pontificado de Bento XVI, que para alguns está sendo um pouco problemático, está sendo um pouquinho decepcionante. Ou seja, não se dialogou com os cientistas. Simplesmente se adotou aquilo.

Paulo Markun: Nós vamos falar desse tema logo depois do intervalo [...] nós voltamos já, já com o Roda Viva, que é acompanhado na platéia de hoje por: Margarida Ribeiro, professora da cátedra Otília Chaves de teologia feminista; padre Juarez Pedro de Castro; e, Fabiana Tust, estudante de jornalismo. A gente volta já, já.

[intervalo]

[Comentarista]: Dom Cláudio Hummes é um especialista em questões da família, uma razão a mais para o cardeal defender a posição tradicional da Igreja, não só contra a união homossexual, como também contra a eutanásia, o aborto e o uso de anticoncepcionais. Em livros e artigos que já escreveu, o cardeal tem falado em uma abertura do diálogo da Igreja Católica com a comunidade, com outras religiões e com a ciência, em especial, com a biotecnologia. E é exatamente nas novas fronteiras da biologia que estão as mais recentes polêmicas entre religião e ciência. O microscópio, que facilitou a manipulação genética, também deu visibilidade à controvérsia em torno das células-tronco embrionárias. Por entender que a vida começa no momento da fecundação do óvulo, a Igreja Católica tem se colocado contra essas pesquisas, por implicarem na destruição do embrião. A questão que também não está bem resolvida entre os próprios cientistas, promete ainda muita discussão, e pode tornar bastante complicado o pretendido diálogo entre religião e ciência.

Paulo Markun: Dom Cláudio, a questão que o Natali colocou no bloco anterior, eu acho que se insere em um tema que é um tema que a gente imagina discutir neste bloco do programa, que é justamente a relação entre a Igreja e a ciência. As declarações que o senhor fez, já nesse programa, de que a Igreja não poderá ir contra a ciência, há muitos cientistas que pensam o contrário, que acha que ela vai contra o desenvolvimento científico, quando, por exemplo, na questão das células-tronco, se manifesta contrariamente a essa possibilidade em função de um dogma, de que a vida começa quando o espermatozóide encontra com o óvulo. Como o senhor explica isso?

Dom Cláudio Hummes: Veja, Paulo, especificamente falando da questão das células-tronco embrionárias, a Igreja já se manifestou tantas vezes contrária ao uso em laboratório desses embriões para se chegar a essas células, por quê? Porque ela adota essa posição de que a vida humana começa com a concepção. Isso ela não faz levianamente, não faz isso porque acha que isso é bonito. Ela está baseada também em cientistas sérios que dizem isso. Hoje, a ciência não tem certeza sobre isso. A ciência não tem certeza sobre quando começa realmente a vida humana, o que começa nela, ela não tem. Há muitas posições diversas no campo científico sobre essa questão. A Igreja defende, digo apoiado por muitos cientistas sérios, que a vida começa na concepção. E isso está até, é importante, de volta, que a responsabilidade da Igreja é histórica, a responsabilidade histórica. A Igreja, ela defende ali também o caminho mais seguro. E por que ela deve defender o caminho mais seguro de você defender o embrião desde a concepção? Porque ali se trata de vida humana, e todos nós estamos de acordo que não podemos eliminar uma vida humana...

Paulo Markun: Mesmo que essa vida humana esteja congelada num laboratório à espera de algo que não vai acontecer?

Dom Cláudio Hummes: Sim. Estou dizendo... a Igreja defende a via mais segura, porque se trata de vidas humanas. Vou te dar um exemplo muito simples: dois caçadores vão caçar. E eles se separam, um vai mais adiante e o outro fica aqui em tocaia etc. De repente, esse que está aqui vê se mover ali na moita. Se ele tem dúvida se o companheiro dele está ali ou um animal, ele não pode atirar. Agora, se ele tem certeza que é um animal, ele atira. Mas se ele não tem certeza, ele não pode atirar, porque ele poderia matar o seu companheiro. Quer dizer, esse é o caminho mais seguro, quando se trata de vida humana. Digo: proteger a vida humana pelo caminho mais seguro. E repito: a Igreja não faz isso apenas por esse motivo da via mais segura, mas também o faz porque muitos cientistas concordam com ela, que, de fato, a vida humana começa na concepção. Agora, se um dia a ciência provasse que a vida humana não começa ali, obviamente, ela não continuaria a defender.

Paulo Markun: A discussão sobre o que é vida humana é um pouco mais subjetiva do que meramente científica.

Dom Cláudio Hummes: Mas ela é objetiva. A vida humana é uma coisa objetiva, não é uma idéia subjetiva. A vida humana é uma coisa objetiva. Claro, assim como qualquer semente de uma árvore, você diz que essa semente tem vida, e porque vai dizer que nessa semente não tem vida? Tem em potência uma vida desenvolvida, mas já tem vida.

Paulo Markun: Por conseqüência, a Igreja tem que ser contrária, por exemplo, à fertilização in vitro, certo? Porque à medida que se produz dois ou três ovos e só se utiliza um, [ela] tem que ser contra.

Laura Greenhalgh: Essa questão das células-tronco, quer dizer, eu acompanho isso de perto no meu dia-a-dia profissional, mas o que a gente vê é que há um recrudescimento das posições, quer dizer, o diálogo não tem sido muito facilitado. Quer dizer, a Igreja mantém uma posição monolítica, e não arreda pé da sua posição, os cientistas, por sua vez, encontram quase que uma parede, enfim, o diálogo não está sendo muito fácil. Agora, a questão das células-tronco, das... digamos das biotecnologias, também estão relacionadas com questões ligadas à reprodução humana. Enfim, isso, por sua vez, leva a questões ligadas à sexualidade. Ou seja, é um vasto terreno da reprodução humana que parece que a Igreja quer conservar, digamos assim, um certo monopólio, quer dar a última palavra em relação a isso. Esse monopólio sob Bento XVI, isso tende a ser mais, assim, irremovível ainda mais, quer dizer, as visões vão se tornar mais estreitas, ou mais arraigadas, como o senhor vê?

Dom Cláudio Hummes: Só não compartilharia com essa qualificação de monopólio. Porque a Igreja quer estar a serviço, na verdade, deve estar a serviço da humanidade, do bem comum, das pessoas e de toda a sociedade. Ela não poderia simplesmente manter uma posição por mera força, porque ela tem influência, porque ela quer ter influência, não. Acho que a Igreja não vai fazer isso.

Laura Greenhalgh: Até porque não dá também Dom Cláudio, hoje as outras religiões estão...

Dom Cláudio Hummes: O pluralismo religioso. Existe a pluralidade, existe o pluralismo, existe a pluralidade, existe, enfim, tudo isso que hoje forma a sociedade humana que se tornou muito mais complicada, mais complexa, mas também mais responsável, diria. Porque hoje, de fato, as pessoas têm que ser responsáveis diante de uma pluralidade de possibilidades. Agora, sua pergunta era a seguinte, se com Bento XVI isso vai continuar mais rígido... Digo que é cedo para se definir o perfil de Bento XVI. Não se deveria simplesmente fazer o seu perfil [pelo] tempo que ele era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, porque lá ele tinha uma função específica, muito difícil até, muito desgastante para ele ter que defender e constantemente averiguar onde há posições que não se enquadram mais com a doutrina católica. Então, esse era um ofício muito complicado, muito difícil, que desgasta a pessoa. Hoje...

Padre Cido Pereira: Dom Cláudio, hoje costumo dizer que ele era chefe do departamento pessoal, e agora ele é o diretor da empresa.

João Batista Natali: Você acha que ele tomaria iniciativa no papado dele? Você disse, agora há pouco, que ainda está no começo, ele tomaria iniciativa de abrir a Igreja para esse debate?

Dom Cláudio Hummes: Conhecendo a pessoa dele, porque ele é um grande intelectual também, além de todas as qualidades que ele tem. Ele é realmente um intelectual e muito bem consolidado, e tem visão das coisas; ele não é simplesmente, digamos assim, um dogmático sem base, sem crítica e sem autocrítica. Ele é um homem muito consciente e responsável por aquilo que diz. E, por isso,  tenho muita esperança de que realmente se abra mais esse diálogo. De fato, já existe diálogo com a ciência, existe uma academia das ciências também no Vaticano. Existe uma academia das ciências sociais...

João Batista Natali [interropendo]: Perdoe Dom Cláudio... Por favor. Esse pessoal, se for para utilizar a terminologia sindical, não são cientistas, são pelegos [originalmente uma espécie de manta confortável usada nas cavalgadas, o termo passou a ser usado com um sentido depreciativo para designar lideranças sindicais vinculadas, de alguma forma, aos interesses dos patrões ou chefes] da Igreja. Me perdoe ser tão agressivo assim. Vamos discutir com o prêmio Nobel...

Dom Cláudio Hummes: Eu só diria o seguinte: acho que esses grupos têm que ser multiplicados pelo mundo afora, é isso que acho. Deveriam se multiplicar pelo mundo afora grupos assim, que realmente, com responsabilidade, com qualidade profissional, científica, de fato sentassem juntos e dialogassem de verdade, não para polemizar mais, dialogar, quer dizer, buscar seriamente a verdade. Porque aqui se trata – repito – das questões da humanidade, se trata do futuro da humanidade. Nesse sentido, espero que isso possa acontecer. Porque ele é um homem que, realmente, navega bem dentro desse mar científico de idéias, etc. Por que ele fala do relativismo? Porque na verdade, isso é o chão dele, a discussão das idéias, a discussão das filosofias, enfim... Então, na medida em que, independentemente se houver diálogo, ou não, na medida em que a ciência chega a resultados definitivos, mas isso é muito difícil, porque muitas vezes, depois, eles são derrubados lá adiante...

Paulo Markun [interrompendo]: Mas em uma sociedade que ainda mantém o criacionismo.

Dom Cláudio Hummes: ...Mas os resultados objetivos e definitivos, a Igreja não quis ser contra, nem nunca quis ser contra, nem deve ser contra, não pode ser contra. Porque a verdade é uma só. A Igreja nunca poderia dizer: "não, mas acho que são quatro, não sei o quê", não pode dizer. Jamais poderia ser contra conclusões definitivas da ciência. E nem quer ser isso. [movimento criacionista]

Laura Greenhalgh: O senhor esteve com Bento XVI recentemente?

Dom Cláudio Hummes: Estive com ele no dia 19 de junho.

Laura Greenhalgh: Você pode contar só para nós o que...

Dom Cláudio Hummes: Em poucas palavras, foi muito cordial... Porque o conheço, sou membro dessa Congregação para a Doutrina da Fé, além de outras nove...

Laura Greenhalgh: Nove? E vai dar conta de tudo?

[risos]

Dom Cláudio Hummes: Bom, a gente vai dando a sua colaboração possível. E, portanto, eu o conheço de perto. Ele está muito sereno, está muito...

Paulo Markun: Feliz.

Dom Cláudio Hummes: Sim, feliz. Feliz também. E a gente vê que ele saiu daquela tensão inicial, que o povo o acolhe muito bem... Falamos muito sobre o Brasil, sobre a América Latina, falamos sobre os avanços das seitas, falamos sobre como a Igreja deve estar presente aqui no Brasil, na América Latina, no mundo todo, todas essas questões foram levantadas e, enfim, se falou de tudo isso, além de outras coisas sensíveis dele.

João Batista Natali: Dom Cláudio, o senhor falou com ele a respeito da beatificação de João Paulo II? Aparentemente, a Igreja está tentando empurrar isso para apressar como se fosse, digamos, apenas para homenagear o Papa que morreu, ele merece, mas para fazer com que o ideário dele, um pouquinho mais conservador, consiga permear o comportamento da cúria romana durante todo o processo de beatificação. E o Papa está sendo, aparentemente, muito afoito nisso, não é verdade? O direito canônico manda esperar cinco anos depois que o outro Papa morreu, antes de começar o processo de beatificação. Esse daqui não, ele está querendo acelerar, e agora, está empurrando todo mundo. O senhor, pessoalmente, concorda com a beatificação apressada de João Paulo II?

Dom Cláudio Hummes: Acho que a norma de cinco anos é uma norma muito sábia.

João Batista Natali: O Papa não está sendo sábio, então?

Dom Cláudio Hummes: Sim, é muito sábia essa norma de esperar cinco anos, porque se cria aquela distância histórica que a gente falava, não está emotivo, não está mais envolvido tanto assim às impressões dos momentos, e os envolvimentos do momento já foram superados. Mas como toda norma tem exceções, também, o próprio João Paulo II fez alguma exceção no tempo dele, diante da manifestação que houve no dia dos funerais do Papa, e depois posteriores a isso, de fato, Bento XVI achou por bem abrir já o processo de beatificação. Mas ninguém vai dizer... Ninguém sabe quando vai se encerrar esse processo, pode levar anos e anos. E, nesse sentido, a Igreja é muito criteriosa, ela é muito prudente. Aquela congregação que cuida dessa questão... Toda questão de milagres, enfim, tudo isso, é uma questão muito séria para a Igreja, onde, de fato, é criteriosa. Tem claro muitos critérios, porque quem não acredita em milagre vai dizer que isso não tem muito sentido, mas quem acredita em milagre, ele sabe que esses são critérios muito sérios. E a Igreja é muito rigorosa para aceitar que algum fato extraordinário seja milagre, porque ele deve ser um fato que não é explicável por nenhuma ciência ou sei lá, inteligência humana, é inexplicável isso. Então, ali, se está diante de algo que ultrapassa a nossa inteligência. Então, nesse sentido, não é tão simples beatificar alguém, precisa ter um milagre, um milagre verdadeiramente comprovado. Precisa, de fato, um milagre, senão, não se avança nesse processo. Então, pode levar muitos anos também. Espero que não, mas em todo caso...

Luiz Felipe Pondé: Um pouco a ver com isso, queria fazer um comentário. Outro dia em um jantar entre amigos, um amigo falou a seguinte frase, mais ou menos essa: "Na nossa época, o único preconceito politicamente correto que uma pessoa razoavelmente inteligente poderia ter era contra a Igreja Católica". Quer dizer, a gente combate toda uma série de preconceitos com uma série de menções da sociedade e tal. Mas, as análises com relação à Igreja Católica, são análises muitas vezes rápidas e a crítica é muito rápida e a gente consegue, facilmente, pensando um pouco à la [Sigmund] Freud [(1856-1939) fundador da psicanálise], colocar a Igreja Católica no lugar do pai, no nosso caso brasileiro. O que o senhor pensa disso? Acha que isso existe da nossa parte, do mundo intelectual, fora da Igreja Católica, não religioso, que a gente possa fazer juízos e ter posições, e às vezes resvalar para determinado senso comum em relação às questões da Igreja? Um pouco na linha que o Markun falava, eu acho que foi ele que falou, como se no mundo civil ninguém entendesse de Igreja. Então, nesse sentido - mesmo nós não entendemos muito de Igreja - a gente teria sempre um pacote de opiniões com relação à Igreja, o que é certo, o que é errado, o que é conservador, o que é progressista...

Dom Cláudio Hummes: Professor, eu acho que isso até certo ponto é verdadeiro, quer dizer, existe também isso. Porém, acho que há muitas coisas aí a serem ditas. Primeiro lugar, a Igreja, de fato, ela tem dois mil anos. Então, ela tem toda uma história onde eu sempre posso buscar algo que eu digo: “não, isso não é possível, como é possível e não sei o quê, e tal, e tal...” E trazer isso sempre de novo para frente. Então, isso existe, porque ela tem uma longa história. Ela também tem uma história de estar muito presente na sociedade. Teve épocas, talvez, em que ela esteve por demais presente, com muito poder, enfim, a história da Igreja tem tudo isso. Porque ela faz parte de todos esses dois mil anos, não há como separá-la, não há como separá-la. E houve momentos mais críticos, não só no Brasil, mas houve aqui também, exatamente aqueles meses antes do falecimento do Papa João Paulo II, foi toda aquela discussão das ciências, daqueles projetos que estavam tramitando no Congresso, de aprovar a lei que permitisse o uso de embriões para fins científicos, a questão dos anencefálicos, enfim, havia uma série de coisas. Aí, realmente houve uma onda, que eu pensei: não era possível, todo mundo se dava o direito de dizer que a Igreja era anti-científica, que a Igreja era retrógrada, que era medieval. Todo mundo dizia com uma facilidade, assim, incrível, sem pensar. Parecia que o correto era dizer que a Igreja era contra a ciência e era retrógrada. Isso, todos nós sabemos que não é verdade. Ela pode ter problemas em um certo momento, por causa do estágio que nós estamos nessas discussões, ela pode reconhecer, ela é muito responsável, por isso ela não embarca em qualquer barco por causa dessa responsabilidade que ela tem. Porém, por outro lado também, quando se viu o que aconteceu com os funerais do Papa João Paulo II e com o conclave do novo Papa que estava aí, realmente foi uma coisa fora do comum o que a mídia conseguiu. Eu digo: “a mídia fez um trabalho fantástico, um trabalho muito grande, muito positivo”. Houve claro, às vezes, críticas mais negativas, de jogar um “pouco de lama” para cá e para lá. Mas de modo geral, ela foi muito criteriosa, ela fez suas críticas, críticas boas, ela fez seus debates, ela deu as informações e fez disso um acontecimento de vinte dias, e que o mundo estava ali. Isso também foi uma surpresa para nós, como Igreja Católica. De fato, a Igreja Católica, mesmo com as críticas que se fazem e repito, porque nós somos homens também, devemos também ser criticados, devemos levar a sério as críticas, e devemos refletir, de fato, se elas correspondem ou não. Mas ali, houve também um grande sinal que, para o mundo, a Igreja é um valor que está aí, que não se pode jogar mais fora, ou dizer: “não, não tem nada a ver mais”.

Paulo Markun: Dom Cláudio, nós vamos fazer mais um rápido intervalo no Roda Viva, que hoje é acompanhado em nossa platéia pelo: cônego Severino Martins; por Celso Sotonge, assessor da Assembléia Legislativa; por Francisco Paes de Barros, diretor da rádio Capital; e, Patrícia Marques, estudante de teologia. A gente volta, já, já.

[intervalo]

[Comentarista]: Dom Cláudio Hummes é um entusiasta do padre Marcelo Rossi, ícone do terço bizantino pela televisão, das missas campais, leva a milhões de pessoas momentos de oração e fé, numa das principais frentes do trabalho de evangelização da Igreja Católica. Preocupado com as estatísticas que mostram retração do catolicismo, o desinteresses dos jovens por religião e apenas 20% dos católicos freqüentando, de fato, a Igreja, Dom Cláudio coloca como prioritária a missão de evangelizar mais. Busca tornar a Igreja mais próxima de seus fiéis e mais presente na sociedade. Nesse sentido, valoriza os movimentos que valorizam a espiritualidade, como a renovação carismática [movimento católico surgido em meados da década de 1960, inspirado pelo movimento dos pentecostais de origem protestante, que prega maior proximidade do fiel católico com a Bíblia e contatos mais diretos e intensos com Deus, através do espírito santo]. O trabalho centrado mais na linha pastoral que procura o equilíbrio entre o espiritual e o social.

Paulo Markun: Dom Cláudio, nos seus livros que são, muitos deles digamos, compilações de artigos publicados pela imprensa, o senhor aborda dois temas basicamente: de um lado as questões humanas e terrenas da vida das pessoas, da vida da cidade, dos dramas sociais, desemprego, menores carentes, gente que mora na rua. Mas, do outro lado, a questão específica da fé, a questão direta e clara da evangelização e até, se a gente usar, digamos, uma metáfora um pouco grosseira, da concorrência. Então, eu queria falar um pouco disso: por que o senhor acha que é importante a Igreja se dedicar com muito empenho a essa questão da conquista do seu rebanho?

Dom Cláudio Hummes: Eu diria por dois motivos. Um por motivo de fé, claro. Porque nós recebemos, segundo a nossa fé, um mandato de Jesus Cristo, de levar o evangelho à humanidade, todos, não apenas a grupos. Nem nós devemos nos acomodar com grupos maiores, enfim. Mas que seja levado a todos, para que todos possam ser salvos. E João Paulo II chegou a dizer que a humanidade tem o direito de conhecer o evangelho, claro, dentro desse ponto de vista, é verdade. Se esse é o caminho, então, todos têm o direito de saber por onde vai o caminho, que lhes digam para onde vai o caminho. Quer dizer, é um direito, portanto, nesse sentido. Isso para mim é óbvio, porque eu sou um homem de fé e, portanto, eu penso que nós devemos buscar, claro, sempre, de uma forma ética, em termos de proposta e não de imposição. E hoje, mais do que nunca através do diálogo, mas também do anúncio direto - embora o próprio diálogo suponha anúncio - eu digo o que eu quero anunciar, o outro diz o que ele quer anunciar, e aí que começa o diálogo. E esse é um dos motivos. O segundo motivo, senão fica incompleto. Segundo motivo é que nós batizamos essa gente, a grande maioria do povo brasileiro, fomos nós que os batizamos.

Paulo Markun: Quer dizer, o senhor acha que tem muita gente a resgatar?

Dom Cláudio Hummes: Sim, nós temos o dever de evangelizar aqueles que nós batizamos. Eu não estou dizendo que outros não possam também procurar lhes transmitir a sua fé, mas nós temos o dever, porque no dia em que nós nos batizamos, nós assumimos esse compromisso de evangelizá-los. Então, aqueles que nós batizamos, que são a grande imensa maioria do povo brasileiro, 80, 90% que nós batizamos, nós temos o dever de ir atrás, de amar essa gente, e de lhes levar o evangelho.

[Sobreposição de vozes]

Padre Cido Pereira: Eu moro no Tucuruvi e peguei o metrô no [dia de] Corpus Christi para ir à celebração na Praça da Sé. E, junto comigo, estavam milhares de pessoas que estavam indo para a Marcha com Cristo, na Avenida Paulista [passeata organizada pela igreja evangélica Renascer em Cristo]. Então, a pergunta que se faz é: essa Igreja está preocupada com essa evasão de fiéis, não é? E o que a Igreja pensa? Primeiro, para segurar, para estancar essa hemorragia, essa evasão. E, segundo, para chamar de volta, para dizer para esses filhos: "o seu lugar à mesa está vazio".

Dom Cláudio Hummes: Sim, o senhor sabe muito bem. Nós não podemos partir para uma espécie de concorrência, desonesta, pior ainda. Ou então em uma espécie de guerra, ou de conflito com outras crenças, não. Nós, diz o Concílio do Vaticano II mais claramente ainda, nós defendemos a liberdade religiosa, todo mundo tem liberdade de pregar, de transmitir a sua fé religiosa, portanto, que eu faça através de métodos honestos, respeite os direitos do outro e dos outros. Então, isso certamente é uma coisa. Segundo, portanto, o que nós devemos fazer, eu sempre digo, eu não estou me questionando sobre o crescimento de outras Igrejas, de outras crenças. Eu estou questionando a mim mesmo, como nós não estamos conseguindo evangelizar aqueles que nós batizamos.

Ricardo Kotscho: Dom Cláudio, eu queria voltar ao início da história. O senhor foi bispo de Santo André, honorário, mais de vinte anos, nos anos 1970. E tudo que o senhor viveu naqueles anos agitados das greves do ABC, da redemocratização, qual foi a imagem mais forte que ficou na sua lembrança?

Dom Cláudio Hummes: Lá do ABC? Olha, a imagem mais forte, certamente, foi aquele Primeiro de Maio [dia do trabalhador]. Nós estávamos na matriz de São Bernardo, o Exército havia cercado a própria matriz, estava tudo fechado. Havia sido planejado uma grande passeata em 1º de maio até a Vila Euclides, o campo de futebol onde sempre houve as reuniões e que também estava proibido. Tudo estava proibido em qualquer lugar. No entanto, o comando da greve tinha programado essa passeata e havia a missa do Primeiro de Maio, e eu celebrei essa missa, estava todo mundo lá dentro, quer dizer, quem cabia. Fora, havia uma multidão de gente, o Exército tinha cercado e o povo começou a vir de todos os lados e começou a cercar o Exército, por todas as ruas vinha o povo chegando para essa passeata e essa celebração toda que acabou acontecendo. E, quase no final da missa, nós estávamos ali sentados no momento de um rápido silêncio, de repente, entra um dos sindicalistas correndo e vem dizer: "olha Dom Cláudio, o Exército liberou a passeata". E eu disse: "diga isso no microfone". Quando ele disse no microfone que o Exército tinha liberado a passeata, houve um grito na matriz que eu pensei, realmente, alguma coisa iria ruir. Mas aquilo foi tão fantástico, ainda arrepia hoje a gente, como houve aquele grito do povo pela liberdade, afinal. Então, saímos, a missa terminou, nem fizemos as partes finais, porque o povo começou a se mover e nós todos fomos para a praça, para o campo. Foi realmente um momento assim, muito forte e determinante. O Exército disse: "Não devemos, claro, como é que vamos contra o povo?".

Paulo Markun: O senhor acha que alguma semente daquilo sobreviveu, que hoje nós vivemos...

Dom Cláudio Hummes [interrompendo]: Acho que muitas sementes daquela época, digo isso com tranqüilidade, acho que as greves do ABC elas contribuíram fundamentalmente, substancialmente para a redemocratização do país, certamente.

Paulo Markun: Dom Cláudio, muito obrigado pela sua entrevista. Obrigado a nossos entrevistadores e a você que está em casa. E nós estaremos de volta na próxima segunda feira, às 10:30 da noite. Uma ótima semana e até segunda.

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